sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Jogo dos deuses - Parte 2


Crale apontou dois dedos para Dargius, acumulando energia vital na ponta de suas unhas. A maga liberou, sentindo um leve formigamento na mão esticada, o encantamento e viu dois pequenos feixes de luz piscarem na direção do guerreiro.
Dargius agachou-se com velocidade impressionante, mas não rápido o suficiente para  desviar da força arcana disparada contra ele. Sentiu o impacto quebrar duas costelas esquerdas e deixou o corpo tombar para o lado, caindo com o rosto sobre uma das raízes que se erguiam da terra. “Você não quer fazer isso”, ele disse com uma voz surpreendentemente segura. Podia sentir o segundo ataque sendo preparado. “Crale, há alguma coisa lá embaixo clamando por nós e não podemos ignorar.”
“Nós devemos ignorar assuntos que nos desviem das ruínas, Dargius. Foram as ordens reais!”, ela gritou de volta. Em seus dedos, outra magia acumulava força. Em seu íntimo, tentava acalmar-se. Nada de bom surgiria de um luta entre os dois.
“Chega, vocês dois”, Rasg comandou. Ironicamente, nos momentos de maior indecisão e impasse, o bárbaro era o que chegava mais perto da razão. Rasg transformava-se sempre que uma tempestade atingia o grupo, mantendo a calma e tomando as melhores decisões prováveis. Era o completo oposto do monstro letal em batalha. “Eu não sei se você irá conosco”, disse para Crale, “não posso continuar sem minha espada e aquela bosta de aranha está em algum lugar aí dentro.” Olharam para cima e viram um buraco no casco da gigantesca árvore. A aranha com a espada cravada em seu exoesqueleto havia desaparecido de vista. “Sem mencionar o nosso Rastreador”, dirigiu um olhar cerrado para Dargius.
O guerreiro ficou sobre as próprias pernas e apalpou a região atingida, sem realizar esforços para esconder a dor. Andou devagar até o buraco pelo qual havia jogado Telassa e olhou para baixo. “Telassa!”, gritou e esperou pela resposta do Rastreador.
Dargius!
A palavra explodiu em seu cérebro e ele deu um pulo para trás, o coração batendo como um cavalo em plena corrida.
“Vamos logo com isso”, Crale abriu a mochila e pegou a longa corda que carregava, sem demonstrar qualquer sinal de que havia escutado a voz uma vez mais. Ela amarrou uma das pontas na raiz mais próxima do buraco feito por Dargius e completou o nó com um forte puxão, verificando se a corda estava firme o suficiente. “Pegue, vá na frente.” Suas palavras saíam como faíscas contra o guerreiro, que obedeceu prontamente.
“Da próxima vez que você lançar uma magia contra mim”, quase tocava a testa da elfa, “sera a última”. Crale sabia que não eram palavras vagas, mas sim uma promessa, quase uma maldição jogada sobre eles: uma promessa fadada a ser cumprida.
Rasg ajudou a amarrar a corda na cintura de seu companheiro e olhou para cima, procurando pela criatura que ficara com sua espada encravada. Não gostava da idéia de desviar o caminho da missão que haviam recebido diretamente de Laurecon, mas perder aquela espada era uma perspectiva que ele simplesmente não poderia aceitar, sem considerar que aquela voz poderia ser uma armadilha, uma maquinação maléfica de seres poderosos. Rasg odiava controladores de mentes. E também odiava a idéia de descer amarrado pela corda até um lugar desconhecido, provavelmente infestado por insetos do tamanho de seu próprio corpo. Mas era o necessário, não apenas se quisesse recuperar a arma com a qual crescera, mas também para resgatar o Rastreador. Desejou ter as palavras de Crale para filosofar sobre aquele momento e suspirou, desanimado. Mal tinha as palavras certas para manter Crale e Dargius longe de estrangular um ao outro.
Passados quinze minutos, Rasg encostava os pés no que parecia ser uma caverna dentro da árvore. Estavam todos no interior do solo, em um longo túnel que não poderia ser natural. Raízes saíam por todos os lados do corredor e pequenos insetos passavam por eles quase de forma constante. Um cheiro úmido e ácido chegava até eles e provocava uma leve náusea no bárbaro.
Crale fez um leve movimento com as mãos e a corda desatou o nó, como animada, e voltou para as mãos da elfa. “Sinto uma magia forte aqui dentro. Dargius, lidere o caminho e vamos sair rápido daqui. Não estou gostando de como entramos aqui, parece que fomos manipulados.”
Uma faísca se soltou das duas pedras que o guerreiro carregava e em questão de segundos uma chama firme ocupava o fim da tocha em suas mãos. O fogo revelou pouco mais do que ele e Rasg podiam ver, apenas mostrando que o corredor continuava alguns metros além do que enxergavam; a elfa via muito além do que os dois humanos e podia visualizar uma curva atrás deles. “Para esse lado”, ela indicou.
Andaram por meia hora sem que o túnel acabasse. O solo fofo se mostrava incômodo para Dargius, pesado por causa da armadura que vestia. Cada passo sugava sua energia e, em pouco tempo ele estava ofegante. “Está tudo bem?”, escutou a voz de Rasg ao longe e teve quase certeza de que indicara positivamente com a cabeça, confuso por uma névoa mental. A voz do bárbaro se misturava com a misteriosa voz que perpetuava no interior da árvore. Em sua cabeça, a voz ficava cada vez mais alta e clara, um canto suave, doce, carregado de luxúria que pedia sua atenção. Precisava chegar naquele lugar, precisava encontrar a fonte da doce, doce voz.
“Uma câmara na frente, talvez mais duzentos metros”, Crale avisou enquanto sacava as duas adagas que portava. Dargius seguiu o exemplo e retirou o gladiu da cintura. Rasg lamentou internamente a ausência de sua espada e agarrou uma pedra que estava perto deles. Avançaram com extrema cautela na expectativa de um ataque iminente.
A câmara, uma grande sala retangular, estendia-se até onde Crale podia enxergar com os olhos élficos. “Definitivamente não natural”, ela disse enquanto estudava o lugar. No centro da sala, um amontoado de folhas, terra e raízes permanecia em paz. Crale cerrou os olhas, procurando qualquer sinal de perigo.
“Um ninho”, disse Rasg.
“O quê?”
“Um ninho”, apontava para as folhas no centro da câmara.
“O melhor é desviar e continuar em nos-”
Antes que pudesse terminar a frase, Crale sentiu o cheiro ácido atenuar-se de forma aguda. Suas reações a fizera agachar e formar um círculo completo com sua perna, derrubando os outros dois companheiros no chão. No momento em que alcançaram o solo, a elfa viu uma bola passar sobre eles, errando suas cabeças por alguns centímetros. O ataque, qualquer que tenha sido sua origem, atingiu a entrada da câmara e um rápido crepitar foi iniciado. Crale viu as pedras e folhas derreterem em contato com a substância lançada. “Ácido”, alertou.
Passos pesados surgiram da outra ponta da câmara e um enorme besouro saiu da escuridão. Cores metálicas tingiam a dura carapaça e um dos três chifres funcionava como defesa, lançando bolas de ácido diante qualquer sinal de perigo. O inseto parou por alguns segundos, talvez analisando as três criaturas que invadiam seu território, decidindo afinal que iria decompor os três corpos, uma vez que estivessem sem vida.
“Ele vai atacar!”, Dargius gritou, quando viu as patas traseiras do besouro se fincarem no solo macio. De fato, o inseto investiu contra o pequeno grupo e os errou por poucos centímetros, separando Rasg dos outros.
A elfa pulou em um ímpeto sobre a carapaça de cores metálicas e forçou as duas adagas, apenas para ter o ataque repelido pela resistência do exoesqueleto. O besouro atirou outra bola de ácido contra Dargius, que deu um longo pula para o lado. Ele lutava para respirar, mas o forte odor do ácido incapacitava seus pulmões.
Sentada sobre o besouro, Crale tentava perfurar a proteção, disparando golpe após golpe no mesmo ponto. Assim que percebeu que seria inútil, ela desceu do monstro, parando do lado do guerreiro e gritou para Rasg: “Tente virá-lo!”
O bárbaro contraiu os músculos e deixou a fúria cega tomar conta de seu corpo. Ele agarrou uma das patas traseiras do besouro e deu um forte impulso com ambas as pernas, virando o inseto para cima dos outros companheiros. Mais uma vez, Dargius e Crale desviaram do corpo colossal e aterrisaram em segurança, mas Rasg sentiu um impacto repentino em seu estômago e foi lançado com pela pata do inseto para cima do ninho, caindo sobre as folhas e terra úmidas.
Ele sentiu algo pressionando suas costas e puxou um osso humano do meio das folhas. Um chiar agudo surgiu de baixo de suas pernas, saindo de centro do ninho, e ele pulou, segurando firme o fêmur que tinha em mãos. Duas garras fecharam-se sobre as folhas em um firme abraço e Rasg viu uma figura humanoide se levantar. Ele tinha pele escura e uma cabeça oval, com duas orelhas para cima, como as de um morcego. Os olhos eram leitosos e duas presas desciam da gengiva superior. A criatura chiou novamente e mecheu as orelhas, pulando em seguida sobre o bárbaro e desviando do golpe desferido com o osso, rasgando a pele de seus braços com os dentes afiados.
Dargius segurou o gladiu com a ponta para baixo e o enterrou fundo na carne macia do besouro que se debatia. O inseto paralisou qualquer movimento instantaneamente um jato de sangue e ácido espirrou do corte, causando queimaduras nas mãos e rosto do guerreiro. Dargius gritou de dor e protegeu, no último segundo, os olhos do játo ácido.
A elfa registrava tudo. O ato estúpido de Dargius, a morte do inseto e as feridas de Rasg causadas pela estranha criatura. Conjurou uma calma forçada sobre seu corpo e foi como se o tempo desacelerasse por alguns segundos. Ela agiu rápido e precisa. Pegou o saco de couro que continha água e derramou um pouco do líquido sobre sua mão. Fechou os dedos molhados e direcionou a misteriosa força natural que controlava suas magias, para lançar, em seguida, três adagas de gelo.
O bárbaro sentiu a peculiar energia no ar e empurrou a cabeça do monstro que estava sobre ele para cima. As três adagas atravessaram a cabeça da criatura e ele caiu, sem vida, para o lado.
Crale colocou a mão, ainda molhada, sobre o rosto de Dargius e deixou parte de sua energia vital fluir para ele, pensando em cenas do passado, algo que mantinha sua mente tranquila. As queimaduras do guerreiro desapareceram. A elfa, envelhida pelos artifícios mágicos, caiu sobre os joelhos e respirou fundo, tossindo em seguida o ácido que entrara em seus pulmões. Sentia-se estranhamente fraca, foram magias de médio impacto e sabia que estava preparada para o esforço necessário. Não entendia a fraqueza em seu próprio corpo.
“Você está bem?”, Dargius perguntou, andando até o bárbaro.
“É só um arranhão”, ele respondeu. Sangue escorria de seus braços e um pedaço de pele jazia pendurado. “Mas aquilo será um problema.” Ambos olharam para onde Rasg apontava e Crale sentiu uma sombrar cair sobre seu peito.
A entrada da câmara estava fechada pelas raízes da árvore, selada de maneira intransponível. Tinham apenas um caminho para seguir e dele, podiam escutar dezenas de chilros idênticos aos da criatura que descançava no ninho.

Talessa abriu os olhos. Não sabia onde estava. Aos poucos o mundo começou a tomar forma para a mente confusa e ele se lembrou da traição de Dargius e de cair alguns metros até chegar no chão fofo do interior da Árvore. Lembrava-se apenas de uma sombra e de uma pancada na cabeça.
A primeira coisa que percebeu foi que estava de ponta cabeça e que seus membros estavam imóveis por pesadas correntes. Acentuou o olfato e farejou. Havia ao menos uma fonte de odor naquela sala, além dele. Sentia o cheiro da terra, de folhas e raízes, de pequenos mamíferos em decomposição. Podia identificar o cheiro de água corrente, passagens de ar e... um cheiro que lembrava seu pai, esquecido em algum lugar trancado em seu cérebro. Era um cheiro terrível, que trazia as piores lembraças para o farejador, um odor corruptível que destruía tudo aquilo que tocava.
Talessa sentiu o cheiro da loucura.
“Um Rastreador?”, ele escutou a voz de um homem, seguida por uma insana risada. “Quantos anos... sim, sim... um Rastreador. Mas que dia especial, especial, especial!” A risada continuou por um longo tempo. “A Árvore está feliz! A Árvore me ama!”
A risada, aguda e aterrorizante, espalhou-se pelo interior da Árvore.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

só deus

- E a única coisa que a outra pessoa faz, então, julgando que o erro é mesmo teu, primordialmente teu, teu e apenas teu, é ficar quieta, sorrir com condescendência e ir embora, te deixar sozinho, remoendo o erro que supostamente é teu e de mais ninguém.

Àquela hora, tarde da noite, tão tarde que já chegava outro dia, não havia música. A maior parte das cadeiras estava sobre a mesa, pernas pro alto esperando que o mundo girasse para as colocar de volta no chão, sobre os quatro pés, dignamente. Do ponto de vista das cadeiras, entretanto, a volta do mundo era demorada, e por enquanto ficavam ali paradas, com as pernas sonolentamente erguidas.

- E o erro é teu?

- Quem sabe?! Pode ser, deve ser, sei lá! O problema, o ruim mesmo, não é de-quem-o-erro. O problema é ser tratado como se o erro fosse essencialmente teu! Meu, no caso.

- E é teu?

- Não sei, bicho, sei lá, isso pouco importa, verdadeiramente. Sério. Eu admito, eu aceito, o erro pode ser meu e tudo feito, tudo bem, sem problemas. Mas, porra, custava alguma coisa a outra pessoa pensar que talvez, só por acaso, ela estivesse também errada? Só um pouquinho? Só pra ajudar?

Silêncio no bar.

- E o erro é dela?

- Caralho, bicho chato! Sei lá, sei lá. Deve ser erro dela também, um pouco, ajudando o meu erro grande, mas quem é que sabe? Ruim é ficar assim, sendo amparado por uma compaixão que nem assume a possibilidade de errar...

A garçonete se aproximou.

- Aposto que querem mais uma bebida, certo?

- Errado! Nós já estamos de saída. Bom dia, Joana, bom dia.

E a porta se fechou nas costas daqueles dois, caminhando por entre as ruas amanhecidas de uma segunda.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Jogo dos Deuses - Parte 1


Rasg levantou o braço com um único movimento; rápido e limpo, dilacerando a carne que prendia sua espada após a primeira estocada. Sangue e órgãos internos espalharam-se pela grama, um cheiro putrefato atingiu as narinas do bárbaro, seguindo o som de carne sendo rasgada. O corpo do orc despencou aos seus pés, somando à pequena pilha de corpos sem via ao redor de Rasg. Seus olhos, frenéticos, procuraram por outra vítima, vasculhando o pequeno campo de batalha que se desenvolvia aos arredores, mas apenas o grupo de viajantes permanecia em pé. O perigo havia passado. Rasg relaxou a mão ao redor da bainha e desejou mais orcs para sua lâmina sedenta.
“Essas coisas continuam a surgir do nada”, reclamou Crale. A elfa permanecia no mesmo lugar em que estava quando a emboscada caiu sobre eles, colunas de fumaça desprendiam-se de seus dedos, os olhos verdes agora apresentavam uma coloração roxa e seu rosto estava enrugado, terrivelmente envelhecido.
“Não prestamos atenção aos sinais”, disse Dargius, “vejam os padrões de galhos quebrados e marcas nas árvores”. Em algumas árvores, um pequeno símbolo estava cravado: um pequeno circulo, representando olhos escarlates, sinal universal para a raça. “Isso não pode voltar a acontecer, tivemos sorte por ser apenas um punhado de orcs. Da próxima vez, pode ser algo pior”.
Rasg deu um rápido salto e pegou Talessa pelo pescoço em um firme aperto. “Não haverá próxima vez, porque teremos um Rastreador melhor”, ele cuspiu as palavras no rosto fino de Talessa, mostrando os dentes em um sorriso ameaçador.
Talessa tentou falar, mas apenas grunhidos sem sentido escaparam da garganta esmagada pelo forte bárbaro. Ele deu dois rápido tapas nos ombros de Rasg e no mesmo momento o estrangulamento parou. “Eu deixei passar, minha culpa, desculpem”, disse rapidamente, cada palavra parecia o corte de uma adaga. Rasg soltou completamente seu pescoço e ele caiu no chão com um sonoro baque.
Dargius surgiu ao lado do bárbaro e olhou para baixo, não fazendo esforço para esconder o desprezo em seu olhar. “Você tem deixado passar muitos sinais, Talessa. Primeiro foram as colunas de chama em Volerin, depois o doppelgänger e os trolls nos Campos de Kallahar. Trolls, Talessa. Eles deixam sinais que até mesmo Rasg poderia associar”, o bárbaro concordou sem notar a injúria.
“O que Dargius quis dizer é que não confiamos em você, Talessa. Você está em nossa companhia há pouco tempo e desde então, caímos em mais emboscadas do que nos anos anteriores. Somos um grupo que carrega o nome do Reino de Lúmina e é nosso dever zelar pelo nome e honra do Rei. Quando aceitamos seus serviços, foi apenas para preencher uma lacuna momentânea em nossa estratégia. Precisamos de um Rastreador, alguém capaz de seguir os sinais para as ruínas marcada no mapa. Nós três, Rasg, Dargius e eu, somos pilares essenciais desta busca, você pode ser facilmente descartado e substituído”, ela blefou. O Rastreador percebeu a modificação no tom de voz e compreendeu a mentira. “Colocaríamos nossa missão em risco com o atraso, mas seria um alívio ficar longe de suas músicas primitivas e seu cheiro... também primitivo. Entenda isso e cumpra sua parte, ou suma antes que deixemos Rasg fazer com você o que é natural para ele.” Crale cerrava os olhos e parecia encarar a própria alma de Talessa, uma estranha estática circulava ao redor do homem esguio.
Talessa arregalou os olhos e tentou controlar o tremor que começava a tomar conta do seu corpo. Mesmo parecendo muito velha, ele sabia seu corpo iria rejuvenescer, como todo elfo faz: eles conjuram magias que consomem o tempo de vida que ainda possuem, depois esperam até que seu corpo se recupere e voltam a lançar magias. Era um ciclo. A maioria dos elfos morriam quando perdiam o controle das magias e consumiam toda a vida que ainda possuíam, principalmente os velhos, cujo tempo permitia apenas magia simples. Podia sentir que estava prestes a ser destroçado por alguma magia negra da elfa. De todos eles, era com ela que precisava tomar mais cautela. Um único movimento dos dedos longos e ele seria história, um amontoado de carne torrada e deformada por uma relâmpago conjurado. “Deixarei meus olhos abertos o tempo todo, eu prometo!”
“Vamos acabar com isso agora, assim poupamos mais dessa conversa irritante”, as palavras de Rasg eram baixas e roucas, opondo-se ao som metálico de sua espada sendo desembainhada.
Talessa começou a rastejar para trás quando percebeu que os outros dois nada disseram para impedir as intenções homicidas de Rasg e andou quase como uma aranha, apoiando o peso do corpo nas mãos e pés, procurando um caminho seguro entre as árvores da floresta escura. Rasg deu o primeiro passo para matá-lo, ou pelo menos assustá-lo, não tinha certeza, apesar de ler as intenções do bárbaro. Talessa viu o fio da espada, as inscrições ancestrais gravados no metal, imaginou quantas almas aquela arma havia sugado sem piedade... então o tempo parou.
O grupo parou ao mesmo tempo, impossibilitados de movimentar um único músculo. Ouviram vozes misteriosas saindo dentre as árvores, sumonando sua presença, exigindo atenção. Eram como pequenos tentáculos que vasculhavam suas mentes, impossíveis de serem ignorados. Dargius foi o primeiro a levantar uma barreira mental, quebrando assim o encatamento. Caiu pesadamente no solo, fazendo barulho com sua armadura e apoiou as duas mãos na terra. Tremia convulsivamente e falhou duas vezes até finalmente conseguir sustentar seu corpo sobre as pernas. Escutava seu nome. O som não chegava aos seus ouvidos, mas tentava penetrar sua mente e tomar conta de seu ser.
Uma imagem. Uma irreconhecível forma pontiaguda.
Então, tão súbito quanto começou, a voz cessou completamente.
Todos estavam livres novamente, Rasg com a espada quase tocando o pescoço de Talessa e Crale dobrada sobre o próprio estômago. Ela vomitava o conteúdo de seu estômago e Dargius viu pela primeira vez um elfo demonstrando qualquer atividade humana.
Rasg baixou o braço lentamente e olhou para os outros.
Após erguer-se do chão e limpar a terra presa no tecido da calça, Talessa disse de forma tímida: “O som veio de lá”, apontava um dedo para a esquerda. “Poucos minutos em passo apertado”, uma gota de suor percorria o nariz aquilino e o brilho da insegurança tomava conta de seu olhar, mas certeza nas palavras. “Eu sinto, posso... farejar no ar, tão forte quanto os orcs... é um cheiro diferente. Para lá.” Continuava a apontar para a mesma direção.
“Vocês também escutaram?”, Crale perguntou enquanto rosqueava a tampa do saco de couro. “Uma voz, chamando meu nome, mostrando um caminho.” Ela bebeu avidamente para tirar o gosto azedo da garganta.
“Mostre-nos o caminho, Rastreador”, disse Dargius. Não era necessário dizer mais palavras. O que viram, o que haviam escutado, estava estampado no rosto de cada um.
Crale limpou a água que escorria pelo queixo, guardou a bolsa de couro e olhou para Gardius e Rasg, ambos ávidos para explorar a possível fonte do chamado. “Não podemos”, ela disse friamente. “Aceitamos nossa missão do Rei Laurecon, é nosso dever percorrer até o final.”
Dargius olhou longamente para a elfa antes de responder: “Você escutou, Crale. Aquilo estava nos chamando. Precisamos desviar nosso caminho. Você vomitou! O que poderia afetar seu organismo a esse ponto?”
“Não podemos!”, gritou de volta. “Lúmina corre risco. Precisamos encontrar o velho mago naquelas ruínas e voltar para Lúmina. Essa é a nossa missão, não seguir vozes no meio da mata!”
Dargius ergueu as duas mãos e berrou, quase encostando a testa na cabeça da elfa: “Pelos deuses, Crale!” Os outros pararam, olhando para ele.
“Ótimo. Chame os deuses sobre nós, Dargius.”
“Eu peço... eu peço desculpas.” Olhava a elfa com os olhos faiscantes. Suas palavras estavam poluídas pela fé, Crale percebeu prontamente. Ela também sabia que se tentassem segurá-lo por mais tempo, sangue seria derramado. Havia muita história entre ela e o jovem, horas de conversa para que tudo voltasse a ser como era anos atrás. Uma época diferente, quando o inimigo não usava máscaras e havia o certo e o errado. Tudo que ela via agora estava tingido de cinza e as ações eram ambíguas. Como uma álien à sociedade humana, ela não entendia as maquinações e conspirações internas, principalmente agora, em um momento de perígo único. Humanos, ela pensou com rancor, malditos humanos.
“A fonte está perto?”, ela olhava para o Rastreador.
“Sim. Alguns minutos.” Talessa erguia o nariz, como se fosse um cão farejador. Ou um porco procurando por trufas.
“Vamos até ela.” Virou-se para Dargius: “Apenas mais alguns minutos nessa besteira e depois continuamos em nosso caminho. Vamos.” Isso é um erro, Crale!, escutou sua própria voz. Muita coisa está em jogo para o luxo de brincadeiras como essa.
Talessa iniciou uma corrida rápida na direção do cheiro que sentia, aliviado por deixar para trás os orcs mortos. Seus sentidos estavam confusos pela fumaça deixada pela magia de Crale, mas o ar puro da floresta logo atenuou o faro hipersensível. Suas habilidades eram incríveis e há pouco tempo estava apendendo a usá-la para além de seu treinamente enquanto Rastreador. Aprendeu a rastrear as intenções das pessoas através de pequenos desvios dos olhos ou conforme levantavam a boca. Os ouvidos podiam captar mínimas alterações na voz e aprendera a reconhecer os odores da mentira, da violência, da coragem... e da Fé. Dargius tinha um cheiro que incomodava o rastreador. Talessa sabia que se fosse contrariado, o humano atacaria prontamente a elfa, traindo não apenas Lúmina, mas a milenar trégua entre as duas raças.
Olhou para trás e viu os outros três seguindo seus passos. Poderia facilmente liderá-los para o caminho errado, mas a qual propósito? Perguntou-se se algum dia contaria com a fidelidade de Rasg, aceitando que seria um fato difícil de ser conquistado. Era o novato entre eles, afinal.
Correram por cerca de cinco minutos, os sinais ficando mais fortes a cada metro percorrido, e quando a elfa abriu a boca para ordenar uma voltar, uma clareira abriu ao redor do pequeno grupo, dando espaço apenas para uma única árvore em seu centro. Ela era monumental. Talessa deixou a boca abrir em sincera surpresa. A árvore corria centenas de metros acima do resto da floresta; as raízes, grossas e fortes, pefuravam o solo e percorriam toda a área da larga clareira, formando incontáveis ondas acima da terra e da grama. Os outros pararam atrás do Rastreador e soltaram pequenos sons de aprovação. Dargius aceleou sem dar qualquer aviso e começou a correr entre as raízes que rodeavam a enorme árvore, algumas delas da expessura de um tronco humano.
“Dargius!”, a elfa tentou alertar, mas o jovem continuou, ignorando-a. “Rasg, vamos!”
Eles seguiram o companheiro, deixando para trás o Rastreador, ainda maravilhado com a imagem da árvore. Seus olhos, capazes de uma visão cristalina de detalhes da Árvore, estavam hipnotizados. Tessala estudou os estômatos das gigantescas folhas, os rios de água que percorriam o caule e os galhos maravilhosos, os ninhos no topo da grandiosa árvore e as aranhas atrozes que desciam em grossas teias.
Aranhas. Bosta!, ele pensou e começou a correr.
Dargius escostou primeiro no milenar tronco de madeira. Ele havia parado ao alcance da árvore e retirado uma das manoplas que vestia. Sentiu a vida fluir sobre seus dedos, era impressionante a presença daquela criatura. É como se pudesse andar. Sinto a vida dela como se falasse comigo. Dargius não poderia estar mais certo: a voz novamente procurou alcançar sua mente, clamando por sua atenção, para uma visita permanente. Pela segunda vez, a sombra de um objeto disforme, cheio de ângulos pontiagudos, tomou conta de sua visão. Ela, a árvore, queria mostrar algo e eles tinham de descobrir.
A voz minou suas defesas. Entrou em sua mente. Dargius baixou todos os muros e se deixou inundar por aquele poder que o cercava. Uma sensação agradável tomou conta de seu corpo. Ele exergou mais sombras, parecidas com a primeira, em uma pilha quase interminável: corpos confusos com ângulos retos e fechados, amontoados em uma fina coluna sobre um fundo branco. A voz, macia e de certa forma quente, implorava para ele vasculhar as profundezas do velho tronco, entrar no labirinto de madeira e desvendar os mistérios que ela guardava, a voz pedia para que ele... se movimentasse. Movimentar-me? Não. Outra voz. Prestou atenção no que ouvia, tentando ao máximo ignorar a mágica voz que julgava ser da Árvore. Uma segunda voz. Também chamando pelo meu nome. Uma voz estridente. A segunda voz estava carregada por forte urgência. Uma. Duas. Três... Por cinco vezes escutou seu nome antes de reconhecer a voz quase fanha de Talessa. Dargius forçou a voz para fora de sua cabeça, ainda que de forma relutante e focou sua atenção para Talessa. Abriu os olhos. O mundo estava embaçado e tomava forma lentamente. Dois vultos estavam ao seu lado, cambaleando uniformemente; um terceiro crescia, indicando movimento em sua direção. Acima dele, seis bolas negras cresciam vertiginosamente.
As formas ganharam cores, depois contraste. E por fim, nitidez.
Talessa, Dargius viu, corria com a besta em mãos, gritando para que eles saíssem do alcance de seis aranhas que desciam dos galhos mais baixos da árvore. Com um crescente horror em seu peito, ele viu esqueletos humanos e eqüinos presos pelas teias. Prontamente, deu um salto para o lado e derrubou Rasg. Crale ainda cambaleava ao lado deles, há pouco centímetros de uma aranha. A criatura preparou um golpe e eles podiam ver gotas de veneno saindo do ferrão, pronto para empalar o corpo da elfa. Um virote, no entanto, atingiu a aranha em um dos olhos e ela recuou, emitindo sons estranhos e rasgados. Em seguida, Talessa pulou sobre a elfa e os dois rolaram na confusa configuração de raízes.
Rasg empurrou o guerreiro que estava atordoado por cima de seu corpo e sacou da espada, dando um pequeno salto para ficar de pé. Retesou os músculos e formou um arco com a espada, sentindo com prazer o contato do metal com o exoesqueleto das aranhas. A força do golpe destroçou o abdômen de um dos monstros em incontáveis pedaços, atravessando todo seu corpo negro, mas permaneceu emperrada no segundo aracnídeo, que igualmente subiu na teia que havia deixado em seu caminho, levando consigo a espada ainda profundamente presa. “Não!”, Rasg berrava.
Dargius agarrou a própria espada e prepagou um golpe contra um dos monstros, mas um forte impacto o derrubou novamente. Três patas o cercaram e ele viu o ferrão disparar rapidamente contra suas pernas. Seus reflexos foram rápidos o suficiente para afastar as coxas do ataque antes de rolar para um dos lados, mas estava cercado por duas aranhas, tornando inúteis suas tentativas de escapar. Ele lutava contra as patas que tentavam cercá-lo, até o momento em que uma das quelíceras agarrou sua mão despida de armadura, derrubando veneno sobre a pele. Um terrível cheiro de queimado e podridão atingiu suas narinas, quase ao mesmo tempo que a terrível dor que percorreu todo seu braço. Ele gritou e gritou e gritou.
“A besta emperrou!”, Talessa avisou para a elfa.
Rolando sobre as raízes para escapar das investidas da monstruosa aranha, Crale recitou as palavras de poder o mais rápido que pôde. Esticou os dedos nas direção de seu inimigo e deixou a energia sair de seu corpo na forma de três dardos avermelhados. A elfa sentiu o ar ficar carregado com energia mística e a estranha sensação que sentia quando liberava magias conjuradas com sua própria força vital. Seu rosto envelheceu alguns anos, sentiu com a outra mão. Estou usando muitas magias, preciso descansar ou acabarei com minha vida. Os olhos da aranha explodiram juntamente com o restante da cabeça aracnídea e pedaços do pequeno cérebro cobriram o cabelo élfico. Mesmo consciente dos risco extremo, ela permitiu que mais dois dardos saíssem de seus dedos, matando uma das aranhas que atacam Dargius. Sua visão embaçou e o mundo tornou-se negro, a vida parecia escapar pelos buracos de energia pura que se formaram em seus dedos, mas a sensação diminui e abriu espaço para a normalidade.
Agindo por instinto, Rasg pulou sobre o corpo da aranha restante e forçou suas quelíceras para cima, abrindo um ponto vunerável para Dargius. Talessa disparou outro virote acima da cabeça do guerreiro, afundando o projétil na madeira da árvore. Dargius gritou novamente, desta vez por vingança, e puxou o virote da madeira, afundando-o no esôfago da critura. A aranha esperneou confusamente, derrubando Rasg na manobra, e correu entre as raízes, caindo finalmente a meio caminho da próxima árvore.
O cheiro de carne queimada tomava conta do ar e Talessa sentia o almoço anterior revirar em seu estômago, procurando escalar todo o caminho de sua garganta.
Crale retirou um pedaço do cérebro de seu cabelo e ajoelhou ao lado do amigo, analisando rapidamente a ferida, enquanto Talessa engatilhava mais um virote em sua besta e Rasg olhava para cima, procurando sua espada. O veneno corroeu a pele da mão esquerda do guerreiro e invadiu seus sistema, a elfa notou. “Temos que sair daqui o mais rápido possível, preciso voltar para a floresta procurar por raízes para um atídoto...”
“Não...”, sua voz estava embargada. “A Árvore... a Árvore está chamando. Precisamos descer até suas raízes e descob-”
Ela desferiu um tapa no rosto do rapaz, deixando a marca de seus dedos na bochecha branca. “Cale sua maldita boca, porra!”, explodiu. O ódio causava estranheza não apenas às pessoas ao redor, mas também nela. Era um sentimento quase novo para ela, exótico à sua natureza. “Nossa missão é clara e Lúmina precisa de nós. Temos de apressar nossos passos, forçar as montarias que ainda não possuímos e tirar esse fardo de nossas costas. Mas primeiro precisamos tratar de seu braço, acho que o veneno já está atacando seus nervos de forma irreversível.”
Ele concordou com a cabeça, engolindo qualquer palavra que passou em sua mente. Levantou-se com a ajuda dos outros até sentir que poderia permanecer ereto apenas com a própria força. “Rastreie o velho ou a ruína... ou ambos”, disse para Talessa, “e vamos logo para casa.” Dargius conhecia a Árvore com perfeição, sabia quantas folhas havia em seus galhos e o número de galhos e raízes que havia. Eram legião. Perto de onde estavam, uma parte da Árvore ameaçava ceder: estava oca, caindo em uma coluna perfeitamente cilíndrica, provavelmente feita por vida inteligente.
Buscou o Rastreador com sua mão boa e o lançou violentamente contra o espáço frágil na gigantesca árvore. Ouviu, satisfeito, o barulho da casca rompendo e do homem magro sendo sugado pela escuridão, sem qualquer manifestação de surpresa ou ódio.
“Vamos para casa, mas antes precisamos resgatar nosso Rastreador”, ele sorria, vitorioso. Xeque, pensou com malícia.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

quando um buda morre um buda não morre

- Não, obrigado, hoje só quero água.

- Com gás?

- Com gás.

O som era Zé Ramalho. O tempo, frio. A distância, longa.

Como todas as coisas no mundo, aquilo também mudava: mudava aquele dia, aquela tarde, mudavam semanas todas umas após as outras. Ninguém parecia notar.

Ou, se notavam, não comentavam sobre.

Era possível ver ali, naquele bar, as pessoas com mãos nervosas e olhares tensos, músculos retesados, tristezas escondidas e sorrisos alcoólicos. Dificilmente estavam sozinhas: a maior parte sentava à mesa com um ou mais outras, falando, falando, conversando sobre as coisas, prestando pouca atenção.

O observador atento percebia que, a cada fala, no meio de quase todo diálogo, os dialogantes se perdiam. Porque enquanto o outro falava, o um pensava em qualquer outro, qualquer outra coisa, qualquer tempo que não aquele agora.

E não gostavam, no fim das contas, de conversar. Falavam apenas para abafar o barulho que ressoava em seus próprios corações, mais alto que a jukebox no canto do Clube.

A água com gás chegou. Ela sorriu - garçonete e água. A tampinha sendo aberta chiou na medida certa, e de repente todo o bar notou.

Sorriu - o bar e cada um dos ali presentes.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Os Golfinhos são mais Inteligentes


Gaia pisou pela primeira vez em uma cidade. A deusa, existente antes do próprio Tempo, evitava o ambiente urbano, preferindo as profundezas inacessíveis dos oceanos, dormindo profundamente ao lado do Deus Polvo, cujo único olhar poderia causar a loucura nos humanos. Humanos são criaturas engraçadas, ela pensava, mentes fracas que se quebram pelos mais fúteis motivos. Um único deitar de olhos em algo que não podiam entender e cuco, lá se vai a sanidade e eles gritavam loucuras e jogavam fezes em pessoas ao redor. Às vezes se perguntava até onde valia a pena acordar e se movimentar por eles. Sair do fundo da profundidade abissal podia ser cansativo algumas vezes. Gaia, no entanto, importava-se com as criaturas que viviam em sua crosta. Todas as criaturas, não importa quão estúpidas.
Ah sim, os humanos eram estúpidos, tinha certeza a divindade: única espécie capaz de artificialmente acabar com a própria existência, em mais de uma maneira. Um simples conjunto de botões apertados e o relógio do fim-do-mundo alcança a fatídica marca de meia-noite. Todas as culturas, todo o conhecimento acumulado, as maravilhas da ciência... tudo por nada. Tudo, aliás, usado para o auto-genocídio. Auto-genocídio, pensou com o gigantesco cérebro - cujas sinápses espalhavam-se pela flora e fauna de todo o planeta - um conceito engraçado. Estúpidos. Criaturas sem qualquer tipo de entendimento real sobre a vida e sobre o lugar em que ocupam, exaurindo sistematicamente qualquer ponto em que se estabelecem, envenando os rios, massacrando o que era verde e deixando para trás o cinza tóxico; matando seus iguais, arrancando as peles dos animais para fazer roupas que consideravam agradáveis aos olhos, tirando o balanço da vida. Criaturinhas infames que precisavam de um relógio para contar o próprio fim.
O ar poluído da cidade a deixava irritada. A chuva que caia sobre seus galhos e folhas era ácida; a cacofonia absurda que saía dos carros ao seu redor perturbava as células hipersensíveis das flores e ervas que constituíam seus ouvidos. Gaia deixava um rastro por onde passava, seus pés criavam a vida onde tocava, bela e única, cada passa um desenvolvimento singular de vida. Vida, que logo desaparecia quando tocada pelos venenos da vida humana.
Criaturas absurdas!
Gaia evitou pensar nos recipientes que tomavam conta dos oceanos, despreocupadamente despejados nas águas gélidas das praias, matando peixes e corais, prendendo caramujos e caracóis em seu interior, condenando-os à morte. Ao menos quinze espécies por eles jamais documentadas estavam para sempre perdidas. Evitou pensar no uso incorreto dos materiais mais complexos, que eles chamavam de urânio, e nos casos em que se matavam sem pensar duas vezes. Na miséria de alguns espécimes, na estúpida ignorância que usavam para cercar seus pensamentos, vivendo assim em uma falsa felicidade. Insustentáveis, incoerentes... valeria a pena salvá-los?
A deusa achava que sim.
Ela chegou em um prédio, alto e isolado do resto da cidade. Seus dedos, um emaranhado milenar de raízes e restos de pequenos mamíferos, encostaram no espaço entre os olhos da criatura. Você é meu escolhido, fez os ouvidos simplórios escutar, passe adiante as minhas palavras e salve a espécie, ó escolhido. Essas imagens que agora vê são o futuro para o qual o mundo caminha, mas há esperança. Nos momentos de maior desespero, quanto até mesmo os deuses abandonaram o campo de batalha e as Valkírias guiam os escolhidos, há esperança. É agora o seu papel fazê-los enxergar e preparar para o Cataclisma. Entenda a importância, espalhe as visões que agora dou-te livremente, mudando assim o rumo daquilo que já está escrito e para sempre esteve. Vá, divulgue meus segredos; viva!
Estava satisfeita. Seu trabalho estava feito. Tirou o dedo da testa do gato e confiou que ele cumpriria seu papel. Gaia dissolveu-se em uma espiral de terra, areia, folhas, animais e água, deixando para trás um caminho mais seguro para o humanos.
O gato parou de lamber sua pata dianteira e olhou para onde a antiga deusa permanecia momentos antes. Entendia, contrariando qualquer lógica racional, o que havia visto. Precisava agir, naquele mesmo instante.
Percorreu os telhados da cidade, pulando entre telhas e andares, compreendendo melhor a física do mundo do que o mais brilhante dos humanos. Movimentos precisos, cálculos complexos feitos com naturalidade. O gato pulou, correu, escorregou e miou, convocando todos aqueles que entendiam seus sons para uma assembléia, como uma que nunca aconteceu antes.
Caros irmãos, miou alto, para que todos pudessem ouvir. Todos os felinos da cidade estavam reunidos no enorme parque e miados abafados repediam o que ele acabara de dizer. A Grade Deusa prestou-me uma visita e presentou-nos com os acontecimentos futuros. É nosso papel desviar a raça humana dos erros presentes... E é também nosso papel ignorar o alerta.
Milhares de olhos brilhavam no escuro. Milhares de sorrisos, como aquele que assustara a pequena Alice, muitos anos no passado.
Nossa Era começou, ele miou, maliciosamente.
Os miados acordaram os moradores da cidade, curiosos com os dóceis animais reunidos entre as árvores do parque.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

até o sol raiar

- Às vezes me dá uma coisa, assim, que eu não sei.

Essa fôra a resposta. Sentados num canto escuro do Clube, sem cerveja naquela noite, os dois conversavam pouco sobre muita coisa. A conversa se esticava desde o fim da tarde, e agora a noite já ia ameaçando virar em madrugada.

- Mas, mesmo? Tu?

- Pois é, eu. Que tem?

Ficou sem jeito, a esposa.

- Ah, é que... tu, sabe como é. Tu nunca tem nada, tá sempre bem assim, tudo fluindo em tudo, responde sempre que ok, reclama nunca de nada.

- De quase nada.

- Tá, de quase nada. Mas ainda assim é muito praticamente nada, perto de todo mundo.

O outro sorriu.

- É, mas às vezes dá uma coisa.

- E por quê?

- Como é que eu sei?

Silêncio. Só a musga soava no som. Gilberto Gil. E era bom.

- Então, quando te dá essa coisa assim, que que tu faz?

- Nada. Fico só olhando.

- Nada? Nada de nada, não fala nem pra ninguém?

- Às vezes, mas costuma não dar em nada. Aí fico só com essa coisa assim, olhando, vendo de onde vem, pra onde vai, tentando fazer alguma coisa pra que a coisa vá embora...

Sorriu.

- Vem, morena, vamos dançar.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Metahistória


“Cara”, ele disse antes de tomar outro gole de cerveja. Entornou longamente a bebida, deixando-o sem o resto da frase. Odiava quando ele fazia isso. “Isso é animal!”
Na mesa, dois computadores ligados, garrafas de cerveja, duas canecas com chá de algumas horas antes e porções de amendoins. Em um dos computadores, um longo texto estava sendo escrito; no outro, um jogo rodava na potente máquina, mostrando um guerreiro negro espirrando sangue da cabeça de orcs e destruíndo ninhos de dragões.
“O que é animal?”, perguntou enquanto digitava no teclado nojento pela cevada derramada.
“Isso, esse jogo. É quase uma versão minha de outro mundo. O que você está escrevendo?”
“Sobre um cara que morre depois de escorregar em um panfleto de segurança.”
Ele sorriu para o amigo. “Ah, a ironia.”
“Sim, também achei engraçado. O cara anda, escorrega no papel e cai de cabeça. Morre olhando para um panfleto sobre qualquer coisa de segurança, sei lá, pode ser instruções sobre uso de capacetes em construções. Já pensei em tudo: no sangue escorrendo como uma poça a se formar, o papel enxarcado, os papéis da pasta dele – o protagonista tem sempre que carregar uma pasta com papéis – voando pela rua... teremos até uma mulher com um bebê no colo, berrando desesperada, pedindo por socorro para o estranho que está morrendo na frente dela.”
“Muito bom!”
“Mais ou menos.” Uma chuva fina começava a cair na noite lisboeta.
“Por que mais ou menos? Cacete, olha essa espada que achei!”
Inclinou-se na cadeira e observou o novo item gerado por chance. Era, realmente uma arma muito boa. “Boa pra caralho! Duas mãos?”
“Duas mãos. Mas acho que vou manter meu escudo.”
“Não faça isso. Essa espada vai destruir qualquer coisa... A história precisa de mais coisa, mais detalhes. Não posso simplesmente colocar uma pessoa andando pela rua até escorregar e morrer. Qual era seu nome, o que fazia naquele lugar? Qualquer um que ler vai se perguntar essas coisas para criar laços com o personagem, ou a história será um fracasso. O cara não pode simplesmente andar pela cidade com uma pasta na mão. Não, ele precisa de propósito. Ou terei um conto não lido e isso não é bom para ninguém.”
“Se você pensar, é como você.”
“Eu vou morrer de forma irônica, é isso?”
“Não sei, pode ser que sim. Não tenho meios de saber isso. Se tivesse, estaria muito rico agora. Você não me disse que se sentia assim algumas vezes? Sem propósito, sem os laços dos quais falou?”
Pensou por algum tempo. Abriu os lábios para responder, mas decidiu ocupar sua boca com a cerveja. Respostas não esquentam depois de abertas.
“É tudo meta, cara.”
“Meta?”
“É, metalinguagem. Li em algum lugar que trabalhamos para pagar por passatempos que preenchem nossa vida para tirar nossas mentes da fatalidade que nos espera. Todos vamos morrer, é a única certeza. Pode ser em sessenta anos, pode ser hoje mesmo. Então evitamos pensar nisso o tempo todo e criamos histórias para entreter nossos cérebros preocupados com a própria mortalidade, é assim a vida. Mas cada vez mais essas histórias estão mais metas. Olha só esse cara”, ele apertou um botão no teclado do notebook e a imagem de um guerreiro apareceu. Ele vestia uma armadura de batalha cheia de cravos e ângulos afiados, portava a nova espada, uma mochila e algumas tochas para iluminar as masmorras, era um elfo negro. “Haser Moonkiller é um elfo negro, mas estou centrando em combate corporal, contrário ao que todos fariam com um personagem dessa raça. Elfos não são tão fortes quanto, digamos, um anão. Então se quero jogar como um guerreiro, por que diabos não monto um anão, você está se perguntando. Porque Haser Moonkiller não se contentou em seguir o fluxo, em se limitar pelo modo como nasceu, com apenas algumas escolhas viáveis. Ele viajou, ficou mais forte, aprendeu a esgrimar com maior precisão... ele seguiu o próprio caminho, por assim dizer. O que é mais ou menos o modo como levo a vida. Nunca escolhi o caminho mais fácil. Sempre pego a curva mais interessante, você me conhece.”
Terminou a cerveja e concordou com a cabeça. Estava ficando vermelho. Sempre ficava daquela cor quando bebia, não importava a quantidade: se ingeria álcool, ficava escarlate como a bunda de um babuíno. “Haser se preocupa com questões sociais?”
“Ah, é um elfo negro guerreiro ativista. Único de sua estirpe.”
Deram risadas e abriram mais cervejas.
“Ainda preciso criar uma história para esse personagem. Pare de mudar de assunto.”
“Não estou. Escolha meta, como fiz com Haser.”
Pensou por um tempo. Desta vez não afogou a resposta na bebida, mas estralou os dedos das mãos e começou a digitar com rapidez. Faria meta.
“Aliás, estou com um blog com alguns amigos, estamos escrevendo pequenos contos. Quer participar?”
“Ah, valeu! Quero sim. Posso escrever essa história, do cara que morre com o panfleto de segurança.”
“Boa, faça isso!”
“Meta.”
“Meta.”
Beberam cerveja e conversaram pelo resto de suas vidas.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

aliança

- Como assim, "casou"?

- Casei, ué. Simples. Casamos, na verdade. Ninguém casa sozinho.

O silêncio não existia, naquele Clube. A jukebox hoje estava cansada, fora da tomada, e um gramofone servia para tocar o som que enchia o lugar. Post-rock japonês, Hiiragi Fukuda, som agradável. Ambiente.

- Por falar em "ninguém casa sozinho", como diabos vocês casaram sem que ninguém soubesse? Sem testemunha, ninguém!?

Sorriu.

- Ora... casamos, simplesmente. Ela e eu, Eva e eu. Estávamos deitados, estávamos na cama. Pensei "e por quê não?". Não tinha por quê não. Então, pronto. Cá estamos.

- Casados.

- Pois é...

Sons de cervejas sendo abertas, portas sendo fechadas, vento varrendo calçadas.

- Mas nem ninguém, mesmo? Nenhum juiz pra assinalar a assinatura? Nem um mísero padre, meu velho?

Sorria.

- Nem um mísero padre. Nem juiz. Nem nada. Só os dois, que é quem conta.

- Certo... mas nem nada?

Sorri.

- Como nada? Que mais existe, além disso?

Cerveja, post-rock, Joana andando ao longe, um fone, dois gramas. A noite corria solta.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

As Pessoas da Parede


O CD mais recente do Eric Clapton alcançava a cozinha através das caixas de som que estavam na sala. Limpavam, conversando com animação, os pratos sujos do jantar que há pouco terminaram. Ele raspava molho de tomate com um garfo enquanto ela despejava os resquícios do vinho branco na pia; no fogão, bolas vermelhas marcavam onde o tomate ultrapassara a borda da panela e algumas manchas estavam secas. O homem – calças jeans, camisa branca e flanela escura – estava assobiando o blues enquanto começava a lavar os talheres. “Obrigado por me ajudar com a louça, sério mesmo”, disse em um tom quase envergonhado. Não era sempre que as mulheres que caíam em sua lábia ajudavam com a cozinha. Estavam no segundo encontro e tudo fora perfeito. Ah, seguira todas as regras do bom cavalherismo e usara seu melhor jogo durante toda a conversa entre os pratos de salada e pasta. Iria entrar naquela calcinha esta noite, tinha certeza. “Mas realmente, não é muito trabalho. Poderia lavar tudo amanhã em cinco minutos.”
Ela – apenas um vestido vermelho cobrindo o corpo, nada mais, nada menos – aproximou-se dele, beijou sua nuca e disse: “Podemos gastar nossa manhã com um longo café na cama, o que me diz?”
Sentiu uma imediata ereção. “Combinado”, virou-se estrategicamente e a beijou longamente.
“Eu tenho uma mania boba...”, deixou a frase morrer no silêncio que se formou. Apenas a água caia da torneira, jogando um pedaço de cebola frita no ralo. Não sabia porque havia dito aquelas palavras, elas simplesmente saíram de sua boca.
“É normal as pessoas terminarem as frases...”, brincou.
“Não, esqueça. É só algo besta, de qualquer forma.”
“Nada disso, minha senhora”, enlaçou a cintura fina da moça, “manias são importantes. Acho que somos um amontoado de manias, na verdade. A única coisa que nos difere enquanto indivíduos é a combinação única de manias que acumulamos enquanto envelhecemos. Por exemplo, eu tomo duas canecas de café toda manhã, é uma mania. Tenho a mania de checar meu e-mail a cada cinco minutos, é uma mania. Estou envelhecendo a cada segundo, é uma mania besta que deveria ser deixada de lado, mas uma mania, de qualquer for-”, o som alto de um ônibus interrompeu sua frase. “Tenho a mania de morar perto de uma das mais movimentadas linhas de transporte urbano, algo besta, bem sei, mas eu vivo assim.”
Ela sorriu. Ficava linda quando sorria, decidiu. “Estou convencida. Minha mania mais estranha é comprar CDs que nunca escuto.”
“Sério que essa é a sua mania mais estranha? Eu estava preparado para algo mais... bom, mais estranho. Sei lá, fazer chá de bebês com água quente e bebês de verdade ou atirar em pássaros toda manhã...”
“Que horror!”, ela tinha uma risada em soluços. “Sem bebês borbulhantes para mim, querido. Eu entro em lojas de música, escolho um álbum, abro o encarte e leio as letras. Se for algo bom, letras com sentido e profundidade, sem apelo para as massas, compro, mas nunca toco as músicas. São poemas. Eu compro pequenos livros de poemas e não CDs, penso assim.”
“E você simplesmente deixa todas aquelas músicas escritas com cuidado e paixão juntarem poeira?”
“Não são músicas, são poemas. Poemas silenciosos.”
“É uma pena. Poxa.”
Trocaram alguns beijos e caminharam, entrelaçados, até o sofá, onde soltaram o peso dos corpos mergulhados em pura luxúria. Suas mãos percorriam o vestido vermelho, experimentando e reconhecendo as curvas da bela mulher. Sentiu os mamilos endurecidos, o quadril macio e a barriga reta. Estava animado, queria avançar com urgência, mas controlava os impulsos para saborear cada segundo com aquela musa.
Eric Clapton despediu-se do público com Cocaine e deu espaço para os Rolling Stones. Gimme Shelter explodiu nas caixas de som.
“E a sua?”, ela perguntou.
“A minha o quê?”, respondeu em suspiros, concentrado em abrir o zíper do vestido.
“Sua mania mais estranha?”, sentiu a hesitação nas palavras dela.
O homem sorriu e ergueu o corpo do sofá, esticando uma mão para ajudá-la. Andaram até uma porta fechada e gesticulou, indicando para ela entrar no cômodo. “Vá em frente, aqui está minha mania mais estranha.”
Ela encostou na maçaneta e parou. Queria realmente entrar naquela sala e descobrir o aspecto mais estranho dele? Achava-o bonito e parecia que tinha a vida sobre controle, enxergava um bom futuro para eles. E se estivesse prestes a entrar em uma masmorra de masoquismo? Quase podia ver os chicotes e máscaras de couro, bolas e vibradores de tamanhos inimagináveis. Talvez ele colecionasse armas; calcinhas de mulheres com quem dormira, quem sabe. Ou, indo na contra-mão, o que faria se ele fosse o cara mais entediante do mundo? Talvez ele dedicasse seu tempo livre para modelar argila, como naquele filme antigo, com o fantasma do Swayze.
Cansado de esperar no corredor, ele colocou a mão sobre a dela e gentilmente abriu a porta. Nada poderia prepará-la para o que estava naquela sala. Todas as paredes estavam forradas com colunas recortadas de jornais. Ela rapidamente notou os recortes mais antigos, partindo da paredes esquerda, aos mais novos, no meio da parede final que completava o cômodo quadrado, todos presos com pregos longos e finos. Os primeiros recortes estavam amarelados e quebradiços, o papel de baixa qualidade tornava difícil a leitura e as fotos estavam gastas, desbotadas. A mulher andou pela sala apertada, sentindo calafrios por todos o corpo. Não havia espaço entre os recortes e eles cobriam praticamente cada centímetro de parede. Em cada pedaço de jornal antigo, fotos de pessoas sorridentes e corpos dividiam espaço.
“O que é isso tudo?”, finalmente perguntou com uma voz tímida e trêmula.
“Eu trabalho como escritor freelancer para vários jornais. Toda vez que alguém morre, eu recebo tudo que preciso saber no meu e-mail e rapidamente escrevo o obtuário. Por isso preciso checar minha inbox constantemente”, explicou. Outro ônibus passou do lado de fora, fazendo as velhas janelas reclamarem. “Eu coleciono as notícias que escrevi. Cada recorte é um acidente ou crime fatal.”
“Uau!”, ela deixou escapar. “Perto disso, meus CDs nunca abertos são brincadeira de criança. Por um momento fiquei realmente preocupada, achei que você era algum tipo de... sei lá, de doente mórbido.”
“Não”, disse sorrindo. “Qual foi o último obituário que você viu? Não vale parentes ou amigos.”
A mulher ajeitou o vestido no corpo e pensou por algum tempo.
“E qual foi o último filme com o Bruce Willis que você viu no cinema?”
“Sexto-sentido”, disse rapidamente, para depois completar: “Eu... eu não vou muito ao cinema...”
“As pessoas sabem exatamente qual bar abriu nos últimos anos, sabem sobre detalhes fúteis da vida de celebridades, mas essas vidas”, apontou para as quatro paredes, “foram perdidas de forma trágica e cada uma dessas pessoas, imagine quantos sonhos perdidos, as esperanças, os medos enterrados... cada nome, foi logo esquecido pelas pessoas que leram os obtuários. Eles significaram, afinal, muito menos para a maioria das pessoas, do que o último filme do Bruce Willis que viram no cinema. Essa é a minha mania... não, esse é o meu dever: lembrar de cada um deles.”
“E você consegue se lembrar?”, ela perguntou, enquanto estudava os recortes.
“Se lembrar? Dos nomes?”
“Sim, é o seu papel, não é?”
“Faça um teste.”
Ela rodou pelo cômodo, passos curtos, mãos para entrelaçadas nas costas. Apontou, finalmente, para um recorte aleatório, onde a foto de uma adolescente de aparelhos sorria para uma foto de escola. “Elena Guernica”, cerrava os olhos, entregando a miopia. O nome estava escrito com as letras redondas do homem no topo do papel e em tinta vermelha.
            “Elena Guernica”, repetiu. Parecia que saboreava o nome. “Em vinte e oito de julho de 1991 a estudante E.G. perdeu o ônibus que a levava todas as manhãs para a escola, ela voltou para dentro de casa apenas para abraçar o irmão mais velho e dizer que lhe amava e, por causa disso, perdeu o ônibus. Enquanto ela corria, gritando para o motorista parar, um carro desgovernado... Gregório Jurrinto, sessenta e sete, estava voltando bêbado de uma festa e queria gritar com a ex-mulher, que morava na mesma rua que a adolescente. Uma perna foi decepada. O carro passou sobre a cabeça da menina e ela morreu na hora. Elena gostava de assistir filmes com suas amigas e escrever poemas. Eu lembro de você, Elena Guernica.”
Eles continuaram com aquele jogo por mais algum tempo: a dama em vermelho apontava para uma foto – idosos carrancudos, crianças suadas em um campo de futebol, mulheres grávidas com bebês no colo e jovens com as namoradas nas mãos, havia todo tipo de pessoa naquelas paredes; um cemitério particular – e ele recitava nomes, datas, causa mortis e famíliares deixados para trás. Por alguns minutos o que estavam fazendo foi divertido. Mas logo ela passou a imaginar as cenas sanguinárias dos acidentes ou os idosos morrendo sozinhos em um quarto apertado e mofado, os pais chorando perto dos corpos de seus filhos, filhos em luto por seus primogênitos. Cada pequeno pedaço de papel, cada um daqueles recortes que cobriam as paredes do quarto, era uma pessoa, representava toda uma vida, cheia de esperanças e decepções, altos e baixos, qualidades e defeitos. Quantas horas foram vividas pelas pessoas naquelas paredes? Quantos projetos foram interrompidos? Quais sentiram alívio em seu momento final, quais partiram tentado agarrar a vida, célula por célula? Ela não conseguia evitar olhar para aquelas fotos e considerar o amontoado de manias que distinguia os mortos. Algo começava a se formar na garganta da mulher.
De repente, aquele cara legal era uma pessoa estranha. Ele acreditava que tinha um papel nobre, e isso contava alguns pontos para ele, achava; mas a morbidez daqueles recortes, o contato tão próximo com tanto sofrimento, incontáveis tragédias, construíram nela uma urgência, como se pudesse escutar as vozes das lápides naquele cemitério de celulose e tinta antigas. Desejou que ele tivesse a mania de fazer potes de argila, afinal.
Ela inventou uma desculpa e correu para sua bolsa, vestindo em seguida o casaco pesado que usara até entrar no apartamento. O homem tentou impedí-la, mas sabia que era inútil: já vira aquela cena algumas vezes e nada que tentava dava certo. Era estúpido, não sabia porque ainda mostrava o quarto para as mulheres que iam até seu apartamento. Queria o sexo, ansiava pela companhia, mas teimava em demonstrar orgulho pela memória que dedicava aos esquecidos.
Olhava pela janela a mulher atravessando a rua com os saltos altos, tentando não cair no chão molhado pela chuva recente. Tudo aconteceu muito rápido. Num segundo ela estava lá, ao seu lado, olhando maravilhada para as horas de trabalho que colocava nas paredes; no outro, a mulher atravessava a rua sem olhar para os lados, nunca enxergando o ônibus que a espalhou pelo asfalto duro. Era uma mania besta, morar perto da linha de transporte mais movimentada da cidade.
Alcançou a potente máquina fotográfica e acertou o zoom, o foco e o flash. Duas fotos. Descarregou o pequeno chip de memória no computador e abriu o documento modelo para o obituário do jornal. Enquanto escrevia sobre a mulher, pensava como teria sido melhor se tivessem feito sexo no sofá. Perguntou-se, balbuciando as palavras, se ela vira o ônibus que avançava com velocidade em sua direção. Quais manias ela tinha? Ele escreveu sobre a única que conhecia: comprar CDs e nunca escutá-los. Por fim, anexou a horrível foto da dama de vermelho, sangue espalhado pela rua e calçada, órgãos grudados no vidro do grande veículo, cabelo enrolado nos pneus. O obtuário nunca seria aceito, ele sabia. Não havia problemas, no entanto, aquele obtuária era uma exclusividade do seu cemitério particular.
Não se preocupe, vou me lembrar de você, Sabrina Loreira, que usava vestido vermelho, usava CDs como livros de poemas e tinha um sorriso bobo, prometeu. Um freelancer trabalha por demanda, inclusive os freelancers de memória. Era seu papel.
Lembraria dela.