quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Como Durazzo Recomendou

"nesta semana
não escreverei
vivais vós as vidas
de vocês"

Leandro Durazzo, sem título, in Mísera Mesa


nesta semana
não escrevi
porque estava
fazendo sexo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

julio

- É por isso que meus pés estão sujos de lama. Estou te dizendo, andei duas horas naquela floresta, com a cara no sol e a sola da bota batendo no barro, estou te dizendo. Não sei quê me deu, só sei que fui - como sempre.

O interlocutor bebia calmamente, fumava um cigarro sob o aviso de "é proibido" e olhava o amigo. Além das lamas nas botas, o amigo tinha a alma na lama, isso era fato. Ao menos ontem, pensava o interlocutor, ao menos ontem ele estava na lama. Mas agora...

- Desci do ônibus e vi uma trilha por entre as árvores, pra lá da cidade. Era outro caminho, não sei bem pra onde, era um caminho sem estrada asfalto fumaça sem gente e com mais sol que o normal na cidade. Sei lá. Só sei que fui.

O narrador sorria. O outro pensava, entre um gole e outro, que ele talvez não estivesse mais com a alma enlameada. Fumava.

- E por duas horas andei ali, seguindo a trilha, às vezes direita, às vezes esquerda, pisando nas poças e, volta e meia, parando um pouco pra olhar o lugar. Era engraçado, sabe? Aquela floresta cheirava a igreja. O cheiro bom de igreja, cheiro de incenso de igreja, mas tinha mais sol e brisa, e os pássaros cantavam. Andei lá por horas. Duas, acho.

O interlocutor era silêncio. A floresta também.

- Só sei que, quando vi, estava ao pé de uma igreja enorme, já fora da mata. Não sei. Uma igreja enorme. Durante o caminho minha cabeça parou de girar e pensar em mil coisas, lembrei a cada passo de apenas pensar em andar, durante a floresta eu não estava preocupado com nada e a mata cheirava a incenso. Chegado na igreja, não sei... as coisas mudaram. Lá não havia silêncio, tinham pessoas demais e o padre falava pelos cotovelos.

Ambos se olharam.

- Quando olhei pros meus pés achei que não havia lama suficiente. A trilha continuava chamando, em silêncio. Eu gosto de conversar assim.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De Frente Pro Crime

As duas iniciais do nome estamparam jornais. No caderno Cotidiano, em reportagem mirrada, o texto narrava desde a abordagem, passando pelo breve cárcere enquanto as ligações para a família aumentavam. Um dia inteiro em pânico que tivera sorte, com um final feliz para a moça.

Ao lado dessa notícia, mais três estavam sobre a mesa da sala. Dispostas lado a lado e recortadas com esmero, dignas de um caderno de recortes. Como ele pediu, a identidade da esposa fora preservada. Uma notícia errou a idade, outra informou uma agressão física que não existiu. Ele pensava que a violência psicológica já era o bastante.

Era tarde da noite. Caminhou até o quarto do casal e observou a esposa. Sentou ao seu lado na cama, vendo a respiração subir e descer. O copo d´agua estava pela metade. Fora ele que, três horas atrás, lhe trouxera para que tomasse os sedativos. Recomendação médica para o ataque que ocorrera há dois dias.

Sua jaqueta brilhou no bolso localizado do lado esquerdo. Era possível ouvir um leve zumbido. Caminhou para fora do quarto, fechou a porta silenciosamente com cuidado e clicou o botão atender do celular.

Poucas frases foram ditas. Cessou a ligação, foi até a sala, pegou as chaves e desligou a tevê que, até então, estava emudecida. Saiu de casa com medo de confrontar o porteiro a uma hora dessas. Desceu pelas escadas para evitar o velho elevador barulhento. No térreo, pela janela de vidro, observou se Jeremias estava na portaria. O velho, as vezes, tirava uma soneca no quarto ao lado. Mas o sono era leve, não era ruim no trabalho.

Intensificou sua própria expressão de cansado, preferindo exagerar os fatos como uma desculpa. Abriu a porta da escadaria sentindo-se estúpido por ter evitado o elevador. Se conversaria com o porteiro de qualquer maneira, porque pegou outro caminho, como um espião que não era. Assistia televisão demais, pensou.

Jeremias perguntou de sua esposa. Respondeu mentindo sobre o horário que lhe deu os sedativos. Bem como mentiria sobre aquela saída. Insone, procuraria algo para comer. No bairro que estava havia alguns locais com atendimento vinte e quatro horas. Era apenas uma desculpa, mas fez questão de soar verdadeiro.

Saiu do prédio atravessando imediatamente a rua. Dobrou a esquerda e encontrou o sedam azul escuro no local combinado anteriormente. Achou engraçado a seqüência de idéias. Rua escura, carro escuro. Parecia tão óbvio. Sentou no banco traseiro. O homem que estava ao volante se inclinou para fitá-lo nos olhos.

Eu tenho cara de motorista, Fábio?

E assim, foi para a parte da frente. Perguntou sobre o amigo do homem do volante, aguardando a resposta que ansiava. Estava no outro ponto de encontro, como desejado.

O tráfego estava calmo a essa hora. Ruas desertas. Pensou que a cidade poderia ser dessa maneira também às quatro da tarde. Um ninho vazio. Conforme reconheceu a proximidade do local de chegada, seu estômago embrulhou. Não recordou quando fora a última vez que tinha colocado algo na boca. Talvez na conversa com a polícia anti-sequestro tenha tomado um café. Sim, tinha. Lembrou-se das bolachas duras e adocicadas.

Que foi, Fábio?”, perguntou o homem do volante.

Azia”, respondeu.

O homem abriu o porta luvas e lhe deu uma barra de cereal. “Coma, meu filho deixou aí mais cedo. Tenho milhares dessas em casa, o garoto viciou”. Fábio comeu para não sentir-se mal. Não tinha fome.

O carro prosseguiu em linha reta por mais dois quarteirões e, subitamente, virou a esquerda. Uma rua escura seguida de outra rua escura. Lembrou-se da obviedade do sedam lhe esperando na penumbra.

No final da segunda rua, havia um carro parado em transversal. Era um automóvel velho, enferrujado, que se não tivesse com um dos faróis acesos, lhe daria a impressão de ser inútil como veículo.

Ao pararem o carro, o homem do volante saiu de súbito. Fábio permaneceu no carro, compondo a coragem pela respiração. Ainda sentia o sabor dos cereais nos lábios. Saiu.

Pelo colarinho, Jorge segurava um homem. Utilizando o encosto do banco da frente como proteção entre ele e o meliante. Fabio lhe deu um aceno respondido com um meneio de cabeça.

O homem do volante se aproximou. “Fábio, você tem certeza?”. E no escuro, parecia que seu rosto apresentava alguma dúvida.

Tenho sim”, respondeu e ficou em silêncio.

Olha, te direi. Isso muda a gente. A primeira vez que numa diligencia observei um homem sangrar... Confesso, fiquei algumas noites sem dormir, exagerando no café para evitar o sono... Acostuma-se, claro. Mas você não parece homem disso. Se quiser desistir, há duas quadras daqui tem um boteco. Nos espere lá que, em vinte minutos, terminamos o serviço”.

A polícia anti-sequestro conseguiu resgatar Marina, sua esposa, as 20 horas de uma terça feira. A descrição que fez de um dos sequestradores não era precisa. Mas evidenciava uma cicatriz na sobrancelha e outra no queixo que parecia mais um estilo do que um símbolo de violência. A imagem pictórica trouxe aos históricos policiais um homem procurado em mais dois sequestros e um latrocínio. Conhecida figura carimbada, cujo nome popular era Mágico.

Era um apelido sem graça. Porém, como os registros de seus crimes tinham um espaçamento de dois anos cada entre eles, a polícia supôs que, a cada quebra da lei, o homem desaparecesse, como mágico. E, atraído pela podridão da metrópole, voltava talvez tentando uma boa vida mas caindo naquilo que sabia fazer bem.

Era quarta-feira. Portanto, dia seguinte ao resgate de Marina quando Fábio prestava seu depoimento final ao delegado. A notícia da prisão do meliante chegou ao seu conhecimento na hora, por um policial indiscreto em relatar o acontecido. Esse policial era Jorge. Imediatamente seus olhos tornaram-se revoltosos. Queria matá-lo. Fazê-lo sofrer como a esposa sofreu durante o sequestro.

Não foi preciso muito para convencer os três envolvidos na prisão do meliante de que o melhor a se fazer seria acabar com aquele sequestrador. A polícia, palavra de um deles, poderia fazer isso, sem problemas. Mas com o salário baixo, um incentivo sempre é visto como positivo.

Fabio não hesitou em suas economias. Retirou o que pode do banco e, um dia depois, ofereceu a policial que, na ocasião, também estava ao volante. “De bom tamanho”, respondeu. “Bem simbólico. Normalmente fazemos por mais. Mas estamos ao seu lado. E, assim, tem a garantia de que prestaremos um bom serviço ao senhor”.

Fora essa história que relembrou naquela escuridão. Olhou para o bandido e sua raiva explodiu. Aproximou-se do meliante. Um de seus olhos estava inchado e outro parecia ora disperso, ora com medo. Desejava uma resposta dele.

Me diga, por favor, porquê?”. Tentou ser firme, mas parecia suplicar ao bandido.

Fábio buscava uma razão superior, diferente daquela que sabia que seria a resposta. Facilidade, dinheiro, drogas, o que fosse. Não importava. A resposta que procurava não estaria lá. Pela inércia da resposta do homem, Fábio ergueu a mão esquerda e lhe bateu. Um estampido forte em uma das faces do homem. Não sangrou, mas deixou o bandido assustado, centrado naquela situação que deveria saber que seria definitiva.

Fábio, Fábio, o que é isso? Nós prometemos outra coisa. Conseguimos até o carro para parecer outra coisa”. Pela primeira vez, Jorge falava desde o outro encontro. Era o mesmo que tinha colocado o pés pelas mãos e avisado, sem querer, o marido da vítima que o sequestrador estava preso. Seu silêncio até então parecia uma espécie de punição própria por falar demais.

Fábio se recompôs e foi para o espaço combinado, atrás da cena. Desejava ser apenas um expectador. Encomendar a morte do bandido seria funcional, mas não lhe daria uma realização completa. Precisava ver. De longe, acenou com a cabeça para o policial falastrão, era o sinal de que tudo poderia ser realizado.

O homem do volante aproximou-se de Fábio estendendo uma das mãos, um contrato entre homens. “Espero que com isso fique em paz”, lhe disse.

O reencontro de Fábio com a esposa, ainda na divisão anti-sequestro, fez seus olhos se encherem de lágrimas. Enquanto o peito, ainda aprisionado pela dor, precisava se libertar de algum sentimento até então desconhecido. Observar a esposa em agonia, sem dormir até o nascer da madrugada, o transformou em um homem infeliz, decidido a ir a um ponto extremo. A gota d água fora quando, no dia seguinte, viu o bandido sendo preso, gritando que nada fez.

Fábio?”, chamou novamente o policial.

Sim, ficarei”. E continuou a fitar o meliante, ainda que de longe. Tirou os óculos do rosto, limpou-o na camiseta e novamente pôs seus olhos nele. Queria gravar todos os detalhes da cena. Pensou que o seqüestrador deveria ter ido embora. Mas, provavelmente, ficara na cidade para comer alguma vagabunda antes da fuga.

O policial poderia discursar. Dizer que não reconhecia a diferença entre polícia e bandido, bom e mal, mas afirmou apenas que gostava daquele momento. Da pequena vantagem de destruir a escória. Utilizaram uma arma recolhida em uma invasão de um morro. Arma que não está nas fotos iniciais nem no relatório. Era velha, pesada, mas funcional.

Clemente, Jorge lhe perguntou se haveria algumas últimas palavras. Ouviu Fábio gritando de longe.

Espero que você vá para o inferno e pague tanto aqui quanto lá pelo que fez, filho da puta”. Depois se arrependeu de ter gritado. Alguém da redondeza teria ouvido? Provalmente, não. Local ermo demais.

Foram três disparos rápidos em direção ao meliante. Em um deles a arma vacilou, mas dois o acertaram em cheio fazendo sua cabeça explodir e pintar um dos vidros do carro. Aquela morte, dentro do carro velho, pareceria acerto de contas de um traficante da redondeza. Uma estratégia fácil.

Fábio prendeu a respiração, deu um rodopio e ficou de cócoras. Agredido pela alta dose de adrenalina e medo. Vira um homem morrer e, pior, fora graças ao seu comando que perdeu a vida. Levantou-se novamente e caminhou até o morto. Mesmo ensanguentado conseguiu distinguir um fio de expressão nos olhos, imagem que seria gravada em suas próprias retinas.

Sua esposa está melhor?”, perguntou Jorge.

Sim”, respondeu Fábio.

Tome cuidado da próxima vez. Não é sempre que damos a sorte de flagar o imbecil quase cometendo outro crime e ainda topar com a vítima do anterior”, e fora a vez do segundo policial lhe dar uma das mãos como firmamento.

A viagem pareceu demasiadamente demorada. Sentia fome novamente. Nova fome renovada. Pediu para que o homem do volante parasse o carro a cinco quadras de sua casa. Comeria um lanche em um carrinho e de lá voltaria a pé.

Encomendou para viagem, assim estaria em casa com mais rapidez. No prédio abriu a porta com a própria chave. Jerônimo cochilava e assim era melhor, evitava perguntar. Foi de elevador para seu andar.

A luz da sala estava acesa. Não lembrava se apagara ou não. No quarto, a esposa dormia na mesma pose, com o mesmo respirar, o copo d´agua sem nenhum outro gole.

Pôs o lanche sobre as notícias recortadas e mastigou-o em longas mordidas. Aos poucos, o alimento foi engordurando as notícias. Mas não se importava. Daquele momento em diante elas não serviriam mais para nada. Contavam apenas um fato que tentariam esquecer que aconteceu.

A vítima M.A. foi assaltada e sequestrada na saída de um conhecido mercado da cidade. Leu em um parágrafo aleatório. “Não mais”, disse a si mesmo. Fizera questão de tirar esse homem de circulação, dessa para a melhor, pensou. Não se sentia infeliz ou ruim por isso. Demoraria um longo tempo para que sua esposa voltasse ao normal. Achou necessário que o meliante pagasse um preço por isso.

O sanduíche gordo de carne, bacon e queijo desceu macio. Ligou a televisão e com os pés derrubou a notícia e a embalagem da comida no chão. Amanhã tudo estaria em paz.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

a zia

Ressaca. O salto da garçonete parece batucar no assoalho de sua mente. Madeira. Ponta de ferro. Ponta de ferro? Ponta de ferro. Um novo modelo, supõe. Algum desses saltos da moda, da estação. Que estação, a propósito?

Primavera quase verão? Outono quase inverno? Não sabe, de fato. Só ouve o sapato. O toc toc se aproximando, pelo menos, é sinal de que a bebida vem. Foda-se a batucada.

Quarta-feira de cinzas sem carnaval. E numa segunda. Pior que nem é a primeira vez. Qual será?

Sabe não. A cachaça chegou e os saltos batucam pra longe. No fundo da mente um demônio espera o banho de álcool. Marcílio bebe de um gole e, com o fósforo aceso, incendeia a si mesmo. Por dentro. Que o demônio vá pro diabo que o carregue.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011


Marry me


Sim, amar é a coisa mais doce que existe.

Mas há ocasiões em que é imperativo saber abrir mão do amor, por maior que ele seja.

Quem já fez, como eu já fiz, algo equivalente a pintar uma bicicleta com canetinha vai entender o que estou querendo dizer.




Em tempo: o curta é velhinho, de 2008. Hoje o menino nem deve mais ter aquele mullet estilosão. Direção de Michelle Lehman.


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Desejo

Desejei com todos os motivos que me destes pra desejar.
Nada se consumou.
Morreu.
Chorei.
Com todas as magoas do meu pobre coração motivado por ti.
Não evaporaram-se minhas lágrimas.
Molhado vaguei por aí.
Destruído por desejar.
Desfaleci.
Algum tempo depois me vi internado.
Me tranquei por muito tempo.
Tanto tempo para te apagar.
E retorna agora para me atormentar ?
Me dá mais motivos para não se confirmar.
Não considera a possibilidade de sumir e nunca mais retornar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Encontro Amoroso

Quando se encontraram a atração fora quase imediata. Não eram tímidos e sabiam aquilo que queriam. Estavam dispostos na mesma equação e na mesma sintonia. Conversaram, inicialmente tentando parecer por acaso. Depois desenvolveram uma espécie de elo, buscando consensos em comum, maneira de dizer “sim, temos uma conexão”. E, duas horas depois de tal diálogo, beijavam-se pela primeira vez.

Eram dez horas da noite quando ele derrubou os livros de cima da cama, para dar um espaço para eles. Talvez tenha dito que nunca se sentira assim antes. Era bobagem, ele sabia e ela, se não soubesse, enganava-se.

Enquanto ele a despia, ela temerosa tentava lhe dizer: tenho algo a lhe falar, é importante. Dane-se, pensava. Qualquer coisa que poderia ser dita, poderia ser dita mais tarde. No início, imaginou que seria algo bobo. Poderia ela ser virgem? Não. Impossível. Ele reconhecia aqueles olhos de caçador que observa a caça, como ele a tinha olhado também.

Ela tentava, mas ele irrompia em beijos. Não queria obstruir a ação com um comentário sobre sexualidade, algum problema psicológico ou nada no estilo.

Meia noite, já vestidos, trancou a porta da casa e a levou, a pé, para a casa dela. Ainda era romântico. No fundo, bem no fundo.

No dia seguinte, ele acordou feliz. Tivera uma noite excelente. O telefone tocou, era ela. Após se identificar, as frases se coincidiram. Ambos tinham o que dizer. “Diz você primeiro”, ela pediu.

- Tenho algo para você, comprei hoje, e você?

- Eu não.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

o homem da gravata florida

Doutor Oséas sentado no canto do palco, ao pé do piano, tomando uísque. Oséas feliz arrogante e triste, embora a tristeza não desponte de todo. Oséas tomando outro uísque, o terceiro, passando a mão no traseiro de Ana. Garçonete.

Joshua enxuga seus copos e olha de rabo de olho a Oséas. Filho da puta, merda, pensa ao balcão. Queria expulsar esse Oséas daqui, maldita hora em que precisei de ajuda, maldito dinheiro, filho da puta, Osé arrogante Osé arrogante Osé arrogante.

O doutor coloca os pés sobre o palco, que é baixo o suficiente para não distender nenhum nervo, nenhum nada. Oséas é velho e orgulhoso, com seu dinheiro no bolso e os pés balançando no palco, na cara do Otávio, pianista da banda de hoje. Macacos Molóides cover, o nome da banda, e tocam demais. Otávio é negro e bom que nem o Ray Charles, mas não é cego. Só de um olho, verdade, um olho é de vidro.

Joshua quebra uma taça enquanto a enxuga com raiva nos olhos olhando Oséas. Corta o dedo, Merda!, Diabos!. Ele aparece, então, e Joshua vê entrar pela porta um engravatado, mais velho que Otávio mas menos que Osé. Joshua não sabe quem é, mas desconfia. Já o vira outras noites ali, a beber. Pagava bem e não molestava ninguém, então era um bom cliente, isso era.

O da gravata vai direto à mesa do palco, onde Oséas está, puxa um cadeira, acende um cigarro, senta com ele e sorri para Otávio. Bate no pé gordo Oséas e faz com que caia de cima do palco, sapato de couro caro caindo no chão com estrondo. Maldito, pensa Oséas, já não mais sorrindo.

Maldito momento em que precisei de dinheiro, Joshua continua a pensar. Ana sabe que se não fosse por isso, por esse momento, o gordo doutor já seria há muito expulso do bar. O Clube não é um lugar para gente arrogância.

- Que pensa que está fazendo, moleque? - pergunta o doutor.

O homem da gravata sorri. Agora Osé pode ver que a gravata é florida, numa combinação de cores que ofusca as vistas. Maldita gravata, maldita gravata.

Hoje é o dia das maldições.

- Estou sentado, meu amigo, senhor, estou sentado ouvindo o bom som. Ouves? Esse menino aqui do piano parece um amigo que tive há um tempo, um preto velho que via pouco e tocava muito.

O doutor Oséas não estava ali para conversar, decididamente. Quando saía de casa, à noite, queria apenas beber e botar suas botas na cara de alguém, rir com desdém e se impor sobre o mundo. O homem da gravata, Meu Deus, mas como é bonita esta gravata!, estava estragando sua noite, e o nobre doutor já não tinha mais paciência.

Depois de beber seu gim o homem da gravata sorriu e levantou da mesa. Vou ao banheiro, senhor, logo volto. Cá estarás?

- Ora...

Foi o que Oséas pôde dizer. O homem foi e, estando ausente, deixou o doutor a pensar nas poucas e boas que ia falar assim que voltasse, o homem daquela magnífica gravata. Ainda sozinho na mesa, fechou os olhos e acendeu vagarosamente seu charuto, colocando de novo os pés sobre o palco, aos pés de Otávio.

Sentiu seu pé queimar, por dentro das botas, por dentro do couro. Não sabia se o que queimava era o couro sapato ou o coro do próprio pé. Na dúvida, seus reflexos fizeram o que qualquer reflexo faria e puxaram os pés de volta para baixo da mesa. Quando abriu os olhos estava ali, à sua frente, o homem engravatado. Sorrindo.

Otávio parecia num transe louco, tocando feito um demônio.

Doutor Oséas tinha pensado, mesmo que pouco, nas poucas e boas que ia dizer ao recém-chegado. Petulante, debruçou-se sobre a mesa e começou:

- Olha aqui, rapaz, com quem você pensa que está falando?

O homem sorriu, as cores da gravata tremularam e, cobrindo a mão de Oséas com a sua própria, em cima da mesa, o engravatado piscou para Joshua.

- Não penso. E com o quê você pensa que está falando, meu bom homem?

As mãos sobrepostas amassavam a brasa do charuto, que queimava lentamente a carne do gordo e soltava no Clube um cheiro fraco de enxofre. A atenção do lugar estava em Otávio, desvairado, tocando como num concerto internacional.

Outro copo quebrado, outro corte na mão, Joshua percebeu então que seu Osé não estava sentado. Não estava, na verdade, em canto nenhum do bar. Talvez lá fora, pensou. Mas lá fora não é problema meu. Depois de apanhar a gorjeta da gravata, Ana teve uma noite tranquila e leve como não tinha há muito tempo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Lúcifer

A vermelhidão do céu
(são) resquícios do caído
sinal de morte recente
marcando a verdade nua.

Lúcifer caído está
sofrendo e perdido está
em um labirinto imenso
preso e derrotado está.

O ser de luz é de trevas!

Ele, que um dia já fora
na hierarquia divina
somente abaixo de Deus,
Agora contenta-se
com a baixeza do Inferno?
Jamais!
           Ele almeja o Céu!
E como não pode tê-lo,
Reina, no inferno mas Reina.

Deus, sentado no imenso trono,
ri com um sorriso cruel,
misto de benevolência
e soberba, como tendem
a ser os seres maiores.

E o anjo da luz, tristemente,
desafiadoramente,
do alto de sua soberba
de primeiro dos caídos,
olha para o alto e diz:

"É melhor reinar no Inferno,
que ser escravo no céu!" *






* Better to reign in Hell, than serve in Heav'n. Paraíso Perdido de John Milton, livro I, verso 263, tradução própria feita em cima da edição The Complete Poems da editora Penguin.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Lixeratura

ou nanocontos sobre a arte.

I
Um homem sentado em uma praça tinha a sua frente uma placa que anunciava: troco poemas por alimento. Morreu de fome.

II
Em São Paulo, no shopping mais caro da cidade, há uma livraria. As pessoas passam, olham suas capas procurando objetos de decoração. Figuras que deixem a casa mais bonita.

III
Escrevi para ela um poema de amor. Ela me largou antes que dissesse "eu te amo".

IV
Terminou a última frase da estrofe, finalizando a declamação do soneto. A garota, extasiada, lhe disse: "Adorei. Mas não entendi".

V
- E, o que você faz?
- Sou escritor...
- Só isso?

VI
Neruda, Dickens, Wilde, Poe, Nabokov. Poemas em decassílabos, solilóquios em quatro atos. E, eu? O que faço com essas palavras?

VII
O menino chegou da escola, dizendo para a mãe que a professora disse que faz bem ler. Ela pediu silêncio, pois a novela tinha recomeçado.

VIII
Atualmente, a única maneira das pessoas sorverem palavras é tomando uma sopa de letrinhas.

IX
Marcaram um encontro na livraria. Ele, para impressiona-la dizendo que era um leitor. Ela, pelo café descafeinado e o pão de queijo quentinho.

X
Se não fosse pela literatura, estaria sempre no mesmo lugar.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Business Class

Pouco depois de o piloto anunciar aquela ladainha toda sobre apertar os cintos, máscaras de oxigênio e aparelhos celulares, a rotação das turbinas aumentou e o vôo finalmente partiu, uma hora de atraso. Pelo menos a companhia tem um serviço de bordo decente e, assim que os desfavorecidos da classe veterinária passaram e foram para suas cadeiras, já que chamar aquilo de poltronas é muita boa vontade, a aeromoça, ou comissária de bordo, ou enfim a belíssima dona daquele sorriso industrializado veio solícita me oferecer um drink. Vinho, por favor, branco e gelado de preferência. Não, nada para comer ainda, obrigado. As pernas da aerocomissária que se afastava, por outro lado, não pareciam industrializadas, mas hoje em dia é difícil dizer com certeza. Um vinho seco de sabor argentino e agradável, mais um sorriso com número de série e lá se vão as pernas, me deixando com cinco horas de viagem e nenhuma disposição para ler, escrever ou assistir qualquer coisa.

Três taças de vinho argentino já se foram, deixando-me com essa sensação crescente de que puedo hablar castellano. Uma pena, ou quem sabe uma bênção, não haver nenhum Hermano do meu lado, poderia ser divertido, ou talvez nem tanto. Quando considero erguer a mão para que as aeropernas venham me trazer mais vinho, meus ouvidos são fisgados por uma conversa empolgada e em tom de voz discreto, de cujas palavras não pude entender nenhuma. Árabe? Caramba, porque é que sempre que ouço um idioma estranho em um avião penso em um árabe? Não, não é árabe, é algo mais rude, mais agressivo. Russo, talvez? Sim, russo, é bem provável que sejam russos, ou ucranianos, ou eslavos, enfim.

Agentes secretos desfarçados? Não, estamos justamente evitando clichês, droga. Analistas de software, ucranianos. Tinha um antivírus com nome eslavo, mas não lembro qual. São gays, se conheceram na faculdade de computação, em São Petersburgo, o de voz mais grossa já devia namorar garotos desde a escola, mas o de voz mais fina provavelmente só se encontrou quando conheceu o Yuri. Yuri Gredenko?

Ok, parece um nome melhor que "russo da voz grossa". Yuri e Ivan começaram a namorar no último ano da graduação, e entraram juntos para a empresa de antivírus lá, caramba, não lembro mesmo a porra do nome.

Não importa. Começo a me divertir tentando imaginar o que falam, mas em poucos segundos minha brincadeira é interrompida pelo deplorável choro de uma menininha, cinco anos talvez, que protesta desconsolada para uma avó com paciência homeopática. Pelo menos falavam em português. A matriarca, dançando entre o aborrecimento e a vergonha, tenta subornar a criança por silêncio uma, duas, três vezes. Mas aparentemente meninas de cinco anos têm muito pouco interesse por revistas de turismo, filmes legendados ou miniaturas plásticas do Cristo Redentor. Buscando forças na pequena miniatura, a senhora tenta explicar à menina que normalmente crianças não voam de avião, e é por isso que a telinha tem filme, mas não tem vídeo-game. Por um momento, com três taças de vinho a me dar apoio moral, quase me levanto e declaro meu apoio à menininha. Deus sabe que não faria mal a ninguém se instalassem um Playstation em cada poltrona. Mantenho-me quieto, a menininha reclama com demasiada convicção para ganhar minha simpatia.

Os pais, provavelmente, são empresários, ou executivos, quem sabe diplomatas brasileiros morando na Europa. A menina foi passar as férias com a avó no Brasil, para fugir do Inverno, ou melhor ainda, deve morar com a avó. Sim, os pais se mudam constantemente, vivem mais em hotéis que em residências, trabalham muito e em horários irregulares, e não queriam a filha crescendo nessa loucura. Foi morar com a avó materna, claro, porque os avós paternos não queriam nem saber da pequena encrenca. Como não podem criar, tentam compensar nas férias, e dinheiro para tanto não deve faltar, afinal de contas só o preço da passagem aérea aqui da First Class já é um assalto seguido de estupro e homicídio. Com essa voz, e esse histórico, a netinha da dona ... dona ... Nídia, isso, dona Nídia está bom. Enfim, mimada e irritante como é, a netinha de dona Nídia só pode se chamar Victoria, com c ainda para coroar a prepotência. Se eu fosse dona Nídia, chamava as aeropernas e pedia logo dois duplos de Bourbon sem gelo, uma pra mim e outra pra Victoria, que só ia acordar quando a despachassem pelo setor de cargas.

Levanto-me para ir até o banheiro. No caminho, dou uma olhadela para a menininha. Pele clara, cabelos ruivos em corte Chanel e pequenas sardas enferrujadas nas bochechas. Se não se chamar Victoria, pulo esse avião agora mesmo. O banheiro é apertado, que é para nenhum fundamentalista árabe poder usar como laboratório de explosivos. Toda vez que uso o banheiro, toda santa vez, dou descarga e não consigo deixar de imaginar o avião desovando o embrulho em pleno vôo, que nem uma pomba metálica de centenas de toneladas. Seria divertido, pelo menos para quem está aqui em cima. Lavo as mãos, fecho a porta do banheiro e só então percebo o casal sentado em uma das primeiras fileiras. Ela, quarenta e poucos anos, tão alemã que poderia dizer-se descendente de Otto Von Bismarck. Pálida demais para mim, mas com olhos de um azul cinzento e profundo como os céus de Berlim. Ele, não mais do que 30, mulato retinto, trigueiro, de queixo quadrado, nariz largo e olhar manso como a brisa matinal de Ipanema. Mãos dadas, dedos entrelaçados, e um olhar afetivo da senhora germânica para com o "Menino do Rio" que de maternal, não tinha sequer a perninha do M.

Pois é, eu tentando evitar clichês narrativos, mas as pessoas no mundo real também não ajudam em nada. Quando jovem, a senhora se chamava apenas Karen, e em uma Alemanha falida com o fim da Segunda Guerra, não pôde desperdiçar a chance quando um velho banqueiro declarou a seus pais o interesse em desposá-la. Foi, aliás, o que salvou a família da fome, razão pela qual Karen permaneceu casada, fiel e infeliz com o velho judeu mau humorado e suas repetitivas histórias da guerra até o fim. O fim dele, bem entendido, que morreu de enfarto aos 60 anos, deixando para trás uma mulher de 40 com alguns milhões de dólares e uma vida inteira para recuperar. Nem é difícil imaginar atrás de que veio ao Brasil, e as alianças douradas me confirmam uma velha hipótese de que, com a quantia, o contexto e a abordagem corretas, nem mesmo o coitado do amor verdadeiro escapa às garras do vil metal nesses tempos de globalização. O rapaz, de nome Wéber, é conhecido em Botafogo como Araketu, filho de Mestre Mingo, grande sambista e capoeirista querido por todos. Wéber tinha três irmãos, um cachorro vira-lata e músculos amplos e bem definidos, mas nem o mais vago conhecimento da Segunda Guerra Mundial ou de quem pudesse ser Max Weber, razões todas pelas quais Karen Schneider apaixonou-se perdida e irreversivelmente, tornando-se em poucos meses a senhora Karen Baden-Meyers assinava os documentos brasileiros que, além de garantirem a cidadania alemã de Wéber-Araketu, tornavam-na a senhora Karen Baden-Meyers Dias da Silva. Imagino o que o senhor Jakob, no céu dos judeus, pensaria disso, e deixo o casal para trás, caminhando de volta em direção ao tédio da poltrona.

É quando uma turbulência atinge o avião. Não uma pequena turbulência, pois para quem está no lado dos passageiros, preso numa caixa de metal cheia de gasolina e sem nenhuma informação sobre o que está acontecendo, não existem turbulências leves. A idéia de correr para a poltrona e apertar o cinto me vem à mente, mas francamente, aqui em cima o pior que pode me acontecer é cair no chão do avião, e se o avião por sua vez também decidir cair, não vejo como uma poltrona e um cinto poderiam me ajudar. Quando o característico e inconfundível aroma de pânico começou a ser sentido, no entanto, a voz do piloto veio, tranqüilizadora. Senhores passageiros, estamos passando por uma pequena turbulência, que não deve durar mais do que alguns segundos.

Permaneçam em seus assentos e não se preocupem. Pronto, nada como a voz do piloto, hein? Se eu tivesse uma companhia aérea, programaria os aviões para reproduzir essa mensagem automaticamente em qualquer turbulência, mesmo que o avião fosse cair. Se as pessoas vão morrer de um jeito ou de outro, que pelo menos sintam-se em segurança, oras.

Sento em minha poltrona e aperto o cinto, ainda com a queda do avião em mente. Não, o avião não está caindo, ou já estaríamos abaixo das nuvens, o que posso ver pela janela que não está acontecendo. Mas e se caísse? E se o piloto de repente voltasse aos alto-falantes e retificasse: Senhores passageiros, informamos que houve um erro nas últimas checagens. Na verdade, três das quatro turbinas pararam de funcionar, atingidas por uma revoada de urubus, e duas delas já estão em chamas. Como já estamos longe demais do continente, é provável que venhamos a cair em meio ao Oceano Atlântico, isto é, se a aeronave não vier a explodir ainda no ar, claro. Pedimos sinceras desculpas pelo transtorno.

Imagine só, formaria-se primeiro aquele silêncio completo, como que esperando o piloto completar a piada. Então, dona Nídia agarraria a netinha com a mão esquerda, o Cristo Redentor de plástico com a direita, e gritaria a plenos pulmões: Ai minha Nossa Senhora! Vamos morrer!!! E então, o caos, o empurra-empurra, a gritaria histérica das mulheres, Yuri abraçando o namorado e fazendo a última jura de amor.

Então, a asa direita explodiria, colocando o avião para cair em parafuso descontrolado rumo ao chão. Segurando-se em mim, a aeromoça e seus sorrisos industrializados debatiam as pernas como que procurando um chão, justamente a última coisa a se desejar em uma hora dessas, enquanto o Araketu tentava agilmente pular para a cabine do piloto em busca de um pára-quedas sem grande preocupação aparente com Fraulein Baden-Meyers Dias dos Santos que se agarrava em suas calças. . E enquanto dona Nídia procurava em sua bolsa uma cópia de bolso dos Salmos, a porta principal se abriu, descomprimindo a câmara e levando a pequena Victoria voando e reclamando para fora. A aeronave já chegava próxima do mar, da colisão final que encerraria a cena em um grand finale, quando ouço, distraído, a voz das aeropernas perguntandoem inglês ao Yuri e ao Ivan:

"Senhor Arileya, senhor Zabala, gostariam de ver o cardápio do jantar?"

Arileya. Zabala. Sobrenomes bascos, provavelmente de Bilbao. Não me consta que haja grande número de Yuris, Ivans ou analistas de segurança de dados no país Basco. Diabos, vou ter que começar tudo de novo. Suspiro e peço mais vinho. Ainda restam quatro horas de vôo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

quietação

José tinha dois papéis nas mãos. Na direita, um bilhete ou um poema. A garçonete não sabia dizer olhando assim, de longe. Na esquerda era um poema, com certeza. José tirara da grande mesa literária à entrada do Clube, onde poetas vagabundos deixam suas poesias vagabundas para ver se, algum dia, alguém os lê ali. No Clube é desse jeito: entre e faça o que quiser. Se Joshua não gostar, te enfia um pontapé no rabo e nunca mais te abre a porta. Um lugar democrático, afinal.

A garçonete estava curiosa. Já vira José sentado ali na outra noite, meio chorando meio bebendo, com um sorriso no rosto, e na mão esquerda o mesmo papel que hoje trazia na direita. O bilhete-ou-poema. E, na outra noite, lia incansavelmente o papelzinho. A garçonete tentara olhar o que havia, ao tirar os copos, mas não conseguira. Parecia que não havia nada, até...

José hoje não sorria, não chorava e não bebia tanto quanto antes. Mas bebia, ainda assim. E lia atentamente o papel da mesa literária, e olhava atentamente os homens tocando no palco. A garçonete não percebeu mas, a certa altura, José até mesmo observara atentamente o movimento de sua bunda enquanto andava.

Joshua riu. No palco tocava Big Band Voodoo Daddy. O poema na mão esquerda parecia escrito pra ele, José, de um velho poeta que não ia ao Clube mais.

"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!"

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O bilhete

"Se caminhar sozinho
é mesmo o caminho
que escolhi pra mim
esconde o seu rosto
que para o meu desgosto
eu caminho pro fim."

Leu o bilhete deixado em cima da cômoda, cômoda não alias, era mais um criado mudo... era um bilhete intrigante. Pode o caro leitor pensar que se trata de um simples bilhete de amor, mas nada era tão simples assim. José não se lembrava de um dia ter tido um amor, uma namorada, um namorado (não havia nem se definido ainda). Como poderia então ser um bilhete de amor? Talvez fosse uma brincadeira de algum amigo, um jogo poético. Isso sim é uma boa teoria, mas falha, indubitavelmente falha. O porquê? oras, porque ele não possui nem nunca possuíra amigos.

Deixemos bem claro já, antes de mais nada, que ele também não possui pai e mãe, é órfão, criado num pequeno orfanato que hoje é um consultório de dentista. Trabalha oito horas por dia com telemarketing, em casa, um pequeno apartamento de quarto/sala. Ou seja, nenhuma teoria que os leitores puderam ter feito pode se encaixar ( confesso ser injusto essa competição, já que como escritor, eu decido o que se encaixa ou não).

Sim leitores, não tem como vocês acertarem essa. NÃO, não é uma carta dele próprio, ele não tem propensão à esquizofrenia. E então? Imagino que só o que sobra é uma possibilidade mágica ou religiosa, não é?

O bilhete com o poemeto pode ter aparecido por mágica, sendo enviado por um artista do ilusionismo incrivelmente competente e brincalhão, ou pode ser fruto de uma interferência divina. Como autor, estou mais propenso à segunda opção. Explico. Não sou muito fã de mágicas e nem considero mágicos bons personagens literários, então prefiro conceitos religiosos, são mais amplos e mais facilmente absorvidos pelos leitores.

Fica então decidido que é tudo fruto de uma interferência divina. Cabe ao autor agora decidir qual o foco. Penso que temos duas possibilidades. Ou nos aprofundamos na divindade em questão, o que ocasiona ter que trabalhar alguma mitologia de maneira mais profunda - o que confesso, me desagrada, já que tenho preguiça - ou simplesmente deixamos o acontecimento ter um significado religioso interno. Sim, escolho esse, o aparecimento desse bilhete mudará internamente a vida de José, ocasionando em um futuro totalmente diferente do que ele teria sem o pequeno poema.

A escolha normal seria explicar aos detalhes como cada aspecto da vida dele se modificou e como ele se tornou melhor ou pior por causa disso. Mas não, não creio que tenha tanta paciência para isso, assim como não acredito que vocês leitores realmente queiram ler. Então encerro aqui, deduzam vocês o que aconteceu, já guiei-os por mais do que o necessário para uma grande imaginação, coisa que espero dos meus leitores. Até o próximo texto, que alias, talvez eu só sugira do que se trate, sabe, para economizar tempo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Factóides

Meu nome é Eduardo. Gostaria de lhes informar meu nome para ter a ilusão de que não serei esquecido. Que nos dez minutos que os senhores demorarão para ler este texto, alguma fagulha lhe machucará o coração. E no que termino do mesmo, sensibilizados por minhas palavras, procurarão o nome do autor e, mesmo que somente seu prenome, guardarão mentalmente.

Minha secretária eletrônica marca quatro recados não lidos e não sei se os lerei.

(silêncio)

Desculpem-me. O costume de escritor quase me induz a produzir uma ambientação mais sedutora do que a realidade. Na verdade, estou sozinho na frente de um computador que produz mais barulho que uma britadeira. A tela não me seduz, mas mesmo assim continuo a sua frente. Esperando algo, meu Godot.

Na verdade, tenho quatro mensagens piscando em minha tela. Avisando que chamaram-me no programa de mensagens instantâneas. Hesito em abri-las. Parte de mim questiona-se, como se houvesse um motivo que justificasse este agora.

(silêncio)

Apago cada uma de minhas frases após escreve-las. Desejo cortar o sentimentalismo. As veias que levam sangue ao meu coração. Então, apago. Mais apago do que escrevo. Traços esbranquiçados ondem sobra apenas fragmentos de idéias, partículas da borracha.

Na biblioteca, os livros de Clarice Lispector chamam minha atenção e deleto as frases sem vê-las. Não quero me tornar Clarice. A escritora amorfa cujas palavras são lidas apenas por sentenças sentimentais em redes sociais. Gostaria de escrever um livro mas todas as palavras parecem rir de mim.

(goles de água, então, silêncio novamente)

Disseram-me que o talento que tenho me levaria a algum lugar. Só vejo miséria. Aquilo que componho, ninguém lê. Preciso pedir-lhes atenção, mendigar que pousem os olhos nessas palavras. Há excesso de informação no mundo, televisão, internet, farmville. Leituras só em poucos caracteres. Os romances russos morreram.

Deveria ter trabalhado na televisão. Números, melhor, são precisos. Um bartender, bem possivelmente. Ninguém cansa de beber. Livros são só para escorar as cadeiras que vão ficando coxas.

Estou fadado ao fracasso, senhores.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Mundo de Cristal

Quando a campainha tocou, o menino já estava em pé ao lado da porta, esperando. Passava do meio-dia e o mundo deveria ser entregue naquela manhã. Assinou apressado o recibo dos Correios e girou sobre os calcanhares, dando as costas ao carteiro e correndo apressado para seu quarto. Fechou a porta, colocou a grande caixa sobre a cama e sentou-se do lado. A embalagem de papel pardo tinha uma etiqueta com seu nome, outra com o logotipo do fabricante, e uma terceira com a imagem de uma taça quebrada e a palavra “FRÁGIL” escrita em vermelho. Abriu com todo o cuidado, temendo profundamente ouvir o som de vidro quebrado ou peças soltas, mas quando finalmente removeu a tampa, o mundo estava lá, intacto.

O mundo era uma esfera de vidro transparente com cerca de 50 centímetros de diâmetro com água até um pouco acima da metade e uma grossa camada de matéria orgânica e algas coloridas forrando a base. Algas cinzentas, vermelhas e em vários tons de verde, algumas quase tão altas quanto o nível da água, a maioria das outras variando entre poucos milímetros de comprimento, formando uma paisagem simples, mas que o menino considerou como a coisa mais bonita que já vira na vida. Seus olhos, no entanto, abandonaram as algas e se fixaram, hipnotizados, no pequeno camarãozinho róseo que encontrou escalando uma das folhas maiores. Tinha dez minúsculas patinhas ao longo de um corpo gorducho e rosado de não mais do que um centímetro, e foi o primeiro que o menino avistou entre os oito que lá viviam.

Montou sobre a escrivaninha próxima à janela o suporte que veio na caixa, e sobre ele colocou o mundo. Tinha uma minúscula etiqueta na base da esfera, com o número 4213, e o menino imaginou quantos outros mundos haveriam espalhados por aí.

O mundo tornou-se imediatamente o foco gravitacional das atenções do menino. Frequentava a escola, a natação, as enfadonhas aulas de piano, mas seus pensamentos invariavelmente deslizavam para o mundo, e ao chegar em casa o menino sequer olhava para outros brinquedos, gibis ou jogos. Nem brincar na rua com os outros meninos interessava. Só o mundo interessava. O pequeno e por outro lado infinito Mundo de Cristal, como gostava de pensar. O mundinho de Escalador, Roedor, Covarde, chefe, Ligeiro, Gorducha, Sereia e Namoradeira, nomes com os quais batizara os oito pequenos senhores do Mar de Cristal. Decidira por observação, critério e conta própria que cinco pareciam machos e três fêmeas, e imaginou que essa distribuição cedo ou tarde traria conflitos ao fundo do mar. E durante horas a fio o menino observava silenciosa e atentamente a vida cotidiana dos pequenos crustáceos. O Chefe tinha esse nome porque era o maior deles, e nenhum dos outros parecia querer incomodá-lo por nada. Roedor e Gorducha passavam a maior parte do tempo abraçados em pequenas algas, apreciando ora o sabor das vermelhas, ora das verde-escuras. Sereia e Ligeiro gostavam de nadar, e estavam sempre cruzando despreocupadamente a extensão oceânica do mundo, enquanto Namoradeira nunca ficava longe de um dos cinco machos. Dois, no entanto, atraíam mais sua atenção. Covarde era o segundo de quem o menino mais gostava, ainda que não soubesse explicar exatamente o motivo. Ficava o tempo todo entre as algas com mais de um centímetro, de forma que pudesse se esconder sabe-se lá de quem. De fato, até sua coloração era um pouco mais puxada para o vermelho, e em algumas partes do mundo ele desaparecia totalmente. Logo na primeira semana, o menino notara que Covarde só tinha nove pernas, faltando-lhe uma das duas dianteiras. Teria nascido sem ela e dessa forma se escondia por vergonha de não ser exatamente como os outros? Quem sabe teria perdido aquela pata em uma luta, talvez contra o Chefe, pelo amor de Sereia, Gorducha ou Namoradeira, e desde então não saiu mais da segurança das algas?

Muito diferente de Covarde era o Escalador, seu preferido entre todos. Fora o primeiro que o menino encontrara no dia em que o mundo chegara pelo correio, e parecia gostar muito de escalar as algas mais compridas. Quando chegava ao topo, lá permanecia, às vezes por vários minutos, e então descia flutuando pela água até o chão. Certa vez, o menino agachou perto da escrivaninha em um momento de iluminação oportuna, e notou que de determinados ângulos, era possível ver seu reflexo na superfície da água também pelo lado de dentro. Seria isso que o Escalador tanto buscava? Descobrir quem seriam aqueles oito camarões que viviam no “mundo de cima”? Ou será que o Escalador compreendia estar olhando para o próprio reflexo, e todos os dias subia as maiores algas movido por um instinto completamente narcisista de se admirar mais de perto? Em uma noite, olhando para o mundinho por vários ângulos, encontrou-se pensando sobre como os camarões do aquário o veriam. Um borrão, provavelmente, esférico e com os tons azulados de seus olhos, que perscrutavam exaustivamente toda e qualquer atividade interna durante grande parte do dia. Será que pensavam sobre aquele grande olho azul? Será que olhavam para cima e atribuíam sentido ao que viam?

O menino fechou a janela do quarto. O termômetro interno acusava aumento de temperatura, e o mundinho precisava ser mantido em uma faixa muito estável. Sentia-se responsável por aquelas oito vidas, por seu bem-estar, por sua saúde. Sabia que um dia morreriam, mas não gostava de pensar no assunto. Amava-os como um pai poderia amar seus filhos, como um deus poderia amar sua própria criação, e ainda assim sabia que além de controlar sua temperatura, não podia fazer mais nada por eles. Sentia-se, afinal, um deus muito impotente, e perguntava-se se Deus, Deus mesmo, também não seria assim, um observador distante que amava muito a todos, mas nada podia fazer por seus filhos além de observar. Assistiu, maravilhado, quando o Chefe e a Namoradeira resolveram que estava na hora de fazer algo além de nadar e comer algas, e emocionou-se profundamente ao ver Sereia abandonar os encantos de Roedor para acasalar com o Covarde em seu esconderijo. Nenhuma das fêmeas, porém, jamais dera cria, e isso era algo que incomodava muito o menino-deus. Via as pequeninas bolhas de ar que deixavam as narinas dos habitantes do Mundo de Cristal, e percebendo que as bolhas aumentavam quando dois deles estavam próximos, achou razoável imaginar que era assim que conversavam, e dessa forma passou a imaginar sobre o que conversariam pequenos camarões rosados em um mundo de meio metro. Viu o Escalador falando aos outros do grande olho e do “mundo de cima” que vira no alto das algas, enquanto o Roedor dava mais atenção a uma alga cinzenta que a qualquer outra coisa, e viu Chefe e Ligeiro falando de Gorducha e Namoradeira, que nadavam distraídas de um lado para o outro. E assim o menino passava as manhãs na escola e o restante do dia em seu quarto, assistindo como um deus onisciente à vida cotidiana de seus oito pequenos amigos.

Um dia, procurando pelo Covarde, o menino encontrou o Chefe caído sob uma folha de alga. Foi o primeiro, e naquela noite o menino chorou como nunca antes na vida, de tristeza e impotência, porque a morte do Chefe o fez entender que logo os outros também morreriam e seu pequeno Éden, o Mundo de Cristal onde o menino-deus passava suas tardes e noites, chegava ao fim. Roedor e Ligeiro foram os próximos, na semana seguinte, e dez dias depois foi a Sereia. Nenhuma das fêmeas dera cria ao longo da vida, e o menino não sabia porque, mas também não importava mais. Seus pequenos corpos eram dissolvidos em poucos dias, por bactérias que o menino não via, mas sabia estarem lá. O Escalador foi ao encontro do grande deus-olho nos dias seguintes e, um mês depois da morte do Chefe, Gorducha e Namoradeira morreram, deixando para trás apenas o Covarde, último e irônico sobrevivente do mundo em colapso. E nem mesmo em seu último dia, já sozinho na imensidão do Mar de Cristal, Covarde deixou o conforto seguro de suas algas, morrendo abraçado a uma delas, parecendo mais medroso do que nunca.

O menino chorou apenas pelo Chefe, e chorava agora enquanto se despedia do Covarde e de seu mundo inteiro. Retirou o globo de vidro do suporte onde o colocara um ano antes, e com passos lentos e abatidos, levou-o até seu pai, que saberia o que fazer com ele. Naquela noite, deitado em sua cama, o menino olharia para o suporte vazio sobre a escrivaninha, refletiria sobre a natureza da vida e da morte, e chegaria assim oficialmente ao fim de sua infância.

em memória de Carl Sagan.