segunda-feira, 29 de abril de 2013

fanzini

O dia quase escorria pra fora da noite, beiradas de muros altos tocando estrelas. Era uma pena, pensava, que aquilo tudo acabasse ali, que depois de lá não houvesse nada.

- Ela não veio, veio?

- Veio não. Por que viria?

- Não sei. Por tudo que a gente fez, tudo que passou. Pelos anos juntos, pelos anos separados mas com pensamento ativo. Coração ligado.

- Sei. Sei. Mas não. É mais que isso pra qualquer viagem, precisa mais que isso pra qualquer viagem.

Explodiam pequenas estrelas cometas de cauda quadrada pela imensidão do espaço. O som na sala era agradável, uma pontada de tristeza e peso amarrada nas pernas.

- Lembra o que minha vó dizia - dizia ele -, que dava uma dor, umas pontadas aqui. Bem aqui.

Aí ele apontava, mostrava a perna, os nervos, joelho.

- Ah, tô bem, mas me dói tudo. Dói aqui.

E apontava.

Uma estrela cadente se despedaçou em quatro ou cinco, caiu em torno deles. Dava pra ver pela janela. Um sorria, enquanto o outro esfregava as mãos na dor.

Chegando a cerveja, Joana, chegando outra alma na mesa, a dor também despedaçou. Eram estrelas que caíam em volta, na rua, do céu, refletindo a boa maré de outra noite. Quando tirou as mãos do joelho, parou de apontar, percebeu despontava de janela adentro um pedaço da estrela caída no asfalto.

Uma estrela velha, como todas eram. Estrela que já vira antes.

E as coisas que brilham sem nem nos darmos conta, vez por outra, brilham mais acenam tchau. De repente estava ali, de repente já não mais. De repente em tudo, de repente dentro.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

As Brumas do Farol 11 - Espada e Pólvora


Robert viu o corpo do Dragão cruzando a Bruma apenas alguns palmos de seu nariz. Ele cortou, rápido e limpo e assistiu a névoa formando pequenos espirais ao redor da lâmina de sua espada. Ele era muito rápido e, até agora, todos os golpes erraram o seu destino. Os dedos do samurai estavam brancos pelo aperto firme que ele fazia no punho da arma, podia sentir a tensão dos outros se acumulando, como a pressão do vapor se acumula em uma panela de pressão com a válvula quebrada. O Guia disparava com sua pistola, mas seus esforços não trouxeram resultado. Robert, na verdade, estava feliz. Armas de fogo eram para covardes, ficou surpreso ao descobrir a opinião. Parte de sua mente - a mesma parte que teimava em viver além das barreiras do momento - tentava localizar o momento em que deixara de ser o garoto que aturava os garotos imbecis na escola, cheios de ranho no nariz e malícia nas palavras; palavrões, arrotos e gestos obscenos: esse era o cotidiano de Robert. Se voltar para Londres, vou conseguir conviver com isso novamente?
John pousou no ombro do Guia e o encarou com os olhos em pleno desespero. Algo dentro dele dizia que estavam perdendo a janela de tempo que tinham e que logo tudo teria sido em vão… mesmo sem saber o motivo de estarem na busca sem sentido, o Corvo não queria esperar para descobrir as conseqüências potencialmente desastrosas. “Ok, vamos”, o Guia concordou. “Eu, gorducho, vamos!”
“Oh, vá para o inferno,” Paul soltou entre os dentes. “Não podemos esperar?”
“Diga isso ao corvo, ele está desesperado. Vamos logo, acho que precisamos ter pressa.”
Pense, pense! Paul estava com os olhos firmemente fechados, o cérebro rodando em sua capacidade máxima. Há um maneira. Jimmy! Jimmy! - olhou em volta e viu que o amigo estava se aproximando: ele havia escutado seu apelo; ao seu redor, Robert disparava cortes e estocadas, errando por poucos milímetros a besta que tentava destruí-los - Jimmy, eu sei o que fazer. Paul explicou então como pretendia ajudar o samurai contra o Homem da Bruma e fez Jimmy entender que aquele era o único modo de realmente auxiliar Robert. “Vamos logo então,” disse antes de disparar em perseguição ao Guia.
Aos poucos, o Farol ganhou contornos, um maciço corpo que se erguia em direção aos céus. Estava erguido, Paul estimou, por quilômetros e quilômetros e em seu topo ele podia distinguir o vidro de onde uma luz deveria estar guiando as pobres almas perdidas. Quando chegaram nas pedras que sustentavam a construção, John encontrou uma porta escondida por alguns galhos secos. Eles entraram em um corredor escuro e frio, o barulho de ratos ecoavam entre os degraus. Dentro do Farol as escadas se multiplicavam e eles se encontraram em um salão gigantesco, diferente da coluna que havia visto de fora. Uma escada levava para uma plataforma, de onde três outras escadas se erguiam; estas, levavam para outras três e cada uma se mesclava com as outras, girando em ângulos impossíveis, tornando-se espirais e atravessando escadas acima e ao lado. Um labirinto vertical os aguardava.
“O que faremos?”
“Acho que sei o caminho. Corvo, não saia de meu ombro.” O Guia apontou para um fino barbante que cruzava um dos degraus. “Cuidado, Paul, temos armadilhas em todos os lugares. Siga os meus passos e pise somente onde eu pisar.”
O homem saltou diretamente para o terceiro degrau da primeira escada e deu um novo pulo, chegando na plataforma. “Consegue saltar?”
“Estou um pouco acima do peso, não sou um elefante.”
“Eu não quis dizer que você é gor-”
“Elefantes são os únicos animais que não podem pular. Cristo!” Aquele homem conseguia quebrar a calma de Paul. O garoto não entendia o porquê, apenas sabia que ele tinha algo nele que o irritava profundamente, algo estava errado naquele homem e a única opção era confiar - de forma um tanto cega - em sua liderança.
Subiram escadas, pularam degraus e tentaram não olhar para cima ou para baixo. Parado no ombro do Guia, John apenas observava a estranha física do Farol, tentando imaginar o que encontrariam em seu topo.
Depois de algum tempo, os dois transpiravam e tinham a respiração pesada. “Va- vamos parar um pouco,” Paul quase sufocava com cada palavra.
“Não,” ele respondeu com uma golfada de ar. “Estamos quase no topo e temos de tentar voltar para os outros.” Passou uma manga na testa e xingou quando o suor alcançou seus olhos. “Escute garoto, como vocês vieram parar nesse lugar?”
Paul contou em poucas palavras sobre o velho e como cruzaram a entrada para um bosque perto do metrô de Londres e como mágica, estavam em uma trilha, cada garoto com uma forma diferente. Achava difícil acreditar na própria história e tentou imaginar o que se passava na cabeça do homem que conhecia como Guia. “Como… como você consegue encontrar o caminho?”
“Eu não sei,” respondeu sinceramente. “Acho que é porque eu não costumo parar em barreiras que normalmente parariam as pessoas.” Paul não sabia o que aquilo significava, mas era uma resposta aceitável. “Vamos poupar nosso fôlego e chegar logo no maldito topo.”

Jimmy tentou conjurar os ventos de antes, mas estava muito fraco e abrir uma janela para as Terras Distantes naquele momento seria um suicídio. Sabia que provavelmente seria um portal para a terra dos sonhos para sempre, sem conseguir controlar o fluxo de saída e entrada, uma hipótese que fazia com que a Bruma fosse uma brincadeira para relaxar os nervos. Ele seria o novo rei daquele lugar, terrível e implacável, fingindo controle sobre seu poder até o dia em que um pesadelo cruzasse o portal. Este seria o seu fim de indescritível horror. A saída de Paul era a única possível.
O Dragão avançava contra o samurai - garras, dentes e fogo - e formava arcos com a cauda, fazendo um barulho intimidante, rugindo com ira. Sua força era bestial e os ataques, devastadores. A trilha que seguiam era praticamente um amontoado de terra revirada, árvores queimadas e buracos prolongados por alguns metros. Robert sangrava em diversos pontos e um corte na testa derramava o líquido vermelho sobre seus olhos, atrapalhando a pouca visão que tinha dentro da Bruma. Um rápido movimento para a esquerda e a katana parou um golpe, fazendo com que a força do monstro o jogasse para o lado, deixando dois rastros na terra revirada. Mais um movimento e ele se defendeu contra os dentes afiados, causando pequenos ferimentos na boca draconiana. No terceiro golpe consecutivo, Robert foi lento e as garras cortantes foram enterradas em seu estômago. O samurai fincou a lâmina na terra e caiu de joelhos. Sentia as forças escapando de seu corpo, jorrando ao lado do sangue.
Rodeando o inimigo acuado, o Dragão soltava um riso gutural e sinistro. “Ninguém rouba minha ponte e sai livre,” ele disse, “ninguém!” De repente, uma pedra bateu contra a lateral de sua cabeça, errando um dos olhos amarelados por apenas um centímetro. Ele virou a cabeça rapidamente e cerrou os olhos em Jimmy. “Você! Você escapou por duas vezes, garoto, mas agora eu vou ter seu nome, vou arrancar as palavras da sua boca moribunda e me divertir para sempre te torturando.” O corpo alongado se esticou na direção de Jimmy. “Onde vocês o enterraram? Ainda sinto o gosto do sangue daquele homem.” Um novo sorriso escapou da garganta monstruosa.
Ande logo, Paul! Maldição. Jimmy sentiu os limites de seu corpo se expandirem e se esforçou para controlar a realidade ao seu redor. Não seria bom deixar os sonhos quebrarem as barreiras entre os dois mundos, Jimmy não sabia quais seriam as consequências. Talvez fosse como uma barragem rompendo, espalhando destruição e morte na área atingida. Não, ele deveria se controlar. Uma dúvida tomava seu coração, perguntado se conseguiria manter as forças depois de ser atacado pelo Dragão. Vamos Paul!

Paul olhou para baixo, quase tropeçando em um degrau quando parou o movimento pela metade. John pulou, com cuidado, dos ombros do Guia e pousou no garoto. O que foi?, perguntou com os olhos.
“Acho que escutei meu nome. Provavelmente não foi nada. Vamos prosseguir.”
Mais alguns passos e eles escutaram o Guia abrindo uma pequena porta de metal, rangendo o ferro antigo. O topo do farol era exatamente como ele imaginava: um salão de vidro quase vazio, exceto pelo centro, onde um uma lamparina descansava, imóvel. Uma pequena chama queimava, trêmula ao sabor do vento e quase extinta, tão fraca que mal iluminava a lamparina. “E agora?” As palavras do Guia saíram baixas, como se sua voz pudesse apagar o fogo.
“Eu não sei,” Paul respondeu no mesmo tom, com medo até mesmo de respirar, “acho que tenho de pegar o fogo?” A frase se transformou em uma pergunta no meio do caminho. E agora?
Quando Paul andou na direção do fogo, ele escutou um forte estrondo em um dos vidros. Os três, coração na boca, olharam para fora e o que viram quase fez com que eles perdessem as forças nas pernas. Uma mulher, ou algo parecido, tentava estourar a larga janela que protegia o fogo do vento que gritava na noite cinza da Bruma. Ela estava nua e tinha um rosto largo, com protuberâncias na testa, como se camadas de chifres estivessem acumuladas no topo de sua cabeça, formando uma coroa diabólica. Duas asas descansavam em sua costas, pontiagudas e finas, com aparência de couro curtido, como asas de morcegos. Ela gritava o berro desesperado de uma banshee, estridente; letal. Outras três mulheres se aproximavam do mesmo vidro e Paul podia distinguir mais sombras voando dentro da Bruma. Pela primeira vez, o garoto notou que dentro do Farol não havia névoa. “Quantas mais?”
“Sete… oito.” O Guia tinha a pequena pistola em sua mão e Paul duvidou se ele conseguiria causar algum dano naquelas criaturas malignas. Ele se lembrava das figuras que vira nos livros de RPG, demônios com aparência de mulheres, provocando uma estranha luxúria mortal. O que via trazia o nome de hárpia, mas elas eram de alguma forma piores, mais monstruosas.
Elas batiam contra o vidro e um deles já estava rachado.
“Vá, Paul, vá agora, faça o que você tem de fazer!”
No momento em que o Guia soltou a última palavra, os demônios conseguiram quebrar o vidro do Farol e tudo aconteceu muito rápido, acabando em questão de segundos. A primeira coisa que Paul notou quando iniciou a corrida mais importante de toda sua vida, foi que o vidro voava com uma velocidade incrível, deixando o vento forte entrar no topo do Farol, abrindo espaço para as criaturas aladas e a Bruma desgraçada se arrastarem para dentro do lugar. O Guia, um homem que fazia parte de mais de um mundo, disparou contra a primeira das mulheres que voavam para dentro do Farol, acertando-a entre os olhos. Um disparo ensurdecedor tomou conta do lugar e sua arma brilhou por um breve momento. A cabeça do demônio explodiu em incontáveis fragmentos, espalhando cérebro, ossos, cabelo e sangue nas duas janelas ao redor. John abriu as asas e se jogou contra outra mulher e enterrou seu bico em um dos olhos. Ela gritou de dor, estourando outro vidro, e perdeu o controle de seu vôo, quase acertando Paul por um acaso. A arma de Jonhatan disparou mais duas vezes e outra mulher caiu morta, despencando do parapeito externo do topo do Farol.
O coração de Paul ameaçou pular para fora de sua boca uma vez mais quando ele viu o fogo da lanterna quase apagar por causa do caos que havia tomado conta do Farol. A pequena chama tremeu por um segundo e se jogou para um dos lados, depois para o outro e, por fim, diminuiu até ser pouco mais do que um fósforo que se apagava. Paul pulou sobre a lanterna de vidro e encostou no Fogo.
Do outro lado do Bosque, no mundo real, Paul tinha outro nome. Ele era um garoto normal, gostava de ler e de comer doces. Normalmente, ficava longe dos esportes, inventando mentiras e desculpas para conseguir fugir às partidas de futebol de sua escola. Arsenal, Manchester… ele simplesmente não se importava com os jogadores e a emoção de tocar uma bola de couro com os pés. Sua mente descansava quando estava mergulhada em algum livro. E, pelos céus, como ele lia! Os livros se acumulavam em pilhas depois de lido, rodeando todo o quarto que dividia com a irmã mais nova e dificultando a passagem e limpeza do cômodo. Em todos os livros, em algum momento da trama, o pequeno leitor assíduo lia sobre a calma que antecedia a tempestade. Era sempre uma tempestade alegórica, mas uma calma real. O que Paul sentia naquele momento, era parecido, mas completamente diferente em sua natureza. Ele experimentava a calma depois da tempestade. Foi um momento de paz interior, quando tudo estava feito e todos os passos da parte mais difícil da jornada estavam para trás. O mundo ao seu redor ainda explodia em pedaços de vidro e projéteis mágicos, mas ele tinha conseguido. A Bruma estava vencida.
A calma durou pouco.
Uma forte luz tomou conta de todo o Bosque e matou, quase instantaneamente, a Bruma. Não houve gritos de raiva ou dor; apenas o cessar, sutil, de um barulho de estática. Um zumbido agudo que incomodava constantemente, mas era facilmente esquecido. As hárpias se desintegraram e o vento parou de soprar. John pousou no chão, o gosto de sangue demoníaco ainda em seu bico e o Guia parou de disparar, guardando a arma em seu coldre.
Paul olhou para eles. O garoto brilhava e feixes de luz rodeavam seu corpo. Como faria um Farol.

Jimmy parou na frente do Dragão, sem se mover. Não tinha a intenção de desviar do ataque, mas no último momento, descobriu uma falha no plano de Paul. Um samurai precisa viver no momento, ele havia dito, mas Robert não está totalmente na batalha. Você precisa se colocar em perigo, Jimmy, provoque o Dragão e não desvie do ataque. Provoque o momento em Robert. Uma falha apenas. Robert deveria ver o que estava acontecendo, certo? Mas ele estava longe do samurai e a Bruma impedia contato visual.
No último instante, ele deitou no chão e rolou, escapando incólume de três fortes patadas do Dragão. Golpe após golpe, a besta ganhava terreno e Jimmy sabia que estaria em sérios problemas dentro de poucos segundos. Jimmy saltou para a esquerda e, pela primeira vez em muitos quilômetros, colocou os pés no chão, o que foi um erro. Ele torceu o tornozelo onírico em um buraco feito pela batalha e caiu sentado, vulnerável.
Como um verdadeiro deus ex machina, uma forte luz explodiu em algum lugar perto e a Bruma desapareceu repentinamente. Os três, Jimmy, Rober e o Dragão pararam por alguns segundos, tentando entender o que acontecia, lutando para se acostumar a novamente enxergar o mundo mais do que alguns palmos à frente do próprio nariz. Havia cor novamente e eles podiam ver por muitos e muitos metros.
Robert viu, com um aperto na garganta, a boca aberta do Dragão, quase forçando um abraço dilacerante sobre Jimmy. Naquele instante, Robert alcançou o momento. O tempo parou e tudo ficou claro. Ele se colocou de pé e empunhou a espada. Em um segundo ele estava parado, no próximo encontrava-se do outro lado do Dragão, sangue pingando da lâmina afiada.
A cabeça do monstro caiu entre ele e Jimmy. Era uma cabeça humana.
Jimmy olhou para o rosto contorcido do velho e sussurrou o próprio nome.

Paul não sentia apenas um calor confortável percorrendo seu corpo. As luzes giravam até onde podiam ver, cruzando horizontes incontáveis, iluminando o mundo que antes era escuro e perigoso. Havia segurança naquela luz. Sentia-se protegido.
Um homem apareceu ao seu lado, da mesma forma que eles faziam ao cruzar para as Terras Distantes. Ele despencou contra o chão do Farol, inconsciente. Uma barba hirsuta tomava conta do rosto magro e seus olhos pareciam sustentar sua pele, um esqueleto que vestira um casaco humano. Ele abriu os olhos - olhos lunáticos - e engoliu uma longa golfada de ar.
“A lanterna!” Gritou enquanto agarrava os braços de Paul. “Não quebrem a Lanterna do velho!”
Joshua abraçou o garoto e começou a chorar.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Austeriana (2): o texto de Charlote

Leia: Austeriana (1): escritor, personagem, papel

Sei o que ele deseja; Ver meu lado para lendo-me dizer que sempre soube de mim. Mas não posso lhe dar esse prazer. Não posso ser gentil se me incomoda reconhecer que ele parece dialogar mais comigo do que eu mesma.

Se conseguisse ler todos os textos sobre Charlote que ele escreveu, encontraria alguém menos parecida comigo? Afinal, sou mais eu ou mais ela?

Sinto como se cada vez que escrevesse tentasse retirar um pouco de minha alma. Tomando-me para si. Tendo-me em suas mãos. Não posso aceitar. É tão difícil saber quem sou para um estranho dizer que sou assim ou dessa maneira. Não posso.

Então, surge ele. Baixo, de rosto engraçado, com uma presunção tão grande quanto sua barriga. Mas ainda assim um escritor. Quando me conheceu escreveu para mim. Enquanto eu ainda não era aquela Charlote. Enquanto não era dividida ao meio como mágica, sendo Charlote viva com sangue correndo nas veias e Charlote personagem realizado. Ao menos ele explicou para mim dessa maneira.

E pediu-me para fazermos o inverso. Porque você não escreve o seu lado da história, me disse. Mas como posso pensar por você, escritor? Sentar em um canto sorvendo a vida, tomando café ou sorvete até uma idéia genial? Sempre escrevi para curar minha própria dor, não a sua.

O que você via quando me olhava é o mesmo que vê ao observar Charlote? Ou me ve como um mistério, desconfortável dentro de seu mundo? Ou uma garota a quem você pudesse salvar? Não sei realizar este exercício...

Recordo-me do dia em que caminhou ao meu lado narrando meus movimentos. Tentando demonstrar-me como, a partir de mim, transformava a realidade em ficção. Talvez ele quisesse saber-me como sabia a personagem. Mas, depois de tanto tempo, depois de tantos escritos, comecei a sentir falta daquelas histórias também.

Comecei a viver nelas as aventuras que eu, covarde, não consegui viver para mim. A ilusão de uma Charlote não alcançada era mais aventureira, mais bonita do que minha estima, mais concreta. Mostrando como eu poderia ser se não tivesse medo. Se não tivesse lágrimas. Demorei muito tempo após as leituras para voltar a mim mesma. A me reconhecer dentro de minha amargura, dentro de minha felicidade, do equilíbrio agridoce.

Talvez ele quisesse me conquistar com suas palavras. Mas com elas fez uma pessoa melhor que a Charlote de carne e osso. E o que devo fazer, portanto? O que ele espera desse desafio que nunca deveria ter aceitado. Me ver ainda submissa? Ainda menina? Alguém que lhe ponha em seu lugar? Não.

Gosto da maneira como ele escrever e, mesmo sabendo, reconhecendo minha alma. As frases que já completamos um do outro assustam. Terrível encontrar um semelhante que parece te duplicar, pensando como você, mesmo não te sendo.

Somos assim. Tivemos esses momentos de palavras escritas ou mudas que nos projetaram como heróis.  Mas se eu recriasse a história novamente alteraria os fatos.

Produziria minha versão do escritor, uma outra segunda Charlote e tudo ficaria mais confuso do que me parece. Dignos de uma potencial tragédia ou uma dessas cômicas comédias antigas de trocas de personagens por sua semelhança.

Devo desistir. Não pela falha, mas pela luta que seria longa demais. Uma outra versão da mesma história seria o nascimento de outro mundo. Estes criados tem que nos bastar. Devemos isso a eles.

22 de Abril de 2013

segunda-feira, 22 de abril de 2013

você

Joana podia sentir o ar de fim em torno da mesa. Ele sorria, ainda, ela já não, e Joana era capaz de dizer, vendo ao longe, onde aquilo daria.

- Desculpa - ela disse.

Ele sorriu, melancólico. "Não há o que desculpar", pensou.

- Não há o que desculpar - disse.

Ela não sorria mas olhava intrigada para o sorriso dele, ali em sua frente, triste, sério, calmo, confiante.

- Claro que há! Eu não consigo, eu não consegui, eu te amo tanto mas mesmo assim...

"Mesmo assim não quer ficar. Mesmo assim não quer tentar. Sem esforço, sem dedicação", pensou ele.

Mas não falou. Apenas continuou sorrindo, cada vez mais calmo e triste, enquanto ela chorava pouco a pouco, as lágrimas varrendo a neve de dentro, criando rios de decepção.

- Eu quero que você fique bem. Que fique feliz! Que você volte a sorrir.

"Que eu volte a sorrir sem essa tristeza presa, você quer dizer...", mas a decência o manteve quieto.

- Eu sorrio. Vou sorrir sempre. Mas não sorrio a todo momento, não quando estou sozinho. Fique tranquila, vou voltar a sorrir bem.

Ela pareceu aliviada.

- Que bom que não sorri o tempo todo! As pessoas na rua te achariam um doido.

Agora ela sorriu. A cerveja chegou à mesa e Joana, por um momento, olhou nos olhos daquele rapaz sentado ali, sorrindo mas nem tanto.

"Eu era, então, um doido. As pessoas que me viam tinham isso na cabeça, 'vejam aquele doido! sorrindo sozinho, rindo sem por quê. Vejam, vejam!' Mas eu sorria sozinho, como você poderia saber?"

Antes de ir embora, afinal, ele apenas sorriu e desejou que ela estivesse bem dali pra frente, já que dali pra trás ele não pudera fazer com que fosse feliz.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

As Brumas do Farol 10 - O Guia (III)


Paul logo percebeu o que tinha de fazer. Estava exatamente a meio caminho entre Jimmy e Robert. Escutava o tilintar agudo das lâminas se chocando e podia sentir a urgência em ajudar o samurai. Mas o homem da televisão, aquele que o lembrou das palavras cortantes de seu pai, o fez correr de volta para o pequeno grupo que surgira praticamente do nada. “Jimmy, ajude-o!”, girtou enquanto corria para ele, erguendo um dos braços roliços na direção da luta. Ele se levantou e rapidamente flutuou em ajuda do amigo. Paul sentia as pernas tremerem, recebendo com prazer o alívio que se instalava em sua mente. O que eu estava fazendo, pelos céus. Medidas desesperadas, era o que sua mãe sempre dizia quando era internada com aguda desnutrição por causa dos regimes rígidos que seguia. Linda, com o corpo que a maioria de suas amigas invejavam, ela não conseguia apreciar o que via no espelho. Enxergava um corpo doentio, via faixas de gorduras penduradas pelas laterais, por toda sua costas. Medidas desesperadas. Essa era a desculpa usada, toda santa vez. Medidas desesperadas.
Chegou até John e estudou o homem que estava com eles, lembrando imediatamente dos filmes preto e branco que seu pai assistia, quase em coma alcoólico, durante as madrugadas. Tentava ignorar os absurdos balbuciados pelo bêbado no sofá de sua casa, o que não era um problema assim tão sério, já que antes da metade do filme ele estava roncando de boca aberta. Algumas vezes, e isso ele aprendera nos mesmos filmes que assistia escondido de sua mãe, perguntava-se o que faria se ele começasse a se afogar no próprio vômito. Paul duvidava se iria se mover para ajudar aquele homem. Provavelmente iria continuar a assistir O Falcão Maltês até o final e iria para cama feliz pela derrota dos nazistas, sem se importar com o bêbado morto na sala de casa. Não, concentre-se Paul. O homem vestia uma sobretudo longo, de um bege desgastado e sujo. Ele cheirava à urina, vômito, whisky e cigarro e tinha o que parecia ser uma seringa espetada na sola de um dos sapatos. E um fedora, claro. Um homem como aquele teria um fedora.
O ombro direito do homem estava dilacerado e sangrava em grossas torrentes, jorrando pelo sangue. Paul estava surpreso dele ainda estar vivo. “O que aconteceu?”
John inclinou a cabeça em um ângulo estranho e o encarou com olhos escuros como a noite. O medo que ele viu naqueles olhos anteriormente astutos o perturbou profundamente. “Dragão!”, exclamou o Corvo, em um só grasnar. Paul o encarou, choque no olhar. Tudo muito simples. Para curar uma mordida de dragão, aplique alcaçuz na área dilacerada e tudo estará bem novamente. A idéia quase provocou gargalhadas, mas ele conseguiu se controlar no último instante. Hesitante, tirou uma barra de alcaçuz do bolso e a estudou. Naquele mundo bizarro, parecia que os doces eram substituídos ao passar do dia, renovando seu estoque conforme ele os consumia. Por vária vezes, nas noites em que não conseguiam encontrar frutas ou pequeno animais que não pareciam ter veneno, comiam apenas os doces, sentindo-se estranhamente satisfeitos e fortalecidos. Paul sabia que não eram doces normais, mas ainda faltava o conhecimento de suas propriedades e seus limites. Por enquanto eram a melhor idéia. O Guia se esforçava para segurar os gemidos de dor e logo estaria morto. Podemos realmente morrer aqui, nesta terra que parece um sonho? Paul não estava disposto a pagar o preço para alimentar a curiosidade; sem o guia, estariam eternamente perdidos dentro da Bruma.
Colocou o doce na boca do homem e o fez mastigar enquanto grudou os olhos na feia mordida, forçando-o mordida após mordida.
Esperou e esperou.

Jimmy se guiou pelos sons, imaginando o que aconteceria, caso fosse estocado por uma das lâminas. O som aumentava, conforme ele se aproximava da batalha em andamento. Ele podia escutar os passos de Robert e do Homem da Bruma, atacando e defendendo letalmente. Cada golpe poderia ser o último e o resultado não era certo: o golpe seria de um lado ou de outro, mas Jimmy não podia enxergar de quem seria, o que era por demais irritante. Uma idéia brotou em sua mente, como se estivesse no ar, apenas esperando para ser captada por alguém. Fechou os olhos em sua mente - seu corpo já não tinha mais olhos - e quando abriu, estava novamente nas Terras Distantes. No céu esverdeado, duas gigantescas espadas duelavam entre nuvens, provocando terríveis trovões a cada beijo entre as lâminas. Jimmy, um garoto de doze anos, ergue os braços e duas montanhas de pura prata se desmancharam um incontáveis barras, derramando um rio de prata sobre um lago de petróleo borbulhante. Aquele mundo era sensível e vivia sobre regras próprias, cujo entendimento escapava de qualquer um e ser tratado daquele modo provocava um fúria desconhecida. Jimmy notou que suas mãos estavam suadas. Com um movimento das mãos, abriu vales, cortou florestas e secou rios; em seguida, criou espécies e civilizações, despedaçou o próprio céu e fez chover lava. As Terras Distantes tremiam em convulsão, somando uma ira que nunca antes fora vista e Jimmy podia sentir toda sua força em ebulição.
De repente ele sentiu o ar estagnando ao seu redor. Fechou os olhos - desta vez físicos - e voltou para o corpo sem face.
Um vento, violento e selvagem, soprou de Jimmy, explodindo com a força capaz de existir apenas nas Terras Distantes, limpando a Bruma por um tempo e lançando tudo que encontrava em seu caminho. Jimmy viu o samurai se segurando uma planta, viu com perfeição uma de suas mãos presas em um caule cheio de espinhos, com milhares de dentes procurando dilacerar sua carne e envenenar as veias que corriam quente pelo braço forte. Jimmy teria sorriso se tivesse uma boca quando Robert estocou a planta com sua katana, lutando contra a dor e o vento alienígena que era derramado sobre ele. Mas o verdadeiro sorriso, sádico e cheio de uma perigosa satisfação, surgiu quando ele viu o rosto do Homem das Brumas. O inimigo vestia um kimono parecido com o de Roberto, mas portava uma lâmina três vezes mais larga e um pouco maior em seu comprimento. Havia insanidade em seus olhos azuis, olhos que Jimmy conhecia muito bem.
“O nome dele é James Powers e ele é o machão de minha escola”, Robert escutou claramente quando a ventania parou. Ele viu, pela primeira vez, o seu inimigo e sorriu. O Homem da Bruma já preparava um primeiro golpe para retomar a luta, mas agora ele parecia um garoto fraco. Uma criança, exatamente como eles. Robert havia alcançado o momento com uma pequena ajuda de Jimmy.
“James Powers, não se mova!” Os olhos do Homem arregalaram até quase caírem das órbitas e ele travou em pleno ar, pernas afastadas em uma corrida rápida, braços acima da cabeça, segurando a espada com um punho firme. O golpe fatal de uma estátua. “Não se atreva a mover um músculo, James Powers. Um fio de cabelo sai do lugar e… seu coração explode.” Robert não sabia até onde podia abusar da mágica de um nome, mas achou que valia o risco. “As Brumas serão sua prisão, não mais o seu domínio. Eu venci. Nós vencemos…”
John, Paul e o Guia se aproximaram, o Corvo parou em seu ombro ferido, estudando o sangue que pingava de seu braço.
“Como… como você descobriu o nome dele?” Paul pegava uma bala de alcaçuz e entregava para o samurai.
“Jimmy me contou. Parece que eles se conheciam.”
Todos olhavam para o garoto parado no ar. Uma atmosfera mais leve começou a se formar entre eles e Robert se deixou descansar pela primeira vez em muito tempo. Achou que se não fosse o doce de Paul, estaria deitado no chão, inconsciente. Perguntou, por fim: “este é o Guia?”
“Sim”, Jonhatan respondeu. “Meu nome é… Guia.”
“Você consegue nos tirar daqui?”, Paul perguntou. A Bruma já avançava ao redor e logo estaria sobre eles. O garoto aproveitou para procurar por algum tipo de caminho ou direção, mas atrás da Bruma, havia apenas mais da mesma névoa asquerosa.
Jonhatan olhou ao redor. O caminho não poderia ser mais direto, pensou consigo mesmo. “Sim”, apontou para a trilha, “vocês não conseguem enxergar esse… caminho de tijolos amarelos?”
“Não, essa névoa atrapalha.”
“Névoa?”
Paul viu o olhar cheio de perguntas de Robert no último momento, antes que o cinza tomasse novamente o mundo. “Seus olhos… você não vê essa Bruma?”
“Eu… sinto alguma coisa do meu lado, mas não, não vejo nada de errado. Vocês têm de chegar em um farol, certo? Foi o que me disse antes do dragão nos atacar.” Estou louco, Deus! Porra!
Paul e Robert confirmaram ao mesmo tempo e Jonhatan começou a caminha para o Farol. “Meia hora de caminhada e estaremos lá”, prometeu. "Vamos logo, se temos de alcançar o Farol, de nada adianta ficarmos aqui."
Poderia ser tão fácil assim? Estavam perto esse tempo todo e mesmo assim presos dentro da Bruma? Paul sentiu o sangue subir para sua cabeça um calor tomou conta de seu rosto. Garotos perdidos, nada mais do que garotos perdidos.
“Como posso chamá-los?”
“Eu sou Paul. Jimmy e John você já conhece e o samurai é chamado de Robert.”
Jonhatan parou. “Jimmy, Robert, Paul e John?” Paul não entendeu, mas o Guia continuou na trilha por um tempo, gargalhando a cada passo. “Aliás, obrigado pelo meu braço, ele está be-”
As palavras do Guia foram cortadas por um grito agudo, carregado de dor e medo. Jimmy caiu de joelhos na terra dura e colocou as duas mãos no peito. “Eu… eu não consigo mais segurá-lo… o vento me deixou fraco…” Um brilho, como uma lâmpada que morre após brilhar tudo o que podia em um único segundo, e o Dragão escapou das Terras Distantes, de volta para o Bosque e mais furioso do que nunca.
Paul sabia que ele não iria querer apenas a ponte de volta.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Austeriana (1): escritor, personagem, papel

Olhei para Charlote tentando adivinhar seus pensamentos. Não que fosse necessário uma conversa para descobrir suas reflexões. Bastava ir até o computador, abrir uma tela em branco e dar vazão a minha própria versão de Charlote. Eu havia feito esse procedimento outras vezes e, agora com distanciamento, não consigo mais discernir quem era a mulher real da personagem que criei.

Em algumas vezes, ela leu meus escritos mencionando o quanto pareciam feitos por ela. Você tem um jeito que parece observar meus pensamentos, dizia. Sentia-me feliz pela conexão invisível, embora não houvesse uma resposta. Desejava acreditar que, de alguma maneira, tínhamos uma ligação que, em situações certas e ambientes controlados, seriamos capazes de finalizar a frase um do outro.

Quando sentia falta de Charlote, dedicava algumas narrativas a ela. Nada que ultrapassasse um estilo de ficção tradicional. Reprisava nossa história, inseria novos elementos, levando-nos, pelas palavras, a lugares que nunca fomos de verdade mas que, parte de mim, gostaria de ter ido.

Não que algumas dessas palavras me deem grande orgulho. Mais novo, menos maduro, escrevi para lhe machucar. Ainda tenho apreço pela potência da arte mais suas lágrimas me doeram. As vezes, Charlote é minha consultura. Ela escreve também e gosto de sua prosa. Ela diz que não.

- E se houvesse uma história em que uma personagem fosse testemunha de uma cena que não poderia ter visto, mas guardou segredo do que viu?

- Como assim? Uma dessas histórias carregadas de drama e sentimentalismo?

- É o que tenho medo que aconteça, Charlote. Mas pensei em algo mais visceral. Uma história tão vergonhosa ao ponto de que a pessoa nunca tivesse vontade, ou coragem, de contar a alguém.

- Escondendo uma humilhação de alguém para si?

- Exato. Mas isso machuca a personagem. Ela não consegue mais viver com aquele segredo de saber que tudo, de alguma maneira, foi vivido como uma mentira. Mesmo que não seja a dela. Ela começa a pensar que se tivesse interferido na ação, os planos seriam diferentes, mais verdadeiros.

- Hum – e faz a mesma expressão que faço, de deixar o olhar no horizonte para refletir – pode ser possível.

Mas dessa vez queria propor a Charlote uma ideia diferente. Que ela escreve sobre mim. Ser sua personagem, cansado de ser um autor.

- Eu queria ser seu personagem, dessa vez. Você recontaria o que quisesse, ou adicionasse a essência que achar. Confio na sua capacidade de escrever e, mais ainda, confio que sabe minha essência, nem que um pouco dela.

- Acho arriscado.

- Porque? Que mal haveria de haver?

- Justamente o mal. E se eu escrevesse o que você não fosse gostar?

- É sua visão da minha. Se te fiz minha personagem, agora se faça de autora. Se um dia foi minha musa, vamos trocar de planos. Realizar uma história as avessas. Você escreverá sobre um escritor que escrever sobre uma Charlote que, por coincidencia, é você mesma.

- E como diferencia-las? Como me diferenciar? Se você diz que quando escreveu sobre mim se confundiu e hoje não sabe mais o que é eu de carne viva e o eu de papel, como não confudir? Se metade dessas histórias foram inventadas?

- A diferença é que você, a Charlote real, poderá criar também a Charlote da ficção.

- Você está confundindo minha cabeça.

- Eu sei, mas você adora isso.

Ela sorri.

- Eu quero ver seu lado, Charlote. Sei que te tomei muitas vezes. Agora é sua vez de quebrar a quarta parede. Escrever sobre mim. Me dê um novo nome, uma personalidade além da tradicional. Quero ver como você me vê além de minhas palavras e impressões. Eu nunca pude realmente estar dentro de ti, de qualquer maneira, não?

- ...

- Não me de seu silêncio como resposta. É apenas um exercício como você fez antes. Não vai causar mal nenhum. Sei disso.

- eu ...

- Entendo a relutância. Mas me dê esse prazer de ser sua personagem, Charlote. Me ver pelo seus olhos será curioso.

- Tudo bem - relutante - aceito a proposta.

23 de Março de 2013

segunda-feira, 15 de abril de 2013

for rest

- Teve uma vez em que eu tava correndo já havia um tempão e vários quilômetros eu um amigo e mais um bando um monte de gente com crachá e tênis refletores camisas era noite bem noite pela cidade mais de cinco quilômetros e aí numa esquina eu vi andando uma menina enquanto eu corria e ela andava pela calçada que em inglês se diz sidewalk significa andar no lado andar de lado algo assim numa livre tradução e aí eu olhei pra ela enquanto eu corria e ela andava e sorri e ela sorriu e eu disse sem emitir som só mexendo os lábios sabe eu disse vem corre comigo e virei pra frente pra continuar correndo e não dar de cara no carro nem no poste nem trupicar e cair estatelado no chão de asfalto e rolar ladeira abaixo no barranco e na ladeira e daí quando eu olho pro meu lado de novo já nem lembrava mais da menina eis que lá tá ela correndo sorrindo esbaforida de saia e botas carregando nos braços meia dúzia de livros grossos pesados dos estudos que ela fazia mestrado em cinema correndo comigo de salto de bota de saia maluca até que eu virei pruma esquina e ela se encarapitou avenida abaixo mas aí já sem correr porque não precisava já que ela não tinha mais ninguém pra acompanhar porque eu subia com meu amigo e a manada de corredores uma ladeira íngreme subindo até a igreja de nossa senhora das dores enquanto a menina sumia na noite sem marca sem fala só saltos correndo sorriso e mais nada.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

As Brumas do Farol 9 - O Guia (II)


Quando você está fora do seu habitat natural, seus instintos ficam mais aguçados. Não importa se você vive nas montanhas e caça a própria comida ou se é um japonês gordo e cheio de sebo no cabelo, que não sai do quarto há mais de cinco anos; fora de sua zona de conforto, você está pronto para lutar. Isso se chama instinto e faz parte de cada ser vivo. É bem verdade que ele pode estar adormecido ou soterrado por baixo de uma vida entediante, vivida dentro de um cubículo onde você deveria fazer a contabilidade para um corporação que sequer reconhece sua existência. E isso, eu diria, se chama falta de colhões, mas não temos tempo para isso. Eu achava que depois de um tempo em um lugar hostil o corpo reconheceria que não haveria perigo e o instinto falaria mais alto - a adrenalina baixa, as pupilas se dilatam e o suor seco nas palmas das mãos - mas não foi o que aconteceu. Depois de quase uma ano nessa Londres, a Londres deles, a minha prontidão ainda está afiada e meus nervos em frangalhos. Sempre que estou em algum serviço ou chegando em minha casa, conspirações absurdas tomam conta de minha mente, teorias fora da realidade e que fariam rir o mais demente contador de histórias. Bom, talvez eu seja o mais demente contador de história; não iria me surpreender se eu narrasse a minha própria morte e acordasse babando em uma parede almofadada.
Mas, ei, eu não morro, certo? Afinal, estou contando essa história, então você pode, pelo menos, contar com a mínima integridade física de seu protagonista.
Quando vejo carros, pretos e gigantescos, daquele tipo que você olha e tenta estimar o consumo ridículo de combustível daquela besta de quatro rodas, sinto meu coração palpitar e aguardo as armas aparecerem e os projéteis disparados em minha direção.
O estranho é que nada disso acontece. O que é pior, de certa forma.
Estou condenado a viver ao lado de uma esposa que me ama e de uma filha que tem a mais pura admiração à sua figura paterna. A casa é confortável e sempre na temperatura ideal; do jardim, apanho as frutas mais suculentas que já experimente. É um terreno em que quase posso sentir o calor do sol e isso é muito especial, se você considerar que estou em Londres. Vivo a vida do outro eu, aprisionado em meu mundo, minha realidade.
Todos os dias, quando finalmente relaxo e percebo que eles não virão, sinto nojo de meus atos, um gosto amargo que tenho de lavar com whisky.
Por isso eu me abrigo nas sombras de Londres, lidando com o pior tipo de escória que povoam as páginas dos livros baratos nas estantes das bancas de jornal: traficantes, psicopatas, pedófilos… gente com perversão cujo nome não sei apontar. Falar com prostitutas cheias de heroína no sangue é o ponto alto do meu dia, na maior parte das vezes. Um estilo de vida saudável. O interessante nessa história, e é aqui que paro de divagar e inicio minha narrativa de verdade, é que as sombras de Londres guardavam algo muito pior para mim. Quando seus monstros vivem nos cantos escuros de sua casa, você deixa a luz acessa, foi a minha lição.
Entre em um beco e senti, logo no meu primeiro passo, o cheiro de mijo impregnando em minhas narinas e na minha roupa. No quinto passo, uma seringa usada se espatifou sob o peso de minhas botas. Grossa, uma névoa tomava conta do lugar e eu mal conseguia ver meu próprio corpo. Perguntei-me por quanto tempo ainda iria ficar brincando de detetive naquelas condições miseráveis até um viciado enfiar uma faca em minhas costas. Avancei um pouco mais para dentro do beco e contive todos meus movimentos - pelos céus, eu parei de respirar! - quando escutei o barulho abafado de asas batendo. Olhei para cima, mas não poderia dizer se havia algum pássaro por perto e tentei me lembrar se a neblina estivera forte daquele modo quando eu ainda estava em meu carro. A resposta era provavelmente uma negativa. O barulho se tornou mais alto e rápido, enquanto comecei a sentir uma forte vendo de minha costas. Um corvo, aparentemente vindo do nada, pousou em meu ombro esquerdo e abriu o bico negro: “você precisa vir comigo”, disse com naturalidade. Os pensamentos mais clichês cruzaram a minha mente. É claro que pensei estar morto, dormindo ou drogado. “Você está vivo, Guia. E acordado… ao menos ainda está acordado”, ele disse como se tivesse lido meus pensamentos. “Siga por esse turno, não temos muito tempo, Robert está em perigo.” Eu não sabia quem era Robert ou a natureza de seu risco, mas quando um pássaro pousa em seus ombros e fala com você, maldito seja, é bom prestar atenção em suas palavras. “Você vai encontrar o Jimmy. Ele é legal, meio caladão, mas confiável. Você vai ter que entrar nele, como numa porta”, avisou o corvo. Andei mais alguns metros e vi um vulto à minha frente, o contorno de um garoto de doze, treze anos, totalmente tatuado pelo mais realista dos desenhos. Tudo parecia uma ilusão de ótica e o garoto poderia ser a porra de um desenho na parede, não fossem os movimentos de seu interior, no melhor estilo Harry Potter. Ray Bradbury estaria orgulhoso.
“Ande logo, Guia,” repetiu, impaciente, o corvo.
Da mesma forma como subo em uma calçada, ergui um dos pés levemente e ultrapassei o contorno do garoto e cheguei ao outro lado. Entre um passo e outro, Londres deixou de existir. A névoa se dissipara, o cheiro da amônia ficara em uma realidade deixada para trás.
Eu entrei nas Terras Distantes, descobri mais tarde.

Robert saltou para trás e derrapou na terra seca do Bosque. Acompanhava com dificuldade os movimentos do Homem da Bruma, aparando os golpes no último momento possível. Ele culpava a Névoa, mas sabia que mentia para si mesmo: o Homem era tão ou mais rápido do que ele. Uma preocupação crescia em seu peito e o samurai se esforçava para ignorá-la. Mas, como uma semente no solo escuro, a mente de Robert estava no futuro. Ao menos estava pensando se haveria algum.
Até o momento, não tinha certeza contra o que ou quem lutava. Via apenas uma lâmina, parecida com uma katana mais larga e comprida que surgia da névoa como um relâmpago em um céu azul. O mínimo atraso o forçava para trás e rapidamente perdia terreno. O suor escorria por todo seu rosto e apenas por um milagre não caía sobre seus olhos. Paul, onde você está? O momento… tudo que importa é o momento, ele mentiu para si mesmo.
Paul estava com o queixo apoiado em uma das mãos, enquanto a outro cobria parte do largo estômago. Tentava ignorar o som das lâminas se chocando, tentando precisar onde e quando poderia ajudar Robert. Era esse seu papel, afinal. Não tinha físico bom para correr ou pular como os outros - bem, Jimmy não conta - ou um décimo sequer da capacidade de combate do samurai. Cérebro, ele pensou. Eu sou o cérebro deste corpo. Pense, gordo, pense!
Ele viu os dois guerreiros atravessando parte do terreno, chocando golpe e contra-golpe. Robert cortava o ar vez ou outra, mas lutava na defensiva. Paul precisava ganhar tempo para ele. Jimmy, John, voltem logo!
De repente, entre os sons do combate, Paul escutou a voz do samurai. “Mais alto, Robert! Não consegui te escutar!”
“O momento, Paul,” girou a katana para a direita e aparou duas estocadas seguidas, mas uma terceira o atingiu no braço. Ele fez um som de dor, saltou para trás novamente e completou: “preciso viver o momento, não antes, não depois…”
A voz de Robert estava estranha. Paul ergueu a armação do óculos, empurrando-a com o dedo até a base de seu nariz. Medo. Ele está com medo. Uma idéia se formou na mente rápida do garoto e ele repetiu as palavras do amigo, sussurrando para si mesmo.
Um sorriso cruzou seu rosto e Paul andou para perto do Homem da Bruma.
Antes do segundo passo, no entanto, o Corvo explodiu de Jimmy, batendo as asas em uma confusão de penas negras. Jimmy caiu, apoiado nos braços, e um homem desconhecido surgiu ao seu lado, sangrando em cascata do estômago. Rápido, Paul escutou em sua mente, ele está morrendo, Paul. O Guia está morrendo!

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Palavras de Minhas Palavras de Adeus

Escritores tem um fetiche não declarado por cadernos, cadernetas ou qualquer outro conjunto de papéis que pode ser rabiscado. Uma fantasia literária que surge da brancura de um papel que será preenchido com possíveis idéias.

Tenho cadernos de todos os tipos em casa e, sempre que vou a papelaria, me vejo admirando-os. Mesmo que tente organiza-los, na falta de tê-los a mão o tempo todo, qualquer papel é útil para uma anotação.

Quando desejo jogar um antigo caderno escolar fora, tenho de folhea-lo com cuidado para saber se por acaso não deixei um texto, um poema, uma frase que achei interessante anotar e que seria material para contos natimortos.

Guardo rascunhos rasgados de cadernos diversos, de maneira desordenada, na esperança de um dia encontrar uma ideia genial ou um bom texto perdido.

Tenho um desses de uma matéria, com cem páginas, e uma paisagem na capa e a frase No Stress. Contas, listas de mercado, anotações gerais e idéias. Nele reencontrei uma canção que há muito tempo não me lembrava. E utilizo a palavra canção com precisão, pois, ela foi feita dessa maneira. Com versos mais leves para ser cantados, com uma urgência melódica, sem perder a profundidade mas, ainda assim, cadenciada com rimas.

A temporalidade me deixa distante de sua criação mas recordo-me da noite depressiva e triste pela discussão com alguns amigos, motivo que me fez rabiscar palavras em meados de dois mil e seis ou sete.

Empunhando o violão fiz alguns acordes e comecei a cantar a esmo. Mas escrever para amigos não é tão pungente quanto um amor, me pareceu. Projetei minha dor em outra história criada a partir do lápis. Sim, chega a hora de avisar que estou indo embora antes do fim.

Essa primeira frase me comoveu ao ponto de me fazer chorar. Anotei a base que tinha composto, em Sol, Lá Menor e Fá, e cantei-a milhares de vezes até que outros versos surgissem.

Lembro-me que tentei ser tão pungente e poético quanto Nando Reis, um compositor que admiro. De modo que, duas horas depois, eu sentia-me cansado, triste e com a sensação de ter finalizado uma canção admirável. Poderia ser meu gigante egocentrismo falando por mim, mas o produto final tinha me deixado satisfeito, fazendo valer o sentimento que emulei por duas horas e que me deixou mais depressivo do que quando comecei. 

Tenho poucas canções. Pelo gosto de tocar violão, as vezes faço letras em cima de melodias que invento por diversão ou desafio. Assim como já musiquei poemas de amigos. Dentre esse pequeno cancioneiro tímido a força desta canção carrega uma verdade tão profunda que não sei como saiu de mim. 

E era essa a história que queria lhes contar antes de apresentá-la, ainda que não integralmente pela falta da melodia.


Minhas Palavras de Adeus

Sim,. chega a hora de lhe avisar
que estou indo embora antes do fim.
Assim desapareço de repente
enquanto você, sutilmente, saia de meu coração.

Não, não vai haver perdão nem volta.
Estou agora trancando a porta
e lá fora o sol vai me iluminar.

Me dar a felicidade que se foi um dia.
Seu sorriso que era minha alegria
agora é triste como sombra que nunca vai passar.

Sei quanto bonita foi a nossa história.
Trago o mais belo dentro da memória
mas porque você teve de me deixar assim?

Ô. Diz para mim?
Diz.

Calma. Sei que os desejos mais belos da alma
devem estar além dessa construção
que hoje se arruinou.

Foi você quem me guiou na sua estrada.
E refazendo a sua jornada 
deixou a mim e nossas malas para trás.

Parto. Vestido um desejo quase morto.
Lembrando dos seus olhos que me diziam
que nunca fui-lhe um porto.

Nossa foto antiga e desbotada
ilustra um amor da estação passada
e a sensação de que ainda quero mais.

Guarde seus nobres planos com seus triste enganos
que daqui há muitos anos você vai lembrar
de mim quando chorar.

Ah, minhas palavras de despedida
são o meio dessa partida
onde vou embora, embora não queira
lhe dizer adeus
e te abandonar.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

todo canto é canto

- Sabe, cara, eu não tenho muito o que dizer. Assim, eu tenho muita coisa, claro, mas eu dificilmente digo, sabe como é? Dificilmente digo, especialmente se não tenho ninguém comigo, ou ninguém falando comigo. Eu até falo muito, mas é tudo de reação. Eu sou reativo, bicho. O que eu faço, tudo que eu faço, é sempre em resposta a algo, alguém, alguma coisa, alguma história. Mora? Porque, cá entre nós, nada mais foda que fala de maluco pancada, né não? Não acha? Então. É o que eu tô te falando, irmão. Mas vê só, tô te falando só porque perguntou, tu perguntou quando sentou aqui e agitou as duas, ahn, coisas aí, antes de coçar o nariz, virar a cana e pedir bis, pedir mais uma pra garçonete. Aquela ali, não a loira. A mais baixinha, a que quer confete quando faz gracinha. Ô garçonete boa, vou te falar, boa boa boa, e a cerveja tá sempre geladinha, mas é cheia de graça essa mina. Não sei se é só comigo, tomara que não, porque o santo não bateu, sabe qualé? Bateu não, apesar de ela ser um avião. Como não? E tu é o que pra dizer isso, Gisele Bintche? Ah, vá.

O salão estava vazio, as luzes fechadas, cadeiras por sobre a mesa, e com uma velha cerveja enlatada o doido falava, sentado à calçada, com uma mosca.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

As Brumas do Farol 8 - O Guia (I)


Estavam cegos pela Bruma. Seguiam em linha reta para evitar sair da estreita trilha, pouco mais que uma pequena depressão apagada em seus piores trechos, quase tocando um no outro. Podiam ouvir os passos arrastados nas gramas e o suave movimento do vôo baixo de John. Nos dias que seguira à travessia da ponte, Robert liderava o grupo em uma interminável andança pelo Bosque. Tudo seguia normalmente. Eles sabiam que havia algo perigoso no meio das Brumas -
o Homem das Brumas - e que precisavam encontrar o Farol o quanto antes, mas eram obrigado a caminhar lentamente, cautelosos para não tropeçar no acidentes que pontilhavam a trilha. Paul tentava entender a situação o melhor que podia, mas as informações acumulavam em sua cabeça. Havia o perigo latente da entidade que permanecia dentro da Bruma, sem mencionar as bestas que passavam por eles há apenas alguns passos, felizmente cegas pelo grosso nevoeiro que a todos cercava. Pelos céus, essa maldita Bruma está viva. Tudo nesse maldito lugar está vivo e quer nos devorar! Maldição! Maldição! Tudo estará bem, desde que fiquemos no nosso caminho para o Farol. E realizar algum grande feito. Chegar até o Farol era apenas uma parte problemática daquela complicada equação, o garoto sabia. Enquanto os outros andavam, de certa forma confiantes de estarem no caminho correto, Paul remoía constantemente os acontecimentos em sua cabeça. O velho da ponte, a orquídea venenosa, a mosca gigantesca e a mensagem no corpo do coelho… Conte-me mais sobre essa tal de Alice e seu coelho, ele pensou com um sorriso irônico estampado no rosto.
“Parem!” Robert disse de forma cortante e todos congelaram os passos. John se jogou no chão e permaneceu em silêncio. “Uma encruzilhada.”
Paul olhou para a trilha e viu apenas o cinza da Bruma penetrado em sua visão. Maldita coisa. “Uma encruzilhada?”
“Sim,” ele respondeu. “O velho nos disse para seguir a trilha, não havia nada sobre uma encruzilhada.”
Após andar alguns passos e ultrapassar Robert, Paul olhou para a bifurcação alguns metros dele. A trilha estava cortada por um pequeno monte de terra e grama, suavemente a separando em dois caminhos distintos. “John? O que você consegue ver?”
O Corvo bateu as asas prontamente e desapareceu no céu sem vida que os cobria. Tudo era Bruma. Mesmo acima, o manto cinza tornava impossível distinguir a continuação dos dois caminhos. John desceu até o ombro de Paul e negou com movimentos rápidos de sua cabeça de pássaro. Não, camaradas, me desculpem.
“Podemos nos dividir”, Paul sugeriu, arrependido no momento em que a última palavra saiu de sua boca. Não… dividir o grupo não podia ser uma boa idéia.
“É a única saída, se precisamos alcançar o Farol.” Olhando para uma das trilhas, Robert mantinha ao menos uma das mãos em sua arma. Jimmy adiantou-se e colocou sua mão, etérea, no ombro do samurai, alarmado com a idéia que escolhiam. Devemos continuar juntos, ele disse na mente de Robert - a voz fazia seu cérebro coçar, uma sensação terrível -, separados apenas ajudaríamos o Homem da Bruma. Além disso, precisamos do Guia e não tenho a mínima idéia de como encontrá-lo. Eu preciso encontrá-lo, Robert. Tenho de trazer o Guia para a Bruma. Mas como? A Jimmy cabia o papel de encontrar o Guia em um caminho onde não podia encontrar a si mesmo. Os garotos sentiam que a Bruma penetrava em seus pensamentos e raciocinar se tornava cada vez mais difícil.
Estavam em um impasse. “Bem”, Paul disse depois de alguns minutos de indecisão. “O que podemos fazer é escolher com base na chance de sucesso.” Inconscientemente sua mão se movimentou, como se estivesse lançando dados. Gostava de ler sobre RPG e sonhava em ter amigos para poder participar daquele jogo misterioso. Conhecia todos os modelos e suas regras, tinha histórias inteiras escritas e esquecidas em uma gaveta, envelhecendo ser qualquer chance de ser mostrada ao mundo; magia que perdia sua cor conforme ele se apaixonava pelo mundo do conhecimento e deixava para trás os dragões e os magos. Pelo menos até ser jogado no meio da loucura em que se encontrava. Não havia jeito, fora metaforicamente abocanhado pelo Dragão. Portanto, lançaria os dados. Naquele momento, Paul pensava como líder, considerando a situação em um quadro maior. “Nosso objetivo é encontrar o Farol e o que estiver em seu topo. Se nos dividirmos, ficaremos mais vulneráveis. Ou podemos arriscar um dos lados e teremos uma chance de 50% de acerto. Acho que ainda assim é melhor seguirmos juntos. Metade é mais do que… bom, nada, considerando onde estamos.” E que morreríamos miseravelmente sem sua espada, Robert, completou em sua cabeça. Jimmy o encarou - o rosto sem face, impassível e ainda assim intenso - como se pudesse ler seus pensamentos e compartilhasse da mesma opinião.
Um barulho, quase um grunhido grave, surgiu da direita e praticamente decidiu o que fariam em seguida. Os quatro garotos pegaram a trilha da esquerda e correram, tentando se afastar dos sons ameaçadores que pareciam se aproximar. A trilha continuou por alguns minutos de corrida até chegar em outra bifurcação, onde eles escolheram novamente a esquerda. Depois de mais algumas centenas de metros, a trilha se dividia mais uma vez e eles escolheram, sem pensar, a direita. Enquanto corriam em linha reta, seguindo por curvas aleatórias, Paul lutava contra os músculos fracos e o suor que ardia em seus olhos. Sentia um deseepero crescendo no peito, ameaçando paralisar as pernas que ardiam como se alguém tivesse espetado uma grossa barra de ferro quente. Foi quando notou algo na bifurcação que se aproximavam. Agiu rápido e gritou para que seguissem na esquerda e alguns metros depois, lançou para o chão uma das barras de alcaçuz que tinha no bolso do uniforme rasgado. Se estivesse correto…
Eles escutavam passos pesados em perseguição, acompanhados por uma respiração longa, calma e assustadora. Robert sentia uma energia maligna exalando da criatura que os caçava e John grasnava repetidas vezes.
Sem surpresas outra bifurcação surgiu pela trilha que seguiam, dividindo-se em dois: esquerda e direita. A Bruma engolia as duas opções e eles não podiam enxergar mais do que alguns centímetros. “Esquerda”, Paul repetiu, entre golfadas de ar. Eles escolheram a direção indicada e depois de poucos metros, ele parou e apoiou as mãos nos joelhos, fazendo com que todos interrompessem a corrida. “Olhem”, apontou com um dedo trêmulo para o doce deixado por ele mesmo. “Estamos presos em um caminho que se repete… um loop, acho que é isso que eles chamam.”
De um lado, um caminho confuso e traiçoeiro, de onde nunca conseguiriam sair; do outro, provavelmente o horror do qual todos os outros monstros fugiam.
Jimmy sabia que era preciso agir. Tinha que confiar em seu instinto… e no Corvo. Agarrou John com uma das mãos e alcançou pelas Terras Distantes, onde encontraria o Guia.
Robert sacou de sua espada e esperou pelo monstro da Bruma. Não havia escolha; estavam presos em um labirinto com o Minotauro. Caíram na armadilha da névoa que os envolvia, mesmo depois de todos os sinais de perigo e avisos dos estranhos que encontraram no caminho… eles precisava proteger seus amigos, precisava relaxar e viver o momento. Estava pronto para o embate. Respirou profundamente, inalando e exalando com calma. Prestou atenção no ar que entrava pelas suas narinas. Aprendera na escola que o ar era levado para todo seu corpo pelos glóbulos vermelhos. Imaginou milhares de pequenas bolas de oxigênio sendo levado para todos os seus órgãos. Respirou e deixou para trás o passado, onde ele deveria permanecer. Respirou novamente e não mais havia o futuro. Mais duas vezes e o resto do grupo estava em algum lugar distante de sua mente, enterrados pela tensão do momento. Vivia pelo momento. Em suas mãos, o pincel. Cada corte é único e ficará eternamente gravado para que todos possam ver. Eu preciso pintar minha obra-prima.
Das sombras cinzenta da Bruma, surgiu a maior ameaça que vivia nos labirintos da névoa que tomava todo o Bosque.
Viva pelo momento. Robert não esperou e disparou o primeiro corte contra o terror da Bruma.


Meu nome é Jonhatan Raymond e vivo em um mundo que não é meu. Pertenço ao submundo de Londres, onde posso conquistar o dinheiro que coloca pão na mesa de minha casa, vivendo uma mentira televisiva todas as manhãs, dormindo com uma mulher que é a esposa de outro. De um homem que teve a realidade arrancada por minhas próprias mãos. Agora vivo sua vida. Sou um substituto. E logo eles me pegarão. Neste ou em qualquer outro mundo. É o que acontece, sabe? Eles chegam com aqueles carros enormes e negros, disparando primeiro e perguntando depois. A cavalaria da metafísica, perseguindo e eliminando os elementos que estão onde não deveriam existir. Eu sou o alvo. Eu sou a variável e preciso ser apagado.
Mas eles terão que me pegar primeiro. E, por Deus, eu vou lutar com unhas e dentes antes de me entregar.
Eu vivo uma mentira, mas o doce toque da mulher em minha cama, o calor de sua carne, é real.
Meu nome não é Jonhatan Raymond. Essa é a minha máscara. Meu nome é Chandler D. Humphring. Ou eu achava que era.
No momento em que você e puxado para a neblina, e é aqui que minha historia começa, seu nome deixa de ser uma palavra conhecida e passa a ser um segredo.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

T. I.

Duas horas da madrugada de um domingo. A tampa do computador portátil acaba de quebrar, impedindo que a tela fique aberta. Duas opções: desistir ou apoia-lo na parede atrás da escrivaninha. Nível de conforto para digitar com mãos esticadas e corpo arqueado: zero.

Segunda – Feira. Na busca do navegador, lojas de computadores na cidade. A lista é curta. Não, não trabalhamos com notebook ou somente com formatação. Penso em desistir. Técnicos de computadores são todos filhos da puta, sem exceção.

Levar um computador para consertar é sempre uma experiência traumática. Os técnicos reconhecem que seu conhecimento é maior que o do cliente e fazem questão de produzir um abismo de superioridade, normalmente, tratando qualquer defeito como um pequeno problema simples. Uma maneira de dizer que você, cliente, é um estúpido por não saber como resolver.

Há dois anos tive o mesmo problema da tampa quebrada. Mas, em outra cidade, fui até uma loja de informática que já conhecia. Talvez fosse mais fácil ligar para esta loja, encomendar a peça e pedir a montagem em um final de semana próximo. Peguei o telefone e novamente consultei a busca online.

- Olá, sou um cliente da loja e tive um problema com a tampa do meu notebook. Da outra vez vocês que encomendaram a peça para mim.

- Me informe seu nome.

Informo soletrando as letras do sobrenome. Vejo-o no telefone rindo de mim. São todos desgraçados.

- Localizei o cadastro. É um notebook Dell, modelo Latitude?

- Sim, exatamente. Precisaria encomendar outra tampa pois aconteceu o mesmo problema.

- Perfeito. Traga aqui para verificarmos e encomendamos.

A princípio, imaginei que o vendedor tivesse se expressado mal. Perguntei-lhe novamente o que tinha dito, mas ele repetiu as mesmas palavras.

- Como assim?

- Precisamos ver o computador antes.

A mesma sensação de derrota de uma hora atrás tinha me atingido. Eu mandaria-o a merda se isso adiantasse.

- Mas não estou te dizendo o problema dele? É encomendar a mesma peça e me ligar quando chegar para que efetuem a troca.

- É uma norma da empresa averiguar o computador antes de qualquer pedido.

- ...

- Senhor?

- ... bom.

Eu teria desligado o telefone se tivesse uma opção. Tentei argumentar, localizando seu bom senso.

- Eu não posso ficar sem meu computador, é o único que tenho e trabalho com ele. Tenho uma tese para fazer – pensei em gritar diversas vezes as mesmas frases na esperança que o protocolo mudasse.

Emtão, há alguns dias o pc está aleijado, entortando-me junto pela posição ruim. Vou para a cama, pego um caderno e começo a rabiscar um conto manualmente. Três parágrafos e as mãos latejam. Insisto e a caligrafia parece um bêbado no meio fio. Desde quando desaprendi a escrever com minha própria letra? Penso no técnico, na loja, nem repito os xingamentos pois já se tornaram um mantra.

Desisto da cursiva e volto ao computador. Posiciono a cadeira no melhor ângulo possível mas as costas gritam debaixo da pele. Mais um pouco, peço, aguente mais alguns dias. Mas estou impassível. Amanhã, prometi a mim mesmo, procurar outras lojas do ramo.

Sei que o computador ficará assim alguns meses até que eu tome uma decisão. Enquanto isso, vou rabiscando bobagens com raiva pela situação ruim de escrever um texto sem o local adequado. Tudo bem, no final de semana eu levarei na loja. Talvez eu veja um novo computador reserva. Um desses mais baratos para emergências. Talvez, eu gostaria de ser um milionário excêntrico que, a cada defeito do computador, jogasse-o no chão com um pouco de alcool e deixasse-o queimando enquanto gritasse frases incentivadoras como queime, desgraçado, queime. Para, em seguida, ligar outro novo em folha.

Enquanto isso, meu amigo manco e eu produzimos. Ainda que em letras tortas.