segunda-feira, 31 de maio de 2010

Releitura de Cristo

Não tinha mais nada para fazer em casa. Acordara cedo e lavara tudo, dos pés ao pequeno altar no canto da sala.

Foi almoçar cedo, também, pão e vinho e uns queijos de cabra com alface. Era vegetariano por herança familiar. O primeiro antepassado tivera problemas cósmicos quando resolveu aprender a caça.

Ligou para o pai. Era o sétimo dia da semana. O velho não atendeu. Não costumava fazer nada aos sábados. Só descanso.

Resolveu pegar um livro. Tinha poucos, ali, a maior parte ficara com Madalena, a ex-mulher. Apanhou um volume quase aleatório, mas sorriu quando olhou a capa. Jogou-se no sofá e começou a reler O diário de um mago.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Klakontex IX

O Guia do Mochileiro das Galáxias tem um verbete sobre Klakontex IX – não é dos mais brilhantes, alias é um daqueles verbetes escritos por pessoas estranhas que simplesmente entraram de gaiato na sede do Guia e perceberam que ninguém ali trabalhava de verdade e então resolveram eles mesmos escrever verbetes aleatórios – mas é o que temos, afinal alguém tem saco de ler a Enciclopédia Galáctica?

O verbete sobre Klakontex IX diz o seguinte:

O nono planeta do Sistema Klakontex é peculiarmente conhecido como o planeta dos odiadores de robôs.

O povo de Klakontex IX nasce odiando robôs, o que seria até certo ponto aceitável, não fosse o fato de que os klakontexianos são robôs.

Sim, você leu certo, os klakontexianos são robôs orgânicos, o que faz com que possam ter robozinhos, que nada mais são do que versões novas deles próprios, ou como diria o departamento de marketing da companhia cibernética de Sirius: “Seus amiguinhos de Plástico”.

Acontece que em Klakontex IX o número de homicídios – ou roboticídios, como preferir – é gigantesco, na verdade o 2º maior já registrado na galáxia, atrás apenas dos Silásticos Armademônios de Striterax. Logo quando os klakontexianos se apercebem que são todos robôs eles passam por uma grande crise existencial, onde decidem de fato se começam a se matar – ou destruir, como preferir – ou se suicidar. Mais ou menos 60% da população decide pelo homicídio (ou roboticídio...blablabla...). De qualquer forma Klakontex IX é um lugar horroroso, vive sempre em guerra e não possui nenhum tipo de diversão, afinal só robôs moram lá. E se você for um robô Klakontex IX é o último lugar para onde que deveria ir.

Marvin gastava um milionésimo infinitesimal de seu infinito cérebro pra se perguntar o que diabos estava fazendo em Klakontex IX.

Apenas esse esforço o fez lembrar que sua vida era miserável e que ninguém de fato parecia se importar muito com isso. E lembrou daquelas portas que gemiam quando alguém as abria. Ele odiava essas portas, mais até do que odiava todas as formas de vida. Ele já estava passando do seu nível normal de miserabilidade e autocomiseração quando resolveu tentar outra abordagem. Ele pensou que tudo poderia ser pior, ele lembrou que poderia estar chafurdando em um pântano qualquer em Squornshellous Zeta conversando com um colchão chamado Zem. Isso funcionou bem. Funcionou muito bem até. Marvin se sentiu menos miserável do que ele jamais se lembrava de haver se sentido antes. Começou a gostar da sensação. Curtia o momento, mesmo que tudo ao seu redor explodisse com robôs malucos tentando se assassinar ou suicidar. Tudo ia mais bem do que nunca antes estivera, até que ele ouviu aquele som habitual:

– Ahhhhhhhhhhhhhh!!!

Seguido de outro som mais habitual ainda:

– Marvin, meu garoto, eu tenho um pequeno probleminha para você resolver!

Ele olhou – com seu melhor momento em todos os tempos já dissolvido – e viu uma das duas cabeças de Zaphod Beeblebrox saindo pela porta gemidoura, enquanto o resto do seu corpo, bem como sua segunda cabeça, permaneciam escondidos atrás dessa mesma porta. E o sorriso de psicopata maníaco se unindo com aquela frase habitual fez Marvin dedicar um zilionésimo de zilionésimo da parte oriental do lado direito de seu cérebro infinito para pensar em como ele sempre se dava mal e acabava mais miserável ainda quando resolvia “pequenos probleminhas” para Zaphod Beeblebrox. E respondeu no auge da miserabilidade:

– Eu vou odiar isso, não vou?

segunda-feira, 24 de maio de 2010

... no fim do Universo.

a Douglas Adams, Marvin e ao boçal do Arthur Dent

Quando lavei a toalha, a mão, o que mais saiu dela foi sujeira. Claro, é bem pra isso que se lavam coisas... O divertido foi que, além da sujeira, saiu uma tinta azul praticamente interminável. Sério, você poderia pintar todo o céu de azul com tanta tinta, se o céu já não tivesse essa cor, visto da Terra. Ainda bem que em Zênia-Y o céu é cinza, feito o céu de Krikkit. Com um telefonema vendi toda a tinta pro presidente do planeta, otário, e agora faturei uma grana pra comprar, finalmente, uma máquina de lavar.

Fico impressionado como é difícil conseguir eletrodomésticos. Juro. Meia dúzia de raças já desenvolveram tecnologia de dobra espacial, e pelo menos três vezes meia dúzia de raças conseguem viajar com criogenia. Conseguem mesmo, nem é ficção científica. Mas conseguir uma maldita máquina de lavar, morando em Plêunion como eu moro, é quase impossível.

...

Como assim “eu não sei onde fica Plêunion”? Porra, cara, tá falando sério? Eu sou um dos caras responsáveis pelo Universo, tenho um trabalho do cão pra manter tudo em ordem, e tu simplesmente não sabe onde eu moro? Você sabe, ao menos, que o Universo é grande, muito grande? Tipo, desproporcionalmente grande, mesmo, exageradamente grande. Sim, desnecessariamente grande. O Universo é uma coisa grande, tão grande, tão estupidamente grande e além da tua capacidade de compreensão, que volta e meia vocês, humanos, vêm achar que ele é infinito, não é?

Pois é, sua toupeira. Estão errados. O Universo tem alguns fins, sim, como saídas de autoestrada. Eu fico em uma delas, obviamente, porque tem que ter alguém no fim do Universo.

...

Não. Não, não sou dono de nenhum restaurante, já falei! Cara chato...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Fantástica História de Robin Hood

João Pequeno e Robin Hood tinha calculado com certa precisão. Observando havia, apenas, duas pessoas que cuidavam do empório durante o almoço. Ambos situados na parte dos fundos. João imaginou que seriam necessário dez segundos para que os donos saíssem do balcão, atravessassem-o e fossem bradar atrás deles. Tempo necessário para Robin entrar, roubar as sacas de arroz, enquanto João tentava distrai-los e fugir, correndo até os cavalos lá fora.

O problema era a volta, o peso das sacas não seria caso para Hood. Mas João era Pequeno até no nome. Se ele caissem no retorno, provavelmente, seria capturado. E uma vez preso, seria mais uma incursão ao reino para salvá-lo, como anteriormente.

A dupla estava agachada sobre a densa mata perto do local. Hood passava os passos ao amigo desenhando na terra com um pedaço de pau. Seria a compra das sacas que alimentaria o bando até o final da semana.

Era assim que Hood se referia aos seus furtos: uma compra, um repasse daqueles que possuem muito, para outros poucos que sentem fome mas deveriam ter a barriga farta também.

A ação iria se propagar em segundos. Os amigos deram as mãos, como quem deseja boa sorte, e Hood entrou primeiro, sorrateiramente. Em seguida, João adentrava o local em desespero, alegando fumaça em uma casa vizinha. O desespero aparente dos donos do local era suficiente para que Hood colocasse o máximo de sacas que conseguia em sua bolsa e no ombro e dasse o pé dali.

Seria o plano perfeito se, na prateleira adjacente da porta, não estivesse um guarda do rei, aparentemente comprando castanhas. Mesmo com o cabelo dividido ao meio e aparente cara de bobo, o guarda tentou desembainhar sua espada que, presa a bainha, fez com que seu cinto quebra-se. Mesmo assim, o rapaz era ágil, e na saída de Hood, o agrediu com tudo, fazendo-o pular para outra prateleira e derruba-la no chão.

Tal contratempo desesperou João, que correu para brigar contra o guarda. Segurou a bainha com as mãos, mesmo que elas doessem, dando a Robin o espaço para fugir. E ele o fez.

Chegando nos cavalos, pegou seu arco e, com perfeição, mirou sobre a capa do guarda, que, imediatamente colou-se a parede. Soltando João que voou de lá, como se tivesse asas nos pés.

Os dois montaram em seus cavalos e correram veloz até uma distância em que ninguém poderia persegui-los. Felizes com a pilhagem, João e Robin começaram a rir. Mas aquele cheiro era estranho.

Vinha das sacas que Hood trazia no ombro, recolocadas após o tombo, na luta com o guarda. Quando João abriu as sacas não pode acreditar.

O espanto tinha sido tão grande, que na queda, Hood trocou as sacas. Pegou outras e nem as checou, correndo para se salvar. E quando se olharam, perceberam que compraram alecrim, em vez de arroz.

O bando estaria, desgraçadamente, com problemas de fome nessa semana.



segunda-feira, 17 de maio de 2010

faroeste

O boato corria em toda a cidade; Wally the Bull roubara a esposa de Jimmy Faceiro, ponto final. Foi um boato muito assertivo. Mas a certeza mesmo só veio outro dia, semana passada, no armazém.

Foi um dia ruim, praticamente pra todo mundo. Sexta-feira tinha começado tão mal para Johanna, a louca, que as únicas moedas que ela encontrou foram xelins de prata. Sim, divertido, curioso, colecionáveis, claro. Mas xelins não serviam mais pra nada, ali na terra do new dollar.

Então Johanna entrou no armazém, no exato momento em que todos saíam correndo. Porque lá dentro estavam Wally e Jimmy, armas no coldre e mãos sobre as armas. Balançavam os dedos se aprontando, olhos fixos nos outros olhos, ódio percorrendo o ar.

A louca entrou, caminhou por entre eles e parou ao pé do arroz. Um daqueles sacões de estopa, muitos quilos, poucas moedas que ela tinha pra gastar. Os dois homens pararam de se encarar e olharam para ela, calma ali, mexendo nuns dois grãos.

Então os homens se lembraram do que foram fazer ali; não era morte que eles buscavam, nem de longe. O som do arroz que Johanna mexia os fez lembrar que também queriam. Arroz.

Mas as mãos se movendo sobre os coldres não davam mais tempo para isso. Johanna pegou arroz, pôs sob o braço, caminhou de volta e, bem no caminho, pediu uma esmola pros dois cowboys. Uma moeda de um, uma nota de outro, obrigado meu bom rapaz!, ela disse, e nas lapelas dos homens deixou uns galhinhos, cheirando a umbanda.

Saiu. E quando os homens notaram, haviam comprado alecrim em vez de arroz. Mas era tarde, os coldres abertos não tinham mais armas. Dois tiros, e a cidade voltou ao normal...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O caso do corpo no jardim

Havia, é claro, de começar com alguma coisa e começou com um corpo achado no jardim de um desses ricaços. O corpo – apesar da forte tendência desses corpos de serem de mulheres atraentes e jovens – era de um homem de meia idade. A polícia foi logo acionada e chegou em menos de 20 minutos.

Capitaneados pelo irascível detetive Gonçalvez, essa era a melhor equipe que a homicídios tinha a oferecer. Se o morto fosse encontrado em um beco e não na casa de um dos amigos mais próximos do delegado Lima, provavelmente seriam destacados para o caso um grupo disforme de novatos que se acham. Todos sabem que novatos, os que se acham principalmente, tem tanta chance de solucionar um crime quanto o Sargento Garcia de prender o Zorro.

Logo que chegou à cena do crime o detetive Gonçalvez percebeu que algo ali estava errado. O corpo, claramente de um homem de meia idade, careca, fora de forma e mal ajambrado não combinava de maneira nenhuma com a pompa que aquela mansão inspirava. Logo após o legista – Rafael Batata um dos melhores do ramo – constatar que não havia sinais de violência no corpo e determinar que a morte havia ocorrido entre 1 e 4 horas da madrugada que acabara de se encerrar, Gonçalvez começou as entrevistas com as pessoas da casa.

Dos empregados não tirou muita coisa, apenas a cozinheira, que havia ido ao canteiro no final do jardim colher manjericão fresco, é que tinha tido contato com o corpo. Ela havia encontrado a vítima na exata posição em que estava no momento em que a polícia chegou. Os outros empregados nada tinham a dizer, apenas que nunca haviam visto o elemento. O detetive descobriu posteriormente que os álibis de todos conferiam e que nenhum empregado da casa trabalhava à noite e todos eles haviam chegado entre 6 e 6 e meia da manhã. Apenas o jardineiro chegara antes para adubar alguns canteiros de rosas que havia esquecido, mas não tinha visto nada de suspeito.

À noite, na casa, apenas a família permanecia. Por família entendam o ricaço dono da mansão – Leopoldo Nunes –, seu irmão José e a sobrinha Lílian. Todos estavam na casa na noite do crime. E foram eles os próximos a serem interrogados. A sobrinha, uma moça sem-graça de uns 25 ou 26 anos, com ares de séria disse que estava dormindo na hora, que havia ido para a cama as 11h da noite pois entrava cedo no trabalho. Seu pai – magro e berando os 60 – disse a mesma coisa, alias, trabalhavam os dois nas empresas do ricaço. Leopoldo – de meia-idade era gordo e tinha um cabelo estranho e volumoso – disse que só havia chegado pra lá de 3 da manhã. Segundo ele havia saído para uma peça com um velho amigo, o que o detetive descobriu ser verdade posteriormente, e depois emendado em um restaurante desses chiques. Ele disse também que achava que a única possibilidade era que o corpo havia sido desovado na casa. Gonçalvez considerou a hipótese e logo a descartou.

As coisas não se encaixavam nesse caso. Aquele corpo não cabia naquela cena do crime. Sua experiência lhe dizia para mexer afundo nisso. O problema é que como o dono da mansão era amigo do delegado, as coisas se complicavam e a pressão para encerrar a investigação como inconclusiva, antes mesmo dela começar, eram grandes. Gonçalvez não gostava do delegado Lima, mas se quisesse continuar, teria que pedir permissão. Lembrou então do filho do delegado, um molecote metido a bon vivant que havia conquistado um cargo na polícia graças à influência do pai. Convidou-o para almoçar e discutir a questão. O relato a seguir é do próprio detetive, que contou a mim e a alguns outros colegas.


Sempre odiei esses almofadinhas... esse tenente era vegetariano... pode? Um maldito viado vegetariano... caralho, que raiva! Ele pediu alguma merda de salada sem gosto, eu, só pra foder olhei pro garçom e pedi:

“Você tem um daqueles bifes macios, sabe, aqueles feito com bezerrinhos bem novinhos?”

Ele respondeu

“Baby bife senhor?”

“É, esse mesmo. Mas confere direitinho pra me trazer o mais novo que você tiver.”

Ver a cara de asco e pavor daquela bixa Vegan foi um dos momentos impagáveis daquele dia...

Ele continuou o almoço todo com medo de mim. Era o que eu queria.

Pedi pra ele falar com o pai e a bixa acabou aceitando. Como o pai paparicava aquele pederasta eu consegui o que queria. Colocar na parede o ricaço.


Gonçalvez, com carta branca, chamou Leopoldo na delegacia para “novos esclarecimentos”. O milionário chegou com pompa e o detetive o colocou dentro da sala de interrogatório, sentado na mesa. Era uma daquelas salas com vidro falso, na verdade a única da cidade, um luxo normalmente inútil já que não haviam especialistas para observar os interrogatórios.

Ao invés de entrar na sala direto o detetive preferiu ir antes falar com o legista, que a essa altura já tinha uma idéia bem clara da causa da morte. A vítima havia sido envenenada. Claro que os exames demorariam dias, mas o resultado seria aquele. Gonçalvez pensou com mais firmeza que o caso não se encaixava. Mas a figura já se formava na sua mente e quando entrou para o interrogatório o crime já era claro para ele.

Pressionou tanto o ricaço que ele confessou. Não tinha como não fazê-lo, afinal, era ele mesmo o assassino e sua vítima era ninguém menos que o verdadeiro dono da mansão. Acontece que Leopoldo havia sido assassinado por seu irmão e um cúmplice – o falso ricaço –, que pretendiam enterrar o corpo no jardim e depois declará-lo desaparecido e, assim, ficar com a fortuna toda.

O problema foi que o jardineiro chegou muito mais cedo que o normal e quase os surpreendeu, fazendo com que eles tivessem que esconder o corpo ao invés de enterrá-lo. O plano permaneceria o mesmo – enterrá-lo no jardim – apenas havia sido postergado, mas a maldita cozinheira resolveu que precisava de manjericão e achou o corpo, dando o alarme e chamando a polícia antes mesmo de avisá-lo.

Como Leopoldo não costuma ter contato com seus empregados os criminosos – que haviam sido acobertados por Lílian – tentaram contornar o problema de uma maneira que para o detetive Gonçalvez pareceu infantil, vestindo o amigo de José com as roupas e a peruca do morto, desviando o foco da verdade, já que nenhum policial ali conhecia pessoalmente Leopoldo Nunes. O detetive achava que de fato eles teriam muito mais chance de escapar se tivessem simplesmente deixado o corpo no lugar e forjado um álibe.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Loiras São Sempre Fatais

Ele era um boxeador, ou ao menos parecia um, para ganhar uns trocados. Dizem que, ao enlouquecer, fez seu oponente engolir a maioria dos dentes, em meio à massa vermelha de sangue. Metade do público se espantou e outra dobrou suas apostas.

A primeira vez que vi Vinicío, conhecido no meio da luta como O Vertical, por ser ágil e magro feito um palito, fora quando, entrando em meu escritório, tirou uma foto dobrada em quatro do bolso, pedindo que realizássemos uma investigação sobre a moça da foto, desaparecida. "Dinheiro tenho pouco, mas aposte em mim na próxima luta que posso te garantir uma quantia de três zeros, no mínimo".

Dentro do nicho do boxe não profissional é o dinheiro de apostas que conta. É ele que sustenta a vida mirrada do boxeador, dos apostadores viciados em bebida que, normalmente, usam o dinheiro que ganharam para mais uma rodada recheada de licor e prostitutas.

O caso da loira foi resolvido rapidamente, fiz uma aposta graúda a favor do Vertical e me garantiu certo dinheiro. Mas dessa vez era diferente, era a mulher daquela foto que adentrava o meu escritório pedindo ajuda. Ao que parecia o boxeador não cedeu a uma luta que, supostamente, deveria perder e, evidentemente, deram um sumiço no Vertical que, a essa hora, poderia estar bem deitadinho. Pela marca branca que aparecia em seu dedo, ela tentava esconder um casamento de nós. Se não eram amantes, ao menos tiveram um passado.

Odeio casos de adultério. Mas quando a renda começa a ficar escassa, resolvo casos até para descobrir o rabo do cachorro. Dinheiro é dinheiro, e é ele que paga os vícios meus e do meu sócio.

Normalmente, o jogo entre eu e ele é simples. Faço o papel do detetive atencioso e ele do escroque. O que faz perguntas indiscretas, dando sempre a impressão de que sou mais atencioso na investigação, embora ele seja bem mais esperto que eu.

"Vocês estavam tendo um caso?", foi sua primeira frase ao entrar na conversa. Eu sorri de leve e o fitei, para concordar de que entrava em seu jogo. Ergui a mão em sua direção, como quem diz seja educado, e retomei a fala. "Senhora, essa pergunta não nos convém, mas qualquer informação concreta que passe para nós será útil para a investigação. Me diga, você tem certeza que pegaram o Vertical? Ele simplesmente não fugiu por ter ganhado uma luta que, todos sabiam, deveria perder? Nós somos detetives, dona, desaparecimentos são mais fáceis de se protocolar na polícia".

Porém ela já havia tentado a polícia. Prestou um breve depoimento para o delegado Malaspina, um corrupto desgraçado que nos odiava pelo fato de que eu e Leandro fôssemos mais competentes que todo seu contingente. Sempre que possível se metia em nossas investigações, tentando amarelar tudo, usando o argumento da maldita jurisdição. Aos diabos com a jurisdição, quando me mandam fazer um trabalho, ele é feito. É para isso que recebo altas quantias de dinheiro que pagam meu vício e os ternos de linho de meu sócio.

A questão é que não sabíamos, a essa altura, se o Vertical tinha sido eliminado pelo seu treinador, que, boatos, tinha perdido uma boa quantia de grana quando ele desferiu aquele golpe quase fatal no oponente, ou simplesmente tinha fugido de medo.

Passamos uma hora anotando tudo que a loira sabia sobre o caso. O quanto o boxeador tinha lhe contado a respeito de seus trambiques, qual era a relação dos dois e, o mais importante, no final da sessão, deixado a bela quantia de dinheiro que agora estava metade na minha mão, metade na de Leandro.

Acendi um cigarro e fui pegar um refrigerante no frigobar velho que tínhamos no escritório. Voltei-me para a janela, notando que o tempo estava para fechar. A loira tinha acabado de sair do prédio e estava em meu campo de visão.

"O que acha?", perguntou meu sócio. "Caso típico de um cagão que deve ter fugido porque teve bolas para uma atitude corajosa, mas não o suficiente para enfrentar seu chefe. Parece que ela está envolvida no meio, por isso a culpa por seu sumiço", respondi.

"Eu quis dizer sobre a loira", replicou a mim. Permaneci tomando o refrigerante, pois odiava álcool, pelo maldito refluxo, até que ela saiu do meu campo de visão. Seus cabelos longos, um pouco abaixo do ombro, as calças jeans que pareciam velhas e o rosto ainda novo não me faziam concluir nada além do que eu já sabia.

"Eu acho que esse desgraçado arruinou sua vida e sua carreira por causa dessa mulher", não que coubesse a mim julgar isso. "Mas você sabe como são as coisas". E Leandro me olhou, como quem esperava o desfecho de minha frase.

"O problema são as loiras, meu caro. Essas desgraçadinhas são sempre fatais." E, erguendo sua parcela inicial do dinheiro daquela investigação, ele sorriu dizendo amém. "E graças ao nosso trabalho, esperamos que seja sempre assim". E acompanhei seu riso, mais para fazer seqüência ao ritmo descontraído do que por rir de fato. Afinal, tínhamos uma investigação em cima da mesa para dar início.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

hard boiled

a Dashiel Hammett e Raymond Chandler,
a quem eu envergonharia com este texto.

Eu nunca me dobrei a nenhum inimigo. Dos mentecaptos de beira de estrada aos almofadinhas que matam a veneno. Não mesmo, e olha que já me ofereceram muito pra que eu arregasse: muito dinheiro ou muita porrada. Mas eu sou durão, forte e malencarado. Ah!, tenho boa mira, também.

Nesse ramo o assunto é sério; ou você é bom ou tá morto. De fome ou de tiro. Com azar, morto com um saco na cabeça e a cabeça no saco, numa ordem que às vezes se inverte. Já tive alguns amigos que se foram assim. E alguns inimigos que eu fiz ir.

Só que todo homem tem um calcanhar de Aquiles, e aquele que era o meu não tinha nem surgido, até então. Não sou do tipo que senta atrás da mesa em um escritório com o nome na vidraça. Sou mais uma espécie de detetizador que detetive; a pessoa vem a mim, diz que quer, diz o fim que busca dar, e normalmente não sabe onde o meu alvo está. Sabe não. E resta à minha excelentíssima pessoa ir atrás.

Atrás, buscar, achar, matar, sumir, sumir. Sumir com o corpo e sumir dali, é óbvio. Mas eu tenho uma sala, claro, onde atendo a quem me chama. E um dia, belo dia, abriram a porta sem bater. Um passo à frente, calcanhar de Aquiles no tapete, putaquepariu, mulher maravilhosa eu vi entrar...

Mary Anne Lohan era o nome da piranha. Linda de dar dó, fazia qualquer homem cair no chão, de joelhos.

E aqui estou, de joelhos no chão sujo de um armazém abandonado. Ridículo, eu concordo. Clichê até demais. Pra completar a cena, um capanga de alguém me aponta uma arma. Não é foda? Mary Anne...

domingo, 9 de maio de 2010

Ao pé da cruz

Aquela mulher o teve apesar de tudo. Desconfianças não faltaram. Imaculada conceição não era algo aceitável naquela época, como não o é hoje. Mas ela foi em frente, não só por aceitar a missão que aquele ser angélico lhe havia dado, como por ser mãe, e é exatamente isso que mães tem por costume fazer, seguir em frente por seus rebentos.

Ele cresceu e se tornou mais do que alguém poderia imaginar. Guiou multidões... ganhou seguidores fiéis, ganhou o ódio de muitos e o amor de outros tantos. Sua mãe permaneceu o acompanhando, não para protegê-lo – como ela sabia que nunca poderia fazer – mas vê-lo e tê-lo sempre por perto. Ela o olhava de longe enquanto ele pregava sobre o Monte das Oliveiras.

Ela certa vez pediu a ele que ajudasse certos amigos da família em um problema mundano. Mundano demais pra quem faz função de messias. O vinho da festa havia acabado e seria uma vergonha para os anfitriões que a festa se encerrasse, seria um sinal de pobreza. A mãe então pediu: “Você não poderia ajudá-los meu filho?”. O filho, possuidor de um poder inalcançável poderia fazer o que quisesse. No entanto, demonstrações de poder para ajudar gente mesquinha não faziam parte de suas prioridades. Mas ele fez. E o fez por sua mãe.

No final, quando já na cruz estava e seus apóstolos o haviam abandonado e o renegado, sua mãe estava lá. Ao pé da cruz sofria chagas maiores que as de seu filho. De certa forma se esvaia junto com ele, mas não demonstrava fraqueza, apenas dor. E ele, ser divino, que havia sido mandado para cá – nesse planetinha horroroso – apenas para dizer para todos que seria legal se parássemos de nos matar e nos odiar um pouco, só para variar, já na cruz, moribundo, bradou aos céus direcionado à seu pai, criador de tudo que existe e onipresente: “Pai, porque me abandonaste?” Porque Deus – seja quais forem seus motivos – o havia abandonado, seu pai – que por um acaso era Deus – o havia deixado para morrer – por uma causa, mas para morrer – mas sua mãe estava lá ao pé da cruz, engolindo a tristeza, pronta para limpar-lhe o sangue da face e beijar seu corpo inerte. Morto. Ela estava lá.

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PS: esse texto, obviamente, está atrasado. Mas dado o tema, acredito que meu erro foi até certo ponto aceitável.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

primeiro parto

No princípio era o Verbo. Se fosse a Verba, ficaria estranho, é claro; logo teria quem pensasse em construção, obras públicas, dinheiro vindo de qualquer parte. Mas não, era o Verbo, e isso definia o princípio.

Criou-se terra e céu. Depois, pra molhar um pouco as nuvens, repartiram-se as águas pra cima e pra baixo. Duas águas diferentes, uma pra avião, outra pra barco: mas nenhum dos dois foi inventado hoje. Nem nessa semana.

Cria luzes, cria águas, cria terra, cria uma horta e cria galinha. Uma grande granja, esse universo. Depois de plantar plantas, animais. Criam-se plânctons, algas, peixes, anfíbios e o resto todo. Animais de terra e animais de ar.

E homens, que são – em tese – os animais mais evoluídos. É o que dizem. Os primeiros foram um casal, Adão e Eva, que o Verbo criou da terra porque tinha brigado com a esposa.

Por isso a humanidade tá nessa merda, que fique claro: o Homem não teve mãe.