sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Houdini

Click.
A porta se abriu com facilidade. Abriu a pequena bolsa lateral que carregava e guardou os instrumentos utilizados para arrombar fechaduras. Era o rei de Porto de Amy, conhecia as vias da cidade como ninguém e nada, porta, fechadura ou cadeado, barrava seu caminho. Quando entrou na gigantesca casa, o Ladrão de Amy inflou o peito. O rei dos ladrões estava agindo: tranquem suas casas, escondam seus pertences! Deixem meu jogo mais divertido, ele pediu, sorrindo com lábios cheios de malícia. Este seria um contrato fácil. Entrar, arrombar o cofre, pegar os documentos e qualquer coisa que estivesse no caminho. Estaria em casa para um filme em menos de duas horas.
Seus passos eram leves, pés de pluma, e os olhos vasculhavam por pertences de valor. Estranho, ele tinha de concordar: uma casa como aquela, a maior casa da cidade, e nenhum sistema complexo e redundante de alarmes. Sem cachorros, seguranças ou a porra do MI-5 esperando em algum canto escuro. Nada. Apenas uma trava simples. Um convite para o maior festim da cidade. O rei, como de praxe, deveria aparecer numa festa daquele porte.
Talvez seja uma armadilha, pensou, sentindo as primeiras gostas de suor brotarem por toda a testa. Talvez, afinal, a porra do MI-5 esteja me esperando, no final das contas.
Vasculhou por seu campo de visão. Estava sozinho.
Caminhou com seus passos de gato até a suíte principal, subindo dois lances de escada e parou apenas para pegar um relógio de pulso na sala e dois quadros - Portinaris legítimos - que estavam no caminho. O cofre ficava em plena vista, comicamente obscurecido por um lençol lançado despreocupadamente sobre ele. O rei dos ladrões puxou o pano e encostou o ouvido esquerdo, levemente melhor, sobre o metal gelado e começou a girar as rodas de combinações. Não precisava de números, apenas de atenção. Em sete minutos, destravou.
Permitiu-se um riso abafado e estralou os dedos, entrelaçando-os e esticando os braços. O alemão, atual contratante, estaria feliz dentro de uma hora. E uma hora depois daquela, estaria nadando em dinheiro, assistindo a um belo filme em sua televisão de plasma.
“Mas que porr-?”, gritou quando abriu o cofre, interrompendo os devaneios gananciosos. Um gás roxo invadiu suas narinas e, no instante antes de cair inconsciente, leu as três sílabas pintadas com um batom vermelho: Ha ha ha!

A primeira coisa que notou foi a onda de dor em seu rosto. Alguém está me estapeando, alguma parte de seu cérebro lutou para entender. Em seguida - o segundo evento percebido - sentiu água gelada percorrendo seu corpo, como milhares de minúsculas lâminas, espetando, provocando, perfurando. Abriu os olhos e o mundo piscou.
O mundo estava menor. Sua terceira constatação. Por ‘mundo’o rei dos ladrões tinha quatro paredes úmidas e escuras pelo mofo. Estava escuro e ele balançava no nada.
Uma pequena luz amarelada foi acendida e a figura soltou o balde, agora vazio, e retornou para ele. “Não é muito agradável, certo?”, alguém disse e ele soltou um suspiro, olhando para cima com olhos selvagens. “Seus ombros estão dormentes, tente não se mover muito, ou você vai desejar que eu os arranque logo. E nós ainda não estamos prontos para cruzar essa ponte, estamos?”
Um piano? “Quem… onde?” Olhou para cima e viu que estava preso em uma corrente que seguia até o teto. Estava pendurado pelo braços e pernas no porão da casa, provavelmente. O rei tentou se mover, mas provou-se inútil. A única coisa que conseguiu foi lançar seus braços num mar de lava: ondas de dor percorriam seus membros e ele gemia alto.
“Escute o que estou dizendo. Não se mova, poupe-se da dor. E não gaste suas energias de forma inútil, esses cadeados estão além de suas capacidades.”
“O piano…” Sua mente ainda estava entorpecida e uma nuvem pairava sobre os pensamentos que começavam a tomar forma mais complexa. Apenas as mais simples palavras saíam de sua boca. No entanto, suas mãos tentavam abrir os cadeados, como se tivessem vida própria.
O homem se virou e contemplou o instrumento musical. Era um piano de cauda, enorme, que ocupava quase um quarto do porão. “Aquilo? Estou praticando, nada mais. Está na hora de você descansar mais… aliás, você nunca me disse seu nome.”
“Vá… se… fod-”
O homem gritou e o golpeou na cabeça. Antes de desmaiar novamente, ele ouviu um grito estridente. Mulheres sempre gritam assim?

Acordou novamente perdido no tempo, sem entender porque sentia dor nos braços e nas pernas e de quem era a música que estava tocando. A princípio o som foi agradável, quase como uma melodia, ainda que houvesse algo de errado com as notas. Algumas delas pareciam fora do tempo ou de ordem, outras fora do tom e as mais raras, arruinavam a música com um rasgar agudo.
“Não! Não! Filho da puta, desgraçado. Sua puta, agora, ah, agora!”
“Não, por favor, eu consigo, eu prometo que consigo…”
Ele olhou para o lado e viu uma mulher, presa do mesmo modo, nua e com cabelos longos, negros, caindo sobre as nádegas, banhada pela mesma luz amarelada. Ela estava magra, podia ver as costelas sobressalentes e as covas aprofundadas em suas bochechas. Chorando copiosamente, ela parecia uma criança cercada pelos valentões da escola, indefesa e subtraída dos doces que carregava para o intervalo das aulas. “O que está acontecendo?”
O homem se levantou e caminhou até o rei dos ladrões, golpeando seu estômago com força. Ele sentiu a bexiga se esvaziando, a urina escorrendo pelas pernas e soltou todo o ar que tinha nos pulmões, retorcendo como um peixe preso a um anzol. “Ninguém falou com você. Fale apenas quando eu perguntar algo, entendido? Estou tendo uma conversa com minha boneca e você não precisa se meter no assunto.” Vestia um roupão de cetim e, aparentemente, apenas ele. Tinha os cabelos encaracolados caindo sobre os ombros e um rosto longo, portando um certo ar de genialidade. Voltou para a mulher. “Eu quero tocar loco, Vanessa, e você me prometeu. Eu não tenho outra escolha.” Ela começou a chorar desesperadamente, argumentando meio afogada em saliva e ranho. O homem disparou um rápido tapa no rosto de Vanessa. “Controle-se. Suas cenas dramáticas são desnecessárias.”
Vanessa respirou fundo. “Só precisamos de mais tempo. Não use… a outra saída. Eu posso-”, ameaçou chorar novamente, mas conseguiu se controlar. Ela se esforçou e abriu as pernas o máximo que as correntes lhe permitiram. “Use meu corpo novamente, assim sua mente vai estar mais focada, venha, faça como das outras vezes, eu não vou lutar mais.”
Voltou-se para o rei dos ladrões. “Está vendo, seu rato?”, disse, enquanto colocava uma das mãos sobre o queixo e abriu um sorriso sarcástico. “Eis a forma de tratamento que eu espero de meus convidados, sem mais, sem menos. Dedicação, amor, exclusividade. Mas, pelo contrário! Você vem, invade minha casa e fica interrompendo minha música. MINHA! MÚSICA!” Ele gritou as duas últimas palavras, cuspindo em cada sílaba, os olhos arregalados em duas tormentas que ameaçavam destruir todos os barcos de Porto de Amy. “Veja o que você me fez fazer com ela, veja!” Começou a desamarrar o roupão e apertou as coxas de Vanessa.
O rei dos ladrões fechou os olhos e tentou ignorar os barulhos.
Ele conseguiu, até o momento em que ele gozou enquanto enforcava a mulher.

O rei dos ladrões havia perdido a noção do tempo e o dia se misturava com a noite. Tentar adivinha se o sol brilhava lá fora era um exercício inútil: onde estava não havia sol ou lua. Existia apenas o mofo e o ar pesado, tingido pelos fungos. Tentou contar quantas vezes perdera a consciência desde que ele desacorrentara Vanessa, mas ficou completamente perdido dentro do labirinto de sua memória. Em algumas horas estarei em casa, vendo um filme, ele pensou sem fazer muito sentido até mesmo para sua cabeça em estado de torpor. Já não sentia mais seus braços ou ombros. Os sentidos estavam embaçados, dançando em sinestesia. Sentia que o mundo exterior deixara de existir e que agora era um verme em uma sala escura, girando na corrente, sendo alimentado pelo seu mestre.
Ele não é meu mestre. Esperava pela entrada triunfal do homem, mas temia seu humor. A agressão física havia parado, mas desde que Vanessa fora arrastada pela escada, o humor do homem estava se deteriorando rapidamente.
Estava, no entanto, ausente há dias, semanas? Deus, preciso sair daqui. Será que ele morreu? Teorias conspirativas atormentavam sua cabeça e por diversas vezes, o rei dos ladrões procurou por câmeras de vigilância, tentando abdicar-se daquele reality show. Por duas horas, ele achou que havia uma escuta no piano e gritou desesperado para que o MI-5 apressasse o resgate. Seus braços estavam doendo.
Deixou urina escorrer novamente e deixou de perceber quando os hábitos de higiene lhe escaparam. Fica difícil usar o papel quando meus braços estão longe do meu cu! Começou a gargalhar até perder o fôlego, gotas de urina caindo de suas coxas. Ficou repetindo a última palavra, cantarolando como um condenado nos velhos filmes do Monty Python.
Seus braços doíam, poxa.

Acordou novamente, sem perceber que havia apagado. A música que chegava aos seus ouvidos era perfeita. O piano funcionava em sua capacidade máxima, balançando diante da investida do homem, que vestia o roupão novamente. “Vanessa era uma ótima pianista. A melhor que conheci em mais de trinta anos de procura. Seus dedos voavam sobre as teclas”, a música tomou um rumo inesperado. Ele tocava como um mestre. “Ela foi uma ótima professora, realmente me passou tudo que precisava aprender.”
“O que você quer de mim?”
“Quero que ouça a música.” Ele tocou, dedos em perfeita sincronia, melodia e músico mesclados em um único ser, uma existência perfeita.
“Onde ela está?”
Shhhhh, Rato, escute as notas. Percebe quais são?”
Fechou os olhos, tentando não escapar para o sono. Sol, ele pesou. Mi. . De repente, percebe que podia identificar claramente as notas que saíam do piano. O rei dos ladrões conhecia apenas o básico do universo musical e nunca se importou em conhecer as notas: seus ouvidos se importavam apenas com a canção das engrenagens encaixadas, no click suave que os cofres faziam que ele ficava por perto tempo suficiente.
As notas morreram e, surpreso, o rei dos ladrões lamentou profundamente. “Eu sempre quis tocar uma música tão bonita. Nos meus… hum. Você nunca acreditaria em minha verdadeira idade. Um homem como eu já deveria ter desistido de aprender truques novos. Como a história do cachorro velho, certo? Mas aqui estou, tocando esse filho da puta como se fosse Beethoven. Vanessa, bem, ela me ensinou tudo que sei sobre música, e por isso tenho muito a agradecer.” Levantou-se e se afastou do instrumento.
O rei dos ladrõesratos sentiu o mundo se fechando, sufocando e estagnando o ar. De repente, estava difícil respirar. “Eles estão procurando por mim, sabia?”, blefou em desespero.
“Eles quem?”, o homem respondeu com um sotaque alemão, imitando perfeitamente a voz que ouvira no telefone. “Hemrich Hess, que prrrecisa dos documentos e dos quadrros? Poupe-me, Rato, ninguém sabe onde você está e, mesmo se soubesse, nunca sentiria sua falta.” Ele pegou a cabeça do rei dos ratosladinos e apertou seus olhos. O homem preso nas correntes começou a gritar e a se contorcer com uma força que ambos acreditavam estar extinta. “Você é a escória da cidade, meu rapaz, o lixo que todos esperam que seja recolhido no meio da noite, um peso desnecessário para a vida de qualquer um. As pessoas que reconhecem seu rosto esperam pelo seu obituário no jornal, um corpo qualquer num saco preto, mais um marginal no andar de baixo. Bang, bang! Seu filho de uma puta, nojento, verme. Eu te capturei com o plano mais simples e, mesmo assim, o cérebro simplista não pôde reconhecer. A música? Por que você reconhece as notas?” Apertou ainda mais os dedos no crânio do rei dos ratosladrões e ele gritou, gritou com a voz carregada com o doce sabor de medo e dor. “Responda, por que você consegue distinguir Mi e ?”
“Eu não sei! Eu não sei!”, chorava. Dor lascinante invadia sua cabeça. “Eu não sei!”, repetiu, em meio às lágrimas.
“Porque você comeu parte da Vanessa!” A afirmação gerou um silêncio pesado entre eles.
O rei dos ladrões e dos ratos parou de sentir, pela primeira vez, o cheiro de seus excrementos e o cheiro pungente dos fungos nas paredes ao redor. O silêncio insuportável pressionava seu estômago, enquanto ele lutava para compreender a nova informação. Lembrou-se, repentinamente, de sua última refeição, diferente de todas as outras até então, um prato farto, feito apenas por diferentes pedaços de carne. Oh, Deus, eu tirei um cabelo escuro do meio da carne. Oh, Deus. Deus, meu Deus, o que eu comi? Quem eu comi, ele se perguntou afinal.
Uma risada estridente ecoou no porão, quebrando o silêncio que havia entre eles. “Você conhece as lendas indígenas, vou presumir. A dança da chuva, as guerras tribais e como as estrelas passaram a existir, esse papo que faz qualquer um dormir. O que acontece, meu querido Rato, é que algumas lendas não passam de história para educar as crianças. Outras, no entanto, são reflexos de um conhecimento antigo, dado aos homens diretamente pelos deuses de ontem; conhecimentos que levam a um poder tão gigantesco que se transformaram em lendas. O canibalismo é um desses conhecimentos. A lenda diz que se você comer a carne de um inimigo vencido, você adquire a força e as habilidades anteriores. Não é uma maravilha? Eu posso compor músicas magníficas, agora. Nos meus três séculos de vida, descobri que somo aos meus dias os anos que minha… refeição ainda tinha pela frente. Sou um homem completo, Rato. Escrevo, esgrimo, penso, corro, fodo, canto, danço e falo línguas que já morreram, que são desconhecidas inclusive pela História oficial.” O canibal largou a cabeça do rato e se afastou, perdendo-se na escuridão do porão. Depois de alguns segundos, uma luz iluminou o lugar, com a força de dez sóis. O rato dos reis fechou os olhos, desacostumados com a mínima claridade, depois de tantos dias vivendo como - a ironia - um rato roubado e torturado. “Bem”, ele continuou, carregando um objeto gigantesco, “sou quase completo.”
Ele identificou o objeto assim que o canibal o largou no chão, com um pesado e abafado tump. Um cofre, o mesmo cofre que ele abrira tão facilmente, estava na sua frente. Carregara sozinho, e com aparente facilidade, o cofre que precisaria do que? Sete, oito pessoas? Ele tem mesmo a força de todos aqueles que devorou? Naquele mesmo instante, o antigo rei dos ladrões descobriu seu destino imediato.
O canibal passou a língua nos lábios e sorriu. “Quando ainda era um adolescente, vi Houdini pessoalmente. Ele estava preso em quatro cadeados, de ponta cabeça e mergulhado em um tanque cheio d’água. Escapou, rato ratinho, escapou como se fosse a coisa mais fácil do mundo, como se pudesse realizar aquele feito antes da primeira mijada do dia. No íntimo, eu sempre quis fazer aquele número, sempre quis realizar algo tão extraordinário. Então eu pensei comigo mesmo, quem melhor do que o melhor bandido de todos para me ensinar? Eu adoro a palavra ensinar. De certa forma, é como se você passasse a viver dentro de minha cabeça, toda vez que aprendo algo novo com suas experiências, rato.” Seus olhos brilhavam o brilho dos lunáticos. “No último mês, tentei sem sucesso abrir o cofre que você conquistou em dez minutos ou menos. Está na hora de aprender, rato. Está na hora de você me dar a última lição.”
Sorrindo com uma faca na mão, o homem vestindo o roupão de cetim, passou a língua nos lábios. Ele quase podia sentir o gosto tenro da carne.
“Você tem os cinco minutos que Houdini teve para escapar do tanque, rato. Vou apagar a luz e deixar isso aqui”, ele pousou a faca, uma lâmina afiada e longa, quase um cutelo, sobre o cofre. “Estarei sentado, nesses cinco minutos, no piano. Solte e me mate nesse meio tempo. Ou morra e me ensine seus truques.”
O homem se afastou, soltando uma risada estridente e sádica.
A luz se apagou.

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