sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Acúmulo Crítico


Parecia um clube como aqueles que ele via nos filmes ambientados no começo do século passado. Móveis finamente trabalhados espalhavam-se pelos cantos do lugar, dando espaço para seus assíduos frequentadores. Permanecer onde estava, na sala bem iluminada mas, em contradição, estranhamente escura era como ver o mundo através de tons pastéis, um cenário que poderia ser igualmente de um quadro renascentista.
Todos vestiam terno – a primeira regra para os associados, logo aprenderia – e sentavam, quietos, nos sofás caros, bebendo café, whisky e vinho branco, lendo Tolstói, Cervantes e Shakespeare. Silêncio, com o peso de uma bigorna, imperava. Ele contou, movendo os lábios, dezenove homens, todos com o olhar vago e rosto sem qualquer expressão.
“Está ná hora”, disse um deles. O homem segurava um copo suado pelo líquido âmbar, pedras de gelo flutuavam no whisky. “Temos um membro novo”, todos olharam para ele, uma sensação terrível, antes de continuar, o homem de um longo gole de seu copo, “vou repassar as regras. Elas são poucas, não se preocupe. Primeiro, linha. Mantenha-se bem vestido quando estiver entre estas paredes”, ele abriu os braços e as indicou. “Vozes altas, baderna e vagabudangem de qualquer estirpe não serão toleradas e seu término será imediato. Segundo: discrição. Seja discreto sobre nossas reuniões ou não seremos discretos com o que você disser. E por último, seu primeiro dia, sua hora de falar.”
Um copo quadrado foi parar em suas mãos sem que ele percebesse. Olhou, confuso, para o copo em suas mãos e deu um pequeno gole, sentindo o bourbon descendo e queimando, um rio de lava, por onde passava. “É como Hemingway”, disse por fim, com um sorriso no canto da boca.
Os homens permaneceram calados, impassíveis diante o gracejo. “Como Hemingway?”, perguntou um velho sentado no fundo da enorme sala. Usava uma boina verde desbotada e tinha uma garrafa aberta ao lado.
“Sim... a bebida. Como em qualquer conversa importante nos livros dele, sempre tem a bebida.” Nenhuma palavra em retorno. Público difícil, pensou. “Não... eu não sei o que falar. Para dizer a verdade, eu não sei o que dizer, sequer sobre o que é esse clube!”
“O senhor não tem idéia sobre nossa tarefa?”, perguntou o velho.
“Tarefa? Como em ‘missão’? Isso é algum tipo de culto?”
O homem que falou em primeiro lugar deu uma risada, grave e profunda. “Culto? Não, meu jovem. Somos... Acumuladores. Você recebeu o cartão?”
Perguntas empilhavam em sua mente. “Sim, recebi o cartão e tirei o pó da minha melhor roupa e apareci na data indicada.”
“Então conte suas tristezas, jovem. Você provavelmente foi apontado por alguém que conheceu sua solidão ou tristeza ou pesar ou qualquer sentimento negativo que você possa ter. Por isso está aqui, para contar suas mazelas.”
“Contar minhas mazelas?”
“Pare de agir como um gravador. Você deve contar sua maior tristeza, aquilo que mais pesa em seu coração. Para isso estamos aqui.”
Ele considerou por alguns momentos. “Acho que não...”
“Senhor...”, o homem respondeu em um tom alterado. Parou e respirou profundamente antes de beber quase duas doses do whisky que tinha em suas mãos. “Estamos aqui para acumular os pesares que assolam os homens. Buda ensinou seus seguidores que viver é estar em constante sofrimento. Para isso estamos nesse lugar, meu caro. Dividir e compartilhar as feridas escondidas em sua alma. Acumular. Harry aqui”, apontou para o velho, “expulsou o filho de casa depois de uma briga. Eles tiveram uma discussão por causa dos hábitos... etílicos de-”
“Besteira!”, o velho interrompeu. “Eu sou um bêbado inútil, jovem. Meu filho me confrontou e perdeu, simples. Ele queria que eu parasse de beber, eu queria que ele sumisse da minha frente. Abri a porta de casa e apontei meu dedo para a rua. Assisti, com uma ponta de satisfação, enquanto ele, meu próprio filho, fazia as malas e saía de casa.” O velho parou e bebeu profundamente. Lágrimas caíam livremente de seus olhos. “Foi a última vez que o vi. Ele estava dirigindo, procurando um quarto de hotel para ficar por alguns dias quando um caminhão passou por cima do pequeno fusca. Dizem que um dos braços foi parar em outro quarteirão.” Ele se levantou e olhou para o novo membro dos Acumuladores. “O mais engraçado? O motorista do caminhão estava bêbado. Tão bêbado quanto um gambá, como diria a sabedoria popular. Karma, essa prostituta barata.”
O homem, o líder ele começava a acreditar, ergueu o copo. “Para Harry”, disse e bebeu novamente. Todos os outros ergueram seus respectivos copos e beberam; o bourbon desceu mais suave desta vez. No final, tudo se torna um pouco mais suportável, contemplou. Talvez fosse a atmosfera do lugar, talvez o olhar triste dos dezenove homens espalhados pelo clube. Havia, ele não podia negar, uma força misteriosa no coletivo que ajudava a tornar o que sentia em algo suportável. Não mais sentia a pressão sobre o peito, a dor angustiante que cercava suas memórias, conturbadas e confusas; a azia em seu estômago estava calma, apesar da bebida. Ele bebeu novamente. Tavez seja o álcool, tentou enganar-se.
“Minha esposa me deixou”, disse um homem, perto da árvore de natal. “Ela me traiu constantemente e eu sempre a perdoei. Ela chegava com aquele rosto de falso arrependimento e contava o que havia feito. De novo e de novo e de novo. Cada vez era uma ferida, uma ferida profunda, que sangrava em silêncio, em resiliente insistência. Com o passar do tempo eu me fechei em um casulo, cerquei-me dos livros e entrei nesse labirinto de palavras, correndo da memória, correndo de minha covardia e dos seus atos horríveis, escondido em outros mundos do meu passado.” Ele notou que o homem carregava um livro surrado nas mãos. “Aos poucos perdi minha humanidade, esse foi o ponto em que cheguei, tornei-me frio e distante. Um dia ela olhou, com o mesmo olhar que usava quando tinha que me contar uma de suas aventuras sexuais. ‘Estou te deixando’, ela disse sem qualquer cerimônia. ‘Você é a porra de um fantasma agora, uma casca do que era. Não vejo mais o homem que amei. Até o natal você está matando!’ Era meu papel ter gritado de volta, sei disso. Berrar com todo meu fôlego, apontar meu dedo para aqueles olhos negros, aqueles abismos que sugavam minha energia. Um fantasma eu virei. Uma casca. Simulacro do homem que um dia fui. Um acumulador.”
Um novo brinde. O bourbon vinha suave e rasgava sua tristeza em mil pedaços. Ah, ele acumulava há tempos, tinha sua parcela de contribuição para o clube, mais do que todos aqueles homens somados, acreditava. De repente, um manto de tristeza caiu sobre ele e ficar naquele lugar era quase insuportável. Foi uma virada repentina, completa e quase irreversível. Ele olhou para a árvore de natal – um galho seco e pintado de verde, com uma única bola vermelha pendurada com a ajuda de um barbante – e deixou o álcool abrir o caminho até suas memórias.
“...escutando?”
Olhou para o homem que falava com ele. “Desculpe, eu me perdi por um momento.”
“Estava explicando sobre nosso objetivo.”
“Ajudar a superar?”, ele perguntou, já sabendo a resposta.
“Não. Pelo contrário. Queremos estimular sua depressão, abrir as feridas que estiverem fechadas; alguns dizens que temos demônios presos em nossas cabeças e estão parcialmente certos: há demônios em nós, mas não estão preso, dançamos com eles. Estamos aqui reunídos para alcançar a Massa Crítica.”
“Massa crítica? A Massa crítica da física ou da socio-”
“Sim, uma Massa Crítica para a dor solitária. Buscamos o acúmulo máximo de sofrimento. Cada um dos homens nessa sala perdeu alguém ou foi traído ou perdeu todas as conquistas em um jogo de cartas. Alguns mais de um ítem da lista, mais de uma vez. Atropelou um mendigo e queimou o corpo? Jorge, que está servindo bebidas.” Um homem alto acenou. “Bolsa de valores? Aponte qualquer um e você terá grandes chances de acerto. Acumulamos dores até chegar ao ponto em que ela será auto-sustentável. Uma sociedade calcada em nossos piores sentimentos. Queremos ultrapassar a Massa Crítica e devolver para o mundo parte de nosso pesar, fazer do mundo um lugar, você sabe, pior ao menos uma vez, para variar.”
Ele podia sentir a bolha que envolvia o clube. Quase um ser vivo, uma consciência pulsante, sedenta por mais, gulosa por alimento. Uma hora aquela bolha iria explodir e o mundo seria consideravelmente pior, para a satisfação das dezenove pessoas, um ato de pura vilania e egoísmo; vingança cega, se assim quiser, caro leitor.
Mas ele também viu seu lugar entre eles, tão claro como as lembranças que o acordavam todas as noites, coberto de suor e lágrimas. Ele já fora bonito, hoje não passava de um homem pálido e magro, a pele quebradiça, os olhos sem vida e o pior, o espírito quebrado. O bourbon cantava em sua mente e a voz da sereia não é uma voz a ser ignorada.
“Eu estava certo”, disse depois de alguns minutos de reflexão, “é como no Hemingway. Tudo está conectado, todos somos parte de uma mesma realidade e nos encontramos presos à uma rede inacreditável de ação e reação. Cada homem faz a diferença, cada um de nós será uma ausência notada pela humanidade. O sino dobra por cada um de nós. Podemos influenciar os outros... mesmo que para o pior.”
Vinte, ele pensou, somo vinte.
Abriu a boca e acumulou.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Reza

Minha avó me ensinou a rezar. Como contas do rosário, repassava frase a frase de Ave Maria até que, um dia, aprendi. Orei muitas vezes por ela na época em que acreditava em um Deus magnânimo. Não por ela, exatamente, isso aconteceu somente depois do infarto, mas por causa dela.

Tempo depois, um amigo ensinou que eu não precisava repetir uma invocação para falar com o Divino. Desse dia em diante fundamentei que, se há um ser superior, e se as escrituras estão certas, ele é feito à minha imagem e semelhança. Meu Deus é Gordo, toma Coca-Cola, e joga damas com o Diabo, que continua o seu melhor amigo mas, por questão mercadológica, eles mantêm a disputa direita versus esquerda.

A imagem que concebi do Senhor foi a de um mestre. Não à toa ele tinha riso frouxo, bigode branco e, mesmo tendo enterrado um filho, ainda era capaz de sorrir. Concebi meu salvador na figura de um professor que, como explicita sua função, esteve comigo por pouco tempo, mas muito me ensinou.

A prece, a avó, Deus, o professor, vieram à tona porque hoje eu quis rezar. Depois de anos procedendo poucas palavras para o céu, eu quis rezar. Cruzei as mãos e comecei um discurso, como quem pede desculpas fajutas a um velho amigo pela inadimplência. Descobri ter simpatia pela cadência das palavras. Recordei quase rindo a dificuldade de algumas passagens rebuscadas. Então, rezei.

Nada mudou quando findei. Mas eu estava em paz. Estupidamente, eu entendi que não importava Deus. O que valia era o caminho, a maneira rimada ou prosaica de ser ciente de sua finitude para saborear o meio.

Demorei trinta anos para isso.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Valquírias


O Templário fincou a espada bastarda fundo na terra molhada e estudou as hordas de mouros que cortavam a península, tomando terras da cristandade em velocidade alarmante. Eles eram muitos, de proporções bíblicas e não havia defesa cristã organizada para enfrentar a tempestade que se aproximava. Precisavam de cada homem, cada menino capaz de portar uma lâmina afiada contra a garganta suja dos invasores. Vê-los caminhando, marchando, contra as montanhas e planícies ibéricas revoltava as entranhas do velho templário.
Como Leônidas, os templários iriam barrar os infiéis até que novas forças chegassem da França e do Sacro Império Romano, prontos para servir como sacrifício em nome de um bem maior. A bondade intrínseca dos homens seria suficiente para vencer, no final das contas.
Puxou a arma de volta e limpou a terra suja da lâmina. O templário estava pronto para a batalha. Seu coração estava calmo como um lago no Éden; os músculos, sedentos por justiça e sua fúria, afiada pela próprias convicções. O templário liderou as colunas dos Cavaleiros de Cristo contra as paredes mouras, correndo na grama que logo estaria tingida pelo vermelho, cortando a pele marrom do inimigo invasor.
O corte de sua espada era certeiro e o Templário se mostrou uma perfeita máquina de guerra. O arco que formava com a lâmina larga derrubava dois, três inimigos por vez; a armadura completa concedia a proteção que precisava. Os inimigos ameaçavam uma retirada. Ele não os deixaria escapar: mouros tinham a péssima tática de recuar e reagrupar: os homens que fugissem daquele campo de batalha incorporariam outros exércitos e mais sangue cristão seria derramado naquela terra abençoada. Não, a península seria novamente dos homens de bem, nenhum homem escaparia do Juízo.
“Flaquear!”, gritou com a voz profunda. O porta-bandeira deu o sinal para a manobra e ele viu parte da cavalaria se movimentar para a esquerda, formando um largo círculo para esmagar os infiéis. Com a ajuda preciosa dos cavalos os templários rapidamente cercaram os inimigos e minaram suas forças, atacando em ambos os lados. Ele formava ataques em crescente frenesi, decapitando mouros, decepando mão, braços e pernas. Sua fúria estava canalizada pela Fé e o aço mordia fundo, sem piedade. Dez, vinte, trinta homens caíram por sua espada e a ainda a força se negava escapar dos braços musculosos. A fadiga não encontrava espaço em seu espírito. O templário fazia seu trabalho.
De repente, como o trovão que anuncia a turbulência da tempestade, a corneta tocou, aguda e rouca, desesperada. O velho Templário derrubou mais um infiel e olhou ao redor. Homens se abraçavam em embate voraz por todos os lados e além, além do mar de carne que se despedaçava em uma guerra sem sentido - guiada por crenças distintas e incompatíveis, moldada pela intolerância e pela busca por terras férteis – a terra tremia com a corrida de milhares de mouros. Em poucos minutos eles estava cercados por centenas de cimitarras e flechas que percorriam os céus em um arco ameaçador.
Três anéis se formaram no campo de batalha e os templários se tornaram flanqueados.
Buscando cegamente por um ponto fraco na defesa do velho Templário, uma flecha rasgou a cota de malha em seu ponto mais vulnerável e se fincou na omoplata tensa. Cada movimento causava uma onda de dor, cada descer da espada bastarda se tornava mais pesado. O peso da batalha mudava de lado; tão rápido quanto pareciam cavalgar para a vitória, o espírito templário foi quebrado pelo fio de cimitarras. Os homens de Cristo caíam ou, pior, fugiam em um ato de covardia condenatória. Não ele. Morreria na glória do combate. Templários, os primeiros a entrar no campo de batalha; últimos a se retirar. Aqueles que morriam pelo nome do Senhor estariam em Sua divina graça, bem sabia. Ele teria seu lugar no Paraíso, ao lado do Senhor e de todos os santos.
Um, dois, três golpes, três mouros mortos. Um, dois, três golpes, cada vez mais pesado; um, dois, três, os ossos não eram mais quebrados com a força de seus golpes, a carne não mais rompia diante o fio da espada agora cega; uma, duas, três vezes ele sentiu a lâmina fria dos infiéis em seu corpo. Uma rápida explosão em seu pescoço e o mundo girou, até que nada mais existia.
Apenas a escuridão.
O velho flutuava nos mistérios que tinham lugar além da linha da vida.
Seguia o nada, suas mãos buscando apenas o vazio, o nada... o nada... até sentir a pele macia de um carneiro. Um cheiro invadiu suas narinas e ele pensou se a cabeça estava presa ao resto do corpo. Um odor doce, acre e penetrante. Uma sensação macia e sedosa no corpo nu. Dedos, mãos.
O velho forçou um dos olhos e o abriu. Uma explosão de cor, como jamais havia visto, pintou o cenário de onde estava.
Uma tenda. Risos. O perfume de cabelos bem lavados.
Olhou ao redor e viu que estava deitado na pele de seis carneiros, uma mesa com as frutas mais belas que poderiam existir dividia espaço com diversos incensos que queimavam pacificamente. Estava cercado por mulheres, todas de uma beleza digna dos melhores poemas e das mais lindas canções, seios fartos e largos quadris, o doce cheiro que exalava de suas peles o lembrava de pêssegos e canela; mãos apertavam a carne cansada e calejada, procurando por seus braços e pernas, buscando por sua intimidade sedenta pelo toque.
“On – onde estou?”, perguntou.
“Na terra prometida, bravo guerreiro. Em seu lugar conquistado pela bravura indômita, no Oásis do Único e Verdadeiro Deus”, uma delas respondeu, roçando os seios em suas pernas.
Olhou, ainda mais confuso para as setenta virgens. “Mas eu morri em combate contra o... o inimigo! O Paraíso é meu direito!”
A mulher, de estonteante beleza, massageava as pernas do velho enquanto falava. “Eis o seu paraíso”, ela respondeu, “sua tenda no Oásis divino, as setenta mulheres criadas apenas para você e a eternidade para usufruir de todos os prazeres que existem.”
“Não!”, gritou e se levantou, jogando duas mulheres para longe. “Eu quero o verdadeiro Paraíso, aquilo que me prometeram toda minha vida!”
“Ah”, ela disse em entendimento do que ele falava, “você busca a dignidade dos guerreiros. Muitos preferem este outro lugar renegando os prazeres da luxúria, humano. Vá, vá para seu povo e para seu destino, esqueça nosso lugar, renegue nosso toque”, apontava para o único rasgo na enorme tenda.
O templário andou, nú, até a o rasgo e se virou uma última vez, estudando a beleza imensurável das setenta mulheres, reprimindo a luxúria que tentava tomar conta de sua resiliente vontade. Algumas pessoas seriam capazes de matar pelas frutas na mesa.
Atravessou a entrada, renegou definitivamente os prazeres da carne e se dirigiu para o Paraíso prometido pela mulher.
Apenas um passo e a tenda, juntamente com as frutas, as peles de carneiros e as virgens desapareceram, abrindo espaço para centenas de gargalhadas e arrotos.
Subitamente, vestia uma armadura de batalha, endornada por peles de carneiro, portava um machado feito com ossos e metal. Milhares de homens banqueteavam-se da carne vermelha e vinho.
O templário virou-se, procurando pela entrada para a tenda, mas encontrou apenas ar.
Uma enorme caneca de vinho caiu sobre suas mãos.
“Bem vindo ao Valhalla, guerreiro!”, duas mulheres, gordas, gigantescas, cantaram.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Fernando e Natália

Estávamos na segunda ou terceira semana do novo emprego, voltando para nossas casas a noite. Caminhávamos por um trecho que me lembro muito bem: Dutra paralela com a Sete de Setembro e Prudente de Morais.

A ocasião não me recordo com precisão. Poderíamos estar falando de mulheres, sempre falavamos sobre mulheres. Filosofando sobre a vida. O que foi importante é que disse para Fernando: você não encontra motivos para mudar, então, sempre será essa pessoa infeliz. Hoje as palavras pesam em meu coração como uma maldição. Seis anos depois, sinto que ele continua o mesmo, mais responsável, mas igual nos defeitos.

Em alguns pontos, quebrei barreiras que ele não conseguiu. Fernando se prendeu em uma história de amor, eu deixei sangrar muitas delas. Quem é capaz de esconder sua tristeza é ainda mais infeliz. Ajudaria se me pedisse. Mas nunca compartilha seus sentimentos. E não cabe a mim remover camadas que ele mesmo inseriu na vida.

Quando Fernando e Natália se separaram algumas amigos insistiram que deveriam ter mantido a relação. Perguntavam de um retorno, talvez pelo costume de vê-los juntos. Minha opinião sobre o caso é que ele era feliz. Ela parecia também. Porém, novos demais enfiaram espinhos profundos em um e outro.

Mas, ainda estão ai. Há doze anos se conhecem, dez deles separados. Ele em vazio. Ela após três namorados. Tento compreender quais são suas motivações para nunca ter se envolvido com outra mulher. A mesma timidez juvenil que ainda persiste em estar presente?

O homem fez trinta e um anos. Tem coração de ouro, cuida da mãe, mas não parece que tem domínio de si. Como se vivesse subjugado. Não que isso transpareça com a maneira que lida com quem está a sua volta. Digo isso pois o conheço.

Não sei se após esse anos Fernando mente ao me dizer que se importa com Natália. Que ainda se importa com ela ou tem um sentimento vivo. Depois de três anos cuidando dela como a única mulher do mundo, pode ser que ele se esqueceu de outra maneira de trata-la.

Não quero soar agressivo. Adquiri maturidade suficiente para me depreender de relações desequilibradas ou aquelas que contém um passado nostálgico do que um presente vivo. Afinal, o que os liga ainda hoje e os mantém próximos? Não sei quem seria capaz de, a essa altura, defender o discurso íntegro da amizade acima do bem e o do mal. Pouco se falam, mas não se deixam para trás. Como se convencidos a escolher uma pessoa como sua, aquela que não será desagarrada em nenhum momento. Parece nobre, mas tão frágil. Um homem que não desiste de alguém não faz necessariamente a escolha correta.

Quando nos conhecemos conversamos sobre sua maneira de ser. Um adolescente, na época, que acreditava nas pessoas e não desistia em vão. Ao mesmo tempo que sei quanto desistiu de seus sonhos. Portanto, não compreendo porque Natália é tão especial, tão significativa hoje além do passado tortuoso.

Eles estão juntos pela proximidade. Pela constatação de que mesmo sem nenhum assunto em comum não vão se deixar. Estarão presentes um para o outro como um pacto silencioso entre humanos. Pelo apelo de não ficarem completamente sós.

Por isso, acho que ainda terminarão juntos novamente. O tempo progride, voltas do parafuso cada vez mais doloridas e, no fundo, só se separarão com a morte. Ela aceitará seu carinho como o único homem, além do pai, que não a abandonou. Ele retomará a relação no ponto de onde pararam, na curva do futuro em que o carro começava a sair da pista. Imagino que se aproximaram pelo medo de perder a única pessoa que lhes mantém afeto,.

Durante esses doze anos, esperei que um dia fosse possível compreender que se tornaram diferentes. Que depois de perdas se recompuseram melhores. Mas tudo estava igual. Como há um ano. Semelhante a dois. Emparedado como Antígona há mil anos. Por isso, nunca se deixarão.

Foi quando eu soube que eles envelheceriam um ao lado do outro. A margem de algum abismo.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Lá e de volta outra vez.


Quando entramos na sala quase começava o A Sociedade do Anel, conhecíamos pouco um do outro. Assistimos o filme sem igualmente conhecer muito sobre o universo de Arda e ainda menos sobre o que esperar do resto do dia. Era nossa segunda hora de conhecimento mútuo; as primeiras palavras trocadas na fila do cinema, onde eu estava atrás dela, entre um elfo e um hobbit gordo e cheirando suor.
“Você não veio fantasiado”, ela constatou.
“Está errada, senhorita”, respondi fazendo um leve gesto com a mão, tentando manter um ar élfico - ao menos até onde tal coisa é possível - “sou um elfo, mas estou vestido de humano.” Coloquei as duas mãos sobre as orelhas, tentando esconder as orelhas pontudas. Ela sorriu, um sorriso estranho quase como um soluço. O hobbit atrás dela girou os olhos. “Leu o livro?”
“Não, mas amo cinema. Não sei o que esperar, nunca li uma palavra dos livros.”
Eu também não tinha aberto o livro uma vez sequer, mas estava naquela fila para ficar por dentro das conversas no escritório, nada poderia me preparar para o que estava para começar.
Nossos queixos ficaram, quase que literalmente, caídos durante todo o filme. Foram mais de três horas de suspense e fantasia pura, mãos entrelaçadas e trocas de olhares. Naquela noite, fizemos amor pela primeira vez e nos apaixonamos. Foi algo que nos atingiu com a sutileza de um meteoro caindo sobre a Terra… não, foi com a sutileza do Melancolia, aquele planeta que destrói a Terra naquele filme. Existíamos apenas para nossos corpos e mentes, aos poucos queimamos tudo: amigos, emprego, moderação. O tipo de bolha que formamos e não percebemo o quanto somos egoístas, esquecendo de todo o resto, de tudo aquilo que importava.
Tudo, menos a Terra Média.
Compramos e trocamos os três livros, devoramos cada página do épico de mais de mil páginas. Três vezes. Eu destacava as passagens que mais gostava e ela as lia em voz alta, depois de ler, com direito à interpretação, as falas do Gandalf. Ela amava as palavras daquele que trazia problemas.
Estávamos em uma espiral tão profundo que nunca percebemos o quão longa da superfície havíamos viajado.

Depois veio As Duas Torres. Dessa vez, enfrentamos a fila para a primeira sessão, de madrugada. Ela tinha os cabelos prateados e eu usava uma imitação dos pés peludos dos halflings. Eu fazia caretas para as mudanças do roteiro e ela sussurrava cada fala de Gandalf.
Nosso relacionamento, assim como a trilogia, alcançava o ponto agridoce do segundo ato, quando todo o cenário está posto e não há alternativa, tirando continuar caminhando ate o fim. O corpo dela era um território conhecido e explorado e praticamente não havia novidades; lugar confortável, receptivo. Qualquer sinal de cansaço passava despercebido e os telefonemas que ela atendia depois de sair do quarto foram completamente ignorados.
Tudo estava indo bem na Terra Média, eu acreditava.

Durante o Retorno do Rei nossas mãos nunca se tocaram. Quase não dialogávamos e nosso relacionamento se resumia apenas nas noites de sexo. Fazíamos amor de forma fria, distante. Apenas pelo orgasmo, sem qualquer sentimento. Enquanto a saga que coroou nosso amor chegava ao ápice, havíamos atingido o nadir pessoal.
Ela era uma pessoa praticamente desconhecida, fechada para qualquer investida de minha parte. Não respondia mais minhas mensagens ou respondia minhas perguntas. Ficava quase uma semana sem aparecer. Começou a fumar e a se refugiar em festas, muitas vezes acordando sem qualquer memória do que tinha acontecido na noite anterior, enchia minha caixa de mensagens com vergonha e arrependimento, para depois lançar olhares de desprezo e superioridade.
Arrumou outros amigos e logo não estava mais falando comigo.
Lia outros livros, que desapareciam antes que eu pudesse ler uma única linha.
Assistia aos filmes sem perguntar se eu queria ir junto, saía para longas horas de caminhada no meio do dia.
A distância se tornou intransponível.
Eu me transformei em passado.

Quase uma década depois, eu escrevo isso no meu tablet, equilibrado sobre um livro do George R. R. Martin. Estou agora na fila para comprar minha entrada para a sala 8, O Hobbit. Estou usando barba falsa, uma armadura pesada que me custou dois meses de salário e vinte semanas de meu precioso tempo, além da peruca ruiva. Ela está na minha frente, mas não me reconheceu, por baixo de toda a fantasia. Está usando uma blusa curta, com dois esqueletos se abraçando; meia-calça rasgada e sombras negras ao redor dos olhos.
Meu coração está saindo pela minha boca, literalmente: acho que estou sentindo gosto de sangue.
Claro que tive meus anos perdidos por causa dessa mulher. Cheguei ao fundo do posso. Catatônico. Bêbado. Perdido. Vagabundo e ainda mais adjetivos. Escolha algo degradante; eu fui, mas retornei, voltei a andar com minhas pernas.
Ainda assim, meu corpo se inunda com algo incontrolável nesse momento.
Imbecil. Eu me odeio.

Não. Passou. Finalmente, não sinto mais nada. Estou livre. ‘Liberdaaaaaaaaaaade’, como gritou William Wallace.
Ela chegou na bilheteria e disse: “Um para o Amanhecer parte dois, por favor.”

Vaca.


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A Mancha

Há uma mancha de sangue no chão da cozinha. A cor escarlate se destaca no azulejo branco. Tem aproximadamente três centímetros, um pouco disforme nas extremidades, mais avermelhado no centro. Foi um corte que fiz há três dias.

Parafusava um aparelho com o canivete. Com a força que fiz, a lâmina tentou voltar ao seu lugar. Um dos serrilhados penetrou em meu dedão, pequeno talho de meio centímetro.

O corte se avermelhou. Aos poucos, gotas começaram a cair na palma de minha mão. Pensei, dessa maneira, um após o outro. Sangue tem uma coloração bonita. Sua pressão vai cair agora. Foi o que aconteceu.

No banheiro, deixei que água escorresse sob o corte e a mão, limpando-a do sangue. Fui a cozinha a procura de um copo d´ água para melhorar, já trêmulo, sem sentir minhas pernas. Lembro-me do copo no filtro, do gole que dei e da dor em minha lombar, do lado esquerdo. Eu havia caído no chão, perdido a consciência momentaneamente.

Deitado, olhei minha ferida. Formigas caminhavam ao meu lado, sem consciência de minha queda. Apoiei as costas no chão, ofegante. Pensei nela. Me vi morto no chão, o telefone tocando sem parar para ela me encontrar, um dia depois. Um telefone foi meu pensamento. Nem que eu me arrasta-se até ele tinha que avisa-la que esse estúpido corte não me deixaria bem. Estava acordado há quatro horas, morto de fome sem nada comer. Obsessivamente quis arrumar aquele aparelho. Sem as ferramentes certas fiz do canivete meu aliado. Um amigo errado para a ocasião.

No chão tudo se estabilizou. De repente, ouvi o barulho da pia do banheiro. Não me recordava que a torneira estivera ligada. Levantei-me para desliga-la e compreendi melhor o que aconteceu. Cai derrubando a mesa do filtro que tombou na parede, fazendo com que água escorresse no chão, e também empurrando a geladeira que se moveu para o lado, dando me espaço.

Olhei minha mão. Queria rir por causa deste pequeno corte e da tarde faminta. Mas me sentia atordoado. Passei os próximos dias deixando a cozinha com os mesmos vestígios. Encontrei manchas de sangue no caminho, gostas escorrendo do meu corte a cada passo. E lá estava aquele belo respingo, seco, ainda vivo pela cor, como uma lembrança.

Não sou G. H. Não quero reencontrar o lado primitivo de meu ser, lamber a marca de sangue deixada no chão. Só não consigo tirá-la de lá. Como um sinal formado pelo acaso. A referência de minha queda literal.

Aquela marca de sangue parecia me avisar de que ainda estou vivo. Retirá-la me pareceu insensato, como se matasse a recordação de minha fragilidade humana, invariavelmente, propensa a quedas.

22 de Novembro de 2012

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

bachiana

- Minha mão direita está gelada. Consigo ouvir o som do cachorro bebendo água lá na cozinha. Há estrelas no céu. A garrafa d'água está vazia. Um pinheiro de Natal, por sobre a mesa, não tem enfeites. Meus enfeites, contas, sementes espalham-se na mesma mesa do pinheiro plastificado. Aparelhos eletrônicos em suas tomadas, em suas entradas, usb, chapéu esperando cobrir a cabeça no topo da pilha de velhas revistas de psicologia analítica. A garrafa d'água está vazia. O cachorro já não bebe água, e agora patinha passeia se coça e tromba com a porta do corredor. Minha mão direita começa a esquentar. A esquerda, apoiada demais no teclado, machuca um pouco do lado, pra perto do dedo menor. Alguém sobe as escadas. Tento relaxar o braço esquerdo. O cachorro late insuportavelmente agudo. Relaxo o braço, desafogo a mão do teclado, atento à tensão pelo corpo. Cachorro continua latindo, e a garrafa continua vazia. Ela nunca vai se encher sozinha. O cão, ao menos, já parou. Os mecanismos internos do meu computador soam como grilos em noite fria enluarada. Noite de hoje. Grilos no HD, geladeira acionando o motor que gera o caos. Frio. O frio da minha mão direita foi embora, o frio de lá fora talvez não. A geladeira canta grilos coaxa sapos e talvez esfrie a noite. O inverno é culpa dessa minha geladeira. Cachorro se coça. Eu não; somente escrevo. A cada batelada, a cada tecla pressionada deste texto eu movo a mesa, e o candelabro faz barulho de cair. A garrafa vazia não vai se encher sozinha, o som da mesa balançando a vela não vai parar até que o texto encerre, não tenho porquê falar com travessão se não é conversa, e já que ninguém protesta vou lá buscar água. Que ainda não está na garrafa.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Poeira e Memória


Quando cheguei em casa, segui o ritual. Despejei as sacolas que carregava em um canto da pia, abri a geladeira e alcancei a lata de cerveja mais gelada e retirei o peixe crú; separei arroz, cebola, tomate e dentes de alho. Olhei para o relógio e ignorei o início da madrugada. Eu não poderia esperar os horários das pessoas normais, seguindo a vida que levava para pagar as contas que se acumulavam na pequena mesa da cozinha. Tinha de trabalhar, não é? Esse é o ritmo normal das pessoas que se formavam em minha área de estudo: deixar de lado o diploma e iniciar uma carreira em algum emprego desumano. Puxei a camisa preta de dentro de minhas calças e abri a cerveja, sentindo-me imediatamente mais relaxado. Apertei um botão no rádio e Since I’ve Been Loving You, do Led Zeppelin começou lentamente. Antes de começar a preparar meu jantar, como todas as noites, notei que havia esquecido a porta aberta. Não sou o tipo de pessoa neurótica com segurança, mas gosto de manter minha integridade física e não sou ingênuo a ponto de pensar que todas as pessoas são boas. Há o tipo como eu, calmo e quieto, introspectivo e pensativo; mas também existe o indivíduo capaz de enforcar, sufocar, esfaquear e picotar pessoas exatamente como eu.
Andei até a porta e coloquei as duas mãos sobre a madeira para fechá-la, quando um pé surgiu entre a porta e a parede, quebrando meu movimento completamente. Como uma criança que se vê surpreendida por um carro em alta velocidade, eu fiz o mais sensato e condizente com o instinto de preservação: fiquei completamente paralisado pelo aparecimento súbito do membro estranho: era um pé feminino, calçado em um sapato que provavelmente custaria três meses de meu salário e de unhas bem feitas, pintadas com um vermelho vivo.
“Olá?”, a voz surgiu do outro lado da porta.
Puxei a madeira e vi o resto do pé. Ela tinha cabelos compridos, naturalmente ruivos e olhos escuros, escuros como o abismo que atormentava Nietzsche toda vez que ele o encarava. “Pois não?”, tentei manter a naturalidade e provavelmente falhei miseravelmente.
Ela colocou um dedo sobre o queixo e perguntou se podia entrar. Abri espaço para ela passar e limitei-me a esperar, calado, enquanto ela deixava a bolsa do lado de minhas contas e estudasse o pequeno apartamento. “Quer algo para beber?”
“Uma estranha aparece”, ele checou o relógio de pulso, “à meia-noite e quinze sem qualquer aviso e a primeira coisa que você faz é oferecer bebida?”
Concordei com a cabeça. “Se você vai ficar por aqui, é o mínimo que eu poderia fazer.”
Um sorriso cresceu, lentamente, em seu rosto. “O que você tem?”
“Nada muito ostensivo. Água, cerveja… um suco, talvez.” Abri a geladeira. “Não. Água e cerveja. Ah, um vinho.”
“O vinho.”
“O vinho.” Retirei a rolha e servi o líquido vermelho em uma taça. “Você estava na festa”, afirmei.
“Sim.” Deu um pequeno gole e olhou, com desprezo, para o rótulo.
“Não foi a melhor safra”, desculpei-me.
Ela ignorou o vinho barato e continuou, encostando o corpo perto de onde eu estava: “Não me deixe atrapalhar, pode continuar o que você estava fazendo. Sim, estava na festa.”
“E você me seguiu.”
“E eu te segui. Boa música, o que é isso?”
Estava cortando uma cebola, quando a faca escapou de minha mão e quase arranquei um naco do meu próprio dedo. “Você não conhece Led Zeppelin?”
“Led Zeppelin… Stairway to Heaven?”
“Não me diga que só conhece essa música deles.” Ela me olhou com uma expressão vazia no rosto. “Meu Deus, você só conhece Stairway to Heaven. Foi para isso que você veio? Conhecer o principal pilar da música ocidental?”
Sorriu novamente. Seu rosto ficava perfeito quando ela sorria, mostrando todos os dentes da frente. “Eu vim… eu vim porque te achei interessante.”
“E como eu poderia ser interessante? Quero dizer… olhe para mim, chegando em casa no meio da noite, depois de horas servindo bebidas e comidas para pessoas estranhas que sequer notaram meu rosto, com uma carreira como jornalista esquecida em qualquer ponto do passado e sem qualquer perspectiva concreta à frente. O que uma mulher como você poderia ver de interessante em mim?”, parei novamente de cortar a cebola e cruzei os braços, olhando para ela profundamente.
“Não tente polarizar as pessoas assim. ‘Uma mulher como você’”, ela me fez soar como um imbecil, “Somos todos humanos iguais, defeitos e qualidades. Não importa se você me serviu comida em uma festa ou se me pediu uma dança, todos somos iguais. Você chamou minha atenção, só isso. Pareceu um cara legal no meio de toda a conversa enfadonha na qual eu agonizava lentamente. Odeio essas festas, odeio com todo meu coração.”
“Então não vá! Fique em casa, ou vá dançar, como todas as outras…”
“Eu não gosto de dançar. Não vejo o ponto de balançar os braços e pernas para alguma música idiota, sem sentido. Fico completamente sem graça nas pistas de dança. E faltar nessas festas… simplesmente não é uma opção. Você quer alguma ajuda?”, bebeu mais vinho e dessa vez pareceu apreciar o sabor.
“Pegue outra faca na terceira gaveta e corte esses tomate.” Coloquei o arroz na panela e comecei a fritar a cebola. A quarta música do Led Zeppelin começava, Kashmir. “Já que você não gosta dessas festas obrigatórias e de danças, você resolveu me seguir?”
“Exatamente. Estou presa em um mundo de fachadas e superficialidades, uma espécie de mulher troféu, um robô programado para acenar, sorrir e ser agradável. Vim à procura de uma conversa de verdade, uma companhia real. E veja: eu cheguei, entrei e agora estamos conversando, como dois seres humanos normais, enquanto preparamos uma refeição juntos. Essa é provavelmente minha primeira conversa de pia.”
“Conversa de pia?”
“É. Não estamos sentados em um sofá caro, tomando cuidado com a postura e bebericando café feito por empregados mal pagos. Engraçado pensar que é a primeira vez que falo com alguém enquanto sujo minha mão de tomate!” Olhei para a tábua de vidro e vi o tomate fatiado sem qualquer uniformidade, fatias tortas e desproporcionadas. O corte mais sincero que ela poderia fazer.
Ela não parecia uma pessoa estranha. Era mais uma garota da alta sociedade que estava submersa em um mundo isolado da realidade, povoando uma existência dividida em carros de luxo e festas absurdas, verdadeiros festivais de bizarrices e exageros. Uma vida que muitos não hesitariam em pular e mergulhar até não sobrar qualquer traço de suas personalidades, mesclando suas individualidades em um enorme teatro regida por vodka e drogas.
“Eu te reconheci de hoje”, confessei. “Seu rosto era o único que não tinha um sorriso predatório estampado, a única mulher fora das pistas de dança, quem sabe o tipo de pessoa que prefere conversar por horas e não ficar pulando música após música, até os pés sangrarem.”
“Não, sem sangue nos meus dedos, muito obrigada. Eu segui o seu carro até aqui. Quando te vi, sabia que seria interessante conversar com você, mas como poderíamos ter uma conversa longe de todas aquelas vozes que cuspiam palavras vazia? Você me pareceu um cara legal e queria te conhecer, nada muito estranho.”
“Nada estranho? E se eu for uma pessoa violenta… um psicopata ou algo do gênero?”
“Você é?”
“Não, claro que não. Mas se fosse não diria, certo?”
Ela estudou meu rosto e eu a olhei de volta. O abismo encara de volta, percebi.
“Acho que vou ter que arriscar minhas chances. Preciso de novos pensamentos, conhecer pessoas e falar de outras coisas. Aprender sobre Led Zeppelin.”
“Definitivamente.”
Cortamos cebola, alho e tomate. Esperamos o arroz ficar pronto e temperamos o peixe.
“Coloque o peixe na frigideira, por favor. Obrigado. E sobre o que você quer falar?”
“Qualquer coisa.”
“Como, qualquer coisa?”
“Um assunto qualquer, oras.”
“Eu não consigo pensar assim. Precisamos de um fio condutor, um tópico para seguir, uma trama principal para essa história.”
“Não seja bobo, não estamos em uma história. Não temos uma trama principal, apenas uma costura confusa sem começo, meio ou fim, sem propósito e sem sustento. A vida é assim. Minha vida é assim, a sua também. Qual o propósito de servir comida para pessoas que provavelmente iriam te odiar enquanto você poderia estar fazendo o que ama?”
“Pagar as contas?”
“Você poderia pagar as contas como jornalista. E não estaria fritando peixe de madrugada. A vida das pessoas raramente tem um propósito. Não há sentido, meio ou fim explicativos. As coisas simplesmente acontecem e mudam ou acabam. É assim, e não podemos mudar, apenas seguir com nossos cotidiano. Até que ele se acabe, ate que nada sobre, apenas poeira e memória.”
“E há algum sentido para você estar aqui, ao meu lado, enquanto frito peixe de madrugada?”
Ela ponderou. “Acho que não preciso de um propósito. A resposta mais sincera é que quero estar aqui, com você. Um relance de uma outra vida, quem sabe. Um espiada fora da bolha, na esperança de que ela finalmente se rompa.”
Tirei a bolsa e as contas da mesa, coloquei uma toalha limpa, dois pratos, talheres e duas taças. Quando terminei de fritar o peixe com cebola e alho, montei os dois pratos e comemos com calma, aproveitando a conversa e a música.
Não havia sentido na visita inesperada daquela mulher. Apenas um início. Ela comeu o peixe que preparamos juntos, aprendeu sobre rock inglês enquanto fazíamos amor e desapareceu na manhã seguinte. O único indício de sua existência eram os pratos sujos na pia e alguns fios do cabelo vermelho.
Como numa colcha de infinitos retalhos, ela se perdeu na confusão de costuras e fios que eram meus dias, deixando para trás apenas o absurdo de se conhecer apenas uma música do Led Zeppelin.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Cento e Oitenta Minutos

“E vamos terminar inventando uma nova canção,
 nem que seja uma outra versão
 pra tentar entender que acabou”
 Tudo Novo de Novo, Paulinho Moska.

Ela passou duas horas chorosas tentando extrair de mim uma afirmação inexistente. Nada iria ficar bem, não para nós. O tumor que engolimos faria até nossos vermes se corroerem. Investida depois de investida, ela repetia as mesmas palavras alterando apenas as formas. Primeiro, de maneira branda, depois saudosa, raivosa, irritada, chorosa, o diabo. Depois da sétima bravata decidi dizer a verdade que eu tentava poupa-la.

Nesse momento, e somente percebi quando o revi mentalmente, eu abusava de sua fé. Se encerrasse o fim duas horas antes teria me poupado do teatro, de mais lágrimas, mas talvez não tivesse satisfação. Precisei vê-la chorar.

Alguns me chamarão de sádico. Minha defesa é argumentar que nem mesmo sei que por que quis rir. Como um jovem que se torna sedutor e conquista o carisma da garota popular. Lembrei-me de uma crônica que escrevi para um jornal sobre um reencontro de dois colegas de escola. O embate da história era o viés da vida, ele bem sucedido e ela sem a beleza juvenil. A inversão provocava o embate. Eu deveria estar me vingando de alguém quando o escrevi.

 Na segunda hora de lágrimas me sentia cético. Os anos degringolam-se de uma maneira tão rápida que, se não tivermos um parâmetro, uma certeza de irmos de um ponto a outro, temos a sensação de estarmos rumo a algo sem fim. Quero dizer que nem saberia ao certo se sentiria sua falta por si só ou pela falta de sua presença, do costume de estar sempre vendo televisão enquanto eu tentava me comunicar.

Na casa agora vazia, caminho por cada cômodo tentando resgatar suas ações cotidianas. Tentando vê-la como um ser etéreo, dessas imagens cinematográficas, que quando passam por nós se esvaem. Mas tudo que há na casa é silêncio e gosto disso.

Queria poder desliga-la como faço com a televisão. Meu silêncio a fez avançar, etapa por etapa, rumo ao descobrimento. Eu não queria expor seus erros. Quis que soubesse por si própria.

Então, eu lhe disse. Não fui eu. Mas ela sabia. Ela sabia quem era, conhecia seus limites, reconhecia o vício em caminhar em círculos e a incapacidade de ver o novo em uma mesma trilha.

Tentei esconder a verdade o máximo que pude. Não, deixe-me reformular: tentei evitar a verdade de que não mais a amava o máximo que pude esperando que ela reconhecesse que não foi a melhor, nem a maior por causa de seus próprio limites.

Sua ausência me deu mais espaço para arrumar minhas estantes.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

não tenho nada com isso

- E aí, quando a gente passava do segundo pro terceiro andar - acho -, vi o Arnaldo Baptista subindo junto. Ele e a Lucinha Lins.

- Lucinha Lins?

- Lucinha Lins, a mulher dele.

- Hm...

- Enfim, vi o lóki subindo lá, quase junto comigo - um pouco atrás, pra ser preciso - e na mesmíssima hora voltei pra abraçar o bicho.

- Que da hora. E ele, o que fez?

- Me abraçou também, cara, foi isso aí. Eu disse que ele era gente boa: na hora em que eu disse "Arnaldo, lóki, malandro velho" ele abriu um sorrisão. Foi mó demais, cara, sério mesmo.

Jukebox tocava o que tinha de tocar.

- Mas e aí, pegou um autógrafo e caiu fora?

- Pô bicho, que nada! Depois a gente ainda foi andando junto, batendo um papo. O Arnaldo até chegou a me dar umas dicas, velho.

- Sério? Que massa. Sobre música?

- Nada; sobre mulheres!

- Demais...

Mais uma cerveja, depois outra, depois um suco de laranja. Quase silêncio.

- Barbosa!

- Como?

- Lucinha Lins porra nenhuma, mané. A mulher do Arnaldão chama Lucinha Barbosa.

- Ah...

Agora sim, silêncio inteiro.


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Jogo dos deuses - Parte 2


Crale apontou dois dedos para Dargius, acumulando energia vital na ponta de suas unhas. A maga liberou, sentindo um leve formigamento na mão esticada, o encantamento e viu dois pequenos feixes de luz piscarem na direção do guerreiro.
Dargius agachou-se com velocidade impressionante, mas não rápido o suficiente para  desviar da força arcana disparada contra ele. Sentiu o impacto quebrar duas costelas esquerdas e deixou o corpo tombar para o lado, caindo com o rosto sobre uma das raízes que se erguiam da terra. “Você não quer fazer isso”, ele disse com uma voz surpreendentemente segura. Podia sentir o segundo ataque sendo preparado. “Crale, há alguma coisa lá embaixo clamando por nós e não podemos ignorar.”
“Nós devemos ignorar assuntos que nos desviem das ruínas, Dargius. Foram as ordens reais!”, ela gritou de volta. Em seus dedos, outra magia acumulava força. Em seu íntimo, tentava acalmar-se. Nada de bom surgiria de um luta entre os dois.
“Chega, vocês dois”, Rasg comandou. Ironicamente, nos momentos de maior indecisão e impasse, o bárbaro era o que chegava mais perto da razão. Rasg transformava-se sempre que uma tempestade atingia o grupo, mantendo a calma e tomando as melhores decisões prováveis. Era o completo oposto do monstro letal em batalha. “Eu não sei se você irá conosco”, disse para Crale, “não posso continuar sem minha espada e aquela bosta de aranha está em algum lugar aí dentro.” Olharam para cima e viram um buraco no casco da gigantesca árvore. A aranha com a espada cravada em seu exoesqueleto havia desaparecido de vista. “Sem mencionar o nosso Rastreador”, dirigiu um olhar cerrado para Dargius.
O guerreiro ficou sobre as próprias pernas e apalpou a região atingida, sem realizar esforços para esconder a dor. Andou devagar até o buraco pelo qual havia jogado Telassa e olhou para baixo. “Telassa!”, gritou e esperou pela resposta do Rastreador.
Dargius!
A palavra explodiu em seu cérebro e ele deu um pulo para trás, o coração batendo como um cavalo em plena corrida.
“Vamos logo com isso”, Crale abriu a mochila e pegou a longa corda que carregava, sem demonstrar qualquer sinal de que havia escutado a voz uma vez mais. Ela amarrou uma das pontas na raiz mais próxima do buraco feito por Dargius e completou o nó com um forte puxão, verificando se a corda estava firme o suficiente. “Pegue, vá na frente.” Suas palavras saíam como faíscas contra o guerreiro, que obedeceu prontamente.
“Da próxima vez que você lançar uma magia contra mim”, quase tocava a testa da elfa, “sera a última”. Crale sabia que não eram palavras vagas, mas sim uma promessa, quase uma maldição jogada sobre eles: uma promessa fadada a ser cumprida.
Rasg ajudou a amarrar a corda na cintura de seu companheiro e olhou para cima, procurando pela criatura que ficara com sua espada encravada. Não gostava da idéia de desviar o caminho da missão que haviam recebido diretamente de Laurecon, mas perder aquela espada era uma perspectiva que ele simplesmente não poderia aceitar, sem considerar que aquela voz poderia ser uma armadilha, uma maquinação maléfica de seres poderosos. Rasg odiava controladores de mentes. E também odiava a idéia de descer amarrado pela corda até um lugar desconhecido, provavelmente infestado por insetos do tamanho de seu próprio corpo. Mas era o necessário, não apenas se quisesse recuperar a arma com a qual crescera, mas também para resgatar o Rastreador. Desejou ter as palavras de Crale para filosofar sobre aquele momento e suspirou, desanimado. Mal tinha as palavras certas para manter Crale e Dargius longe de estrangular um ao outro.
Passados quinze minutos, Rasg encostava os pés no que parecia ser uma caverna dentro da árvore. Estavam todos no interior do solo, em um longo túnel que não poderia ser natural. Raízes saíam por todos os lados do corredor e pequenos insetos passavam por eles quase de forma constante. Um cheiro úmido e ácido chegava até eles e provocava uma leve náusea no bárbaro.
Crale fez um leve movimento com as mãos e a corda desatou o nó, como animada, e voltou para as mãos da elfa. “Sinto uma magia forte aqui dentro. Dargius, lidere o caminho e vamos sair rápido daqui. Não estou gostando de como entramos aqui, parece que fomos manipulados.”
Uma faísca se soltou das duas pedras que o guerreiro carregava e em questão de segundos uma chama firme ocupava o fim da tocha em suas mãos. O fogo revelou pouco mais do que ele e Rasg podiam ver, apenas mostrando que o corredor continuava alguns metros além do que enxergavam; a elfa via muito além do que os dois humanos e podia visualizar uma curva atrás deles. “Para esse lado”, ela indicou.
Andaram por meia hora sem que o túnel acabasse. O solo fofo se mostrava incômodo para Dargius, pesado por causa da armadura que vestia. Cada passo sugava sua energia e, em pouco tempo ele estava ofegante. “Está tudo bem?”, escutou a voz de Rasg ao longe e teve quase certeza de que indicara positivamente com a cabeça, confuso por uma névoa mental. A voz do bárbaro se misturava com a misteriosa voz que perpetuava no interior da árvore. Em sua cabeça, a voz ficava cada vez mais alta e clara, um canto suave, doce, carregado de luxúria que pedia sua atenção. Precisava chegar naquele lugar, precisava encontrar a fonte da doce, doce voz.
“Uma câmara na frente, talvez mais duzentos metros”, Crale avisou enquanto sacava as duas adagas que portava. Dargius seguiu o exemplo e retirou o gladiu da cintura. Rasg lamentou internamente a ausência de sua espada e agarrou uma pedra que estava perto deles. Avançaram com extrema cautela na expectativa de um ataque iminente.
A câmara, uma grande sala retangular, estendia-se até onde Crale podia enxergar com os olhos élficos. “Definitivamente não natural”, ela disse enquanto estudava o lugar. No centro da sala, um amontoado de folhas, terra e raízes permanecia em paz. Crale cerrou os olhas, procurando qualquer sinal de perigo.
“Um ninho”, disse Rasg.
“O quê?”
“Um ninho”, apontava para as folhas no centro da câmara.
“O melhor é desviar e continuar em nos-”
Antes que pudesse terminar a frase, Crale sentiu o cheiro ácido atenuar-se de forma aguda. Suas reações a fizera agachar e formar um círculo completo com sua perna, derrubando os outros dois companheiros no chão. No momento em que alcançaram o solo, a elfa viu uma bola passar sobre eles, errando suas cabeças por alguns centímetros. O ataque, qualquer que tenha sido sua origem, atingiu a entrada da câmara e um rápido crepitar foi iniciado. Crale viu as pedras e folhas derreterem em contato com a substância lançada. “Ácido”, alertou.
Passos pesados surgiram da outra ponta da câmara e um enorme besouro saiu da escuridão. Cores metálicas tingiam a dura carapaça e um dos três chifres funcionava como defesa, lançando bolas de ácido diante qualquer sinal de perigo. O inseto parou por alguns segundos, talvez analisando as três criaturas que invadiam seu território, decidindo afinal que iria decompor os três corpos, uma vez que estivessem sem vida.
“Ele vai atacar!”, Dargius gritou, quando viu as patas traseiras do besouro se fincarem no solo macio. De fato, o inseto investiu contra o pequeno grupo e os errou por poucos centímetros, separando Rasg dos outros.
A elfa pulou em um ímpeto sobre a carapaça de cores metálicas e forçou as duas adagas, apenas para ter o ataque repelido pela resistência do exoesqueleto. O besouro atirou outra bola de ácido contra Dargius, que deu um longo pula para o lado. Ele lutava para respirar, mas o forte odor do ácido incapacitava seus pulmões.
Sentada sobre o besouro, Crale tentava perfurar a proteção, disparando golpe após golpe no mesmo ponto. Assim que percebeu que seria inútil, ela desceu do monstro, parando do lado do guerreiro e gritou para Rasg: “Tente virá-lo!”
O bárbaro contraiu os músculos e deixou a fúria cega tomar conta de seu corpo. Ele agarrou uma das patas traseiras do besouro e deu um forte impulso com ambas as pernas, virando o inseto para cima dos outros companheiros. Mais uma vez, Dargius e Crale desviaram do corpo colossal e aterrisaram em segurança, mas Rasg sentiu um impacto repentino em seu estômago e foi lançado com pela pata do inseto para cima do ninho, caindo sobre as folhas e terra úmidas.
Ele sentiu algo pressionando suas costas e puxou um osso humano do meio das folhas. Um chiar agudo surgiu de baixo de suas pernas, saindo de centro do ninho, e ele pulou, segurando firme o fêmur que tinha em mãos. Duas garras fecharam-se sobre as folhas em um firme abraço e Rasg viu uma figura humanoide se levantar. Ele tinha pele escura e uma cabeça oval, com duas orelhas para cima, como as de um morcego. Os olhos eram leitosos e duas presas desciam da gengiva superior. A criatura chiou novamente e mecheu as orelhas, pulando em seguida sobre o bárbaro e desviando do golpe desferido com o osso, rasgando a pele de seus braços com os dentes afiados.
Dargius segurou o gladiu com a ponta para baixo e o enterrou fundo na carne macia do besouro que se debatia. O inseto paralisou qualquer movimento instantaneamente um jato de sangue e ácido espirrou do corte, causando queimaduras nas mãos e rosto do guerreiro. Dargius gritou de dor e protegeu, no último segundo, os olhos do játo ácido.
A elfa registrava tudo. O ato estúpido de Dargius, a morte do inseto e as feridas de Rasg causadas pela estranha criatura. Conjurou uma calma forçada sobre seu corpo e foi como se o tempo desacelerasse por alguns segundos. Ela agiu rápido e precisa. Pegou o saco de couro que continha água e derramou um pouco do líquido sobre sua mão. Fechou os dedos molhados e direcionou a misteriosa força natural que controlava suas magias, para lançar, em seguida, três adagas de gelo.
O bárbaro sentiu a peculiar energia no ar e empurrou a cabeça do monstro que estava sobre ele para cima. As três adagas atravessaram a cabeça da criatura e ele caiu, sem vida, para o lado.
Crale colocou a mão, ainda molhada, sobre o rosto de Dargius e deixou parte de sua energia vital fluir para ele, pensando em cenas do passado, algo que mantinha sua mente tranquila. As queimaduras do guerreiro desapareceram. A elfa, envelhida pelos artifícios mágicos, caiu sobre os joelhos e respirou fundo, tossindo em seguida o ácido que entrara em seus pulmões. Sentia-se estranhamente fraca, foram magias de médio impacto e sabia que estava preparada para o esforço necessário. Não entendia a fraqueza em seu próprio corpo.
“Você está bem?”, Dargius perguntou, andando até o bárbaro.
“É só um arranhão”, ele respondeu. Sangue escorria de seus braços e um pedaço de pele jazia pendurado. “Mas aquilo será um problema.” Ambos olharam para onde Rasg apontava e Crale sentiu uma sombrar cair sobre seu peito.
A entrada da câmara estava fechada pelas raízes da árvore, selada de maneira intransponível. Tinham apenas um caminho para seguir e dele, podiam escutar dezenas de chilros idênticos aos da criatura que descançava no ninho.

Talessa abriu os olhos. Não sabia onde estava. Aos poucos o mundo começou a tomar forma para a mente confusa e ele se lembrou da traição de Dargius e de cair alguns metros até chegar no chão fofo do interior da Árvore. Lembrava-se apenas de uma sombra e de uma pancada na cabeça.
A primeira coisa que percebeu foi que estava de ponta cabeça e que seus membros estavam imóveis por pesadas correntes. Acentuou o olfato e farejou. Havia ao menos uma fonte de odor naquela sala, além dele. Sentia o cheiro da terra, de folhas e raízes, de pequenos mamíferos em decomposição. Podia identificar o cheiro de água corrente, passagens de ar e... um cheiro que lembrava seu pai, esquecido em algum lugar trancado em seu cérebro. Era um cheiro terrível, que trazia as piores lembraças para o farejador, um odor corruptível que destruía tudo aquilo que tocava.
Talessa sentiu o cheiro da loucura.
“Um Rastreador?”, ele escutou a voz de um homem, seguida por uma insana risada. “Quantos anos... sim, sim... um Rastreador. Mas que dia especial, especial, especial!” A risada continuou por um longo tempo. “A Árvore está feliz! A Árvore me ama!”
A risada, aguda e aterrorizante, espalhou-se pelo interior da Árvore.