segunda-feira, 23 de setembro de 2013

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Beren

As letras estavam embaçadas. Usou a costas da mão para limpar um pouco da terra negra que deixava manchas nas folhas do caderno surrado. Era o seu refúgio, o templo para onde corria quando as balas voavam acima dele. Mas, naquele dia, a fonte de onde retirava a paz interior, mesmo soterrado no turbilhão frenético onde estava enfiado, estava seca. Forçava o olhar, mas as letras continuavam fora de foco.
Em seu íntimo, pensava em todo o horror dos últimos anos. O absurdo da guerra deixa marcas mais profundas do que aquelas provocadas pelas balas. Cicatrizes que flagelam as almas de todos os jovens soterrados pela terra suja do front, almas estocadas pelo tédio e atormentadas pelo medo que os vigiava em todos os momentos. Respirava, tentando saborear o ar, como se fosse o último suspiro, mas uma sobra murchava seu coração e o amanhã parecia tão longe quanto podia imaginar. Algum dia, escondido em seu destino, correria novamente entre as árvores inglesas? Poderia cruzar planícies e rios? Havia futuro em seu futuro?
Ao seu redor, cápsulas ocas: atos de violência que, aos poucos, se tornavam corriqueiros e sem significado, naturais até. Dado certo momento, muitos de seus colegas - rapazes inteligentes e de boa índole - deixavam de distinguir o ato de urinar com o de matar pessoas. Outros eram assassinados à sangue frio, como demônios que haviam escalado a terra, saídos das profundezas de onde foram libertados por uma força maligna. Recusava-se a aceitar o maniqueísmo daquela guerra, ainda que lhe parecesse o caminho mais fácil. Sua moralidade, no entanto, sempre escolhia o caminho mais turbulento. O primeiro passo, dizia, é tudo que preciso para começar a mais incrível das jornadas.
As letras estavam embaçadas. Os sentidos embaralhados. Uma metralhadora vomitava sobre eles seus artifícios mortais e o espírito diminuía. A ferida no braço de um de seus irmãos de arma, deitado há menos de dez metros, fedia e o odor nauseabundo alcançava suas narinas. O cheiro da ferida servia para esconder o ar podre que escapava de seus pés eternamente úmidos. Por um momento imaginou-se em um pântano, rodeado de faces sem vida, mas capazes de voz, vozes que chamavam seu nome, que prometiam a paz que o esperava do outro lado. A saída fácil. Ainda mais fácil do que acender um cigarro e levantar a mão destra. O tiro de um milhão, eles chamavam. Um ticket para casa. Tudo que precisava fazer era esconder a verdade e deixar a vergonha enterrada em seu peito. As feridas que os homens não vêem são as piores.
Acendeu um cigarro e tragou, deixando-se ficar enjoado com a nicotina. Se ao menos pudesse levantar a mão, tudo estaria acabado em alguns dias. Edith estaria na estação e poderia continuar com seus estudos, quem sabe voltar a Oxford para lecionar. Se ao menos fosse covarde o suficiente.
Batucou a caneta no papel surrado. As palavras sem nexo, frases sem emoção. Arrancou todas as páginas escritas e as jogou para o outro lado das trincheiras, para a Terra de Ninguém. Ao menos elas estavam livres da toxicidade das trincheiras. Os pés inchados e doloridos sentiam inveja.
“Ei, Ronald! John, venha aqui!”, alguém gritou.
Fechou o caderno vazio de palavras e andou, com dificuldade. Logo voltaria para seu templo e tentaria escrever, deixando para trás toda aquela loucura da guerra. Pensou em Edith. Pensou em sair daquele hospício e voltar para seus braços ternos.
Correr livre pelas florestas, como um elfo. Beber cerveja como os anões guerreiros de Valhalla.
Na próxima oportunidade, decidiu, escreveria sobre elfos e anões. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

não-narrativa

O editor de camiseta regata, bermuda e chinelos, mexeu as mãos no ar.

- Faça uma não-narrativa – disse.

- O que? – perguntamos – somos escritores – prosseguimos - não dá para fazer uma não-narrativa.

Ele suspirou, como chamando-nos de idiotas e foi em frente.
corr
- Vocês dois são muito apegados a contar história. Blá, blá, blá, histórias, detalhes, a cor do passarinho verde com barbatanas – ele usou barbatanas, o que deixou sua fala mais surreal – azuladas na região setentrional. Escrevam, seus filhos da puta, escrevam, apenas. Deixem essas descrições para a porra do Eça de Queiroz se remexer no túmulo.

Então, eu liguei o computador, o cursor piscando na minha frente – este é o máximo de descrição que saberão – e fiquei pensando no que escrever.  Pensando, pensando, comecei a olhar meu quarto. No calendário, percebi que estamos no dia 18 de Setembro e não tenho mais um puto na carteira. O que tinha na conta bancária gastei em um livro. No sebo. Hellen Garner.

Olhei novamente para o computador. O cursor piscando, piscando, e o silêncio da página. Fui até o navegador, li notícias, terminei em um site de pornografia e, ao perceber, voltei a página em branco. Uma não-narrativa uma ova.

Assim, comecei a escrever a não-história de um rapaz não-agoniado que, em seu não-relacionamento com a não-família, sente-se incomodado por não ter de esconder a não-verdade de sua não-sexualidade. Eu parecia um desses rappers americanos que ficam repetindo a mesma palavra. Fuck. Fuck. Fuck. Fuck. Fuck. E mudavam de tom para bitch, bitch, bitch, bitch.

Quis mandar o não-editor tomar em sua não-bunda. Mas não saberia o que fazer se não ganhasse a grana por este texto. Passaria os últimos doze dias deste mês sem nenhum puto. Alias, mandá-lo tomar na bunda revelava um dos dilemas da necessidade do dinheiro. O papel higiênico acabou ontem, de modo que, ou eu limpo a bunda no chuveiro ou passo no mercado e, com a grana desse texto-encomenda, compro uma quantidade mínima de mantimentos e um papel higiênico que restaure – parcialmente, diga-se – a minha dignidade. Não que não possa ser digno penetrar a mão no próprio rabo, eu só não gosto disso até agora – posso mudar de opinião na crise dos quarenta, ficaremos atentos.

Não estou dizendo que faço apenas pelo dinheiro. É pelo prestígio, pelas mulheres... é pelo dinheiro sim. Estou sem açúcar e tomo meu café com cinco colheres. E o pão de forma - calculei anteriormente - a seis fatias por dia com uma camada margarina, se tornará extinto na sexta – feira. Então, preciso escrever e não mandar o não-editor tomar na bunda.

O cursor piscando me retornou à cena. Maurício e eu levando um malho metafórico do editor.

- Vocês tem de melhorar o estilo, eu quero estilo, esqueça a narrativa – ele joga, nesta hora, um calhamaço de papeis no chão. Pergunto-me quem vai pegá-los depois. Ele é um pouco cênico e isso, as vezes, me incomoda, as vezes me faz rir. Sempre imagino-o em cenas clássicas de filmes famosos. Como ele se sairia sendo o Jack do Titanic? Brandon em Sindicato dos Ladrões? Clark Gable falando honestamente, querida, eu não dou a mínima em E O Vento Levou...?

Liguei para o Maurício.

- Escuta, o que você vai fazer?

- Com o que?

- Com a não-narrativa?

- Já fiz.

- Como assim?

- Tá feita.

- Mas ele falou conosco ontem.

- Eu sei.

- E já fez?

- Sim

- E como fez?

- Evitei narrar que eu costumo narrar.

- Huuuuuuuuuuum – eu me segurei para não dizer nada além disso.

- Não foi difícil .

Filho da puta. Filho-da-eu-consigo-escrever-sobre-tudo-que-o-editor-pede-da-puta.

Eu não sei, eu sou monotemático, entende? Eu pego uma ideia e sigo em frente. Vou fazendo-a, fazendo-a, fazendo-a, até não conseguir mais. Chego a ir pra cama com a ideia. Quem foi aquele pintor que fez o mesmo quadro a vida inteira? Sempre querendo deixar aquele quadro perfeito?

Meu quadro é a destruição das relações. Imagino uma história e vou desconstruindo-a. Fiz um milhão de vezes está narrativa. Casais que vão embora no meio da noite abandonando tudo e a todos, deixando para trás filhos, animais, a si próprios. Sou obcecado pela minha obsessão. Não consigo fugir.

Quando o editor me pede uma história sobre filhos, falo sobre pai e filho que se perderam. Quando quer algo sobre a natureza, simbolizo a natureza morta como um câncer que corroeu a relação. Tudo para mim é destruição. Sou o Michael Bay da escrita. Explosões, explosões, explosões. Bum. Bum. Bum.

Fico me masturbando metaforicamente a cada narrativa. Vou cavocando lá em meados de mil novecentos e pouco quando meu primeiro grande amigo me deixou para trás e crio um personagem como ele. Massacro-o, deixo-o maluco. E, quando finalizo o texto, estou rindo. Ha. Ha. Ha. Sou deus. Você me magoou quando perdemos a amizade e eu estou aqui dominando você. Maltratando você. Enfiando uma banana no seu rabo e você, e você, ainda gosta disso.

Uau.

Não sei  o que seria de mim sem o massacre. Sem ir embora em todas as relações com a sensação infantil de que ganhei. Foi assim desde sempre. Roubando a bola antes do final do jogo. Cuspindo nos outros. Eu não sei ser eu mesmo além disso, além de corroer tudo feito um ratinho. Nhoc. Nhoc. Nhoc.

O editor diz olhe a vida, escrever é observação. Mas eu tenho fome. Quero comer um doce, estou compulsivo por doces, quero fazer sexo com doces e ver minha barriga aumentando a cada estocada. E, francamente, como posso olhar a vida se me falta papel para limpar a bunda? Deveria eu deixar a merda escorrer literalmente como uma maneira nova de observar a vida? Acho que ainda não estou disposto a tentar.

Assim escrevi um texto metafórico de um adolescente que no dia de seu aniversário quer se matar – destruição, destruição – e ele concordou que era uma boa não-narrativa. Mas eu estava contando uma história de qualquer modo, assim assenti com seu comentário e esperei o dinheiro das notinhas caindo em meu bolso.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

como se descreve uma guerra antiga

O pequeno pedaço de fragmento brilha na luz indireta, neon, de algum canto. Irregular, cinza, castanho - talvez o castanho seja do tempo - o pequeno fragmento paira no ar eternamente, naquela letargia entre as duas extremidades do quadro. Da fotografia. Mais para a direita que para a esquerda, o teco de chumbo ou ferro lançado pelo projétil está ali, claro, evidente. Gritante. De quem foi o dedo no gatilho, a pressão sobre o botão da morte? Terá sido azar, talvez? Pouca sorte de estar no front? Face assombrada, grito de medo, grito de guerra, o soldado caído no plano de fundo parece gemer. Para sempre. De frente para o fragmento, olho aterrorizado, outro soldado. Vê o pedaço vindo na velocidade da luz, sem velocidade alguma. Sem qualquer luminosidade. Sem claridade. Trevas de um projétil capturado num quadro, num retrato, num retardo que se arrasta. A foto amarelecida, cansada como o tempo, a morte e a guerra, jaz soterrada entre uma pasta antiga e duas caixas de cerveja. O cenário é um bar parado, um ar parado, mortiço e mortal como o fragmento deflagrado. Há tempos.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Houdini

Click.
A porta se abriu com facilidade. Abriu a pequena bolsa lateral que carregava e guardou os instrumentos utilizados para arrombar fechaduras. Era o rei de Porto de Amy, conhecia as vias da cidade como ninguém e nada, porta, fechadura ou cadeado, barrava seu caminho. Quando entrou na gigantesca casa, o Ladrão de Amy inflou o peito. O rei dos ladrões estava agindo: tranquem suas casas, escondam seus pertences! Deixem meu jogo mais divertido, ele pediu, sorrindo com lábios cheios de malícia. Este seria um contrato fácil. Entrar, arrombar o cofre, pegar os documentos e qualquer coisa que estivesse no caminho. Estaria em casa para um filme em menos de duas horas.
Seus passos eram leves, pés de pluma, e os olhos vasculhavam por pertences de valor. Estranho, ele tinha de concordar: uma casa como aquela, a maior casa da cidade, e nenhum sistema complexo e redundante de alarmes. Sem cachorros, seguranças ou a porra do MI-5 esperando em algum canto escuro. Nada. Apenas uma trava simples. Um convite para o maior festim da cidade. O rei, como de praxe, deveria aparecer numa festa daquele porte.
Talvez seja uma armadilha, pensou, sentindo as primeiras gostas de suor brotarem por toda a testa. Talvez, afinal, a porra do MI-5 esteja me esperando, no final das contas.
Vasculhou por seu campo de visão. Estava sozinho.
Caminhou com seus passos de gato até a suíte principal, subindo dois lances de escada e parou apenas para pegar um relógio de pulso na sala e dois quadros - Portinaris legítimos - que estavam no caminho. O cofre ficava em plena vista, comicamente obscurecido por um lençol lançado despreocupadamente sobre ele. O rei dos ladrões puxou o pano e encostou o ouvido esquerdo, levemente melhor, sobre o metal gelado e começou a girar as rodas de combinações. Não precisava de números, apenas de atenção. Em sete minutos, destravou.
Permitiu-se um riso abafado e estralou os dedos, entrelaçando-os e esticando os braços. O alemão, atual contratante, estaria feliz dentro de uma hora. E uma hora depois daquela, estaria nadando em dinheiro, assistindo a um belo filme em sua televisão de plasma.
“Mas que porr-?”, gritou quando abriu o cofre, interrompendo os devaneios gananciosos. Um gás roxo invadiu suas narinas e, no instante antes de cair inconsciente, leu as três sílabas pintadas com um batom vermelho: Ha ha ha!

A primeira coisa que notou foi a onda de dor em seu rosto. Alguém está me estapeando, alguma parte de seu cérebro lutou para entender. Em seguida - o segundo evento percebido - sentiu água gelada percorrendo seu corpo, como milhares de minúsculas lâminas, espetando, provocando, perfurando. Abriu os olhos e o mundo piscou.
O mundo estava menor. Sua terceira constatação. Por ‘mundo’o rei dos ladrões tinha quatro paredes úmidas e escuras pelo mofo. Estava escuro e ele balançava no nada.
Uma pequena luz amarelada foi acendida e a figura soltou o balde, agora vazio, e retornou para ele. “Não é muito agradável, certo?”, alguém disse e ele soltou um suspiro, olhando para cima com olhos selvagens. “Seus ombros estão dormentes, tente não se mover muito, ou você vai desejar que eu os arranque logo. E nós ainda não estamos prontos para cruzar essa ponte, estamos?”
Um piano? “Quem… onde?” Olhou para cima e viu que estava preso em uma corrente que seguia até o teto. Estava pendurado pelo braços e pernas no porão da casa, provavelmente. O rei tentou se mover, mas provou-se inútil. A única coisa que conseguiu foi lançar seus braços num mar de lava: ondas de dor percorriam seus membros e ele gemia alto.
“Escute o que estou dizendo. Não se mova, poupe-se da dor. E não gaste suas energias de forma inútil, esses cadeados estão além de suas capacidades.”
“O piano…” Sua mente ainda estava entorpecida e uma nuvem pairava sobre os pensamentos que começavam a tomar forma mais complexa. Apenas as mais simples palavras saíam de sua boca. No entanto, suas mãos tentavam abrir os cadeados, como se tivessem vida própria.
O homem se virou e contemplou o instrumento musical. Era um piano de cauda, enorme, que ocupava quase um quarto do porão. “Aquilo? Estou praticando, nada mais. Está na hora de você descansar mais… aliás, você nunca me disse seu nome.”
“Vá… se… fod-”
O homem gritou e o golpeou na cabeça. Antes de desmaiar novamente, ele ouviu um grito estridente. Mulheres sempre gritam assim?

Acordou novamente perdido no tempo, sem entender porque sentia dor nos braços e nas pernas e de quem era a música que estava tocando. A princípio o som foi agradável, quase como uma melodia, ainda que houvesse algo de errado com as notas. Algumas delas pareciam fora do tempo ou de ordem, outras fora do tom e as mais raras, arruinavam a música com um rasgar agudo.
“Não! Não! Filho da puta, desgraçado. Sua puta, agora, ah, agora!”
“Não, por favor, eu consigo, eu prometo que consigo…”
Ele olhou para o lado e viu uma mulher, presa do mesmo modo, nua e com cabelos longos, negros, caindo sobre as nádegas, banhada pela mesma luz amarelada. Ela estava magra, podia ver as costelas sobressalentes e as covas aprofundadas em suas bochechas. Chorando copiosamente, ela parecia uma criança cercada pelos valentões da escola, indefesa e subtraída dos doces que carregava para o intervalo das aulas. “O que está acontecendo?”
O homem se levantou e caminhou até o rei dos ladrões, golpeando seu estômago com força. Ele sentiu a bexiga se esvaziando, a urina escorrendo pelas pernas e soltou todo o ar que tinha nos pulmões, retorcendo como um peixe preso a um anzol. “Ninguém falou com você. Fale apenas quando eu perguntar algo, entendido? Estou tendo uma conversa com minha boneca e você não precisa se meter no assunto.” Vestia um roupão de cetim e, aparentemente, apenas ele. Tinha os cabelos encaracolados caindo sobre os ombros e um rosto longo, portando um certo ar de genialidade. Voltou para a mulher. “Eu quero tocar loco, Vanessa, e você me prometeu. Eu não tenho outra escolha.” Ela começou a chorar desesperadamente, argumentando meio afogada em saliva e ranho. O homem disparou um rápido tapa no rosto de Vanessa. “Controle-se. Suas cenas dramáticas são desnecessárias.”
Vanessa respirou fundo. “Só precisamos de mais tempo. Não use… a outra saída. Eu posso-”, ameaçou chorar novamente, mas conseguiu se controlar. Ela se esforçou e abriu as pernas o máximo que as correntes lhe permitiram. “Use meu corpo novamente, assim sua mente vai estar mais focada, venha, faça como das outras vezes, eu não vou lutar mais.”
Voltou-se para o rei dos ladrões. “Está vendo, seu rato?”, disse, enquanto colocava uma das mãos sobre o queixo e abriu um sorriso sarcástico. “Eis a forma de tratamento que eu espero de meus convidados, sem mais, sem menos. Dedicação, amor, exclusividade. Mas, pelo contrário! Você vem, invade minha casa e fica interrompendo minha música. MINHA! MÚSICA!” Ele gritou as duas últimas palavras, cuspindo em cada sílaba, os olhos arregalados em duas tormentas que ameaçavam destruir todos os barcos de Porto de Amy. “Veja o que você me fez fazer com ela, veja!” Começou a desamarrar o roupão e apertou as coxas de Vanessa.
O rei dos ladrões fechou os olhos e tentou ignorar os barulhos.
Ele conseguiu, até o momento em que ele gozou enquanto enforcava a mulher.

O rei dos ladrões havia perdido a noção do tempo e o dia se misturava com a noite. Tentar adivinha se o sol brilhava lá fora era um exercício inútil: onde estava não havia sol ou lua. Existia apenas o mofo e o ar pesado, tingido pelos fungos. Tentou contar quantas vezes perdera a consciência desde que ele desacorrentara Vanessa, mas ficou completamente perdido dentro do labirinto de sua memória. Em algumas horas estarei em casa, vendo um filme, ele pensou sem fazer muito sentido até mesmo para sua cabeça em estado de torpor. Já não sentia mais seus braços ou ombros. Os sentidos estavam embaçados, dançando em sinestesia. Sentia que o mundo exterior deixara de existir e que agora era um verme em uma sala escura, girando na corrente, sendo alimentado pelo seu mestre.
Ele não é meu mestre. Esperava pela entrada triunfal do homem, mas temia seu humor. A agressão física havia parado, mas desde que Vanessa fora arrastada pela escada, o humor do homem estava se deteriorando rapidamente.
Estava, no entanto, ausente há dias, semanas? Deus, preciso sair daqui. Será que ele morreu? Teorias conspirativas atormentavam sua cabeça e por diversas vezes, o rei dos ladrões procurou por câmeras de vigilância, tentando abdicar-se daquele reality show. Por duas horas, ele achou que havia uma escuta no piano e gritou desesperado para que o MI-5 apressasse o resgate. Seus braços estavam doendo.
Deixou urina escorrer novamente e deixou de perceber quando os hábitos de higiene lhe escaparam. Fica difícil usar o papel quando meus braços estão longe do meu cu! Começou a gargalhar até perder o fôlego, gotas de urina caindo de suas coxas. Ficou repetindo a última palavra, cantarolando como um condenado nos velhos filmes do Monty Python.
Seus braços doíam, poxa.

Acordou novamente, sem perceber que havia apagado. A música que chegava aos seus ouvidos era perfeita. O piano funcionava em sua capacidade máxima, balançando diante da investida do homem, que vestia o roupão novamente. “Vanessa era uma ótima pianista. A melhor que conheci em mais de trinta anos de procura. Seus dedos voavam sobre as teclas”, a música tomou um rumo inesperado. Ele tocava como um mestre. “Ela foi uma ótima professora, realmente me passou tudo que precisava aprender.”
“O que você quer de mim?”
“Quero que ouça a música.” Ele tocou, dedos em perfeita sincronia, melodia e músico mesclados em um único ser, uma existência perfeita.
“Onde ela está?”
Shhhhh, Rato, escute as notas. Percebe quais são?”
Fechou os olhos, tentando não escapar para o sono. Sol, ele pesou. Mi. . De repente, percebe que podia identificar claramente as notas que saíam do piano. O rei dos ladrões conhecia apenas o básico do universo musical e nunca se importou em conhecer as notas: seus ouvidos se importavam apenas com a canção das engrenagens encaixadas, no click suave que os cofres faziam que ele ficava por perto tempo suficiente.
As notas morreram e, surpreso, o rei dos ladrões lamentou profundamente. “Eu sempre quis tocar uma música tão bonita. Nos meus… hum. Você nunca acreditaria em minha verdadeira idade. Um homem como eu já deveria ter desistido de aprender truques novos. Como a história do cachorro velho, certo? Mas aqui estou, tocando esse filho da puta como se fosse Beethoven. Vanessa, bem, ela me ensinou tudo que sei sobre música, e por isso tenho muito a agradecer.” Levantou-se e se afastou do instrumento.
O rei dos ladrõesratos sentiu o mundo se fechando, sufocando e estagnando o ar. De repente, estava difícil respirar. “Eles estão procurando por mim, sabia?”, blefou em desespero.
“Eles quem?”, o homem respondeu com um sotaque alemão, imitando perfeitamente a voz que ouvira no telefone. “Hemrich Hess, que prrrecisa dos documentos e dos quadrros? Poupe-me, Rato, ninguém sabe onde você está e, mesmo se soubesse, nunca sentiria sua falta.” Ele pegou a cabeça do rei dos ratosladinos e apertou seus olhos. O homem preso nas correntes começou a gritar e a se contorcer com uma força que ambos acreditavam estar extinta. “Você é a escória da cidade, meu rapaz, o lixo que todos esperam que seja recolhido no meio da noite, um peso desnecessário para a vida de qualquer um. As pessoas que reconhecem seu rosto esperam pelo seu obituário no jornal, um corpo qualquer num saco preto, mais um marginal no andar de baixo. Bang, bang! Seu filho de uma puta, nojento, verme. Eu te capturei com o plano mais simples e, mesmo assim, o cérebro simplista não pôde reconhecer. A música? Por que você reconhece as notas?” Apertou ainda mais os dedos no crânio do rei dos ratosladrões e ele gritou, gritou com a voz carregada com o doce sabor de medo e dor. “Responda, por que você consegue distinguir Mi e ?”
“Eu não sei! Eu não sei!”, chorava. Dor lascinante invadia sua cabeça. “Eu não sei!”, repetiu, em meio às lágrimas.
“Porque você comeu parte da Vanessa!” A afirmação gerou um silêncio pesado entre eles.
O rei dos ladrões e dos ratos parou de sentir, pela primeira vez, o cheiro de seus excrementos e o cheiro pungente dos fungos nas paredes ao redor. O silêncio insuportável pressionava seu estômago, enquanto ele lutava para compreender a nova informação. Lembrou-se, repentinamente, de sua última refeição, diferente de todas as outras até então, um prato farto, feito apenas por diferentes pedaços de carne. Oh, Deus, eu tirei um cabelo escuro do meio da carne. Oh, Deus. Deus, meu Deus, o que eu comi? Quem eu comi, ele se perguntou afinal.
Uma risada estridente ecoou no porão, quebrando o silêncio que havia entre eles. “Você conhece as lendas indígenas, vou presumir. A dança da chuva, as guerras tribais e como as estrelas passaram a existir, esse papo que faz qualquer um dormir. O que acontece, meu querido Rato, é que algumas lendas não passam de história para educar as crianças. Outras, no entanto, são reflexos de um conhecimento antigo, dado aos homens diretamente pelos deuses de ontem; conhecimentos que levam a um poder tão gigantesco que se transformaram em lendas. O canibalismo é um desses conhecimentos. A lenda diz que se você comer a carne de um inimigo vencido, você adquire a força e as habilidades anteriores. Não é uma maravilha? Eu posso compor músicas magníficas, agora. Nos meus três séculos de vida, descobri que somo aos meus dias os anos que minha… refeição ainda tinha pela frente. Sou um homem completo, Rato. Escrevo, esgrimo, penso, corro, fodo, canto, danço e falo línguas que já morreram, que são desconhecidas inclusive pela História oficial.” O canibal largou a cabeça do rato e se afastou, perdendo-se na escuridão do porão. Depois de alguns segundos, uma luz iluminou o lugar, com a força de dez sóis. O rato dos reis fechou os olhos, desacostumados com a mínima claridade, depois de tantos dias vivendo como - a ironia - um rato roubado e torturado. “Bem”, ele continuou, carregando um objeto gigantesco, “sou quase completo.”
Ele identificou o objeto assim que o canibal o largou no chão, com um pesado e abafado tump. Um cofre, o mesmo cofre que ele abrira tão facilmente, estava na sua frente. Carregara sozinho, e com aparente facilidade, o cofre que precisaria do que? Sete, oito pessoas? Ele tem mesmo a força de todos aqueles que devorou? Naquele mesmo instante, o antigo rei dos ladrões descobriu seu destino imediato.
O canibal passou a língua nos lábios e sorriu. “Quando ainda era um adolescente, vi Houdini pessoalmente. Ele estava preso em quatro cadeados, de ponta cabeça e mergulhado em um tanque cheio d’água. Escapou, rato ratinho, escapou como se fosse a coisa mais fácil do mundo, como se pudesse realizar aquele feito antes da primeira mijada do dia. No íntimo, eu sempre quis fazer aquele número, sempre quis realizar algo tão extraordinário. Então eu pensei comigo mesmo, quem melhor do que o melhor bandido de todos para me ensinar? Eu adoro a palavra ensinar. De certa forma, é como se você passasse a viver dentro de minha cabeça, toda vez que aprendo algo novo com suas experiências, rato.” Seus olhos brilhavam o brilho dos lunáticos. “No último mês, tentei sem sucesso abrir o cofre que você conquistou em dez minutos ou menos. Está na hora de aprender, rato. Está na hora de você me dar a última lição.”
Sorrindo com uma faca na mão, o homem vestindo o roupão de cetim, passou a língua nos lábios. Ele quase podia sentir o gosto tenro da carne.
“Você tem os cinco minutos que Houdini teve para escapar do tanque, rato. Vou apagar a luz e deixar isso aqui”, ele pousou a faca, uma lâmina afiada e longa, quase um cutelo, sobre o cofre. “Estarei sentado, nesses cinco minutos, no piano. Solte e me mate nesse meio tempo. Ou morra e me ensine seus truques.”
O homem se afastou, soltando uma risada estridente e sádica.
A luz se apagou.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Terra Prometida

Disseram-lhe que um homem não pode viver de palavras. São imateriais. Porém, as folhas que o cercam agora formam ao seu redor uma graúda pilha de histórias. Papeis desorganizados compondo um círculo em que ele está no centro, nu, observando a própria criação. Será assim seu suicídio. 

Decidiu embriagar os papéis de gasolina e realizar duas demonstrações ao mesmo tempo. A primeira, de que as palavras podem ser tocadas, ainda que dependa de alguém vivo para lhes dar sentido. A segunda, a confirmação de que, ao transformar-se em cinza, chegará a algum lugar. A morte é sua razão.

O diário íntimo que escrevera durante anos foi duplicado e guardado para Sara e Marina. A esposa e a confidente serão as portadoras de sua verdade.

Tem trinta e dois anos e, neste momento, o cheiro do combustível causava náuseas. Ainda não teve coragem de embeber o próprio corpo. Ainda contempla-o. A disposição das carnes, as marcas do tempo, os pêlos que parecem trafegar em sentido próprio. Toca o sexo, pensando que, além das mãos, foi a parte que mais lhe deixou feliz. 

Tem esperança de que seja lembrado por esse diário. Teve medo. Desnudou-se em um diário narrativo que guardou para si. Quando seu corpo tiver consumido pelo fogo, e a fumaça impedido de respirar, ele acredita que renascerá naquelas palavras.

Mentalmente recorda uma breve lista de escritores que alcançaram o sucesso após a morte. Deseja, por um instante, ganhar uma sobrevida. Mais um dia vivo, após a morte, escolhido previamente, para que retorne e encontre a resposta para alcancei meu objetivo?

Não bebeu. Não fumou. O escritório está bem arrumado. Foi conveniente encontrar este imóvel dois anos antes como sua fortaleza. Poderá morrer sem causar a dor imediata à esposa. Não deixará na residencia marcada pelo afeto a tristeza de uma vida interrompida, desintegrada no soalho de algum dos cômodos, um círculo que nem a limpeza mais rígida apagaria.

Lamenta-se por não ter lido a obra completa de Dickens. Pensa em escrever um bilhete mandando Joyce à merda. Não que o escritor tivesse culpa, odeia quem o transformou em literatura para iniciados. 

Sobre a mesa, distante da cena composta para o suicídio, há uma lista de amigos que dividirão sua biblioteca. Quinze pessoas ficarão com seus espólios. Alguns por provocação, outros pelo apreço aos escritores.

A poesia irá para um amigo antigo e um velho professor que juntos lhe ensinaram o amor pela lírica. Os livros de teoria que sempre foram inúteis irão para a biblioteca da universidade. Quem sabe, após o fogo, não lhe deem uma pequena sessão com seu nome. Livros lidos pelo autor falecido, formando da década de noventa na universidade.

A prosa se dividiu entre cinco pessoas. Os latino-americanos para um apaixonado por Gabriel Garcia Márquez, os contemporâneos para outro escritor, teimoso em observar somente o passado e não contemplar seus companhanheiros. Thrillers, policiais e qualquer outro mistério foram dedicados a uma professora, hoje de cabelos brancos, apaixonada pelo gênero. Foi travando uma batalha sobre o conceito do noir que ele observou a intensidade daquela senhora.

Selecionou a obra de Henry James e Monteiro Lobato para outro amigo escritor que não via há anos. Quando leu seu primeiro romance, antes mesmo de sair nas livrarias, disse ao amigo que sua prosa lhe parecia um James abrasileirado, com o estilo intimista de Lobato. Imaginou que lembraria da comparação e ficaria feliz em receber tais autores.

Com a mulher, deixou suas obras preferidas em diversas edições. O Shakespeare completo no original. E todos os demais livros que compraram juntos. Acrescentou em cada um dos que ganhou dela um pequeno bilhete. Uma carta suicida que será encontrada ao acaso e lida de maneira desordenada, criando um sentido próprio. Além do único romance de Dickens que não leu. A esposa concluiria esta missão.

Presentou Marina com suas preferências. Austen, Woolf, Plath, Mansfield, McCullers. Não lhe escreveu carta alguma além de um pequeno bilhete entregando as memórias do diário.

Os demais receberam narrativas específicas pela evocação da memória e cartas, que considerou suas últimas narrativas, como forma de adeus, expiando ou acusando pecados. O Sol é Para Todos, de Harper Lee. Sunset Park, de Paul Auster. Neve, de Orhan Parmuk. A Grande Arte, de Rubem Fonseca. O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Ponche de Rum, de Elmore Leonard. O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. Luz Antiga, de John Banville. 

Endereçados a amigos com uma carta escrita a mão como despedida. 

Pensou em Wagner e a Cavalgada das Valquírias. Poderia ligar a vitrola e morrer ao som das trombetas. Previu gritos de vizinhos e fofocas de quão macabro seria sua execução se parecesse ainda mais pomposa. 

A morte não era dor. Era aceitação de sua própria finitude. Da consciência de que rumo a um futuro em queda, melhor seria ganhar uma última vez da vida..

Deixou quinhentas e sete anotações literárias naqueles papéis. Contos completos, prosas, idéias, rabiscos, poemas, traços enlouquecidos pelo vinho. Todas unificadas em uma mesma ação. Ungindo-se em cinzas, palavra por palavra de maneira muda, gritando enquanto chamas destruíam sua residencia. Como companheiras acompanharam-no em vigília e carregaram-no para o além.

Tudo que foi estava naquelas linhas. Acho justo levá-las para onde fora. Nunca soube ser enquanto vivia. Esperava renascer em outros versos, prosseguir nos diários que estavam com a esposa e Marina. Na morte, soube ser o que queria em vida.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

microuniverso mítico da angústia, curiosamente o tema da semana


Eu não sabia exatamente o significado de "angústia", aí fui olhar no dicionário. O único dicionário de português que eu tinha era português, e achei gozado quão pouco angustiado pareceu o português. Logo ele, cheio de fado, logo ele cheio de trágicos traços e coisas, e merdas - como diriam. Mas dizia o dicionário "angústia é do latim angustia, -ae, querendo significar estreiteza, contrariedade, aflição. Um substantivo feminino, esse, de duas acepção: uma, estreiteza, outra, grande aflição acompanhada de opressão e tristeza". Opressão e tristeza. Subindo a serra, descendo a serra, olhando a mata ao longe o sol o monte serpenteando no bucho do busão, beirando o beiral da vida, olhando a descida a caída ribanceira, lá de cima. Angústia. Não achava mais - eu nunca acho, eu nunca achei - que ela viria assim, sorrateiramente, subrepticiamente, inesperadamente breve e rápida cirúrgica singela como uma punhalada, como uma festa surpresa de aniversário no dia errado, nunca pensei, não achava. Que subindo a serra, descendo o choro, descendo a serra, que soluçando, viria assim como quem nunca veio quem não vem mais, não pensava que ela estaria na beira da estrada esperando por minha passagem, por minha passada, passado esgueirando atrás de um pedágio. Na contramão. Acho que é isso, no fim: angústia, pra mim, é pressão que vem de todos os lados, que vem sem razão, sem porquês, só porque sim, que vem, que vem, que pesa que gravidade. Subindo a serra, pensando, ar rarefeito, angústia era atmosfera.

domingo, 8 de setembro de 2013

Genética

O sol. A luz sobre as crianças no parque; sombras no chão; mil movimentos ao mesmo tempo. Ele absorveu os minúsculos detalhes daquela cena, exaurindo-a de emoção e mistério. O sol brilhava o calor do verão e em de algum lugar, podia escutar o carro de sorvetes descendo a rua. Algumas crianças corriam para seus pais, apontando para a direção da música alegre. Era um domingo como todos os outros, um dia típico de parque, guloseimas, brincadeiras e um ou outro joelho ralado.
Puxou os óculos escuros do rosto e os pousou ao lado, deixando as retinas se acostumarem com a claridade acentuada. Observou um garoto correndo ao redor dos brinquedos do parque, cruzando balanços, gangorras e pneus, disparando entre outras crianças que jogavam bola ou construíam pistas de corridas para seus carros minúsculos. O garoto vestia uma camiseta estampada com uma imagem quase obscena do Bart Simpson e tinha os cabelos avermelhados, dois dentes lhe faltavam no sorriso, os dois da frente. Ele sorria, explodindo em felicidade. Escapava de qualquer compreensão adulta como alguém poderia experimentar aquele nível de felicidade apenas por estar no parque, .
Virou um pouco a cabeça e observou uma linda menina, com os cabelos escuros em duas tranças, colocando uma boneca Barbie num carro rosa. Era a boneca quem dirigia e não o castrado Ken, notou com uma pontada de humor. Ela vibrava os lábios, dando som ao motor do carro terrivelmente feminilizado. Ao lado dela, outros dois meninos brincavam com espadas improvisadas - clack, clack, clack, clack - e, como se estivessem em câmera lenta, apenas olhou enquanto eles passavam sobre o carro e as bonecas da garota, que começou a chorar desesperada, apontando para o carro quebrado.
Domingo no parque. Um dia qualquer.
Por fim, procurou o próprio filho. Sentiu um aperto no estômago, quando encontrou o pequeno rapaz, sentado ao lado de Laura e jogando bolinhas de gude em um caminho que eles haviam feito. Gabriel olhou para ele e sorriu, abanando uma das mãos. Respondeu e continuou a assistir ao jogo dos dois. Eram as duas coisas mais importantes de sua vida e vê-los juntos, felizes e sorrindo, piorava a o peso que sentia no peito. Crescera tentando entender o egoísmo de seu próprio pai. Como ele podia ir embora, deixar para trás a família que dele dependia de tantas formas? Ainda podia sentir o cheiro forte o pai exalava, como se aquele fosse o odor natural de sua pele, uma mistura de colônia barata com cigarros - camadas e camadas de cigarros acumuladas no seu cabelo, dedos e roupa - um cheiro que impregnava toda a casa e tudo aquilo que ele tocava. Lembrava ainda da barba hirsuta que machucava suas bochechas toda vez que ganhava beijos e carinho.
Alguns anos antes, enquanto procurava por indicações de filmes numa revista, leu um artigo sobre a vida cotidiana de pessoas que haviam perdido membros. O que ficou em sua mente foi o fato de que a maioria dos entrevistados ainda sentiam os membros perdidos. Eles coçavam, doíam, formigavam. Mas era uma dor fantasma, uma sensação tátil… uma lembrança tátil. E era justamente isso que seu pai representava: um cheiro fantasma que, vez ou outra, atingia repentinamente suas narinas.
Seja bom com sua mãe, ele disse numa manhã de sol, parecida com aquela. Sempre, não só hoje ou amanhã. Ela é uma ótima pessoa, ouviu? E merece muito mais do que ela recebe, pode ter certeza. Escute, ele disse mais alta, estapeando o brinquedo de suas mãos. Escute com atenção, meu filho. Seja bom com sua mãe e com quem merecer. Aprenda isso. E coisas boas acontecerão em sua vida. É simples. Não estrague tudo com sua maldita personalidade. Seu pai então se virou, dizendo que estava saindo para comprar cigarros. Ele entrou lentamente no carro e puxou um cigarro do maço estranhamente novo. O vidro baixou e ele escutou as últimas palavras na voz daquele homem de barba grossa: Fique longe dos cigarros, isto é uma merda. O motor explodiu em gás e barulho e o carro disparou até desaparecer de vista. Uma hora se passou, depois a manhã, o dia, a semana. Vinte anos depois, agora um adulto crescido que ocultava uma maldita personalidade, ali estava, sentado no banco do parque, um marasmo como todos os outros desde que o homem aprendeu a não fazer porra alguma num domingo de manhã.
Cresceu para se tornar uma boa pessoa, apesar da ausência paterna - às vezes se perguntava se o certo seria ‘por causa da’. Pagava seus impostos devidamente, levantava cedo todos os dias, fazia café, tomava banho, entrava no carro velho e ia para o mesmo trabalho tedioso. Esforçava-se para ser gentil, ajudou sua mãe até o último segundo de sua vida, segurando a mão em pele e osso, enquanto o câncer lhe roubava o último suspiro; mas, o cigarro. A merda do cigarro.
Em certos momentos, conseguia compreender a fuga de seu pai. O homem era um desastre, descobriu alguns anos mais tarde. Olhando para Laura e Gabriel, jogando bolas de gude, gargalhando juntos, compreendia que era a visão mais linda que podia existir naquela terra esquecida por qualquer divindade que estivesse se divertindo com o sofrimento da humanidade. O pequeno era a coisa mais sagrada de sua vida, o maior acerto de seus atos. E ficar por perto… tinha certeza que iria estragar o que tinham, cedo ou tarde. Estava em seus genes. Coçou a barba que crescia selvagem, apesar da guerra privada que combatiam toda a manhã. Aquele quadro lindo, os dois brincando sob o sol de verão, era o ápice de sua vida, o clímax de tudo que lutara para conquistar. Daqui, meu amigo, é ladeira abaixo.
Escutou o carro de sorvete se afastando do parque; os gritos do menino com a camisa do Bart Simpson; a garota ainda chorando pelo brinquedo partido e o infinito bater das espadas improvisadas - clack, clack, clack, clack. No fundo, escutou a inconfundível gargalhada de Gabriel. Ficou satisfeito, sentiu que sua vida estava completa.
Retirou o lacre da caixa de cigarros que tinha no bolso da camisa e pescou um. Acendeu e tragou profundamente. Algumas mães olharam, irritadas, para o homem que fumava no meio de incontáveis crianças. A sorte dele era que havia ultrapassado a linha da gentileza. Nada mais importava.
Acenou para Laura e moveu os lábios: Comprar. Cigarros, disse sem qualquer som. Ela concordou com a cabeça. Deus, ela é linda.
Apontou um dedo para Gabriel e disparou um revólver invisível. O menino sorriu e atirou de volta.

O carro disparou pela rua e passou pelo vendedor de sorvetes. Em pouco tempo, deixou para trás aquela música irritante.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Ainda Hoje

O pai segura o filho pelos braços. A mãe dá bronca, leu na revista que faz mal ao bebê. Os risos da criança o fazem continuar por alguns segundos, ela vai e volta. O olhar severo da mãe o para. Foi-se o tempo.

As rugas irrompem no rosto. Quando o filho abre a porta da sala, o pai finge que não está chorando. Tem de ser forte, sempre.

O filho ainda se lembra do ir e vir alegre no balanço do parquinho. Não sabe a última vez em que esteve nessa felicidade momentânea e, embora tenha tido o impulso de procurar um balanço para brincar, não sabe se um adulto pode usá-lo sem quebrar. A sensação do vento arrancando o medo, pendularmente indo e voltando, é como passado e presente.

Passado: o pai em palavras firmes ao seu lado, embaixo da copa da árvore, amparando-o e dizendo sou seu melhor amigo. Presente: o filho negligenciando as lágrimas do rosto enrugado, ainda receoso para aproximar, abraçá-lo, dizendo estou aqui.

O impulso inicial do balanço que sustenta e velocidade. A volta que provoca os vincos. Estão no centro da sala, no ápice de duas vidas separadas por trinta anos. O pai e ele ainda descrentes de que não são invencíveis.

Pai e filho pelo rosto anguloso, cabelo liso, em um dorso largo apesar da estatura mediana. Um ao lado do outro não sabem o que se dizer. O filho espera que, ao menos, o pai se sinta confortável no silêncio que dividem.

Quer perguntar ao pai a história de sua vida. Saber se está no caminho correto, fazendo certo ou errado. Mas os dois estão igualmente perdidos.

Pai e filho em iguais pelas lágrimas, tateando a escuridão.

 Juntos serão luz.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Saga: sem efeito

Getúlio se calou e nada aconteceu. Não esperava inversão dos polos magnéticos, nenhuma outra catástrofe. Desejava que os detalhes lhe dessem ao menos um fingimento como preocupação.

Recordou-se de um filme americano que assistiu, em que a personagem, falando das grandes cidades que não conectam ninguém, contou a história de um rapaz que morreu no transito de um metrô. Permaneceu intocado dentro do vagão por uma noite e um dia inteiro. Imaginaram que estava dormindo.

A princípio, o porteiro traduziu o silêncio de Getúlio como dor de garganta. E depois de breves explicações fracassadas à família sobre o silêncio, utilizou a doença como argumento. Mais fácil apontar o indicador com o pescoço para que aceitassem a ausência de fala.

Aprendeu a falar com os dedos, o corpo, o rosto. Pedia um café apontando para os letreiros. Agradecia os outros com um sorriso grato que se expressava até o canto dos olhos.

Se era naturalmente triste, tornou-se estranho para observadores. No terceiro mês, decidiu-se comunicar por escrito. No bolso, um caderno e um bloco de post it. Frases pontuais, breves, sem perder a ternura.

O teste a que se propôs era consigo e com o mundo. Tornou-se atento com quem respeitava-o sem um olhar acusador. Em silêncio contestou o próprio ruído. Reconhecia melhor sons externos e os próprios sonidos. O ronco da barriga que lhe indicava fome leve, mediana ou imediata. O bocejo entre preguiça e sono genuíno. Um estalar mecânico de dedos que lhe avisava de cansaço. E os risos frouxos pelos próprios sons.

Gostava de como o ar entrava com impacto e passava pelas cordas vocais, vibrando-as de maneira explosiva enquanto sentia um pulsar alegre. O silêncio o apagou. De estranho tornou-se invisível. A experiência inicial, uma provocação em que era cientista e rato se modificou. A sensação de invisibilidade matava-o aos poucos até que fez da clausura do silêncio uma aliada. Decidiu se bastar quando observou que se preocupava demais com os outros e pouco tempo tinha para si.

Nessa noite silenciosa encontrou equilíbrio. Expiou como homem, chorou como criança, brindou como um ébrio aos amigos perdidos e a Laura, sempre Laura, cuspindo pedaços do coração. Pela manhã, engolia-os de novo sem escaras.

Invisível passou a desprezar qualquer um que lhe parecera omisso. Acreditava que não fazer nada também era uma ação. A festa a meia luz sem amigos se tornara uma caverna escura iluminada por si só.

Sentia a alma doente. Nunca esteve tão são. Via a vida dentro de uma redoma. Primeiro o silêncio imposto por si. Depois o julgamento de outros. Sedimentado pela inércia de quem ele gostaria que perguntasse, Getúlio, o que há com você? Não recebi mais notícias suas. As noites o diminuíram até os ossos. Ria da infantilidade, de novo rindo de sentir-se ridiculamente criança, ao desejar que o amor que deu fosse igual ao que receberia.

A primeira frase de Getúlio, a primeira composta com começo, meio e fim, articulada, foi dita dez meses depois do silêncio. Ele não se lembrava do que o fez sair do silêncio. Sentia nas palavras uma revelação, um encontro, um nirvana, qualquer experiência que significasse um rito de passagem, um batismo que separasse o que foi do que é. Fui não sou. Sou não fui. Mas havia um vazio que ainda não sabia preencher, exceto a sensação de que sentia-se mais centrado, firme e sozinho como um párea.



Getúlio e seu silêncio me comoveram. Mais de uma vez senti uma tristeza sem explicação ao saber de sua condição calada. Sentia a opressão de um homem que, feito o monge que ateia fogo em si, em desespero procura uma mensagem. Me vejo dentro daquele homem, na festa acabada esperado uma felicidade que não existe. Me apeguei a ele. Em meus momentos de solidão, converso com Getúlio como se ele fosse parte de mim. Nossos silêncios se completam com amargura.



Minha esposa me espera silenciosa na cama neste momento. E, assim que findar estas palavras, vou me deitar ao seu lado, fazendo o mínimo de movimento possível para não acordá-la. Ao tocá-la ela sentira minha presença e, mesmo em um sono pesado, tocará minhas mãos como quem diz aqui estou. E eu me sentirei amado. Entre a vigília e o sono ainda me sentirei a beira de precipícios. Agarro-me forte a ela, a esposa, não ao abismo. Tentando explorar o que tenho. Minha guia nessa escuridão.

 Quero acreditar que não estou só.