sexta-feira, 31 de agosto de 2012

London Noir 4 - Raymond Chandler


A memória mais clara na minha mente é de uma noite no cinema, com meus pais. Ah, como me fascinam as armadilhas que nossa própria mente cria. Minha mulher e filha estão mortas, enterradas na terra e seguiram o ciclo natural da vida: primeiro elas nasceram, cresceram e desenvolveram-se, para decair em alimento no solo, devolvendo assim parte da energia que as constituía por meio da digestão de vermes e larvas. Mesmo assim, o pesadelo recorrente que tenho envolve meus pais, que tiveram uma morte tranquila e natural. Estávamos em um reprise do Fantasma da Ópera e, apesar da música ruim e das atuações tão delicadas quanto um açougueiro destroçando um porco de duzentos quilos, eu estava completamente imerso na película em preto e branco. A donzela em perigo, o mascarado que andava nas sombras... que tipo de criança perturbada não gosta do mais horrendo terror? Não é um pesadelo que foge do comum dentro dos estereótipos deste tipo de sonho, com pessoas perseguidas pelo homem mascarado, não, o meu problema é com a máscara do Fantasma. Podemos ver seu rosto, ver que ele é um humano, nada de sobrenatural aqui, mas há algo escondido, há um segredo naquele rosto parcialmente encoberto. No sonho, acho interessante que chego sempre à mesma conclusão dentro dos reinos de Morpheus, eu percebo que ele, mais especificamente a máscara, é uma analogia para todas as pessoas, para cada segredo escondido e suportado no íntimo, para as feridas silenciosas que corroem lentamente o espírito dos homens atormentados. Eu uso minha própria máscara, você usa uma; o que nos difere, caríssimo Estranho, é quão escondido está o nosso rosto, o tamanho de nossas máscaras.
         Marvin parou o carro na frente de um pub antigo, torturado pelo tempo. As janelas do lugar estavam barradas por placas de compensados e a porta encontrava-se selada por grossas correntes. O pub não tinha mais placa, era um lugar sem nome, apenas um prédio abandonado em estado neutro, cinza o suficiente para escapar de sua atenção. As pessoas passavam por nós, algumas comentando sobre o tiroteio perto de Camden Town, outras conversando sobre assuntos pessoais e outras ainda com fones de ouvido, de onde era possível escutar a bateria de músicas aleatórias. Mas ninguém reparava no prédio decaído. Ela me entregou a mala preta e abriu o cadeado, deixando cair as correntes com um baque agudo, entrando pela porta em seguida.
No lado esquerdo da entrada, algumas mesas estavam empilhadas, como se fossem várias ampulhetas que marcavam a passagem do tempo com pó e mofo no lugar de grãos de areia; a madeira comida por cupins e soterrada por restos de pequenos mamíferos. Uma mesa estava jogada no nosso caminho e fomos obrigados a saltar para ultrapassá-la, o vestido de Darla deixando parte de suas coxas à vista. À minha direita, um balcão igualmente acumulava pó e algumas garrafas vazias ainda estavam enfileiradas no espelho do fundo. Um único pano, certamente usado para limpar os restos de bebida e petiscos da madeira, apodrecia encostado na barra dourada que limitava as bordas do balcão. Caídas no chão, duas camisinhas formavam um X. O prédio é utilizado, afinal, pensei. O ar era sufocante, úmido e estagnado, pesado. Era como respirar em um pote de vidro com uma meia usada, depois de alguns dias sob o sol forte. Meu nariz começou a coçar e espirrei algumas vezes.
Marvin estendeu um lenço e eu agradeci, usando-o sonoramente. “Darla é uma filha da puta”, ela quebrou o silêncio. Estraçalhou, na verdade. “Bob estava me procurando enquanto eu buscava por ele, mesmo sem saber. Escutamos um chamado mútuo.” Novamente ela não fazia sentido... muitas coisas não faziam sentido quando saíam da boca de Marvin. Durante o percurso ela sussurravas frases desconexas e algumas teorias sobre o paradoxo ou algo do tipo. Estava começando a duvidar da sanidade daquela mulher. Olhar para ela por muito tempo fazia minha mente entrar em uma espécie de vertigem, uma descida direta para a loucura, como se meu cérebro lutasse para entender o que via. Ela era impossivelmente linda, sua pele diferia do normal, os olhos pareciam capazes de derreter seus órgãos ou causar um orgasmo com a mesma facilidade. “Ela sugava as energias de Bob, além da conta bancária e favores políticos, claro. Mas ele era apaixonado pela vaca e não podia fazer nada contra isso, eu sei por experiência”, ela concluiu.
“Eu não entendo o que você está dizendo”, devolvi. “Você fala como se Darla fosse outra pessoa... Bob, ou Bret ou qualquer que fosse o nome do imbecil, afirmou que vocês não eram gêmeas, mas a mesma pessoa, que lentes de contatos coloridas definiam quem você seria durante o dia.”
“Não o chame de imbecil, Bob era um homem gentil.” Marvin grudou os olhos castanhos nos meus. Por um segundo, senti minha alma queimando. “Caso a oportunidade de ter novamente tudo aquilo que você perdeu no caminho aparecesse, escolheria este caminho, sem se importar com as consequências?”
Pensei por alguns segundos. “Sim. Talvez... acho que sim.”
“Você não poderá hesitar...”, ela deixou meu nome morrer no ar. “O que vou te mostrar exigirá uma decisão rápida, você não terá muito tempo. Mas saiba, e isso eu descobri por causa do Bob, que sempre somos iguais, ou quase. Nosso nome muda, por algum motivo, e algumas vezes nossa profissão, mas nunca o gosto, ou as pessoas que amamos ou odiamos. Você pode morrer em um lugar e continuar vivo em outro, inclusive na mesma... camada. Uma coisa, no entanto, nunca muda”, Marvin andou até a caixa de energia e, para minha surpresa, as luzes se acenderam quando ela mudou os interruptores, liberando eletricidade para a fiação antiga, “tempo e espaço são invariáveis.”
Luzes acenderam no prédio antigo, revelando ainda mais pó do que eu poderia conceber. Havia ratos e metais enferrujados; teias de aranha envolvendo mariposas e vidro espalhado por todo lado. “Você realmente acredita nessa merda toda?”, uma voz fez eco no salão quase vazio. Olhamos assustados para a origem do som e vimos Darla, igualmente bela. Darla vestia um pesado casaco de peles e tinha um chapéu branco na cabeça, algumas mechas do cabelo dourado penduradas nas orelhas da mulher. Darla e Marvin estavam no meu campo de visão e por um instante a realidade se negou a conceber tal possibilidade. A diferença entre elas, além da coloração das retinas, era que Darla parecia real, enquanto Marvin era envolta por uma textura estranha. A mulher lembrava o coelho Roger durante o filme, um desenho em um mundo real, facilmente identificável enquanto tal. “Ela roubou minha vida. Estendeu a mão e me puxou para ser deixada para trás, mas eu consegui voltar, eu voltei e descobri onde vocês estavam”, ela cuspiu em nossa direção. “Armei um cenário para vocês serem mortos, mas esse inútil”, ela apontou uma pistola .45 para minha cabeça. Minha testa coçou incontrolavelmente diante a ameaça, “estragou tudo. Você seria manipulado até matá-los, não deveria acontecer assim.” Ela puxou um dos ombros do casaco e revelou o corpo nu, colocando um seio nas mãos e apertando, deixando o mamilo rosado escapar entre os dedos indicador e médio. “Isso seria seu para sempre.”
Estiquei as duas mãos para ela, soltando a mala no chão e mostrando minhas palmas limpas. “Darla, cuidado com isso, não queremos acidentes por aqui, certo?”
“Não desperdice energias”, Marvin disse. “Bob a ensinou mostrar a arma apenas quando for disparar. Ela sabe o que está fazendo... e quer fazê-lo.”
Darla sorriu, um riso sinistro. Tenho certeza que um bebê morreu em algum lugar do mundo só por causa daquele sorriso, carregado da mais pura maldade. Vingança, diziam seus lábios esticados quase de orelha a orelha. “Meu Bob está morto...”
Você o matou, sua puta louca!”, Marvin berrou.
“...e agora será sua vez. Mas sempre posso ir até outro Bob, matar outras Marvins e roubar meu precioso marido, não é?” A arma em sua mão disparou, mas Marvin havia previsto o movimento e se jogou em minha direção. Caímos atrás de algumas mesas e o corpo da mulher deixou todo seu peso sobre meu estômago. O ar entre nós produziu certa estática e eu me afastei o mais rápido possível. Outro disparo e uma lasca de madeira acertou meu rosto, produzindo um filete de sangue.
O barulho dos tiros naquele lugar fechado machucavam meu ouvido e deixavam minha cabeça tonta. Eu não conseguia pensar diteiro, estava desorientado e confuso quanto ao que fazer. “Por que estamos aqui?”, perguntei para Marvin. Não sei se falei ou gritei as palavras. Darla continuou a disparar em nossa direção, fazendo buracos nas mesas podres e trocando rapidamente de pente.
“Na Jukebox”, ela respondeu, “B-42.” Essas foram as últimas palavras de Marvin, nesse ou em qualquer outro mundo. Assim que terminou de falar, seus lábios encostaram nos meus em um beijo hipnotizante. O mundo explodiu em minha cabeça e, por um milésimo de segundo, acho que encostei alguma energia poderosa e secreta, reveladora. Um último disparo da arma de Darla e a cabeça de Marvin tombou para o lado, uma mistura de sangue e pedaços de osso saindo por um pequeno buraco. Os olhos perspicazes encaravam sem vida para o teto. O paradoxo, afinal, não fora forte o suficiente para salvá-la.
“Não!”, gritei até quase estourar minhas cordas vocais. O som da gargalhada, no entanto, fez meus gritos morrerem. Darla ria como o Coringa, de forma quase gutural e insana, uma risada desesperada e aliviada ao mesmo tempo. Eu me levantei, com minha própria arma, até agora esquecida no coldre, em mãos. “Porquê? O que você fez?”
Ela enxugava lágrimas negras que escorriam pelo rosto alvo, o rastro da maquiagem pesada marcando as bochechas. Ela abriu a boca, mas antes que pudesse falar qualquer insanidade, olhou para a própria barriga, cheia de pontos vermelhos. Cinco disparos rasgaram o torso da mulher no meio e duas Darlas caíram em uma poça de sangue, estômago e intestino. Em menos de três segundos o lugar estava cheio de agentes, parecidos com os que haviam nos perseguido naquela manhã. Eram como os clones Imperiais, uma fila interminável de Agente Smiths que procuravam apagar os bugs da Matrix. Eu corri para o fundo do bar, para a Jukebox, e apertei a combinação sussurrada por Marvin, o último legado da misteriosa mulher, cujo hálito ainda existia em meus lábios. B, meus dedos pressionaram sobre os gritos para me render. 4 e 2.
O mundo ao meu redor foi sugado pela Jukebox, um aparelho de madeira, com o desenho antigo dos rádios pré-guerra, eu pude então notar. A realidade foi sugada, como a luz reage perto de um buraco negro, concentrando-se em um minúsculo ponto no meio da Jukebox. Olhei para a lista de músicas e notei que quase todas eram do Queen ou do Beatles. “Humm”, soltei. Por um breve momento, existia apenas eu e a máquina em um infinito escuro e sem vida. O tempo parecia não existir e todas as coisas estavam mesclado em uma única esfera, perfeita e harmoniosa.
De repente, o mundo explodiu em cores, diversos mundos, diversas vidas, incontáveis Chandlers. “Você me puxou”, escutei Darla em minha mente. Eu olhava para várias versões de minha vida, como uma tela de televisão mostrando cenas diferentes, lado a lado. Um dos Chandlers estava ligeiramente acima do peso e vestia um horrível terno esverdeado, outro usava um tapa-olho e estava fumando um gigantesco charuto; um deles estava bronzeado, o outro cheirando cocaína. Robert teorizou sobre os universos paralelos e as infinitas possibilidades causadas por minúsculas variáveis em nossas vidas. Era para isso que eu olhava agora: minha versão nos universos em que ainda estava vivo. Eu era um traficante, um escritor, um pedreiro, um padre, um desenvolvedor de nanotecnologias, um transsexual... uma infinidade de versões de minha própria pessoa estavam ao meu dispor. E todas as versões se olhavam, curiosos. Marvin dizia a verdade sobre o tempo e espaço, estávamos todos no mesmo lugar.
Da mesma forma que minha realidade desapareceu quando liguei a Jukebox, as luzes começaram a piscar. Se eu fosse fazer algo, tinha de ser naquele momento. Foi quando vi um Chandler carregando uma aliança na mão esquerda. Ele olhava assustado para o que acontecia, tentando entender os homens tão parecidos com ele mesmo. Vestia uma camisa azul e tinha uma fina camada de barba por fazer, como a que agora tomava conta do meu rosto. Sem pensar, como sempre ocorre nesses momentos, eu o peguei pelo ombro e puxei para o meu lado da realidade e me joguei para o lugar de onde ele vinha. Foi mais fácil do que eu poderia imaginar, ele não ofereceu resistencia alguma, tomado pelo choque.
Á minha costas, escutei os disparos.
O mundo piscou. E apagou.
Agora estou em um porão, escrevendo essas páginas em um computador estranho, iluminado com ajuda de uma vela. Cheira mofo, aqui. Mas é o único lugar desagradável de toda a casa, tenho que dizer. Se eu subir agora as escadas, vou encontrar uma casa organizada e aromatizada, brinquedos espalhados pela sala, e o cheiro do shampoo de minha mulher espalhando-se pelos cômodos. Está um dia bonito lá fora e os passaros cantam enquanto os vizinhos acendem churrasqueiras e o barulho de crianças brincando nas piscinas invadem meu jardim. É a vida que eu sempre quis para minha família. Elas estão vivas e felizes. Eu sou um analista financeiro de uma grande fábrica e, apesar das longas horas diárias, vivo uma vida confortável com minhas duas princesas.
Esse mundo é parecido com o que vim, mas há diferenças. 11/9 nunca aconteceu, a Guerra do Vietnã foi vencida pelos Estados Unidos e horrores coloniais agora acontecem naquele país sofrido; a Rainha foi assassinada e agora Diana é odiada pelos britânicos, uma das piores líderes que já estiveram no poder. Outras aconteceram de forma idêntica: Hitler cometeu suicídio, não antes de matar milhares de milhares de judeus, homossexuais e ciganos; a China é o país mais populoso e o Japão tem uma tara estranha por mulheres e tentáculos.
Agora sou eu quem parece estranho, no entanto. Posso ver que minha textura não faz parte desta realidade e o toque de outras pessoas causa um enjôo em meu estômago. Mas está melhorando, acho. Estou em uma transição, logo serei apenas mais um homem perdido entre mundos. Um Passageiro.
Marvin disse que o preço seria alto... Eu não consigo ficar um segundo com elas sem pensar no outro Chandler, o Chandler que puxei para meu mundo... não. Não para o meu mundo. Meu mundo é aqui. Às vezes sinto minha sanidade se esvaindo, cedendo para a escolha que fui obrigado a fazer.
Fui obrigado?
Acredito que sim. Acredito que em infinitas possibilidades, algo assim deveria acontecer, não foi minha escolha, foi a escolha da Jukebox. Ele está morto, os agentes devem tê-lo perfurado como uma peneira. E agora estão vindo atrás de mim.

__

Duas semanas. Na mesa do meu novo escritório tenho o antigo porta-retrato. Elas viram a fotos e não mostraram curiosidade, provavelmente lembram da praia, da torta de maçã. As duas pessoas naquela foto estão mortas. No entanto, estão vivas.
O que fode minha mente é que a sombra está viva e sei que existe uma cópia idêntica dessa foto, onde a sombra é a de um fotógrafo morto.
Quando paro para pensar no turbilhão de acontecimentos que me levaram a apertar a combinaçãp certa na Jukebox, vejo que meu fatídico último caso não foi um caso, fui um mero expectador dos acontecimentos manipulados. Nunca pude usar meu cinzeiro em uma emboscada, por exemplo. Não sei quando perdi meu chapéu, sinto falta dele.
Aqui cheira mofo, estranho. Acho que vi um dos carros pretos hoje.

__

Três semanas. Minha pele é estranha. Ou os outros o são, já não sei.
Um carro preto por quarteirão. Elas estão se afastando de mim, sou um estranho.
Os aviões derrubaram as torres no dia oito de outubro de 2012, exatamente como em 2001. A história segue seu rumo, apesar de alguns atrasos. Eu sonho com os tiros que mataram o Chandler daqui, minha culpa. Quando essa história irá me encontrar?

__

Um mês. Eu deveria ter retirado a uzi da mochila e matado Darla. Marvin estaria viva. Marvin está viva. Ao menos alguma Marvin. Me pergunto se conseguiria voltar para o meu lado da Jukebox.
Existe um lado certo? Existem lados? Acho que não, acho que somos únicos de certa forma, um todo fragmentado, mas um todo. Eu definitivamente fui seguido hoje de manhã.

__

Quatro meses. Minha mulher reclama que eu a acordo quase todas as noites, imerso em algum pesadelo que me faz transpirar e chutar com todas as forças. Ela me chama de outro nome, não de Chandler.
Eles estão chegando, eu posso sentir nas paredes, no ar. As árvores me contam. Eles estão chegando.
Não. Não há ninguém atrás de mim. Nunca houve um detetive em Londres chamado Chandler D. Qualquercoisa. Estou apenas cansado. Essas são minhas últimas linhas e provavelmente vou queimar o documento. Semana que vem começo as sessões de terapia e tudo tende a melhorar.

__

Vinte e oito semanas. Meu nome é Jonhatan Raymond. Todos os dias acordo e ando pelas ruas cinzentas de Londres, fazendo dinheiro e vivendo uma vida que adoro. Eu sou o cara que você encara no metrô, com um terno suado e uma gravata apertada no pescoço, e imagina o tipo de vida enfadonha que leva. E você está certo, minha vida é enfadonha e isso é tudo que sempre quis. Meu nome não é Jonhatan Raymond.
Meu nome é Jonhatan Raymond.
Chandler Raymond. Não. Não Chandler, Raymond. Como a porra do escritor.
Chandler é uma palavra estranha.
Meu nome é Jonhatan Raymond.

Eu nunca queimei o documento. Alguém precisa saber! A culpa, a culpa! Eu matei J. Raymond e ainda assim elas me amam. Eles estão chegando. Estão chegando. Estão chegando. Meu nome não é Jonhatan Raymond. Meu nome é Chandler D. Humphring. Jonhatan Raymond é a minha máscara.
No final da ópera, todas as máscaras devem cair.
Eles estão chegando.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

mais valia

Se o amor vem para nós somente uma vez,
não amei metade de vocês.

 (se o Leandro não vez, leandralizamos por ele)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

London Noir 3 - Paradoxo


A porta vermelha atrás de mim estava trancada, eu podia ouvir os dois policiais tentando derrubá-la e, por algum milagre, ela superou seus esforços. À minha frente, o corredor escuro e fétido prolongáva-se até a escada. Cruzei a distância até minha sala em passos largos. Quando entrei pela porta de vidro com meu nome colado, ela estava sentada no meu lado da mesa, um largo chapéu cobrindo os cabelos dourados e o mais profundo dos decotes em um vestido azul. Meu coração parou por um segundo. Novamente, tive a sensação de que havia algo de errado com a mulher de Bob - Darla é esse o seu nome? – tentei dizer algo, mas o ar escapou de minha garganta apenas com um som gutural, quase primata. Malditas mulheres.
Ela portava a foto que ficava sobre a mesa. “As pessoas aceitam um porta-retratos como um lugar seguro para guardar pequenos segredos”, disse enquanto liberava as travas na parte traseira do retrato. “Dinheiro, números de telefones suspeitos, endereços, drogas, senhas, escutas... as possibilidades são muitas para listar nesse momento. E uma foto dessas tem duas possibilidades”, ela levantou a fotografia para minha direção. Olhei, com um aperto em meu coração, o sorriso da criança no balanço, as pernas esticadas e duas tranças soltas pelo movimento pendular; a mulher que a empurrava também sorria e olhos verdes encaravam com ternura para a máquina. Ao fundo, uma praia francesa compunha um cenário bucólico e ao lado de uma cesta de vime recheada de tortas e lanches, a torta de maçã mais doce que já experimentei, uma sombra denunciava-me enquanto fotógrafo. Aquela era a última memória confortável que eu tinha, um lugar aquecido pelo sol que começava a descer no horizonte, o cheiro da grama recém cortada e a risada de minha filha, o som mais doce que já existiu, era o lugar para onde ia quando precisava de conforto e amor. Um outro mundo, uma outra vida. “Primeiro”, ela disse, quebrando o encanto que havia tomado conta de minha mente, “você pode ter encontrado uma foto aleatória na internet para completar o cenário falso que foi construído nessa sala. Afinal, essa é sua vida: mentiras e falsidades; traições, planos e conspirações sussurradas sobre xícaras de café em lanchonetes perdidas no coração da cidade. A foto é perfeita, uma peça quase esperada em uma mesa como essa, um clichê do qual você se utiliza para completar o disfarce de uma vida vazia e sem sentido. Mas há outra possibilidade”, ela girava a cadeira, as pernas à mostra, “um clichê ainda maior para um detetive particular. Uma vida esquecida, soterrada por inúmeras doses de whiskey, estou certa?” Ela leu minhas expressões com precisão fatal. “Bingo.” Os dedos ágeis retiraram o papelão duro que suportava a foto e segurou o pedaço de jornal na frente de seus olhos, lendo rapidamente uma curta reportagem.
Em resumo, uma noite chuvosa e pneus carecas levaram minha família para sempre. Essa é a triste história de Chandler D. Humphring, obrigado por me escutar.
Darla ergueu os olhos do jornal recortado e montou novamente o porta-retratos, guardando a notícia onde ela se encontrava. “Vamos”, ela disse, “eles devem estar perto de entrar no prédio. Pegue o que é essencial e me siga”, ela estava de pé quando terminou a frase, retirando os saltos altos dos pés. Esticou uma mão e entregou-me a foto. Nossos dedos encostaram por um breve segundo e eu senti a realidado ao me redor se desmanchar como os vilões de filmes antigos, quando tinham o rosto derretido por algum raio da morte. A força fugiu de minhas pernas e eu me apoiei na mesa para não cair no chão, quase derrubando o porta-retratos. Darla percebeu o contato e recuou rispidamente o braço. “Desculpe por isso... Sei que não é agradável.”
Escutei vozes e passos apressados no corredor abaixo. Era hora de ir. Peguei a arma que estava na gaveta trancada e a foto, o resto não importava. Pensei em ficar e lugar, esmigalhar a cabeça de um deles com o meu cinzeiro pesado, mas não valia a pena. Acho que são poucas as coisas que justificam tirar a vida de alguém. Darla abriu a janela e começou a descer pela escada de incêndio com pés ágeis e decididos, eu a segui com certa dificuldade, com a fotos e a garrafa presas em uma mão, enquanto segurava o Fedora em minha cabeça com a outra. Ganhamos tempo quando ela puxou um largo vaso até obstruir a passagem. Os dois policiais estavam gritando em nossa direção, iniciando uma alucinada descida. Quando chegamos na calçada, algumas pessoas estavam para fora do Estábulo, olhando para nós, apontando e dizendo palavras que morriam antes de chegar até nossos ouvidos. Foi nesse momento que percebi o destino quase certo que me esperava, respondendo a um homicídio da autoria de um terceiro e resistência, além de fuga e porte ilegal de arma. Darla, no entanto, parecia calma e consciente do próximo passo. Ela me puxou até uma das ruas que cortavam Camden Town e entramos em um carro, um Porsche cinza, modelo 68.
Darla acelerou e o carro cruzou rapidamente as ruas de Londres, despistando qualquer rastro que poderíamos ter deixado. No banco traseiro vi a mala com dinheiro e armas. Olhei para ela, desconfiado. “Você o matou?”, perguntei subitamente.
“Não... Sim.” Ela continuou a olhar para a frente, costurando o tráfego com destreza e precisão. “A mulher de olhos azuis disparou. Não espero que você acredite em mim, mas é a verdade, não fui eu, mas a mulher de olhos azuis... ela surgiu do nada, disse qualquer coisa sobre você e atirou duas vezes. Eu estaria morta também, não fosse por uma Anomalia.”
“Anomalia?”, ela não fazia sentido. Por um breve momento, estudei o rosto de Darla. Seus lábios estavam cerrados em um aperto firme e os olhos grudados no asfalto, livre das sombras que marcam os olhares lunáticos, quem sabe as mesmas sombras que atormentam a alma atormentada dos loucos. São janelas para a alma, não é isso que dizem sobre os olhos? “Anomalia como em paradoxo?”
“Exato, como em paradoxo. Coisas acontecem ao meu redor, Chandler, reações que não deveriam acontecer não raro interagem com a minha realidade. Copos algumas vezes ignoram a gravidade e se estilhaçam no teto; projéteis traçam um caminho irregular ou o disparo sai pela direção errada, atingindo quem apertou o gatilho; estática nas televisões, vozes do passado no rádio e, pelo uma vez, uma transmissão de futebol do futuro... quer saber quem ganha a Copa de 2014? Como eu disse, anomalias. Nós chamamos de Anomalia os eventos que desafiam as regras básicas da física e da química, Chandler. Ou você acha que aquela porta iria segurar o peso de dois policiais treinados?”
“Nós? No que a mulher de olhos azuis me enfiou, Darla?”
“Meu nome não é Darla. É Darla, você poderia afirmar e estaria correto, mas não plenamente. Aqui eu sou a Darla, mas não de onde vim. Pode me chamar de Marvin.”
“Marvin?”
Ela me olhou e sorriu. “Marvin, como o marciano. Nós somos os Passageiros, Chandler.”
Abri a minha boca, indeciso sobre o que perguntar. Dezenas, centenas de indagações eram formadas por segundo e minhas conclusões eram demasiado fantasiosas para sequer serem consideradas seriamente. A porta, pensei, realmente não tinha capacidade para segurar a investida de uma criança, estávamos falando de dois adultos sadios e treinados na arte dos aríetes e em chutar a bunda de pessoas como eu e você. Mas, de alguma forma, eles foram barrados por quase cinco minutos e nunca pensaram em usar outra entrada ou a escada de emergências que os viciados que circulavam aquela área sempre deixavam abaixada. Antes, entretanto, de conseguir fazer pergunta qualquer, o retrovisor do meu lado explodiu em um milhão de pedaços. O som do disparo chegou uma fração de segundo depois. Olhei para trás e vi um largo carro preto, um veículo que nunca havia visto antes. A frente, quase triangular, ganhava a distância em nossa direção com facilidade, apesar da velocidade mantida por Darla. Por Marvin, minha cabeça está um pouco confusa ainda, Estranho. Ela realizou uma brusca curva para a direita e acelerou ainda mais, forçando a capacidade do carro quaso ao seu limite.
“A mala está destravada”, ela disse, tirando cabelo de dentro da boca, “ganhe tempo.” Olhei para ela, incrédulo. “Vamos! Nessa velocidade vamos ser executados com certeza. Apenas não acerte as pessoas, ok?”
Destravei o cinto de segurança e me virei no banco, mantendo a caeça baixa. Quando abri a mala, algumas cédulas voaram e peguei a arma o mais rápido que consegui. A uzi parecia assustadoramente grande em minhas mãos. “Porra, porra, porra...”, repetia como um mantra. Apontei a arma na direção do carro estranho que nos perseguia e apertei o gatilho, despreparado para o recuo que seguiu. Meus braços ergueram repentinhamente e tracei um arco de projéteis. Uma das balas atingiu o capô do carro, sem causar grandes danos, enquanto as outras viajaram livres por Londres. Escutamos o barulho de vidro quebrado e puder ver com o canto dos meus olhos a chuva de cacos que caiu sobre algumas pessoas.
“Cuidado!”, Marvin gritou sem paciência. “Sem vítimas!”
 “Porra, porra, porra...”, continuei. Você pode achar que está preparado para enfrentar esse tipo de situação, vivendo o cotidiano da minha profissão, mas quando as balas começam a voar, como besouros metálicos cortando o ar, suas pernas tremem e o seu cérebro encontra dificuldades em somar dois e dois. Três mãos estavam para fora das janelas do carro, disparando contra nós. Ao menos uma criança de bicileta caiu quando o ombro esquerdo explodiu em sangue. Marvin xingou e me mandou atirar de uma vez. Segurei o cabo negro da arma com firmeza e mirei com segurança. Um breve aperto no gatilho e todo meu corpo tremeu, mas minhas mãos permaneceram no ângulo certo. Uma rajada atingiu o carro, percorrendo toda sua frente e o carro parou com um forte tranco.
Meu alívio, no entanto, durou pouco. Segundos depois, o carro continuava em perseguição e outro veículo apareceu à nossa frente. Marvin parou o carro com suavidade e tomou a metralhadora de minhas mãos. “Anomalias”, ela disse e ficou de pé sobre o couro do banco, o vestido balançando ao veto gelado da cidade, os cabelos formando ondas douradas em sua cabeça. Foi então que o paradoxo nos atingiu. Não foi um golpe sutil como asas de borboletas que causa furacões em outro continente. O paradoxo não se sentia discreto naquele dia, meu amigo, ele nos atingiu como um tapa sonoro, um baterista ensaiando em um apartamento de paredes finas.
Um único tiro no carro que fechava o nosso caminho e ele explodiu, com estrondo e claridade, caindo na faixa ao lado. A onda de calor e energia nos atingiu e Marvin quase caiu, mas ela conseguiu manter o equilíbrio e girou o corpo em 180º, colocando em sua mira os outros persguidores. O primeiro tiro fora impossível, ela acertou uma das rodas e por algum motivo a explosão surgiu. Ela abaixou os braços e disparou novamente. Como mágica, um bueiro ergueu e ascendeu no meio da rua e, na descida, atingiu o motor do carro escuro, causando um arco que o deixou virado na rua. Três homens começaram a se arrastar pelas aberturas dos vidros quebrados e um deles tinha um braço quebrado, o osso pontiagudo para fora da pele, jorrando sangue. Marvin jogou a arma nas minhas mãos e acelerou, deixando para trás um cenário de guerra.
“Aprenda a usar o paradoxo a seu favor”, ela disse depois de algumas quadras. “Se eles tivessem sucedido, estaríamos com uma ou duas balas em nossos cérebros”, afirmou. Não havia razão para duvidar da mulher. Antes eles do que eu, certo?
“Há mais pessoas como você, mais Passageiros?”
“Sim, muitos. E eles existem para nos parar, dizem que somo prejudiciais para a existência. Não têm piedade, Chandler, quando eles chegarem, é matar ou morrer.”
O Porsche contiuou em alta velocidade e a periferia de Londres crescia no horizonte. Era impossível identificar uma casa específica onde todas as construções se pareciam e, em poucos minutos, eu estava completamente perdido. “Para onde vamos?”, perguntei com a voz cansada. Meu café da manhã lutava para escalar minha garganta.
“Para uma nova chance”, ela disse antes de ganhar mais velocidade. “Se você aceitar o preço, toda chance vem com um preço, Chandler.”
Essa foi a última vez que me chamaram por esse nome. Sei que é uma longa história e que a hora corre longa nessa noite fria, mas leia mais um pouco de minhas páginas, pois já estamos no fim e saiba que aceitei o preço. Paguei com minha sanidade.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Intermissão 2 - O Tempo e o Samurai


Zack olhava para o relógio, tentando entender o que acontecia. “Deve ser o magnetismo”, disse a mulher atrás dele. Ela estava sentada no balcão e era a única cliente no Clube, bebia uma cerveja e brincava com o amendoim que estava no recipiente ao lado. A Jukebox tocava Nina Simone e a mesa de bilhar parecia estar feliz. Zack às vezes se perguntava como poderia saber sobre as emoções de um móvel, mas o fato é que a mesa parecia feliz. Isso sempre acontecia com Nina Simone. O relógio, pendurado na parede e completamente empoeirado, continuava a progressão de sempre, girando o fino ponteiro vermelho um segundo por vez. O problema, e esse era o motivo pelo qual o bartender encarava o relógio com a expressão de indagação, era que os ponteiros giravam no sentido anti-horário.
“Como assim, o magnetismo?”, ele perguntou, sem desgrudar os olhos do ponteiro regressivo. Os minutos igualmente andavam para trás e, ele tinha certeza, se olhasse tempo suficiente para a máquina que marcava o tempo, as horas seguiriam o novo padrão.
“Igual aquele programa da televisão, sobre o avião que caiu na ilha. Deve ser algum problema de natureza magnética que está interferindo com o relógio de alguma forma. O que você acha? Que o tempo está andando para trás?”, ela soltou uma risada boba, que saiu pelo nariz e corou instantâneamente, o rosto como um morango. Ele olhou para a mulher, sorrindo com o canto da boca e notou como era linda, os cabelos negros caindo em cachos pelo rosto, avermelhado pela vergonha, olhos castanhos, penetrantes. Havia um ar acadêmico sobre ela, uma certa intelectualidade que não era imposta nas outras pessoas, livre da arrogância petulante que acompanha os diplomas de doutorado.
Zack apoiou os cotovelos no balcão, o perfume dela se misturava com o aroma da cerveja. “Não, não acho que o tempo está voltando. Mas também não acho que seja algum problema de origem magnética.”
“De qualquer forma, aposto que se você abrir a porta, verá que o sol está percorrendo o mesmo caminho de sempre, na direção normal, nascendo no Japão; morrendo no oeste. Logo, a terra está girando no próprio eixo no sentido certo, percorrendo a elipse anual, como sempre. Assim, o tempo está certo. O seu relógio não.” Ela bebeu mais da garrafa e jogou alguns amendoins na boca, mastigando com vontade.
Ela conhece astronomia básica, ao menos, Zack pensou, que mulher interessante. “É engraçado.”
O rosto dela voltava gradualmente ao normal. “O que é engraçado?”
“O tempo, a arbitrariedade das coisas. Algumas civilizações entendem o tempo de forma cíclica. Tudo aconteceu mais de uma vez e irá acontecer de novo, o tempo é como uma roda de ciclos infinitos. Diferente do mundo ocidental, onde o tempo é linear e progressivo. Esperamos pelo dia final, derramando sangue e suor nos trabalhos de cada dia.” Ele abriu mais duas cervejas e brindaram. “O capitalismo monopolizou o tempo. Nas primeiras fábricas, quem controlava o relógio tinha poder arbitrário e inquestionável, sabia? Se a jornada começasse mais cedo e outros minutos fossem roubados no final do dia, haveria mais produção e, por consequência, maior lucro. E nada dá mais dinheiro do que o lucro.”
Novamente a risada saiu pelo nariz, mais parecido com um ginchar do que com uma risada e ficou vermelha uma vez mais. “É a revolução do relógio, meu amigo. Imagine quando não havia as medidas exatas do tempo, quando a passagem era feita por dias ou luas ou cheias. As estações comandavam o ritmo das pessoas, a necessidade de plantar e colher no tempo certo definia a vida e a morte. O que diria uma pessoa acostumada com essas medidas de tempo sobre o seu relógio quebrado?”
Zack considerou algum tempo, sem encontrar uma resposta satisfatória. Por fim, decidiu que a questão era retórica e bebeu a cerveja, satisfeito pela companhia. “Às vezes eu fico imaginando como seria se tivéssemos outra medida temporal. Digamos, o tempo de uma mijada. Consegue pensar nas conversas hilárias que teríamos? ‘Por que você demorou tanto?’”, ele disse com uma voz mais grossa e continuou, desta vez em tom agudo: “‘Não estou tão atrasado assim, foram apenas quatro mijadas!’” Eles deram risadas juntos, Zack acompanhou a moça com as fungadas e as risadas se tornaram ainda mais fortes.
“Você está dizendo, sinceramente, que pensa nessas coisas?”, ela perguntou enquanto enxugava as lágrimas que caiam pelo rosto bonito.
“Ora, porque não? Minha mente é um lugar estranho.”
“Com isso eu devo concordar.” Comeu mais amendoins. “Você conhece a história do Musashi?”
A Jukebox marcou o tempo, tocando outra música.             “O samurai, sim”, Zack respondeu.
“Ele vivia sobre as regras de um tempo próprio, pense nisso. Foi uma vida cheia de violência, cada dia poderia ser o último... cada hora poderia ser a última. Ele foi atacado enquanto tomava banho, depois disso evitou os banhos e andava sujo e fedido pelas ruas japonesas; chegou atrasado em alguns duelos, irritando o inimigo e adianto em outros, surpreendendo outros perigos, era um cara inteligente. Mas ele interessa aqui pela visão do momento que ele tinha, algo mais específico do carpem diem, restrito para cada instante. O sumiê”, ela continuou, retirando os óculos e limpando com a própria roupa, “é um estilo de arte que imita os golpes de uma katana, cada pincelada era um golpe e, como em um duelo, ele deveria ser decisivo e certeiro, livre de hesitações. Você já ouviu falar de um samurai hesitante? Não, eles não duravam tempo suficiente para ganhar fama, eles morriam jovens.”
“Viver pelo instante”, ecoou as palavras da mulher. “É uma proposta interessante, mas difícil de se seguir. A própria noção de escrita é um empecilho para essa idéia, se você pensar bem. Marcamos o tempo em diários, calendários e anais de guerras ou de governos, não podemos viver no instante, a cada instante sem pensar no próximo minuto... A própria história é o acumulo de avanços e retrocessos no longo período.”
“Mas isso porque você não vive no mesmo tempo que ele, sua vida não se resume a errar pelo país em duelos de espadas. É como comparar o calendário semanal com o calendário lunar, são duas coisas incompatíveis. Ele vivia pelo instante e sentia-se vivo principalmente quando as duas lâminas mordiam a pele de outros samurais. Dizem os livros que ele fazia obras do estilo sumiê com água. Afirmava que assim economizava tinta e papel e levava às últimas consequências a própria filosofia. Era como um duelo, as pinturas que fazia. Importavam naquele momentos, uma urgência aguda que justificava a sua existência, depois que secavam, estavam no passado e não mais existiam.”
“Só que ele aprendia a cada duelo e a experiência acumulada não pertencia apenas aos momentos da batalha, ele estava contruindo o próprio caminho e ganhando a própria vida desta maneira.”
Sun and Steel começou a tocar no Clube. A mulher olhou para trás, surpresa pelo estilo musical. “Que tipo de Jukebox tem Iron Maiden como opção?”
“Apenas as melhores”, respondeu. “O que você faria se o seu relógio começasse a andar para trás?”
Ela sorriu, um momento único na vida de Zack. Naquele instante, naquela insignificante fração de tempo de sua vida, compreendeu a existência própria e o papel que deveria desenvolver naquele mundo. Os lábios da bela mulher era a única visão que lhe importava e ele nadou na sensualidade contida dos olhos penetrantes. Como é o fato de todos os instantes, aquela breve sensação morreu e ficou no passado.
“Eu compraria um relógio novo, um que funcionasse de verdade”, respondeu, apenas para dar a risada quase suína.
Fora do Clube o sol  morria no leste, mas nada disso importava dentro das paredes manchadas do lugar. Para eles, o que importava era continuar a conversa entre mais e mais bebidas. Viviam por aqueles instantes, únicos e belos... passageiros.
O ponteiro vermelho parou no lugar, fixando-se talvez para sempre. Mas eles nunca perceberam, apenas continuaram a conversar sobre tudo, sobre nada, sobre o tempo.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Nanda

Fui até a cozinha, coloquei um desses copos translúcidos sobre o mármore e peguei a vodka. Deixei o líquido escorrer até abaixo do meio. Na geladeira, peguei o suco de laranja. Me senti um desses escritores marginais.

Mas tudo não passava de uma piada. Sexta feira, quatro da tarde, e eu sentado na cama, na frente do ventilador tomando a bebida preferida do Keith Richards. Não sei beber, só queria fazer pose. Justificar a tristeza.

Olhei para o alto, onde guardo meus dois violões, em cima do armário. Peguei o vilão de folk. Comprei de um vendedor online há algum tempo, oitocentos reais, Fender, um som maravilhoso que nunca soube tocar.

Sentei na cama um tanto entorpecido. Tentei tocar Bruce Springsteen. Não consegui. Fui pra cama para dormir, mas doía-me as costas e a vida. É um clichê. Mas doía. Tenho direito a não me sentir bem também.

Voltei a cozinha. Tomei dois clonazepam e dez gotas de rivotril. Queria dormir, mas a sensação deixou tudo calmo. O coração desacelerou enquanto lá fora o céu se encobria de negro. Amo a negritude do céu.

Estique-me na cama até tocar no bojo do violão. Entendi os blues man. Nunca toquei um som tão triste quanto meus acordes no escuro. Cada nota procurando outra nota que chorasse com mais soluços que a anterior. Permaneci por uma hora alternando melodias e cantando desafinado tentativas de canções. Mas a língua portuguesa não nasceu para o folk. Soa desengonçada. Não tem a sonoridade e nem o sotaque certo para cuspir pedaços da alma.

Eram quase oito horas. Estava com fome. Como disse, alguns homens nem mesmo sabem a maneira correta de se sentir triste. Eu tinha bebido, tomado meus barbitúricos, e até o fim da noite eu iria comer uma pizza e tomar sorvete.

Se homens tem lados femininos esse é o meu. Quando triste gosto de encher meu corpo de gordura. Sentir as artérias se fechando, uma a uma, pedindo por favor para se manterem vivas. Então, ela chegou. Acendeu as luzes da cozinha de modo que vi apenas seu semblante. Caminhou até a cama onde eu estava convalescido – porque alguns homens caiem em um desespero tão grande que acham que, na tristeza, vão morrer – e me deu um beijo na boca. Um beijo longo, molhado, e desesperado para mim que estava, até então, no inferno.

Aquela mulher salvou meu dia.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

lógica

Da janela a oeste vem o som de máquinas trabalhando, máquinas que não param. Da janela leste o som de pássaros voa dentro, passa por minha mente em duas voltas e vai embora, pra cima de um galho. Pássaros param.

Sentado, com a cerveja na mão e o vazio vasto sobre a mesa antiga, ouço do fundo do palco o piano aumentando pouco a pouco seu volume.

Há tesouros por toda parte. Quieto, parado, feito um pássaro calado sobre a madeira de uma árvore já morta, sou como máquina. Há tesouros por toda parte, e sou um caça-níqueis definitivamente quebrado.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

London Noir 2 - A Dama e o Tempo


Einstein dizia que o tempo é relativo. O mundo da física, quando pensado em modelos micro ou macroscósmicos, onde as massas atingem proporções ridiculamente grandes, altera algumas de suas regras, tão certas e confiáveis em nosso pequeno planeta rochoso. O que o cientista simpática de língua para fora argumentava é que a força gravitacional dessas massas na escala macro tinham uma... bem, força suficiente para alterar o próprio tempo. Pense nisso. Eu espero. Pronto? Fantástico, não é? A gravidade altera o tempo, isso tem de fazer seu cérebro explodir, Estranho. O tempo está passível aos campos gravitacionais e sua passagem é, portanto, relativa. E é nessa palavrinha que eu quero me centrar agora: relativo. O tempo é relativo. Por exemplo, quando aquela puta ergueu a garrafa de Jack e desferiu um golpe em meu crânio, por sorte sem causar hemorragias ou concussões, o tempo praticamente parou. Como nos filmes que passam na TV durante as tardes, quando a personagem principal está no meio da rua e dois faróis aparecem virando a esquina, em alta velocidade. Você, sentado no conforto de seu sofá, gritando em desespero: O carro está vindo, imbecil, saia da frente! Mas o seu protagonista está paralizado pelo medo. É estúpido, não é? No entanto, acontece desta forma. Não desviei do carro, não estiquei as pernas e dei o passo ao lado para não ser alegoricamente atropelado. Não. Eu fiquei olhando, para os seios da mulher enquanto a garrafa era registrada pela parte inteligente de meu cérebro. Duas coisas me chocaram naquele momento e nenhuma delas fora a garrafa. O pênis de Bob, ou melhor, Bret perto de meu rosto, ha uma distância incômoda, e a beleza do corpo daquela mulher. Havia algo de errado, como já disse antes, Estranho. Uma espécie de aura cobria a mulher, algo que... eu não sei, algo errado. Todas as preocupações foram esquecidas quando a garrafa impactou sobre minha cabeça. Acho que nessas condições as nossas preocupações também são relativas.
Quando voltei ao mundo, emergindo das trevas profundas, encontrei-me amarrado a uma cadeira em um quarto escuro, cujo ar carregado de horas e mais horas de sexo, suor, vômito e abuso de drogas intercalava-se em alguns minutos de limpeza artificial. Sentia o calor de meu próprio sangue escorrendo e secando ao longo de meu pescoço e torso, mas não havia nada que podia fazer para remediar o machucado, não enquanto estivesse amarrado daquele jeito. Minha cabeça explodia em ondas constantes de dor e precisava manter um esforço contínuo para não apagar novamente. Abri os olhos aos poucos, vencendo um milímetro por vez. A pouca claridade do quarto era o suficiente para me fazer desejar estar na escuridão profunda. Que dia interminável, pensei miseravelmente.
Os raios de sol que conseguiram atravessar as cortinas imundas do Dama da Noite iluminaram as pernas da mulher, sentada no canto perpendicular ao meu. As pernas compridas acabavam no nada, em um corpo obscurecido pelas sombras; apenas os olhos e a ponta de um cigarro acesso eram visíveis: três pontos vermelhos na escuridão, brilhantes e carregados de perigos camuflados. “Não tente falar”, ela me alertou. “Sua garganta está seca e a dor de cabeça apenas ficará pior. Fique quieto, senhor Humphring”, maldição ela sabe meu nome, “e tudo estará bem.” Como uma cobra, aquela boca destilava veneno. A luxúria era algo natural para ela, jogos de sedução e manipulação sua segunda natureza. Eu estava muito além de minha linha de conforto.
Minha carteira, percebi, estava aberta na pequena mesa ao lado da porta do banheiro e seu conteúdo espalhado, revirado e analisado com certeza. Preciso parar de carregar meus documentos. A iluminação súbta, no entanto, estava atrasada. Eles sabiam quem eu era.
Três batidas ocas na porta. Três explosões nucleares em minha têmporas. A mulher levantou suavemente e andou até a porta, atravessando a coluna iluminada, revelando o corpo semi-nu, coberto apenas por uma lingerie vermelha como seus olhos, provocante... apenas como ela, falta-me comparação mais precisa. Novamente senti que havia algo de errado na simples existência daquela mulher, como se sua presença fosse um paradoxo que danificava os tecidos da realidade que nos cercam. Outra explosão tomou conta de meus olhos quando a porta foi aberta e o sol invadiu o cômodo, deixando-me parcialmente cego por alguns segundos. “Ele acordou?”, escutei a voz de Bret. Ou de Bob. Ainda com os olhos fechados, senti o peso dele apoiado na cadeira, o cheiro de cigarro e whisky exalava da pele do homem, como se ele transpirasse partículas de tabaco e álcool. Ao menos ele estava vestido. “Oi! Chandler está aí?”, o ar se movimentou instantes antes da costas da mão gorda atingir minha bochecha. Mais sangue escorreu de um novo talho feito pelo anel que ele usava.
“Assim ele vai apagar de novo”, ela disse, há um milhão de anos-luz.
“Eu não tenho o tempo, ou a paciência, chapa. Responda de uma vez, quem te mandou?” Ele dizia a verdade e eu não tinha pretenções de apanhar mais naquele momento. Apanhar estava fora da lista de coisas favoritas, eu estava descobrindo. Que porra de dia longo.
Eu abri a boca e as palavras me falharam. Como ela havia alertado, minha garganta estava desidratada como um deserto. Um novo tapa, um novo corte, a mesma dor em minha cabeça. “Ele ia falar, Cristo!”, ela disse, andando até o banheiro. Escutei a torneira rangendo e o barulho de água caindo. Ela trouxe um copo e eu bebi, sentindo um misto de alívio e náusea pela água gelada, mas com o gosto metálico de ferrugem.
“Quem te mandou para me vigiar?”, ele perguntou novamente.
“E...”, eu disse com as palavras que voltavam para minha garganta, “a mulher.”
“A próxima será em seu nariz com meu punho fechado. Que mulher?”
Ele não irá acreditar em mim. “E... ela”, eu disse com dificuldade, olhando na direção da mulher de lingerie. “Outros... olhos, outra... cor. Bob. Amante.” Foi tudo que consegui dizer. Esperei pela promessa de um nariz quebrado, mas Bob estava em silêncio, olhos assustados. Ela andava freneticamente no quarto, do ponto A para o B e, novamente para o A. Eles se trancaram no banheiro, tentei escutar o que conversavam, sem compreender qualquer palavra.
Quando voltaram, ele tinha um canivete nas mãos e rapidamente, antes que eu pudesse pensar em qualquer perigo, usou-o para me libertar das cordas. “Desculpe por tudo isso, chapa. Eu surtei quando vi as minhas fotos, você é um excremento por estar nesse mundo.” Eu não soube o que responder. Ela ainda estava no banheiro, a porta fechada. “Escute, quanto ela te pagou? Vou compensar pelos seus... pelas suas dificuldades.” Ele colocou uma mala negra na cama e a abriu, dois sonoros clicks ecoaram pelo quarto. Na mala havia duas pistolas automáticas e uma minimetralhadora, além de dezenas de pequenos blocos de dinheiros amarrados por elásticos grossos. “Eu vou pagar por sua máquina também, claro.”
“Doze. Doze mil libras.”
Ele recolheu o dinheiro da mala, deixando mais que oito décimos do que havia originalmente. “Vinte e cinco mil. Isso deve recompensar pelos problemas que nós causamos.” Acenei com a cabeça.
“Quem é ela?”, perguntei, “A irmã gêmea?” Ah, Londres, doce Londres carregadas de pessoas doentes.
Bob desabou na cama, fazendo a madeira ranger sob o peso de seu corpo. “Não, não. Nada disso”, ele sorriu. “É mais complicado, antes fosse simples assim. Darla tem dupla personalidade. Na maioria dos dias ela está bem, cuida da própria vida, pinta alguns quadros e brinca com os cachorros, mas quando ela acorda e coloca as lentes azuis, o dia está perdido. Darla, nos dia da loira de olhos azuis, lentes de contato coloridas, se transforma em uma puta mesquinha e manipuladora, que só existe para foder com minha vida. Sinto muito que você foi para no meio do furacão, Chandler.” Meu nome na boca de Bob, que ocasião perturbadora.
O que vocês estão fazendo em um lugar como esse? Porque têm tantas armas e dinheiro? Eu queria perguntar, tinha muitas dúvidas, mas limitei-me a pegar a sacola com o dinheiro e andar até meu carro, sentindo que ainda estava em um sonho. Minha cabeça ainda girava com dor, sangue seco e duplas personalidades. Que dia longo, longo dia horrível. O Dama da Noite ainda era um lugar nojento e o homem sujo da recepção ainda tinha sangue seco na camisa. Ele me olhou com certa satisfação ao notar o sangue empoçado na gola de minha camisa. Por sorte, o Fedora e o sobretudo estavam em minhas mãos. Dirigi por quase uma hora e cheguei em meu escritório quando o sol já estava baixo e algumas núvens carregadas se acumulavam em todas as direções, como quase todos os dias nessa ilha. Ainda hoje não sei como dirigi, não tenho nenhuma memória do que aconteceu no caminho.
Atravessei o corredor apertado rapidamente, o maior ânus de Londres segundo o que diziam meus clientes, e me arrastei pela escadaria, até chegar na pequena sala. Sentei na cadeira do meu lado da mesa e dormi quase antes de meu corpo terminar a descida. Por dez horas estive fora do mundo.
Despertei com o sol de um outro dia. Minha cabeça ainda letajava e dois corte horríveis tomavam conta de meu rosto e nuca. Entrei no pequeno banheiro anexo à minha sala e lavei o rosto o melhor que pude. No armário da pia havia uma maleta para primeiro socorros e fiz dois delicados curativos. Os cortes não foram profundos, mas deixariam duas cicatrizes claras. Troquei de roupa e desci para comer algo, meu estômago roncava. Atravessei a rua com o vento tentando retirar o Fedora da minha cabeça e entrei em um pub, o Estábulo Real. Viver Candem Town por mais de quinze anos provoca uma rejeição eqüina nas pessoas, aparentemente. O Estábulo era um lugar decente, cuja comida tinha um sabor forte e a cerveja bem acentuada descia prazerosa até meu estômago. Um pouco escuro, talvez, mas qual pub londrino não é assim? Hey, pelo menos não estava indo comer peixe frito com batatas.
Procurei a mesa que ocupava normalmente, perto da vitrine, de onde poderia assisir o movimento apressado na rua e vigiar a porta vermelha, esperando por novos clientes e passei meus olhos no lugar. Dois casais trocavam palavras e carinhos nas mesas ao redor e no balcão, dois policiais comiam torradas. Não tinha certeza se estava pronto para um novo trabalho, mas era melhor do que ficar remoendo a complexa mistura de ódio, culpa e dor que eu sentia. Dupla personalidade, minha cabeça recuperou as palavras de Bob. Inventei uma desculpa para meu rosto quando a garçonete de costume me atendeu e pedi um café da manhã completo e uma cerveja preta. Sem uma refeição completa por quase dois dias, meu corpo anciava pelos ovos, bacon, feijão e salsichas que chegaram e foram quase completamente devoradas em poucos minutos. A cerveja assentou a comida e a energia começou a voltar com a digestão iniciada.
Encostei-me no banco acolchoado do pub e respirei, aliviado. O que eu poderia fazer? Pegar meu revólver de seis tiros, minhas dezoito balas e procurar por vingança contra Bob e suas três armas, sendo Darla ainda mais perigosa que uma uzi? Não. Não Chandler. Deixe-me contar um segredo, Estranho, Chandler iria engolir o orgulho e aproveitar aquelas vinte e cinco mil libras, sim senhor.
Mas o tempo, caro Estranho, é relativo, lembra? Pensando nesses dias estranhos, percebo que tudo aconteceu rápido demais, sem me deixar muito espaço para raciocinar e planejar uma reação.
A garçonete, uma garota de vinte e dois anos, com um filho de um e outro na barriga, aumentou o volume da televisão pendurada atrás do balcão. “...morto em um bizarro crime passional. Bob Maltese foi morto por cinco tiros à queima-roupa. Henry Gregory, dono do hotel disse à policia que foi agredido pelo principal suspeito do crime...”, oh, merda, tive tempo de pensar. A televisão mostrava uma imagem estática do Dama da Noite de um lado e a foto de Bob do outro enquanto minha própria imagem crescia no centro da tela. Uma foto antiga, ainda de quando cabelos longos e selvagens desciam de meu ombro e o Led Zeppelin estampava minha camiseta, longe do homem com duas bandagens no rosto e um chapéu na mão; um detetive particular raramente deixa fotos suas circulando na internet. A repórter continuou, indicando meu nome com um erro comum: “... Chandler D Homphrenger foi identificado como amante de Darla Maltese e culpado pelo homicídio. A polícia emite um aviso de procurado e pede para que a população entre em contato por esse número para qualquer informação sobre o suspeito. Ele está armado e é considerado perigoso.”
Em menos de um segundo estava me dirigindo à saída do Estábulo Real, colocando o chapéu na cabeça e evitando olhar para trás. Para minha surpresa, Darla estava entrando pela porta vermelha, com as mesmas pernas longas e sedosas. Olhei para trás e vi a jovem garçonete apontando em minha direção enquanto um dos policiais falava com a central. Maldita garota!
Meu nome é Jonhatan Raymond. Todos os dias acordo e ando pelas ruas cinzentas de Londres, fazendo dinheiro e vivendo uma vida que adoro. Eu sou o cara que você encara no metrô, com um terno suado e uma gravata apertada no pescoço, e imagina o tipo de vida enfadonha que leva. E você está certo, minha vida é enfadonha e isso é tudo que sempre quis. Meu nome não é Jonhatan Raymond e o tempo, caro Estranho, é relativo.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Buk Buk Buk

Freud disse uma vez que um charuto é só um charuto. Tento evitar. Mas conheci uma mulher certa vez que sempre afirmava: não importa o quanto tentamos nos desvencilhar do velho barbudo, sempre voltamos a ele. Esse aforismo do psicanalísta, ou o que quer que seja isso, o que quer que seja ele, quer dizer que uma coisa é apenas uma coisa. Um homem fracassado, as vezes, é só um homem fracassado. Uma bebida com malte de vinte e cinco anos é só uma bebida malte vinte e cinco anos. Um beijo é só um beijo. As bundas não. Elas sempre são algo mais que as próprias nádegas. Bundas são uma ideia. Estou divagando.

Eu dizia que uma ideia é apenas uma ideia. Há constrição nisso. Ninguém consegue ver o que há por trás da ideia. Você observa um homem solteiro, malte trinta anos e diz a ele: “você esta assim por causa de um trauma de um amor passado” e ele cai direitinho. Outro começa a ter uma vida cheia de grana e gastos e você avisa “isso é para compensar sua infância pobre e cheia de sofrimento” e ele afirma que sim, era pobre e, puxa, tem razão.

Dessa maneira nunca soube se já levei alguma mulher para cama com o desejo dela ou se eu a fiz me querer. Bobagem. Tirem o senso comum. A cama. Mantenham a mulher se quiserem, elas sempre merecem serem mantidas. Vou de outro exemplo: Eu não sei se gosto de música clássica porque meu pai ouvia ou se realmente eu achei a música ideal da minha vida.

Gosto de sorvete de chocolate. Eu realmente gosto desse sorvete ou foi algo que minha mãe entupia minhas artérias quando criança? Não sei. O sorvete é só um sorvete mas, diabos, pode ser mais do que isso.

Enfim, era isso que eu falava para Cecília quando ela arregalava os olhos perto de mim. É por isso que não gosto de olhar as pessoas. Sempre olho para os lados quando falo com outros. Não tenho medo de gente. Tenho medo de não controlar meu olhar. Rir do nariz gigante, da catota, do arroto, dos peitos saindo pela blusa. Essa obsessão por peitos.

Fico confortável olhando para o outro lado. Ela sempre acha que estou olhando outra mulher, mas meus amigos me entendem. Alias, não lembro quando foi a ultima vez que olhei nos olhos dos meus amigos. Me bastam saber que estão lá acenando. Sou um cego que se guia por suas vozes.

Não gosto de beber. A cabeça gira, o pau amolece e no final tenho mais loucura sóbrio. E mais perspicácia se eu e a moça estiverem nus na cama, sóbrios. Talvez minha fixação não seja só pelas mulheres. Mas pelo controle da minha vida. E por bundas. Vai saber.

Mas a bebida está presente para transformar situações embaraçosas em momentos mais felizes. Um dia flagrei a mãe de uma conhecida fazendo sexo: “tudo bem, vamos tomar uma cervejinha e rir disso tudo”. A vida está uma merda: “vamos para o bar”. Preciso ter coragem de conquistar essa moça: “me traga mais uma dose”.

Acho engraçado um pormenor masculino. Normalmente eu reprovaria esse diálogo mas o que estou dizendo é um pensamento meu. Reparem, homens tem a capacidade de abstrair completamente o marido que anda com uma mulher desejada. Ela é linda, alta, radiante, loira, ruiva, morena e tem um homem ao lado. Se você a aponta aos seus amigos vocês dizem: “ela deve ser uma delícia nua” e automaticamente imagina ela fazendo sexo com ninguém. Homens tem a capacidade de anular os outros caras da jogada. Retiram o feio, ficam com o belo. Acho engraçado. Tive um amigo que sempre que mencionava uma mulher nua pensava nela se masturbando. Ele achava horrendo o fato de outros homens deixarem sua marca lá, antes dele.

No final, lembrei-me de minha amiga, do fundo do coração. Não lembro se era amiga ou colega, mas que ela me disse, disse. Não conseguimos sair de Freud. Freud esse comedor de mães e bundas. Não importa o que você faça, sempre existe algo que te diz que as coisas são mais que charutos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

c£µb

Um dos problemas de viajar por terras estranhas é a língua das novas paragens. Não há dúvidas, por certo, de que novas línguas enriquecem a experiência viajante, mas tampouco há dúvidas de que desconhecer o idioma da terra em que se está ocasiona, vez ou outra, problemas grotescos.

Saudoso de seu bar, de seus amigos, da terra de que tinha vindo, Ozias andou cego, às apalpadelas, por alamedas vielas por becos e bairros sujos. Procurava um canto escuro e aconchegante onde pudesse beber ao som de uma vitrola antiga, olhando mulheres bonitas e tendo cerveja gelada. Por toda a parte que passava não podia encontrar nada, e a memória de seu Clube batia e rebatia na mente tal qual martelo a pregar parede.

Eis que viu uma placa, com pouca iluminação, e a palavra que ali estava era de tal feita parecida com a tabuleta do bar do Clube que, sem mesmo hesitação, meteu-se por porta adentro. As caras paradas gélidas deitadas nuas em mesas deixaram Ozias saber que se metera em problema sério.

Entrara num necrotério.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

London Noir 1 – Duas Garrafas de Jack


Meu nome é Jonhatan Raymond. Todos os dias acordo e ando pelas ruas cinzentas de Londres, fazendo dinheiro e vivendo uma vida que adoro. Eu sou o cara que você encara no metrô, com um terno suado e uma gravata apertada no pescoço, e imagina o tipo de vida enfadonha que leva. E você está certo, minha vida é enfadonha e isso é tudo que sempre quis. Mas é melhor começar pelo início, como todas as histórias memoráveis. Meu nome não é Jonhatan Raymond e esse é o melhor começo para a minha história.
Perto do distrito londrino de Camden Town, há uma porta vermelha marcada pelo tempo, a tinta velha está descascada, a maçaneta opaca sempre suja pela gordura das mãos de viciados em heroína e imigrantes ilegais sem chances de melhores condições, seja lá de onde vieram. A porta se abre para um corredor escuro e claustrofóbico, do tipo que você precisa apoiar nas paredes e andar rápido até encontrar um aposento mais iluminado, porque a sensação de que algo está alí para te fazer mal é uma das características do lugar. Sua mão seguirá o papel de parede mofado até a escada no fundo, acredite. Suas pernas hesitantes farão com que cada degrau grite injúrias em rangidos secos e triturantes. O barulho de projéteis disparados, crianças chorando e casais berrando o mais alto que conseguirem é a trilha sonora do prédio esquecido pela cidade. Passar por esse corredor, caro Estranho, é um teste para sua sanidade. Se de alguma forma você for doente o bastante para atravessar os vinte passos até a escada e escalar todo o caminho, emergindo cada vez mais no lado escuro de Londres... bem, você está no lugar certo.
A porta do segundo andar parece ter saído de algum set de filmagens em Hollywood. Um vidro ocupa dois terços e nele está estampado meu nome, Chandler D. Humphring, próximo a um Olho de Osíris. Não é nada supersticioso; apenas um símbolo que parece funcionar para o tipo de pessoa que me procura, bastardos sem moral que acreditam em qualquer baboseira que venha de alguma terra distante e exótica. A terceira linha escrita na porta diz: Detetive Particular. Ela só não é perfeita porque não é em preto e branco.
Na sua mente você já sabe como pintar o cenário. Dezenas de páginas antigas de jornal estão espalhadas pelo cômodo, sobre a mesa central e pelas duas cadeiras sujas em que as pessoas colocam suas respectivas bundas na procura de minha ajuda, o desesperado último recurso. Uma planta quase morta permance, murcha e caída, em um grande vaso no canto esquerdo de quem sai; na parede da direita, um cabideiro com minha capa de sarja e meu Fedora; ao lado do cabideiro amarelo, o único arquivador de metal com quatro gavetas separadas, todas cheias até a capacidade máxima de pastas e arquivos, notas fiscais evasivas e fotos de pessoas mortas. Estou sentado na cadeira de encosto alto e, como você deve saber, com as duas pernas apoiadas sobre a mesa de madeira, um chiclete antigo em uma das solas de meu sapato estranhamente bem engraxados e um cigarro nos lábios. A fumaça sobe em colunas belas, quase mágicas. Na mesa, perto de meus pés, o único retrado de uma família feliz marca meu passado e o motivo da sombra carrancuda do que antes era. As gavetas da mesa estão trancadas, mas de alguma forma eu não preciso mentir sobre o revólver ou o litro de whisky consumido pela metade, o lugar de melhor acesso: como eu disse, a cena só não é perfeita por não ser em preto e branco.
Como manda o clichê, ela entrou pela porta com sedosas pernas longas e nuas, alvas como leite, tentadoras como o próprio diabo. O vestido curto, com certeza vermelho, exibia com exatidão as curvas sensuais da mulher, cobertas por um capa de seda azul. Um grande chapéu enfeitava os cabelos dourados. O rosto redondo dava espaço para lábios grossos e macios, um nariz delicado e dois olhos azuis que pareciam sugar minha alma. Um lobo em pele de cordeiro, pensei no mesmo instante. Os seios fartos, no entanto, apagaram qualquer pensamento de minha mente.
“Preciso de seus serviços”, ela disse com uma voz macia. Ela falava em Jazz. Sentei como um adulto e derrubei o cigarro terminado no cinzeiro de vidro. Aquele cinzeiro não estava alí por acaso, apenas porque fumo. Ele era pesado e repleto de quinas: uma arma nas horas de necessidade. Quero que você siga meu marido, pensei. “Quero que você siga meu marido”, ela disse musicalmente. Acredito que ele esteja tendo um caso, meus lábios quase se moveram, formando as palavras. “Acho que ele está me traindo”, retirou um lenço da bolsa e enxugou olhos lacrimosos. Quase, pensei.
Abri a gaveta e coloquei dois copos sobre a mesa, despejando a bebida âmbar em seguida. A garrafa de Jack Daniels pousou com um baque seco na madeira. Era uma garrafa de base quadrada, pesada e resistente. “Meus... serviços são caros, madame.” Eu bebi metade de minha dose em apenas um gole. A bebida desceu queimando pela garganta até meu estômago vazio.
Ela concordou com a cabeça, ainda sobre o grande chapéu, e jogou um envelope pardo entre os dois copos. Eu contei o dinheiro. Quatro mil libras. Impressionante. “Estou disposta a pagar mais oito mil depois que você concluir a investigação. Isso basta para suas despesas?” Que tal alguns beijos?, apenas concordei com um rápido movimento em meu queixo. Aqueles olhos. Havia algo de errado com eles. Não era apenas a decepção que ela sentia com o tolo homem com quem era casada, era algo... incerto, diferente. Talvez fosse o tom claro do azul naqueles olhos, talvez todo o conjunto; algo estava errado e eu estava hipnotizado pelas notas em sua voz, o que me fazia ignorar o alarme. Reformulando meu pensamento, ela não era um lobo. Ah não, meu caro Estranho, ela era uma sereia. E o canto invadia minha mente, meu barco ia na direção das rochas e não havia nada a ser feito. “Encontrei isso na carteira dele ontem, junto com uma conta da semana passada, ele gastou setecentas libras aqui”, ela continuou enquanto me entregava um imã para geladeira. Era um pedaço retangular estampado com o desenho de uma lua e uma flor branca. Hotel Dama da Noite, dizia em letras garrafais. Aberto 24h. TODOS os dias do ano! No fim da propaganda, três diferentes números para contato e um endereço de e-mail. Em seguida ela me entregou uma foto do meu alvo, ele era um banqueiro gordo e baixo, do tipo grotesco que usava grossas correntes de ouro, gel no cabelo que restava na cabeça calva e suspensórios. Eu não tenho outra opção que não seja odiar pessoas de suspensórios, esse é o principal motivo pelo qual quero matar todos os palhaços. Suspensórios de merda.
 “Ele parece uma pessoa perigosa”, a porra de um capo, pensei comigo mesmo. Não estava gostando do desenvolvimento daquela história.
“Um aleijado consegue correr mais do que ele, olhe para a barriga, pelo amor de Deus!” Ela bebeu o whisky. As mãos estavam impacientes.
“Armas?”
“Nunca vi uma única arma na casa. Ele evita usar facas pontiagudas porque sempre corta a mão. Armas de fogo estão fora de questão. Acho que ele atiraria no próprio pé, o inútil.”
“Você quer fotos dele com outra pessoa? Ou vídeos? Ou apenas minha palavra será o suficiente?”
“Sua palavra?”, ela sorriu. “Não será o suficiente, não as palavras de alguém que fica aqui, nesse prédio. Nunca.”
“Cuidado com sua atitude, madame. Nosso contrato ainda não está firmado. Você quer a investigação bem feita, com cuidado e sigilo, certo?”
“De preferência, sim.” Ela se mecheu na cadeira, desconfortável com o encontro. “Fotos. Algumas fotos e estamos de acordo.”
“Volte em dois dias, ele será minha prioridade.”
“Bob Merrygold, é o nome dele. Deus, até isso é uma piada. Bob”, dissem em um tom de desprezo.
Em seguida, ela se levantou e respirou fundo. Andou até a porta e a abriu. “Seu corredor fede a mijo”, disse antes de desaparecer no odor de urina. Poucos minutos depois, era a minha vez de atravessar o corredor apertado e fétido. Alguns clientes faziam piada sobre aquele lugar ser um ânus. Eu nunca achei graça, mas havia alguma razão no gracejo.
O Dama da Noite era uma espelunca. O dono não tinha a mínima vergonha em chamar aquele conjunto de quartos e banheiros cheios de baratas e drogados esquecidos pelos cantos de ‘Hotel’. “Filho da puta!”, gritei quando passei as rodas de meu wolks antigo por cima de uma garrafa de cerveja. Londres é uma bosta. Andar naquele estacionamento foi como dançar em um campo minado, era possível escolher em qual camisinha usada pisar ao invés de tocar o asfalto. “Bob, seu desgraçado, isso não é lugar para trazer uma mulher. Setecentos dólares nessa espelunca? Você viveu aqui por anos e anos?”
Nunca entendi os ricos que tinham amantes. De ambos os sexos, de qualquer gênero, incluindo o do meio. Em minha profissão você acaba esbarrando com certa regularidade no sexo que vai além do normal. Não entenda mal, não sou homófobo. Mas convenhamos que orgias de transsexuais com espancamentos e submissão é algo que está fora do interesse da grande maioria das pessoas. Em todo caso, atravessei aquele estacionamente me perguntando porque escolher ter relações em um lugar como aquele com outra pessoa se, no caso do Bob, uma das mais lindas mulheres deveria estar esperando em casa, deitada em uma cama ‘king size’ fria e solitária. Ele merecia o que estava por vim, eu me decidira. Bater as fotos era algo importante e seria feito, de uma maneira ou de outra.
A recepção do hotel era o que você esperaria estando em minha pele: suja, esfumaçada e apertada. Tirei meu chapéu e me certifiquei de que o sobretudo não encostaria em qualquer móvel daquele lugar horrível. “Importa-se de dividir uma informação, amigo?”, perguntei para um homem sentado no banco atrás do balcão. Ele estava com a barba por fazer e, apesar do frio daquele dia, usava apenas uma camiseta sem mangas, manchas amareladas por baixo de cada axila e um furo feito provavelmente por um cigarro um pouco acima do umbigo. Ele tinha as maiores bolsas abaixo dos olhos que eu já vi na minha vida. A pele plastificada pelo abuso de drogas pesadas.
“Isso depende do quê e de quanto”, respondeu em tom neutro. Ah, a doce vida de um investigador. Algumas vezes penso no meu sobretudo como um uniforme nazista. Coloque uma sarja comprida e um chapéu Fedora por cima de uma roupa descente e pronto, você é um investigador particular e as pessoas tratar-te-ão de acordo. Experimente usar uma suástica na França ocupada ou um turbante nos Estados Unidos de hoje e você saberá do que estou falando. Mas, hey, é o meu estilo de guarda-roupas, o que posso fazer? Andar como uma pessoa normal? Qual o sentido em sem um investigador particular se não for pelo pacote todo? É o estilo de vida, Estranho.
Joguei duas notas de cem libras por cima do balcão. Quatro olhos reais me fulminaram com reprovação quando o papel caiu na frente do homem. “Tudo que preciso saber é se você conhece este simpático indivíduo e com qual freqüencia ele aparece aqui.”
Ele pegou a fotografia com dedos roliços e a estudou. “Bret, velho Bret”, recolheu uma das notas. Prendi a outra com a minha mão.
“Continue”, incentivei.
“Ele vem... três, quatro vezes por semana. Às vezes cinco. Nos últimos dois anos, religiosamente.”
Ele puxou a nota, mas ela não saiu de baixo da minha palma. “Ele faz a peregrinação religiosa sozinho?”
“Não. Ele vem sempre com a mesma mulher, uma loira. Linda. Eu não a trocaria por nada nesse mundo, chefe. Olhos vermelhos, uma verdadeira boneca.”
“Quando ele veio pela última vez?” Ele me surpreendeu com um rápido puxão e, mais rápido que a luz, o dinheiro desapareceu no bolso da calça larga.
“Um pouco mais da Senhora Nossa Majestade e pode ser que eu tenha mais coisas para contar.” Olhei com ódio para o dono do Dama da Noite. Nada que eu poderia fazer. Estendi mais cem libras. “Pode ser que ele esteja aqui neste instante.”
“Qual número?”
“O quê? Para você entrar e matar o cara em um dos quartos? Estou atolado até o pescoço com a polícia, nada feito.” Ele, no entanto estendeu a mão em minha direção, palma para cima. Suficiente, eu decidi. Torci a mão gorda para trás em um rápido movimento e forcei o cotovelo na direção errada. Um baque seco ecoou na sala, ele esticou o pescoço e gritou de dor. Com minha mão livre agarrei o pescoço engordurado e afundei a testa do homem na balcão com força suficiente para fazer soar a pequena camapainha em um dos cantos da madeira fina. Sangue começou a cair no mesmo momento.
“Qual número?”, repeti com impaciência na voz.
“Tre... Treze!” Ele chorava, assustado e acoado. Que visão triste. “Mate-o em outro lugar, por favor, não em um dos quartos!”
Estiquei o braço que segurava a cabeça e peguei a chave do quarto doze. Subi as escadas rapidamente e entrei, furtivo, no quarto. Fui atingido pelo odor de suor, vômito, sexo e naftalina, não necessariamente nesta ordem, e quase vomitei. Colei meu ouvido na parede e escutei gemidos de uma mulher. Alcancei minha câmera fotográfica no bolso e desliguei o flash. Hora de trabalhar. Esperei alguns minutos, espiando pela janela do quarto para ter certeza de que não havia sido seguido e saí pela porta, abrindo-a com carinha e evitando rangidos desnecessários. O corredor do hotel estava vazio. Apenas uma barata corria pelo teto, desaparecendo pelas escadas. Os quartos tinham janelas voltadas para fora. Conveniente, pensei. O quarto treze tinha uma pequena abertura entre as cortinas de segunda mão e era possível enxergar o casal deitado na cama. Bret, também conhecido como Bob na vida pública, estava amarrado na cama, vestindo apenas meias pretas nos pés, a barriga flácida balançando com o peso da mulher. Dois lenços de seda o prendiam no colchão de molas. Ele o cavalgava vigorosamente. Era linda, com as medidas certas e curvas acentuadas nos melhores lugares. Os seios maravilhosos balnçavam sensualmente no esforço sexual e os gemidos altos podiam ser ouvidos do lado de fora. Eu cliquei sete vezes.
Rapidamente, fiquei de joelhos e olhei para as fotos na tela de minha máquina. Eu já tinha as provas: as expressões de êxtase de Bob eram visíveis em todas as fotos. “Seu bastardo sortudo”, murmurei com um misto de ódio e inveja.
Quando vi a terceira foto, no entanto, a história tornou-se confusa. Eu vi a mesma mulher sobre Bob, a loira que havia encomendado minha investigação. Os cabelos loiros, os fartos lábios e as coxas luxuriosas eram indicadores. Era a mulher de Bob naquele quarto. O que ela está fazendo aqui com ele? Minha mente entrou em torpor. Parte pela visão do corpo feminino em um dos mais perfeitos exemplares, parte pela perplexidade que sentia.
“Oi! Seu desgraçado!” Virei o rosto na direção do som e vi a porta do quarto treze aberta. Bob estava do meu lado, o pênis ereto perto de minha face. A última coisa que vi foi o corpo esbelto com os braços erguidos. Quando ela desceu a garrafa de Jack Daniels na minha cabeça, perdi a consciência imaginando como gostaria daqueles seios rodeando meu rosto. Pensei também o quanto eu adorava Jack Daniels.
O mundo, no entanto, tornou-se escuro.