sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Marília

Quando Marília morreu eu chorei.
Não de tristeza, nem de dor, mas por medo de algo pior.


Quando Marília morreu, eu sofri.
Não por amor, nem por dor, mas por medo de algo pior.


Quando Marília morreu, eu me perdi.
Não por falta, ou por dor, mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu me odiei.
Não por culpa, ou por dor, mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu temi.
Não por dúvida, ou por dor mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu tremi segurando a faca dentro dela
e sentindo, aquele sangue tão quente escorrer por meus dedos.
Eu temi por algo pior.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Turismo de Cemitério

Eu sempre gostei de cemitério. Sempre gostei de velório e coisas ligadas à morte. Eu não sei se é porque a minha mãe e meu pai não eram daqueles que ficavam pondo medo, não cantavam "A Cuca Vem Pegar" e outras coisas, de forma que assombrações, almas penadas, etc não fizeram parte da minha infância.

Na verdade eu era até um estraga-prazeres. Quando diziam que uma casa era mal assombrada ou cheia de almas penadas, eu entrava lá, abria as janelas e dizia: "Olha aí, gente, não tem alma penada nenhuma aqui não!"... Caminhos escuros onde se escondiam os sacis e outras coisas também me fascinavam. Fiquei três noites em Joanópolis para ver o Lobisomem e a Mula-Sem-Cabeça, que a mulher jura que o filho dela viu, mas eu sou um azarado mesmo. Nos dias que fui nunca apareceram. Já tentei até 13 de agosto de ano bissesto, em plena sexta-feira. Nada.

Eu nasci incrédulo. Essa é a única explicação. Ou minha mãe era tão incapaz de me convencer, que ela dizia mas eu não acreditava. Mas é certo que na minha família a morte nunca foi nem amiga nem inimiga. Choramos a morte dos que se vão com naturalidade, mas não queremos ir junto, como costumam fingir alguns à beira da sepultura. E depois que se vão os esquecemos (eu pelo menos esqueço) e não costumamos fazer visitas aos ossos do defunto que está sete palmos debaixo da terra.

Não faz sentido.

Em cidades menores, como Araraquara na minha infância, os velórios eram feitos na casa do defunto. A funerária punha uma cortininha roxa no portal da casa indicando que ali havia luto. As portas eram abertas, os móveis retirados e a visitação era sempre pública. Afinal todos se conheciam. E a entrada era franca, o que significava que se podia conhecer por dentro a casa de todos aqueles que morriam. Confesso que não resistia. Desde que que me conheço por gente, sete ou oito anos, que perambulava pelas ruas da cidade, não perdi um velório.

Só havia duas funerárias. Ou Micelli ou Almeida. Mas duas funerárias já dava concorrência. Eu preferia os funerais dos Micelli por ter cafezinho e mais alguns agrados. Às vezes fazíamos amizade no velório com outras crianças e ficávamos brincando de pega-pega, até por debaixo do caixão já passei correndo. E eu sempre tive muito apego ao uso das palavras. Então ficava observando como se comportavam as viúvas, e as frases prontas que se repetiam em todos os velórios. A mais comum na minha cidade era que o defundo nunca tinha feito mal "nem para uma mosca". Outra comum era o "tanta gente ruim nesse mundo, e bem ele vai morrer".

O fato foi que eu me diverti demais com os velórios da cidade, aproveitei velórios de ricos que compravam salgadinhos e guaranás e, enquanto uma turma chorava lá, a outra refestelafa de cá, entre risos, piadas e coisas comuns a todos os velórios. Também, chorar 24 horas sem parar, nem a mãe da criança.

Dada a hora marcada, um carrinho era encostado na porta da casa, o caixão era fechado aos berros desesperados dos órfãos, coisa compreensível, e íam empurrando o carrinho até o cemitério. Todo mundo ajudava um pouquinho para colaborar no esforço. Depois passaram a levar na kombi, bem devagarinho e o povo ia atrás. Mas a cidade foi crescendo e os trajetos da casa do finado até o cemitério começaram a ficar longe demais. Não dava para acompanhar a pé. Aí iam de carro, alguns não iam mais e a tradição foi-se acabando.


Para acabar com a festa de uma vez, um prefeito lá que nem quero lembrar qual foi, construiu o Velório Municipal e proibiu fazer velório nas casas. Aí acabou a graça. Velórios municipais são como conjuntos habitacionais: quem viu um viu todos. Já fazem num canto do cemitério e nem tem a procissão. Cada um corre para pegar um ângulo bom de vista. Acabou-se a cerimônia. Virou uma zona. Foi um tempo muito bom. Aprendi demais sobre como um defunto vira santo. Basta não matar "nem uma mosca".

Paralelamente a esse meu fascínio por velórios, eu também adorava andar em cemitérios e ver, pelos nomes mais conhecidos, os mais ricos, quem fazia o maior jazigo. A vaidade é uma coisa tão podre que se manifesta até na compra do caixão mais caro e na construção de jazigos com mármores importados e outras coisas que arquitetos famosos projetam para os que gostam disso. Credo.

Mas, fora os famosos, há os interessantes. Uma observação atenta te leva aos que estão enterrados a mais tempo. Quantos anos viveu. É só fazer as contas do dia do nascimento e da morte. Eu era bom de fazer contas de cabeça. E aos túmulos "classe média" eu dava só uma espiadela. Não tinham muita atração. Era só um granito barato, básico, e uma plaquinha informativa. Eu gostava mesmo era das pontas. Dos jazigos dos poderosos e dos podres de pobres.

Houve uma fase em que o granito e o mármore ficaram caríssimos e então surgiu a moda de fazerem túmulos azulejados. Era uma breguisse, mas ficava mais barato. Já imaginaram uma cruz azulejada em cima do túmulo? Um horror. Já até a década de 50, 60, ainda se conseguia colocar uma escultura em mármore de alguns anjos. Depois encareceu demais e hoje, quem tem, tem, quem não tem, morresse antes.

Por essas semanas, com o sepultamento de dona Ruth Cardoso no cemitério da Consolação, me lembrei que tive a oportunidade de conhecê-lo mas, que azar o meu, não sabia de tantos famosos lá enterrados. Presidentes, Monteiro Lobato, os Matarazzo e tantos outros. Perambulei por lá, gostei demais, mas não reconheci ninguém famoso. Fiquei sabendo das atrações através de um "guia turístico" do cemitério que foi entrevistado no Programa do Jô. A vida me empurra cada vez mais para longe de São Paulo, mas ainda vou visitar de novo o Cemitério da Consolação, dessa vez com o guia, pois quero contemplar o último lar dos que não voltam mais.

Enfim a moda virou e acharam que a morte nivelava as pessoas, de forma que surgiram os cemitérios parques, gramados, sem túmulos. Anda-se pelo gramado em busca das plaquinhas que ficam no chão. O primeiro, salvo engano, foi o Cemitério do Morumbi, onde estão os restos de
Ayrton Senna e da minha avó e família.


De fato nivela as pessoas mesmo, mas por cima. Não tem túmulos mas um pedacinho de terra custa uma fortuna. Como as pessoas andam pelos jardins aleatoriamente, não se cria trilhas. Menos no caso de Senna.

Ali é que nem área de goleiro. Não cresce grama nem a pau. Todo mundo vai lá, lê a plaquinha "Ayrton Senna da Silva", lamentam e se vão. Todos num vai e vem em linha reta. Não tem jeito. Só calçando mesmo. Esses cemitérios não têm charme. São monótonos demais.

Cemitério é cultura. Cemitério conta a história da cidade através dos que se foram e das suas condições financeiras à época da morte. Mostra costumes de épocas, como se colocar a foto do defunto no túmulo. Houve a era dos versos, dos anjos, das estátuas em bronze. Está tudo lá, datado. É só observar. E, como tudo na vida, tem que garimpar. Quem anda pelos meios das quadras acaba encontrando algumas preciosidades.

Finados é o carnaval dos cemitérios. Aconselho não ir nesses dias. A hipocrisia é imensa. Escolha uma segunda-feira normal, lá pelas 10 da manhã, e vá observando, lendo, aprendendo... Lá não há almas penadas, nem fantasmas ou assombrações.

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José Caparica Neto, autor do texto acima, foi escritor, cronista, jornalista e publicitário. Morreu no dia 22 de Outubro de 2010, aos 53 anos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Dias Negros

A luz que incide sobre este corpo não aquece sua pele fria. São dias negros no seio dessa família.
Flores, capsulas de remédio e balas espalhadas por todo o salão. Não sabem há quanto tempo lá esteve, se morreu de fome, frio, tristeza, ou perdeu os miolos comido pelos ratos.

Seus restos mortais agarram uma foto, dando a impressão de que os homens impressos na velha fotografia foram de grande importancia para esse que se foi. O cheiro fétido ainda sutil atraí insetos e outros pequenos canibais que o devoram como um banquete.

Cada hora contada no relógio faz sua massa escorrer pelo chão. O restante de sua pele já escura fica mais emborrachada, escorregadia. Alguém irá descobri-lo dias depois. Ou um vizinho notando ausência de movimento ou uma camareira a arrumar os quartos, o inusitado. Ou ainda ninguém, morrendo eternamente assim, em uma gigantesca sepultura que seria roída anos após anos, junto com seus espólios.

Há cegos que souberam melhor lhe dizer o caminho onde chegou. Não sabemos - ainda - a causa de sua morte. Mas pouco importava seus sonhos, sua identidade, o lado preferido para dobrar o cabelo.

No chão daquela sala, com as cortinas pesadas deixando-o na penumbra, apenas com uma luz sobre ele, devido a um rasgo fino no pano, o que mais me intrigava, brotando em mim o incomodo e a tristeza é que ele era apenas um corpo, sem identificação.

Apenas um esqueleto apodrecido pelo tempo, sorrindo sem parar, com capsulas, balas e flores ao seu redor.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

com o pé na cova

Era semana final do mês de outubro. Do lado de fora, as crianças se preparavam para o Halloween. Todas as crianças, aliás, estragando os planos sem pé nem cabeça de inventar pra 31 o Dia do Saci. Talvez por isso, por não ter pé nem cabeça, Saci e Mula pareceram encaixar bem no plano dos adultos.

Mas essa história não é sobre adultos. Do lado de dentro, fim de mês de outubro, do lado de dentro do cemitério as coisas estavam muito animadas, tudo muito movimentado: em tão-só três dias seria Dia de Finados.

Quem olhasse por cima do muro veria seu Zé Coveiro dormindo, largado, com a pá de um lado e do outro uma imagem de São Ciprião. A movimentação não era dos funcionários, que não eram mais que se Zé naquela cidade Descanso Feliz.

- Pedrinho, vem sua mãe esse ano? Ano passado ficou aquele bolo de amora tão bom, do lado de fora da tumba. Lembra? Tivesse piscado e o bolo sumia antes mesmo de experimentar...

- É. Aquele é meu bolo preferido. Mamãe traz todo ano, todo ano, faz já mais de 20, né? Ou são 30?? HEY!, Afonso, quanto tempo faz que eu tô aqui?

- 27, Pedrinho. 27 anos morto, seu menino.

- Pois bem, mamãe traz esse bolo faz já 27 anos. E a cada ano é mais gostoso...

Passaram-se os dias, deu dia 1º, beirou a boquinha da noite e nada. Teve uma festa tremenda depois das 22h, pré-finadaria, ou algo assim. Tudo cravo-de-defunto enfeitando as campas, a bebida era fogo-fátuo, uma maravilha. Só Pedrinho, que não bebia, parecia aperriado.

- Que foi, menino? – perguntou Jão Cremadinho.

- Nada, eu acho. Só minha mãe que não veio ainda... ela costuma aparecer dois dias antes do dia de Finados, pra ajeitar a campa. Mas esse ano, nada...

Virou a noite, a mortaiada foi-se dormir. No dia seguinte, logo cedo, antes das hordas de vivos inundarem o cemitério com flores e choros, uma pequena comitiva chegou escoltando um caixão. Morreu alguém na véspera dos mortos.

- Belo dia, não?

Na hora do enterro, caixão pra descer na cova, parentes chorando, pulou dali do ataúde uma velha cheia de flores, presentes e um sorrisão que nem rigor mortis tirava. A tampa do caixão caiu pra um lado, a velha pulou pro outro, parentes correram e até um dos mortos teve um ataque nervoso.

- Mamãe! – gritou o Pedrinho, correndo pra velha.

- Meu filho! – gritou a mamãe, dando pro Zé Cremadinho pedaço de bolo de amora.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Robô de Brinquedo

As três leis da robótica são:


1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.

3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.

Beven era um brinquedo caríssimo. De fato havia custado alguns milhares de dólares à Smith & Sons Toys and Eletronic Games. O senhor Smith achava que era um bom e válido investimento para seu tradicional estabelecimento, afinal, quem não gostaria de brincar com um robô de verdade?

Apostando nessa ideia o Senhor Smith havia comprometido boa parte do orçamento da loja adquirindo um dos moderníssimos B-7, um novo robô da US Robots and Mechanical Men que tinha o diferencial de falar. De fato ele não só falava, como podia brincar e cuidar de crianças. Em suma, um futuro sucesso.

Quando Beven chegou à loja, as filas eram gigantecas, dobravam quarteirões, cheias de crianças e até alguns adultos, alucinados para brincar um pouquinho que fosse com a novidade. O sucesso era tanto que após algumas semanas a loja começou a agendar visitas para que se pudesse ver o robô. Beven era mesmo adorável, um pequeno homem de metal, cinzento, vestindo uma bela casaca e com uma cara angulosa que lembrava um dos antigos clows medievais.

Bastava um pedido de um humano e Beven podia dançar, cantar, contar histórias - que nunca se repetiam - , ou até mesmo fazer números de malabarismo e fingir falsas quedas, muito espalhafatosas, que faziam os pequeninos rirem com gosto. Todos adoravam Beven e ele se transformou rapidamente em uma celebridade.

Existiam outros robôs da série B-7, mas aparentemente a US Robots não havia obtido sucesso em sua venda. Primeiro porque eram caros demais, segundo porque fora a grande Metrópole, onde ficava a  Smith & Sons Toys and Eletronic Games, o resto do país sofria um bocado com severas leis anti-robóticas, a maioria delas fruto da pressão de sindicatos de trabalhadores humanos.

O caso era que apesar de todo o sucesso de Beven, outras lojas não queriam correr o risco de leis anti-robóticas jogarem um investimento milionário no lixo. E a despeito da coragem e visão de negócios do Senhor Smith, a verdade é que elas estavam bem certas. Não demorou muito e um proeminente líder religioso começou uma campanha contra Beven, a  Smith & Sons Toys and Eletronic Games e a US Robots and Mechanical Men.

A campanha difamatória consistia em proferir aos gritos, na TV, que os pais estavam deixando que seus filhos fossem submetidos a presença de um ser sem alma, e que portanto só poderia ser o Diabo. E pior, que os deixava brincar e fazer amizade com ele. Foi um baque. A popularidade de Beven caiu pela metade e os olhares de desconfiança dos pais que ainda levavam seus filhos aumentaram e tornaram a experiência - outrora prazerosa - em algo aflitivo para as crianças.

Mesmo assim a Smith & Sons Toys and Eletronic Games continuou a lucrar com o robô e o manteve como destaque de sua loja, mas - por outro lado - a US Robots descontinuou a linha e passou a pesquisar robôs para outras funções, que não a diversão humana. Era o princípio do fim.

As coisas continuaram instáveis por alguns meses e só foram culminar em desastre no final daquele ano, quando Beven impediu um pai de bater em seu filho. Acontece que a 1ª lei da robótica agiu tão forte - como alias sempre age - que o robô se deslocou em uma velocidade sobre-humana, que até então ninguém sabia que ele possuia, e entrou na frente do tapa que o pai desferiu sobre seu filho. Bevin era puro metal e não preciso dizer que o pai machucou - ainda que de leve - a mão com que desferiu o tapa.

A partir dai o caminho da robótica na Terra se definiu claramente. Esse pai processou ao mesmo tempo a Smith & Sons Toys and Eletronic Games e a US Robots - que nem mais produzia a série B-7 - conseguindo uma mudança severa da opinião pública e - surpreendentemente - uma vitória jurídica que serviu para desencorajar quaisquer projetos futuros da US Robots - e de fato eles levariam décadas para retomar os robôs humanóides - e para levar inapelavelmente a falência a Smith & Sons Toys and Eletronic Games, que fechou as portas em Março do ano seguinte. 

Bevon foi considerado uma ameaça pelo tribunal do júri e destruído em seguida, mesmo com a sensata argumentação dos técnicos da US Robots and Mechanical Men, que haviam dito que o robô apenas havia interpretado com rigor excessivo a 1ª lei e que precisava de pequenos ajustes, mas que nunca havia oferecido risco para qualquer ser humano. Acontece que a humanidade, quando cria algozes, dificilmente volta atrás em seus pré-julgamentos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Infinidade

Adam Saviour pisou dentro da Caldeira. Seus lados eram perfeitamente redondos e ela se ajustava confortavelmente dentro de um eixo vertical composto de barras largamente espaçadas, que tremeluziam numa neblina invisível, dois metros acima da cabeça do homem. Este tomou os controles e acionou calmamente a alavanca de partida da Caldeira.

Não esperava sentir qualquer movimento e, de fato, não se moveu. Ao menos não em qualquer direção espacial observável. Voltando-se para um marcador digital diante de seus olhos, pôde ver números subindo vertiginosamente até 129000. Era o século para o qual estava se dirigindo, mais exatamente no ano de 128048 da Era da Infinidade.

Enquanto os motores temporais cuidavam da transferência física de Saviour e sua Caldeira através dos milênios, seu destino espacial era idêntico ao endereço de partida: a câmara de viagem temporal, mas agora nas instalações da Infinidade do século 129000. O próprio Saviour não sabia exatamente como aquilo tudo funcionava, já que mesmo tendo um cargo importante como Técnico, tinha muito pouco envolvimento com Mecânica Temporal e Matemática de Cronotopos. Sabia, no entanto, que aquela Caldeira cruzava o tempo incontáveis vezes simultaneamente nas Infinidades de incontáveis séculos, e que nunca houveram erros de cálculo ou destino.

Percebeu que o mostrador havia estancado no dia 15 do mês 3 do ano de 128048, às 9h em ponto. Era, realmente, muito raro que um Infinito se atrasasse para um compromisso, dados os meios de transporte. Olhou para fora da Caldeira. Durante a viagem, as barras cinzentas se fundiram em uma cortina de luz tremeluzente, que agora era a única coisa que o separava, de um lado, da Realidade Temporal e, de outro, da Infinidade. Ajustou os controles e, movendo-se para fora da cortina, sentiu o calafrio psicossomático oriundo da entrada em um novo ponto do tempo.

Danny Javers o aguardava, com olhar impassível. Ao observar a sala de Caldeiras em que se encontrava, Saviour não conseguiu disfarçar uma sensação de incômodo. Devia ter lido pelo menos alguma coisa sobre o século 129000 antes de viajar, e agora se amaldiçoava por não tê-lo feito. As paredes não pareciam paredes, mas formações absoluta e opressivamente lineares, retas, perfeitas, de alguma presença que poderia ser confundida até mesmo com sonhos, mas jamais com matéria comum. Saviour rapidamente compreendeu que estava em um século orientado para a energia, da mesma forma como o seu distante século 251 era orientado à matéria. Javers, à sua frente, era um exemplar absolutamente típico de um Homo sapiens, exceto pelo traje eletromagnético que o vestia, dando-lhe o irritante aspecto de um caleidoscópio psicodélico. Ao notar o evidente estranhamento de Saviour, Javers regulou as cores da sala e de sua própria roupa para tons mais estáveis.

- Muito prazer, Técnico Saviour. Sou Javers Danny, Computador-Sênior deste século. É uma honra tê-lo em nossa Infinidade.

- Peço que desculpe minha falta de hábito com os costumes de seu tempo, Computador Javers – Saviour sabia ser polido e, mesmo que não soubesse, convinha muito pouco ser rude com alguém de um cargo tão alto como um Computador-Sênior.

Caminhando pelas instalações da Infinidade local, Saviour pôde ver em funcionamento a arquitetura alienígena daquele século, onde as salas não tinham portas, com paredes que se abriam naturalmente quando alguém a menos de 30 cm fazia um gesto simples com as mãos. Dessa forma, Saviour não pôde definir por que cômodos havia passado. Chegaram, finalmente, à sala pessoal de Javers.

- Imagino que possamos tratar imediatamente do assunto de nosso encontro, sem mais delongas, dada a importância da questão.

- Sem dúvida, Computador. Serei o mais objetivo possível, ainda que minhas teorias necessitem de alguma explicação prévia.

- Pois faça-o com toda a liberdade e nenhuma pressa além da conveniente – Javers fez um gesto para um canto de sua mesa de energia, e alguns aparelhos igualmente energéticos começaram a operar, ainda que Saviour não fizesse a menor idéia acerca de suas funções. Abriu uma pasta que, feita de plástico e papel, parecia igualmente alienígena para Javers.

- O que sabe sobre o Técnico Andrew Harlan, senhor Computador? – as palavras de Saviour atingiram os ouvidos de Javers. Aquele, mais do que muitos, era um assunto pouco falado nos corredores temporais da Infinidade.

- Foi o mais competente e destacado Técnico do Tempo de que já se ouviu falar. Nasceu no século 93 e morreu aos 89 anos de fisiotempo, na Terra do século 20 ou 21.

- E o que mais sabe, senhor Computador, sobre esse homem?

Javers encolheu os ombros. Respirando profundamente, levantou os olhos da superfície reluzente da mesa e encontrou o olhar inquisitivo de Saviour. Sabia que estava diante de um Técnico, o mais ingrato e ao mesmo tempo glorioso cargo da Infinidade.

Sempre que determinado evento na Realidade Temporal se mostrava nocivo ao destino e bom andamento da raça humana, a Infinidade intervinha. Primeiro, um Observador era enviado ao ponto crítico, onde fazia centenas de anotações sobre diversos fatores relevantes. Em seguida, um Computador – não um aparelho, mas um ser humano treinado exaustivamente em Cronomecânica de Populações – analisava os cálculos e apresentava seu relatório a um Técnico. A este, talvez o mais crucial ponto do procedimento, cabia a delicada e ingrata tarefa de decidir e executar pessoalmente uma MMN, a Mínima Mudança Necessária para que se obtivessem os resultados esperados a longo prazo. Estes podiam ser de diversas naturezas, mas normalmente envolviam a alteração de centenas, milhares, às vezes dezenas de milhões de indivíduos, alguns a ponto de se tornarem pessoas completamente novas e diferentes. Aquele era um cargo similar ao de um carrasco, e igualmente imprescindível. Alguém precisava ser a mão que toca e decide o futuro da humanidade, e poucas pessoas queriam tal responsabilidade para si.

- Andrew Harlan – respondeu o Computador-Sênior Javers – foi, entre outras coisas, o responsável direto pelo fim da Eternidade.

- E o que o senhor entende como Eternidade, Computador Javers?

- Sei muito pouco sobre ela, os registros na Academia são escassos e imprecisos. Por volta do século 26, o cientista Vikkor Mallansohnne decifrou as primeiras e mais fundamentais equações da Mecânica Temporal, que posteriormente deram origem a um grupo de humanos que decidiu monitorar e conduzir os rumos da humanidade ao longo do tempo. Sua missão era garantir a continuidade da espécie por tanto tempo quanto o Universo permitisse, e rapidamente se tornaram ditadores invisíveis controlando a Terra como em um palco de marionetes.

- Está certo. E o que aconteceu com a Eternidade, Computador Javers?

- Os homens do século 10000 conseguiram desvendar a Mecânica Temporal e, sozinhos, descobriram a Eternidade e seus planos. Conceberam um contraplano, arquitetado e executado pela Dra. Noys Lambent, para encontrar uma falha no sistema. Essa falha era o coração de Harlan, que foi convencido a dar fim à maior instituição até então conhecida pelo homem.

Saviour anotava palavras isoladas do que Javers dizia. Fez uma pequena pausa, como se quisesse mudar os rumos da entrevista, e então prosseguiu.

- E o que houve com a Eternidade?

- Harlan a expôs a um paradoxo existencial quando enviou seu próprio criador, o Dr. Mallansohnne, para um século onde os avanços tecnológicos não permitiriam a criação do Campo Cronotópico. Assim, todas as conseqüências do surgimento de tal invenção foram desfeitas.

- E os habitantes do século 10000?

- A própria Dra. Lambent tornou-se uma figura histórica ao oferecer-se para levar Harlan até o século 20 e lá passar o restante de seus fisioanos com ele. Sem ela o plano jamais teria ido adiante. Uma nova instituição foi criada, a Infinidade, para cuidar dos assuntos temporais.

- E porque é que nós, da Infinidade, não somos ditadores como o eram os Eternos?

- Simples – e esta resposta o Computador Javers parecia ter aprendido muito cedo na vida – somos uma instituição de humanos, mas totalmente governada por Robôs Positrônicos, o que nos impede de desvirtuar seus princípios.

- Exatamente, Computador Javers. Somos homens que criaram Robôs incapazes de fazer o mal a um ser humano, e que então deram aos Robôs ordens para impedir que os próprios homens fizessem mal a seus semelhantes. A Infinidade é controlada por um imenso e infalível cérebro positrônico, estruturado sobre as quatro leis da robótica.

- Não vejo, Técnico Saviour, a razão de cruzar tantos milênios para sabatinar-me acerca de tais conhecimentos.

- Logo entenderá. Vê esses diagramas temporais? Referem-se a um período de tempo compreendido entre os séculos 242 e 243? Saberia referir de alguma forma tal período?

- Sim – resmungou Javers, começando a cansar-se de responder perguntas evidentes – é o milênio da Fundação, quando Hari Seldon criou seu plano de desenvolvimento para o 3º Império.

- E o Computador saberia me dizer quem, exatamente, é o grande e maior responsável pelo bom andamento e tão exemplar sucesso do Plano Seldon?

- De acordo com os registros, foi o Robô Positrônico conhecido como Daneel Olival. Ele teria deduzido a Lei Zero a partir das três originais, e assim teria desenvolvido um plano inimaginavelmente complexo para garantir o bem-estar da humanidade.

- Exatamente, Computador. E agora finalmente chegamos onde pretendia. O senhor vê as extrapolações matemáticas que fiz sobre as equações que regem o destino de Daneel? Consegue notar, abaixo da quinta linha, um condicional invariável?

E Javers, de fato, via os pontos indicados por Saviour, e a gradual mudança de tonalidade em sua pele revelou que, sem dúvida, havia compreendido tudo.

- A Eternidade ...

- ... foi planejada e construída por Daneel Olival. As equações temporais, os motores cronotópicos, tudo. Ele encontrou, finalmente, uma forma infalível de salvar a raça humana, e a realizou.

- Mas, se isso é verdade ...

- Então nós logramos seus planos? Não seja tolo, Computador Javers. Daneel sabia que Robôs Positrônicos não poderiam jamais dar ordens a seres humanos, a menos que os próprios humanos assim lhes ordenassem.

O fôlego deixou os pulmões de Danny Javers. O quadro que o Técnico Saviour lhe apresentava era demasiado absurdo, demasiado fantasioso, demasiado improvável e, o pior, estava completamente demonstrado e embasado pelas irrefutáveis extrapolações matemáticas que seus olhos observavam. Retomou o ar e perguntou, receoso.

- Está dizendo, Técnico Saviour, que o surgimento de Mallansohnne, a formação da Eternidade, sua destruição casual por Andrew Harlan e a criação de uma Infinidade feita de humanos e controlada por Robôs ...

- ... é um grande, intrínseco e incompreensível, ainda que inadmissivelmente perfeito, plano de Daneel Olival, com o objetivo de cumprir seu dever que era cuidar da raça humana.

- Então é isso? O senhor veio até aqui para mostrar-me que somos simples e irreversíveis marionetes nos dedos mecânicos de um Robô que deixou de existir ainda no século 250? O que pretende com isso?

- De forma alguma, Computador. Vim porque preciso, ou melhor, a raça humana precisa de sua ajuda.

- Não entendo como posso ajudar de qualquer forma diante de tais circunstâncias.

- Consta dos arquivos da U. S. Robots and Mechanical Men que os projetos lógicos responsáveis pela dedução da Lei Zero por parte de Daneel são oriundos de pesquisas em robopsicologia conduzidas pela Dra. Susan Calvin, no século 21. Como creio que já esteja suficientemente esclarecido, o momento em que Daneel Olival deduz a Lei Zero a partir das três primeiras é o epicentro de uma onda civilizacional que garante a prosperidade humana por mais de um milhão de anos.

- E imagino que a Dra. Calvin seja o objeto de seu interesse. Mas o que haveria ela de ter em comum com meu século? Grande Tempo, Saviour, ela é habitante da pré-história, quando nem mesmo a Eternidade existia ainda.

- O que fazemos em vida ecoa pelos milênios, Javers. Pretendo acessar dados elaborados por Erton Nalaar, arqueólogo da pré-história que retomou os trabalhos de Janov Pelorat sobre a Terra e a origem da raça humana. Em seus papéis, pretendo encontrar informação suficiente para localizar e evitar um acidente de trajeto que julgo ser capaz de encerrar a vida da Dra. Calvin.

O Computador-Sênior Javers engoliu em seco. Finalmente, após mais de uma hora de discussão e explicações, compreendera as reais proporções do risco que se apresentava. Se tudo aquilo estivesse mesmo correto...

Olhou, sobressaltado, para o Técnico Adam Saviour e perguntou:

- O senhor afirma, desta forma, que existe uma variação imprevisível na linha do tempo da Dra. Susan Calvin e que, caso ela não seja corrigida ...

- Sim, Computador Javers. Se ela não for corrigida, existirá uma probabilidade de 21,457% de que Susan Calvin não escreva tais teoremas.

- ... impedindo assim a criação de Daneel Olival.

- ... e um milhão de anos na história da humanidade.



Em memória de Isaac Asimov, pai da Fundação, da Eternidade, da Robótica e de incontáveis sonhos que me ensinaram a a crer na ciência e não temer o infinito.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Homem Que Queria Ser de Lata

A data inicial do projeto perdeu-se com o tempo. M. P. Mattos não se recordava quando a idéia primordial surgiu em sua cabeça, mas lembrava-se dos meses seguintes em que, debruçado sobre livros e papéis, trabalhava em sua execução.

Engana-se quem pensa que seu projeto mudaria o mundo. O futuro não só estava exposto lá fora, como era vívido ao seu lado, em seu fiel companheiro, Amper. Há tempos os robôs faziam parte do cotidiano humano e, até dado momento, nenhum se tornou mais inteligente que o homem e urgiu uma rebelião. Tudo estava calmo.

O processo a que M. P. Mattos trabalhava era delicado. Envolvia a biologia humana em todas suas faces. Foi necessário consultar amigos profissionais do ramo. Diversos que lhe bateram a porta até um que, feliz com o desafio, concordou com sua loucura.

Era uma ferramenta de engenharia tão bem produzida que, em todos os testes, supria perfeitamente a parte humana. Era ainda melhor, impedia que eventuais acidentes ocorressem. O que poderia, muito bem, deixá-lo viver mais.

Possuia o tamanho do original, menor do que um punho, e funcionaria da mesma maneira tradicional, conhecida pela medicina desde que o primeiro homem resolveu abrir outro para descobrir o que era aquilo que batia dentro de si.

Ninguém contrariou M.P. Mattos. Estava concentrado para realizar seu desejo com afinco. Era o sonho de sua vida. Uma alma que segue em linha reta sem enfrentar problemas. Sendo capaz, apenas, de ser aquilo que quer.

O amigo fez o corte no peito de Mattos com cuidado, observado por Amper, seu assistente-robô. Tem certeza?, perguntou. E ele deu um longo suspiro.

Dentro de si as imagens sincoparam em belos momentos, que chegaram a, momentaneamente, acelerar seu coração. Aquele objeto que, em segundos, seria desligado de seu corpo. Sim, tenho, confirmou.

Cada artéria e veia recortada do corpo do paciente desligava de uma vez por toda seu coração. Destruía uma máquina viva de sentimentos que, por vontade própria, M. P. Mattos decidiu abdicar. Tantas batidas de tristeza e mágua havia se desprendido daquele coração. Dando-lhe a única certeza de que, para viver, seria necessário não mais amar.

Era a solução do coração de metal construído por ele e seu fiel amigo robótico. Uma composição que não guardaria em si amores e tristeza, mas sim, apenas bombearia seu sangue e o faria viver, sem ser escravo das incertezas.

Foram cinco horas para finalizar a cirurgia com a certeza de que aquele coração de lata não rejeitasse seu dono. M. P. Mattos acordou eufórico. Dolorido, mas vivo.

Imaginava que a partir de agora teria uma vida plena. Sem a sombra dos enganos, e os laços do amor, que só apertam, como nós. Tudo que seria capaz era observar o mundo, sem ama-lo de fato.

Era assim o retrato que tinha de sua felicidade.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

bronzeamento satisfatório ou seu dinheiro de volta

Bronzeamento artificial era passado. As tecnologias estupidamente novas e caras convenceram todas as mulheres multimilionárias do planeta – cinco apenas - a embarcarem numa nova experiência: spa fora do território terrestre.

E eis que Martha me convence a vir aqui. Sim, eu sou um dos 8 multimilionários do planeta, possuidor de uma das 5 belíssimas damas ultra-ricas. Os outros 4 donos do mundo tiveram a decência de não casar... pois é, uns enricam por sorte, outros por competência.

Fato é que estamos aqui, desde ontem, e Martha sumiu pelos corredores desse lugar. Uma hostess loiríssima, alva, linda, alta, magra, um pedaço de estrela, catou minha esposa pela mão assim que desembarcamos na ponte de atracação. Evoé!, bela hostess. Pude ficar em paz e solidão desde ontem, nesse paraíso tecnológico futurista com paredes refratárias e muito, muito ar condicionado.

Andando aleatoriamente pelas quase infinitas bifurcações, com um copo de Dinamite fumegante como companhia, acabei chegando numa porta que dizia: “Dono”. É, tipo isso mesmo, como diziam “John U, detetive particular”, ou “Gregory Home, head doctor”, essas coisas. A diferença é que essa porta falava, e não era uma gravação de secretária eletrônica.

Ela disse: “Dono”, e eu: “Ahn?”. A porta respondeu “Aqui é o gabinete privativo do dono deste spa, seu panaca” e eu finalmente entendi. Enfim, como Martha não dava a impressão de voltar de seja lá onde estivesse, achei por bem tocar a campainha. Entendam: é difícil achar companhia num lugar fora da Terra em que só você e mais 3 pessoas tenham condições de pagar. Sério. Não faço nem ideia de onde caralhos vem todo o dinheiro desse lugar, mas com certeza não é de uma freguesia muito grande.

A porta abriu, de todo modo, e estranhamente gemeu enquanto eu atravessava o batente. O dono do lugar, largado num sofá luxuosíssimo, olhava pra mim com um sorrisinho sarcástico. Tinha dois copos de Dinamite na mão – na MESMA mão, que se dobravam em dedos pros dois lados, 10 dedos e 2 palmas. Ok, eu tenho muito dinheiro, não posso me assutar.

- Mas que porra é essa!?

Ok, acho que me assustei. Ele deu outra risadinha e se apresentou. Hélio, o nome, dono daquela estação inteira de bronzeamento e veraneio. “Porque, veja só”, ele começou a explicar, “não tem nada mais lucrativo que bronzeamento e veraneio num lugar em que sempre, SEMPRE há sol e verão. Não é de derreter o cérebro, isso?”

É. Era. No Sol é quente pra caralho, a propósito.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O Ladrão

O portão anunciava a chegada do homem em um som gritante. A vizinha espiava através da cortina translúcida, corria ao telefone e avisava as amigas. “Ele voltou”, dizia.

A casa estava suja pelo pó e pela ausência de limpeza. Mas ele não se importava.

Empurrava a sujeira com o pé enquanto abria a porta e o que ficasse, lá ficava. Acendeu a luz, mas ela oscilou e piscou, deixando a sala no escuro. Teve de ir até a cozinha em busca da luminosidade. Abriu a porta e o encontrou quase no mesmo lugar que o deixara, duas semanas antes.

O cachorro levantou os olhos para ele, na esperança estúpida de ser notado. Mas seu olhar seguia firme para o interruptor. Somente quando o acendeu, notou o volume no chão.

Havia o seguido há quase um mês para a casa. Em um momento de fraqueza, sentou na calçada e fez uma carícia. Bastou um toque no animal para que o canino sentisse em casa. E o acompanhou na longa caminhada para casa.

Parou no caminho para comprar um sanduíche e, como estava com o bolso forrado de dinheiro, comprou um para o animal também. Jogou no chão, fazendo com que ele se quebrasse em pedaços. Mas o cachorro não se importou. Comeu de maneira feroz, entupindo a barriga marcada pelos ossos.

E lá estava em sua cozinha, enrolando em si mesmo, esticando a cabeça perto de seu pé. O homem suspirou e não reagiu. Imaginou que ele deveria estar com fome. Abriu a geladeira e jogou um enlatado aberto no chão.

Voltou para a sala, esvaziando os bolsos, foram duas semanas promissoras. Não que tudo estivesse no casaco. Guardava na casa de um amigo, para evitar a justiça.

Cochilou. Não viu que hora despertou mas já era madrugada, o cachorro o fitava na sala. O que foi, perguntou. O rabo do animal começou a se balançar. O homem caminhou até a janela, o posto já tinha fechado. Merda, disse alto, com fome e sem comida. E o cachorro aproximou-se. Não estou falando com você, maldito. E forçou o pé contra o ventre do animal. O impacto o fez ir para o lado e gritar. Sentar resignado em um canto, com olhos de dor, mas ainda com esperança.

Era caminhar ou passar fome. E ele optou pela primeira opção. Teria de ir mais longe por qualquer porcaria que matasse sua fome. Os olhos estavam embaçados pelo sono.

Meia hora para ir e para voltar, já tinha comido e bebido no caminho, jogado os restos no chão. Nada para o cachorro. Estava cansado, nem percebeu que a luz da cozinha estava apagada.

Foi um baque seco. Um choque em seu ombro que o fez se deslocar para o chão e policiais que brotaram do chão, ele diria, mais tarde, em seu depoimento. No cansaço, cometeu o deslize de dizer ao homem do posto quem era e, conhecido da polícia, precisou apenas de quinze minutos para que decretassem sua prisão.

Ele sabia que esse dia ia chegar, era inevitável. Mas não suspeitava que justamente aquele animal, aquele maldito cachorro, bradaria de maneira tão feroz contra aqueles policiais. Latiria como se cuidasse de sua própria vida, ameaçando-os.

Com as mãos nas costas, sendo levado para a viatura, pousou seus olhos que iam se distanciando do cachorro. O único que havia o defendido até então. Tinha sido sua única família e, por um momento, sentiu remorso.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

avorismo

num dia dedicado à velhice, faltando somente uns minutos, é digno que se vos fale: antes tarde do que nunca.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O Sonhar

[Numa sala no limiar dos sonhos]

Lita: Hector querido, onde vai a essa hora?

Hector: Sairei.

Lita:                 Mas pra onde? me diga amor!

Hector: Para onde mais? Para o sonhar eu vou!

Lita: Mas não sei meu amor, se me sinto
         segura com você a vagar por aí.

Hector: Não irei por aí... sabes muito bem.

Lita: Não te entendo. Tens tudo aqui.Não tens?

Hector: Claro que sim! Mas tudo não me basta.
              Quero mais!

Lita:                          Então creio que terás
        agora mesmo que fazer uma escolha.

Hector: Lita, meu amor, sabes bem que sempre
             te amei, mas nada disso sobrevive
             quando é preciso uma escolha fazer.
             A escolha mata o amor. E fico sem
             um e sem outro, totalmente incompleto.

Lita: Pois escolha! a hora já tarda!
         Logo mais anoitecerá e os portões
         do sonhar se abrirão. E deves então
         partir ou ficar, qual seja a opção.

Hector: Escolho esperar o momento mais
              certo de partir rumo ao infinito
              sem por isso ferir teu coração.

Lita: Esperemos juntos então. Me dê
       a tua mão pra unidos ficarmos,
       mais próximos do que já estamos,
       e pra que próximos permaneçamos,
       até essa noite acabar.

Hector:                             Sonhar...
            Não... esperarei o quanto for!

[e permaneceram unidos, por todo o tempo dos sonhos, sem saber que nada do que viviam era real]

Breve, Conciso e Auto-Explicativo Diálogo Dramático

- Lívia, acabou.
- Ufa!
- Não, Lívia, é sério. Acabou mesmo.
- Não, tudo bem, eu sei, eu também estou falando sério.
- ...
- Então é isso, boa sorte para você na vida e muito obrigada por tudo, viu?
- Tá bom... de nada.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Caso 057/10: cavaleiro das trevas

Contemplo o silêncio equiparado a minha dor. Lembro-me da última vez que torci um dos pés viciados. A velha dor conhecida que surge, de tempos em tempos, no caminhar descompassado.

Fiz uma promessa a mim mesmo naquele dia. Sentir a dor. Não me tornar escravo dela e aceita-la. Caminhei por muito tempo firmando os dois pés no chão, com força. Meus dentes rangiam de dor, a testa arqueava mas meu passo não cessava. Mantinha-se contínuo. Aceite a dor, eu dizia. Mas a cada passo no chão, uma força lacerante gritava não dentro de mim.

Nos últimos meses, envelheci mais do que deveria. Bebi a poção reversa, tomei banhos em águas antigas. Admirei por dias minha dor nas costas, até ela ser a regente de mim. Forçar-me a dizer"desisto", ajoelhar ao chão e confirmar que a agudeza crônica de uma dor não guarda nenhuma beleza.

Ontem meus olhos abriram como fazem todos os dias. A luminária do quarto acesa, estranhamente dando-me mais conforto que a escuridão total. E a senti. Outra dor. A sensação fulminante debaixo da sola de um dos pés. Evitando que eu caminhasse com destreza natural.

Repassei meu dia anterior e nada, exceto força que fiz para retirar um encaixe, justificaria tal dor. Estava, novamente, a mercê de ninguém. Me transformava na gargalhada no escuro, na zombaria de Deus.

Os poucos passos que dei incitavam meu pé a inclinar-se, tamanha dor. Mesmo com a esperança de uma noite de sono purificadora dessa dor, meus olhos se abriram como fazem todos os dias e a sola de meu equilibrio, mais uma vez, me enganou.

Cada ato bufão de minha dor, cada marca que me compele a uma sensação de desamparo, me aproxima mais da tristeza noturna. Do espaço obscuro onde todos sofrem do mesmo estigma. Muitos longe do silêncio, sussurando a ladainha profunda de quem, para sempre, viverá em abandono.

É quando meus olhos se fecham, fazendo com que a cegueira impeça que ocorra lágrimas furtivas. Lágrimas que não me permito chorar. Não por mim, não pelo homem que sou.

Sento-me na cama de olhos prostrados ao chão como meu maior desafio. Primeiro a perna boa, direita, depois a dolorosa. E levanto. Mantendo-me com os pés abertos, a procura de equilíbrio.

Uma parastesia sobre dos pés até minha garganta, fechando-a em um nó. Prendo a respiração, esmago os dentes um contra os outros, alimento me dessa nova dor. Novamente, ouço a mim mesmo. Enfrente-a, você pode supera-la. Mas cada passo é mais um entalhe cravado. Pulso de dor que me corrói até o estômago.

Retorno a sentar. O silêncio é a unica matéria viva nesse cenário, além de mim. Estou só. Compreendendo da maneira mais fria e dolorosa as palavras indizíveis por nossos pais. Nossa condição é estarmos, apenas, a margem de nós mesmos. Ilhados em um abismo.

Sem pedidos de socorro. Sem ajuda. A mercê de nossas próprias causas, dos punhos que deferimos, do sangue que escorre nos lábios.

Introduzo o ar para os meus pulmões. Cerro as mãos com força, imaginando que elas podem sangrar. Estou sozinho e nada mudará esse fato. E levanto. Os dois pés cravados ao chão. A dor torna-se mais aguda, minha respiração aumenta. E continuo. Por si só prossigo até desistir e me render a ninguém.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

à espera: micropeça em meio ato

[A luz sobe gradualmente. No centro do palco, um ator gordo e trajado feito um sir decadente dos fins do XIX steampunk. Aparência levemente próxima à de Sérgio Mamberti – que aliás, trabalhou com meu avô]

(Homem) RAIOS E TROVÕES! RAAAAAAIOS E TROVÕES!
Ouve os raios, ouve!
Um cabum atrás do outro, e raios, e brum!, garoto, ouve os raios e os trovões
chegando dia hoje, na véspera de sua tia.
...
Como se esqueceu? Meu deus, se esqueceu?! Amanhã chega sua tia, pra ficar uma temporada, ora, faz um ano que a casa toda foi avisada e você se esqueceu?

[Sonoplastia de trovões. Piscam luzes brancas, flashs, feito fogo de corisco]

(Homem) Houve um tempo em que ela vinha quase duas vezes, de visita, você lembra? Vinha no começo e fim do ano, ou duas vezes ao mesmo tempo, dependendo do sentido que se desse aos ponteiros do relógio. Ah, meu sobrinho, naquele tempo os ponteiros não tinham assim tanto sentido...

[Trovões ressoam e um relâmpago arrebenta a porta de entrada. Parada em pé na soleira do castelo, uma mulher com roupas leves meio hippies, Flores no cabelo, rosto molhado e pele de pêssego. Sim, ué, o diretor sou eu ou não? Quero uma mulher com pele de pêssego, ora porra...]

(Homem) Raios e trovões, prima Vera, meu bem, por que chegou tão cedo assim?

(Vera) Aquecimento global, acho eu...

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Bonecão

Não vou enrolar, nananinanão! Falarei já!

Eu sei que sou motivo de piada, sei disso. Sei que apareci no jornal nacional, bêbado, dançando frevo, com aquela sombrinha colorida... meu Deus, o guarda-chuvinha... Ali, de uniforme, uniforme e sombrinha colorida... ridículo, fora de compasso, dançando junto com aquele povo suado... aparecendo para o país todo no jornal nacional... jornal nacional mãe do céu! Que diabos eles tem a ver com o que eu faço nas minhas horas de folga?

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, mas vocês vão me dizer que foi o inusitado de um homem uniformizado, vestido de astronauta e com uma sombrinha colorida, e dançando frevo nas ladeiras de Olinda, seguindo os bonecões... os bonecões... eu mesmo ganhei o apelido de O Astronauta Bonecão... foi 1º lugar no TT mundial... droga de vida...

Vocês devem estar realmente se perguntando o que um astronauta estava fazendo, tal qual um bonecão, dançando nas ladeiras de Olinda, com uma indefectível sombrinha colorida... porque? Eu não deveria estar a bordo da missão espacial que saiu naquela tarde?

Claro que deveria, mas a mídia confundiu um pouco as coisas, foi na onda do twitter e não checou as informações... maldito jornal nacional... e maldita sombrinha colorida...

Acontece, meus amigos, que não sou astronauta coisa nenhuma. Sou apenas um cara normal, um cara normal com sérios problemas com álcool... um cara normal, bêbado, que caiu no frevo e que por um acaso havia ganhado uma promoção na internet para voar nessa inédita missão espacial turística...

Sim, eu era apenas um cliente... um burro o suficiente para não ir à viagem mais desejada do século, porque bebeu, se engraçou com um travesti e terminou dançando frevo em uma ladeira em Olinda... OLINDA MEU DEUS, COM A MALDITA SOMBRINHA COLORIDA!

Sim, eu sei que todos vocês querem saber, todos vocês... como será que aconteceu? o que levou esse pobre diabo até esse ponto de decrepitude?

E saberão, eu contarei... na verdade já contei, basta comprarem minha auto-biografia intitulada ''Como um cliente de vôo espacial acabou dançando frevo nas ladeiras de Olinda"! A venda em todas as livrarias do país!

O que? Você me acha oportunista? Foda-se sua opinião, experimenta beber todas e acordar vestido de astronauta com uma sombrinha colorida e abraçado de um traveco!! Aposto que você iria querer lucrar em cima disso também, não ia?

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

depois toma o corpo e acaba no pé

- Táxi, senhor?
- Não, obrigado.
- Tem certeza, senhor? É mais seguro ir conosco agora do que se aventurar pra fora do aeroporto. Os táxis não registrados costumam se envolver em acidentes, seqüestros, assaltos...
- Não, meu amigo, obrigado.

...

- Tem certeza, senhor? Cobro bandeira 1, sem problema. E olha que essa hora, segunda-feira de carnaval, não vai ter oferta melhor.

...

- Senhor?

A empresa VoeJetroTon tinha um nome horrível mas uma proposta de viagens maravilhosa: “Voe conosco, durma o trajeto todo, não gaste com serviços de bordo e desfrute de um excelente construto psiconeural de projeção holográfica”. O que significa, em vocabulário leigo: “Te daremos uma droga para dormir e enfiaremos no seu cérebro condutores de eletricidade boçalmente afiados, enquanto seu corpo baba na poltrona e seu cérebro assiste a um dos 732 canais intergalácticos sem a menor variação na programação habitual”.

Proposta pra nenhum macaco de calças recusar, não acha?

Acontece que o vôo 774BRpe da VoeJetroTon, trajeto Alpha do Centauro – Mirandópolis, estava um pouco avariado. Faltavam drogas pra dormir, condutores de eletricidade e pedra de amolar. O que fizeram, então? Drogas pra embriagar, cabine de teleporte e, já que ninguém lê o contrato de transporte e segurança, uma coordenada aleatória do planeta destino. A Terra.

Porque, como todo cidadão galáctico está cansado de saber, a primeira coisa que as empresas de aviação espacial fazem quando a nave está lotada ou faltam dispositivos para todos os passageiros é, sem reticências, atirar para fora da nave os passageiros que sobram. Solução óbvia.

E foi o que aconteceu com Zwallyi, do planeta-dormitório Calpha de Centauro. Quando reintegrado no Aeroporto Internacional dos Guararapes, Recife, Pernambuco, em plena segunda-feira de carnaval, o taxista Rosemiro nem estranhou. Alguém verde com antenas e camisa florida, mala na mão e óculos escuros só poderia ser, obviamente, um turista indo pra Olinda. Ainda mais embriagado daquele jeito...

- Senhor?
- Tá, tá, me leva logo pra esse lugar. Que tem lá de bom?

- Em Olinda, hoje? Rapaz, é a melhor coisa dessa galáxia!

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Meu Sentimento de Patriotismo

Após um período de recesso, estava morrendo de vontade de voltar pro Clube com uma narrativa, minha evidente modalidade favorita de texto. Mas o assunto me pareceu sério, e eu mesmo estou sério demais nos últimos dias para escrever algo menos opinativo.

Nunca senti absolutamente nada de especial em relação ao Brasil. Esse furor nacionalista, fomentado a cada dois anos pelas eleições e todo domingo pelo Galvão Bueno, essa coisa de que Deus é brasileiro e o cacete. Isso tudo me inspirava estranheza quando mais jovem e atualmente me inspira pena e compaixão.

Porque não tem nada mais deprimente do que ver um coitado de um sujeito ganhando 500 mangos por mês, tendo que deixar uns 150 em impostos para um governo que está pouco se lixando para ele, tendo que sustentar família e comprar caderno para o filho estudar em uma escola que se esforça para manter toda a família num mesmo nível de ignorância operacional, e ainda por cima gritando "Brasil!!!" porque a seleção fez um gol. E quando a gente enfia 5 a 0 nos EUA, parece que a diferença social e econômica entre os dois países fica perdoada, porque afinal de contas eles têm dinheiro e vivem bem, mas a gente é pentacampeão. Ta pago.

Eleições conseguem ser ainda mais cruéis, ainda mais desumanas do que o esporte. Passam anos e anos bebendo champagne e Blue Label, conhecendo os 5 continentes, fazendo esbórnias e orgias saturnais com prostitutas de 16 anos de idade, enchendo o rabo de cocaína e outras coisinhas mais, e tudo com o seu dinheiro. Tudo com aqueles 150 mangos de impostos que cada coitado que trabalha tem que pagar para não dormir no xilindró. Aí chegamos no ano eleitoral, e começam a falar que o voto é o exercício da cidadania, que o processo democrático é um direito adquirido, que vivemos em um país livre e somos dessa forma livres para escolher nosso futuro na forma de nossos líderes. Batem no peito com a camisa canarinho e ainda chamam jogador de futebol (porque não, NE?) para dizer na TV que o melhor do Brasil é ser brasileiro. Fazem piada com a sua cara o ano todo e ainda querem proibir os humoristas de fazer piada em tempo de eleição.

E sabem o motivo? Três letras: CQC. Um programa que nem acho bom, mas que constitui a primeira tentativa bem-sucedida de ridicularizar as atitudes ridículas de nossos líderes. Tudo isso porque, entre nossos 26 líderes governamentais, não há um que tenha preparo intelectual e retórico para sentar diante do Marcelo Taz e não ser esmagado. Agora eu pergunto, é o Taz que é o maior orador da humanidade, ou nossos líderes são néscios ignorantes incapazes de argumentar sem um discurso pré-concebido?

Para ser bem honesto, gosto muito da diversidade genética da população local, e ainda mais do clima ameno, sem catástrofes naturais relevantes na região em que vivo. Tirando isso, não vejo nada de razoável nesse país que me inspire qualquer amor à terra ou a seus ocupantes. Talvez nem você sinta de verdade esse patriotismo todo, meu caro leitor. Talvez você só esteja acostumado a acreditar quando nossos líderes te dizem que esse imenso aterro sanitário global, com líderes que se relacionam com governos terroristas, é muito cheiroso e bem arrumado. E eles, enquanto isso, podem trabalhar tranqüilos com você bem distraído pelo Campeonato Brasileiro e pelas Cestas Básicas que te mandam junto com o Bolsa-Família. O patriotismo, meu caro, já dizia Samuel Johnson, é o último refúgio dos canalhas.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Brasa

“Não, não fumo”, o novato me olhava com desconfiança. Retirei o dinheiro amassado do bolso e repeti a ordem. “Compre a marca mais barata, que tiver. Como é do meu bolso, tanto faz”. Seu olhar explodia em minha direção. “Não fumo, cacete. Preciso dele para deixá-lo nervoso, vá logo”.

E sentei. Teria de esperar o novato voltar para continuar. Apertei o nó das mãos, doloridos. Arranquei pedaços de unha e fui a cozinha fazer um sanduíche. Pão e maionese. O patrão estava cada vez mais econômico. O relógio marcava trinta minutos quando o moleque voltou.

“Esse tempo para comprar um maldito maço de cigarro?”, e lhe dei um tapa na nuca, “garoto, você é o mais novo aqui, se brincar dessa forma com outros, vai ser o mais novo a morrer”. Ele estremeceu, agradeci pelo maço e entrei na sala.

A luz estava direcionada para a cadeira. Nela um homem de cabeça baixa, com semblante cansado, virou em minha direção. Normalmente, eu não tinha empatia por quem sentava nela. Mas o crápula parecia meu irmão, impossível não sentir a ponta de alguma coisa.

Joguei no balde o pano ensangüentado e limpei seu rosto, uma passada rápida. Um dos olhos desfigurados pelas horas em cativeiro.

Peguei a cadeira do canto, virando-a para sentar. Cerrei os olhos, projetei uma voz sem emoção, “está pronto agora?”. Retirei os cigarros do bolso, realizando um ritual lento até acendê-lo.

Nesse momento, o pânico sempre aumenta. Vejo seus corpos se movimentando nervosos, sabem o que está por vir. A primeira golfada vai direta ao seu rosto, sem chances de tossir, agarro seu queixo, erguendo-o violentamente. “está pronto agora?”.

Em sua mudez, vejo a hora de atacar. Aproximo-me com o cigarro e a cada palavra ele se retraí. Mais próximo, mais próximo. A mão que seguro tenta fugir, escapar-me. O instinto de sobrevivência que não morre. Mas cravo a ponta quente nela.

Ele urra. Agüenta apenas seis. Um caminho de formiga, como costumo chamar. E, cospindo saliva, diz as palavras mágicas. “Eu digo”.


Saio cedo. Meu trabalho está feito. O que vão fazer com o rapaz, parecido com meu irmão, pouco importa. Passo no bar, talvez o mesmo que o muleque comprou os cigarros e peço chicletes mentolados. Odeio o gosto de cigarro, mas faz parte do papel brutal. Faz parte da intimidação da tortura, as queimaduras vivas.

Procuro no bolso o dinheiro, e me lembro que o novato não me devolveu o troco. Diabos, era o único que eu tinha. “Aceita um maço quase cheio de cigarros?”. O dono do bar, de dentes amarelos, sorri, “mas é claro”. E abrindo um dos chicletes, lhe jogo o maço. “Fique com essa porra, eu odeio. Vai te matar um dia, mas ai, qualquer um de nós vai.” O homem concorda comigo acendendo um trago e volto para casa pensando em ninguém.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

do Aurélio

Arthurar: v.i. 1. Ato de se ausentar do dia de postagem. 2. Ação que indica não ter (o sujeito da oração) cumprido com seu dever para com o blog. 3. Designação do lapso de escrita/postagem, frequente em pseudoliteratos. 4. Apresentar-se como o rei mítico da Grã-Bretanha. Tirou a espada da pedra e se arthurou. Invocou seu direito sagrado e inalienável de arthurar. Faltou com suas obrigações. Escafedeu-se.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

banshee



O vento gritou um grito agudo, lá fora, enquanto ventava em torno da casa.

- Não. Não posso ir. Não vou.

O homem permanecia em silêncio, olhando as árvores dançando na pouca luz da meianoite. Ela dizia que não ia, não ia, não ia, ele pensava, ela só dizia isso.

- E não vou mesmo. Chega, acabou. Eu fiquei quando você foi, fiquei lá, e chorei, e só eu passei mal, só eu passei. Você nem sabe, nem imagina, não suspeita a porra da dor que doeu em mim...

De fato não suspeitava. Olhando as árvores lá fora, enquanto a mulher falava rápido e quase gritando, ele não suspeitava, também, que a dor que doía nele era tão grande quanto. Não suspeitava que era até maior. Olhava os galhos batendo uns nos outros, tocando no vidro da janela, e ouvia mais um gemido agudo do vento rondando, rodando e rindo.

- Não é pelo que a gente teve, nem porque tenho medo. Não é por nada. É só porque acabou, desgraça, só porque você foi e eu fiquei, e agora é só, eu fui também. Não volto, não vou, não posso.

Ele ouvia.

- Não quero. Quanto tempo, diabos, quanto tempo você acha que isso duraria? Quanto tempo acha que teríamos ainda juntos? Porra!, quanto tempo acha que VOCÊ aguentaria?

No terceiro grito do vento ele viu, sobre a árvore que dançava, uma mulher lânguida e pálida, com um forte e rosado riso de escárnio. Sorrindo sem vontade, tirou os olhos lá de fora e pensou, triste, enquanto ela ia embora, que não teria nem mais três dias pela frente.

- Nem mais três dias...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dia a dia

Ela passou pela mesma padaria que passava todo dia indo para o trabalho, e recebeu o mesmo assovio lascivo e incômodo que recebia todo dia do mesmo tipinho escroto que fica na porta segurando o mesmo jornal sensacionalista embaixo do braço e esperando na mesma fila, pra comprar os mesmos pães.

Ela cruzou o mesmo ponto de ônibus que sempre cruzava todo dia indo para o trabalho, e recebeu os mesmos olhares de desejo que recebia todo o dia, dos mesmos peões parados esperando o mesmo ônibus para irem para seus trabalhos de merda.

Ela trocou de calçada no mesmo lugar da rua em que desviava todo dia indo para o trabalho, para evitar a mesma construção onde os mesmos pedreiros sempre lhe gritavam as mesmas palavras chulas, e escutou-as mesmo assim, como sempre as escutava todo dia.

Ela chegou no trabalho acompanhada pelos mesmos olhares famintos que lhe devoravam todo dia. Sentou-se em sua mesa, como fazia todo dia. Aguentou as mesmas piadinhas sexistas de um de seus colegas (impotente em sua imaginação) como todo dia tinha que aguentar. Trabalhou, como sempre fazia, todo dia, e ajudou seu patrão à organizar seus papéis, como de praxe e como de praxe desviou das indiretas, dos convites velados, como fazia todo dia. 

Ela foi embora ao fim do expediente junto com uma amiga, como fazia todo dia e foram em um bar tomar umas cervejas, como todos os dias antes desse. E dispensou os mesmos babacas que chegaram nela como se ela fosse só carne, como todos os dias acontecia. E tomou seu chopp, comeu seu lanche, riu com suas amigas, deu o fora em mais panacas, como todos os dias.

Foi pra casa, de taxi, levemente alcolizada, como todos os dias. Fingiu não perceber os olhares do taxista, através do retrovisor, para suas pernas nuas embaixo da saia curta, como todos os dias, em todos os taxis, com todos os taxistas antes desse. Entrou em casa, como todos os dias, não sem antes dar oi e sorrir um sorriso falso para o Seu Manoel, o velhinho que morava na kit ao lado, fugindo do mesmo discurso cheio de trocadilhos sexuais da década de 40, como todos os dias fazia.

Deitou-se, depois de tomar o mesmo banho demorado de todos os dias, e antes de finalmente adormecer, pensou, como todos os dias, o porquê de ainda permanecer solteira, e percebeu, como todo dia percebia, com base nos mesmos acontecimentos de todo dia, que não valia a pena ter um homem. Nenhum dia.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

soltinha, solteira

Ser solteira, pra ela, não dava nada, não era problema...
mas ela, solteira, dava que só, pra turma inteira.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O Homem do Auditório

Toda semana era sempre igual: o suor frio antes de entrar ao vivo, o suor que lhe escorria a face por causa dos holofotes, mesmo com o ar condicionado. A mão dolorida por causa das horas segurando o microfone dourado, sua marca registrada.

O terno incomodava, não era uma roupa adequada para permanecer boa parte do domingo. Se escolhesse, usaria algodão. Mas a imagem de um apresentador ainda tinha que ser mantida, mesmo que eles estivessem há um certo tempo deslocados do auge do sucesso.

A cada intervalo chamava a maquiagem e ia ao monitor que marcava o Ibope. Se um ponto caísse de seu percentual padrão sentia engulhos no estômago. Mas não podia se dar ao luxo de ter um desarranjo intestinal ao vivo, não no palco.

Eram incontáveis domingos, incontáveis ternos da mesma cor azul escura. O mesmo sorriso patético, clareado mais de três vezes no dentista, por causa do abuso dos cigarros, que fumava em casa, escondido, longe do público. Não podia afetar sua imagem de bom moço.

Conhecera todos os canais por dentro mas seu programa era o mesmo em todos. O formato da platéia cheia de mulheres, as gincanas que dão brindes ou dinheiros, os anunciantes que o irritavam e que, há dez anos, era imposição obrigatória de qualquer diretor.

Antes de entrar no palco, ao vivo, fazia o mesmo ritual. As luzes do espelho do camarim brilhavam como um sonho etéreo, o refrigerante de marca vagabunda que gostava de tomar, para sentir um gosto mais fétido que o de seu trabalho. Fixava em seu rosto, olhava os vincos, o cheiro forte do laquê que deixava seus cabelos perfeitos. Dizia a si mesmo que, após aquele domingo, iria desistir. Iria sumir das câmeras, inventar que estava doente.

Tinha cinqüenta e um anos e voltava à realidade quando batiam em sua porta, avisando sobre os dez minutos antes da entrada ao vivo. Então se recolhia, colocava o terno, apertava o nó da graveta que lhe incomodava, pegava o microfone guardado em uma caixa especial e sorria.

“Seu imbecil”, dizia. “Seu filho de uma puta imbecil”, repetia. E entrava em cena. Não havia mais para onde fugir.

Era tudo o que sabia fazer. Ser o patetico homem de logros e farsas no domingo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

live

Há 55 anos não deu certo, decididamente não deu certo. Não por nada, mas a televisão não conseguiu acompanhar direito, as imagens ficara chuviscadas e poucos repórteres estavam no local. Como nem eles nem os equipamentos voltaram, foi mesmo uma bela perda de tempo.

Mas hoje provavelmente seria diferente, pensavam todos na ilha de edição. Provavelmente porque o satélite fora direcionado desde o dia anterior, e um pulso eletromagnético enorme foi emitido do epicentro da ilha: nenhum celular, câmera digital, cinegrafista amador ou qualquer outro filho da puta desses tiraria a exclusividade daquela transmissão de TV.

Nenhum outro filho da puta. O satélite focalizava ao mesmo tempo toda a região construída, todas as cidades importantes da ilha, e era capaz de focar diretamente e com uma aproximação de centímetros qualquer objeto, pessoa ou animal que estivesse no solo. E tudo, genialmente, transmitido via streaming pela Rede de Notícias BGTon.

Daria certo hoje, pensavam todos na ilha de edição, enquanto no centro da ilha, pela televisão, o mundo assistia à terceira detonação de uma bomba nuclear sobre pessoas, a terceira em toda a história.

Nagasaki não importava: agora o mundo todo via, ao vivo, a morte da ilha de Cuba.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Carta Ao Santíssimo Padre, o Papa Benedictus XVI

Meu caro e santíssimo padre,

Venho por meio dessa epistola ad vaticanum exprimir alguns de meus sentimentos atuais, que serão a seguir expostos para melhor justificar o pedido do qual se trata a mesma.

Acontece, meu bom senhor, que sou cristão e, o pior, católico, e isso vem me incomodando já há algum tempo. É claro que não se pode dizer exatamente que fui batizado e fiz a primeira comunhão contra minha vontade, de fato a honestidade não me permitiria dizer que estava eu lutando contra os sacramentos em ambos os eventos. Mas essa mesma honestidade não me foi oferecida por minha família, tampouco pela Igreja Católica, quando os termos de aceitação foram expostos.

Primeiro, ninguém me disse, na ocasião, que Javé (usarei o termo mais adequado, para não ofender nenhum outro deus) era um deus que incendiava cidades, exterminava primogênitos de famílias inocentes, condenava seus filhos à crucificação ou à danação nas chamas eternas e permitia que seus fiéis fossem flagelados só para provar um ponto e ganhar uma aposta. Isso tudo, só a Bíblia me contou, muito tempo depois. Além disso, ninguém me avisou ali, na hora do batismo, que eu concordava em queimar no fogo do inferno caso não seguisse as leis de algum príncipe do Egito de milhares de anos atrás. Na verdade, além de "Deus é bom" e "Deus é amor", ninguém me disse nem explicou absolutamente nada antes de me declarar Católico.

Não obstante, senhor Papa, sinto-me bastante desconfortável em participar de qualquer grupo, ainda que por mera formalidade, que defenda, faça ou tenha feito alguma das realizações históricas de vossa congregação. As cruzadas, para começar, não foram nada legais, nem com os muçulmanos, nem com os ateus, nem com os próprios cristãos. A inquisição também, se me perdoa o termo, foi a maior mancada. Encobrir os casos de padres acusados de pedofilia, remanejando-os para outras cidades, também não foi muito correto, ainda que eu não tenha sido uma vítima desses caras quando era criança. E ainda que eu também não vá ter benefícios pessoais com isso, vocês podiam muito bem aceitar que muita gente simplesmente não quer ser heterossexual, e que não tem nada de mais nisso. E para não esticar demais, só quero manifestar que, em um mundo indo para 7 bilhões de pessoas, mundo esse que não se expande nem é tão grande assim, talvez haja alguma lógica em usar anticoncepcionais ou castrar a população. Não vejo nada nos vossos dogmas proibindo a castração, então quero pular fora enquanto é tempo.

É por esses motivos, e outros que não arrolarei para não abusar de vossa santíssima agenda, que venho solicitar, encarecido, que seja emitida em meu nome uma bula de excomunhão, liberando-me dos benefícios e conseqüências de ser Cristão e Católico. Deixarei as chamas do inferno de lado, me aproximando no máximo de religiões com um plano de aposentadoria mais brando para com os pecadores. Ah, sim! Se possível for, sua santidade, gostaria de receber cópia impressa da Ordo Excomungationis, para exibição na parede da sala de estar. Muito obrigado por sua atenção, e viva Dom Bosco.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Padre e o Ócio

O sacerdócio lhe deixava ocioso a maior parte da semana. Levantava cedo, fazia suas orações, tomava um banho e vestia as pesadas roupas da vocação. Nos sábados realizava o café da manhã para os pobres, com a ajuda das senhorinhas da paróquia, mas bom tempo passava com os dedos sobrepostos entre si.

Refletia sobre Deus, a própria condição de servo, sabendo que sua crença as vezes se abalava. Refletia sobre os pensamento mundanos que ouvia nas confissões e, por muitas vezes, se aventurou por eles a conhecer o mundo como não conhecia antes. Lera livros além da bíblia, assistia filmes, mesmo que o cargo superior lhe olhasse com maus olhos.

Começou quando o marido de uma recente pároca, Dona Cota, foi fazer sua confissão. Disse ser homem de pouca confissão, mas de muitos atos. Por isso que sua história demoraria um bocado. Regediu ao inicio do ano, onde ainda era um homem que perseguia a retidão, para aquele que hoje era: bandido.

Temia a Deus, a força dos trovões divinos a cair sobre ele. Mas era necessário, pelo bem da família. Eram cinco bebês para alimentar e o corte de cana, seu trabalho anterior, não lhe deu o que merecia. Mas a coca transportada pela fronteira sim.

Tinha rosto de homem honesto, ainda. Passava desapercebido pelos minguados guardas da fronteira, mas era apenas um transportador. Nada mais. Um filho novo vinha no bucho da esposa e precisava de mais, disse ao padre.

E esse era o problema de quem permanece boa parte da semana sem nada a fazer. Para o padre, do outro lado do confessionário, seria uma aventura. Talvez a mais excitante que tivera e, mesmo hesitante, propôs.

“Você sabe que vendemos ídolos com a imagem de nosso Senhor, produzidos pelas próprias senhorinhas da paróquia, não?”. E viu, pelas gradinhas, o homem assentindo. “José” – e o homem olhou-lhe como pode – “sua vida resolveria e você ainda acreditaria e temeria a Deus se eu te ajudasse a traficar essas drogas? Coloca-las dentro dos ídolos e vendermos por ai. Matando dois coelhos com uma oração só? Seu problema de dinheiro e o meu, que preciso conquistar mais fiéis para essa paróquia não fechar?”.

E estava feito o plano. Produzido pelas mulheres, o padre se encarregaria de colocar a droga dentro deles, que José chamou de Espírito Santo, e enquanto o padre proclamava o amor de Cristo na praça, José avisava os viciados de que encontrar-se com Deus, não seria, necessariamente, algo careta de se fazer. E que, afinal, eles tinham a benção Dele, do Divino, em pessoa para tal.

Era uma tarefa árdua. Discursos todos os dias na praça. Os superiores ficaram satisfeitos com o padre, por agregar mais almas para as missas. E, ele, feliz. Por conseguir gastar seu ocioso tempo livre, dedicado ao sacerdócio, em qualquer bobagem que pudesse esquecer o tédio de sua vocação.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

o mi to fo

- Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo.

E prostração. Joelho direito na almofada, esquerdo, testa e mãos postas. Palma pra baixo. Fecha a mão, gira a palma pro alto, abre. Segura e esvazia a mente. Sente o cheiro de incenso, ouve a mestra do outro lado do salão continuar entoando:

- Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo. Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo. Nam mo ben shi shi jie mo-ooooo niiiii...

Toca o sino. Fecha as palmas que estavam pra cima, vira pra baixo, recolhe os braços e se apóia nas mãos. Levanta a cabeça devagar com a mão esquerda espalmada sobre o peito. Não, com a palma pro peito não; com a palma pra direita. A mão direita levanta o corpo. Aguenta o peso nas pernas e levanta também a mão direita, junta na esquerda e, na frente do peito, mãos postas. Nossa vez, agora, Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo; Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo.

O grupo do outro lado do salão prostra. A gente canta. Em bom e velho português, Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo significa algo como “Amém ao Buda Shakyamuni”. Ok, sei que não parece, mas shi shi jie mo ni Fo é a transcrição pro chinês do sânscrito Shakyamuni. Pode fazer o teste, Sha/shi shi – kya/jie – mu/mo – ni/ni. O “Fo” é “Buda” em chinês, e por uma diferença qualquer de sintaxe o primeiro nome vai no fim. Que seja.

O sino, nossa vez. Vai, prostra!

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Tentativas

11 de Novembro de 1978

Comecei a escrever meu romance. É uma história épica de amor e guerra. Terá sentimento e mudará o mundo.

24 de Janeiro de 1981

Consegui uma editora que bancará os custos de meu brilhante romance. Tenho já 622 páginas escritas e fôlego para muito mais. Eles apostaram em meu talento e não se arrependerão.

30 de Junho de 1985

Estou me mudando de casa, despejado. Levo comigo apenas as 1457 páginas escritas de "Longe do Amor Fatal". Obra sublime, revolucionária. Mas infelizmente sofro com a falta de apoio de minha editora, que se recusa a pagar mais honorários. Tolos.

21 de Fevereiro de 1993

Penso em como será o choque na face dos críticos quando lerem meu romance. É tão genial que as vezes me assombro. Guardo-o em uma gaveta, fechado. Tem 2735 páginas, todas belas. Em todas elas há novidades que gelarão as almas. Não o publiquei ainda por divergências contratuais. Mas quando o fizer será o acontecimento da década.

13 de Setembro de 1999

Reescrevi metade do meu romance, aprimorei ainda mais a sua fina arte... agora ele tem 4852 páginas e a editora cogita lançá-lo em 2 volumes. Não quero, acho que estragará a unidade da obra. Não cederei.

25 de Maio de 2007

Hoje foi um dia histórico. Finalmente resolvi o único problema que havia em meu romance. Reescrevi o final, agora trágico e catártico, como cabe às grandes obras da humanidade. Mas ele as transcende. Nada de Hamlet, que morra a divina comédia, Cervantes era um menino brincalhão ante minha maestria. Agora o livro possui 6389 páginas. Todas elas melhores que tudo que já foi publicado. Aguardo apenas a escolha da ilustração da capa.

30 de julho de 2010

Cada dia que se passa eu me encanto mais com a obra-prima que escrevi. 10035 páginas de pura virtuose e elegância. E cada dia que se passa a humanidade perde não conhecendo as melhores imagens, as mais finas metáforas, o ápice do gênio humano. Maldita editora!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Meu Texto Para o Dia do Escritor

Pensei muito sobre como escreveria para essa semana. Dia do Escritor,e já que somos brasileiros, porque não Semana do Escritor? Ponderei sobre escrever uma breve narrativa sobre algum momento da vida de um escritor. Considerei um breve e vazio ensaio sobre o ofício de costurar palavras, e felizmente o juízo me fez considerar minha insignificância a tempo de mudar de idéia. Ponderei até sobre escrever um texto sem absolutamente nada a ver com o título da semana.

Foi então, e só então, que me lembrei de uma das maiores bênçãos da arte literária, aquela que a torna tão vasta e democrática, que me permite dissertar sobre o tema e nos autoriza a publicar nossas bobagens por aí: mesmo os escritores ruins, mesmo os muito ruins, ainda são escritores. São escritores porque escrevem, mas principalmente porque publicam. Porque dão a fuça para os leitores socarem. Não só arriscando uma crítica, não só arriscando uma crítica atroz e fulminante, daquelas de desanimar, mas arriscando o total e absoluto silêncio. Como se ninguém tivesse lido duas das 100 linhas que você achou que mereciam um olhar. É por isso que ficamos tão animados quando vemos um comentário, mesmo que para nos chamar de semi-analfabetos. Porque quem não se deu ao trabalho de ler, dificilmente se dá ao de comentar. Somos uma raça carente, há que se dizer.

E foi assim que cheguei até aqui, até esse textinho sem pretensão. Porque se estamos mesmo na Semana do Escritor, então ainda que à custa de dor e vergonha para a literatura brasileira, é minha semana. E como escritor na Semana do Escritor, me reservo o direito de não falar sobre nada além de porque decidi não falar sobre nada. E seria adorável se vocês comentassem mais nossos textos aqui no Clube. Até semana que vem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Esse Ofício de Verso

Nada é mais infeliz para um escritor do que ser abjeto de si. Comum. Perder aquilo que se achava mágico. Notar que era um movimento efêmero e que se foi. O sopro gentil que lhe fazia compor histórias.

Ele não tinha mais nada. A semelhança de seus irmãos, estava velho e não amadureceu. Perdeu o controle da vida. Sentiu falta de si, falta de um mundo que lhe trouxesse emoção. Fora soterrado.

Os remédios que tomava diariamente para controlar sua lucidez minaram seu campo criativo. Suas palavras tornaram comuns como a lista do supermercado. Mas era tarde desejar ser outra pessoa, outra coisa a não ser esse homem cujo ofício era o verso.

Velho demais para aprender outro talhar. Sem outros talentos aparentes, apenas tendo que afirmar sua condição. Sua mísera situação de um homem que deixou se perder. Cuspiu na vida, negou os filhos, riu da morte.

Agora era palha. Memória enterrada em vala comum. Era nada, além de agonia. Nascido com vida, morto em líricas.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

ideogrâmico

Na feira mundial de literatura, livros e novas mídias educacionais, no pátio da maior editora de Taiwan, os estandes de autores e empresas enfileiravam-se a perder de vista. Entrando no evento pela esquerda, na esquina mais distante do prédio principal, a visão era enlouquecedora para qualquer bibliófilo.

Milhares de pessoas de toda parte do mundo se aglomeravam em torno dos autores famosos, das editoras com descontos incríveis e nas filas para as palestras das estrelas do mercado. Era um formigueiro mundial de bichinhos com livros na mão caminhando de um lado pro outro, sem dar atenção a nada que não fossem livros e escritores consagrados, a quem devoravam como formigas a besouros.

No corredor Z3-E78 – que quer dizer “corredor Z do terceiro conjunto de estandes, estande 78” – um pequeno senhor, dos já passados 80 anos, escrevia lenta e calmamente em pedaços perdidos de páginas mal impressas, daquelas provas que as editoras recebem com erros, ou daquelas provas que as editoras erram ao editar. Naquele pedaço da grande feira não havia muita gente, muito menos no estande do velhinho que, a despeito disso, escrevia letra a letra a melhor história da História humana