segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

latão é dois

Na porta do bar do Clube vi um velho vendendo vinho. Era tarde, só o velho vendia ali, ainda, enquanto a noite chegava.

- Mas só tem vinho, meu velho?, quis saber.

- Não tem só vinho, não. Tenho também latinha e tenho também latão, cerveja, cachaça e caipirinha.

- Latão é dois?

- Mas nem quando meu casamento era feliz, meu filho, nem quando.

- Latão é quanto?

- Latão é quatro.

- Latão é quatro? Mas tá maluco, seu velho doido?

- Tô velho não, seu moço, tô é idoso. Latão é quatro, me paga cinco e te dou o troco.

Lá dentro Joshua cobrava menos. E ria de mim lá fora, enquanto a noite caía e o velho vendia vinho fugindo da casa triste.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

piés descalzos

Ela chamava atenção pelas ruas. Quando eu era pequeno, não importa onde estivesse, todos paravam para olhar a moça que andava descalça pela cidade. Minha mãe me chamava sempre a porta da loja para junto com os funcionários observá-la de longe. Era um ultraje.

Especulavam, alguns diziam que era verdade, que ela era rica. As roupas não mentiam essa história. Fofocavam que era um tanto quanto louca. Louca da vida, não da cabeça. Os pés descalços confirmavam sua maneira de lidar com os outros. Passos firmes sobre o asfalto violento.

Eu criança imaginava como ela poderia suportar. Não os olhares, que ainda era novo para compreender como se julga o diferente. Pensava nos pés. Nas ruas mal compostas da cidade, no lixo, nos vidros, e ela descalça, indiferente. Lembro que retirava meus sapatos e, até levar bronca de minha mãe, andava pela loja sem eles. Queria sentir o que ela sentia, ser capaz de estar descalço, livre.

Não me lembro quando preferi os pés descalços aos chinelos. Nunca me acostumei com aqueles que ficam entre os dedos e sandálias me machucavam. Minha vó dizia ser culpa de meu pé, gordo demais para vesti-las.

Sempre que possível eu retirava os tênis e caminhava pela casa de meias ou descalço. Lembro-me até hoje das broncas pela falta de chinelo, da insistência inútil de que as meias se sujam rápido. Era por isso mesmo que eu as usava. Pela liberdade de sujá-las sem nada em meus pés além delas.

Descalço sempre recordo essa moça. Prevejo a sensação de ter pés livres em conflito com o fardo do julgamento de outros. Vejo-a calçando sapatos em casa, rindo da contradição.

Ela perdeu seu título de lenda quando tornei-me adolescente. Nunca mais a vi, nem mesmo compreendi a razão daqueles pés descalços. Embora tenha pensado muitas vezes que era sua maneira de liberdade. Ponderando que ela, ao contrário de muitos que decidem viver em proteções, preferia a vida sem barreiras de contato.

Parece bobagem, sei disso. Mas não consigo não rir cada vez que lavo meus pés sujos. Riso frouxo e despreocupado. Cúmplice dessa mulher que nunca conheci.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

de volta

Joana estava preocupada com o velho cliente sentado na mesa. Joana estava de volta, também: era ela a garçonete agora, a outra provavelmente fora embora. Não tinha o mesmo carisma.

O velho tossia pesado, pulmões cheios de sabe lá deus o quê. Bebia um uísque aos poucos, como se fosse xarope. Sorria para Joana quando ela passava e, assim que ela ia embora, tossia um pouco mais. "Inverno filho da puta", dizia baixinho, "se eu pudesse dava um tiro nele".

A jukebox tocava um jazz arrastado dos anos 40. Vez por outra vinha do palco um gemido da guitarra elétrica, passagem de som de uma banda de blues. O cara era bom, tocava com a alma. Olhando ao palco se via a guitarra tocada por mãos de fantasma, por mãos descarnadas. A alma era tudo que tocava.

O velho tossia. Joana foi à mesa levar mais um copo e a porta do bar se abriu. Entrou por ali um ser meio estranho, metade homem metade algo, ouvindo pelos alto falantes do telefone celular uma música ruim de dar dó. Não deu nem dois passos e Joshua o barrou:

- Daqui pra fora. O Clube não é ambiente para o senhor. Obrigado, não volte sempre.

O velho, entre uma tosse e outra, perguntou a Joana o que havia havido. "Sabe como é", disse o velho, "sou velho e não estou nessa inteirado de tudo".

- Joshua não gosta de Michel Filó.

O jazz ainda rolava enquanto, do palco, vinha o som gentil do choro da guitarra.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Do-Be-Do-Doo

Ray Charles cantava para mim nesta manhã de domingo. A escuridão permanecia em meu quarto com janelas cerradas para a vida. Levemente violentado pelo mormaço de verão.

Em seu suingue buscava um porto seguro, mesmo que temporário. Solidez que me suportasse agora. Mas a voz grave do Gênio levou-me até você. O dia tornou-se escuro, a música ainda ecoava no aparelho, sem fim. Na varanda que não existe, eu e você, sentados, bebendo algo impactante, tanto ao paladar como símbolo de uma cena. Copos baixos com cubos de gelo, dissolvendo a bebida cara, comprada na ante véspera.

Era mais provável, porém, que nos embriagássemos de refrigerante ou, em um arroubo criativo, tentássemos fazer Shirley Temples se encontrássemos uma maneira de produzir uma bebida de gengibre.

Não me importava a petulância dos detalhes. Mas sim a conjugação da cena. Seqüência de imagens que, dentro de mim, produzisse alegria e prazer, efeitos simultâneos. A brisa noturna que suavizava o ambiente, bebidas para idealizar um longo diálogo amistoso, você e eu como únicos seres existentes neste mundo, sentados no sofá de vime enquanto, do quarto, Ray Charles continuava cantando para nós.

Então, em reverencia, pediria uma dança. A luz de uma casa posterior se acenderia e você, mesmo envergonhada com possíveis espectadores, acompanhava meu ritmo. Seus olhos impressionados com minha cadência serena. Seria tão romântico, mas, em minhas tentativas, dois passos seqüenciados atropelam-me.

A balada acabaria e, enquanto as raylets vocalizavam uma abertura esquentada, tomavamos mais um gole de nossas bebidas, agora com os copos suando. Então, provavelmente, acenderíamos um cigarro. O rangido do metal com minhas iniciais e a chama que, naquela escuridão, revelava nossos olhos brilhando. A adocicada fumaça saindo de nós, empesteando o ar.

Eu que nunca gostei de cigarro, pergunto-me quantos filmes hollywoodianos assisti para acreditar que o tabaco traria mais romance a cena. Bem como amaldiçôo a desolação de Bogart, desfazendo o nó da gravata borboleta e virando doses e mais doses por causa de Ilsa. A mesma bebida que esta na mesa ao lado do sofá, também composta por madeira rústica de maneira harmônica com a varanda e a casa.

De súbito, vazio e calor retornaram. Levantei-me, coloquei outro disco do músico, mas as canções eram animadas ao extremo. Cessavam o romance embebido em idílica cena. A sonoridade mais me deslocava que me entrosava.

Imaginei a vida na década de cinqüenta. Nós enlouquecidos pela sonoridade negra que iluminava a música como nenhum outro ritmo desde sempre. Seu pai nos observando pelas janelas de casa, enquanto namorávamos no portão, atento a qualquer carinho além das mãos dadas. Me desconcerto ao perceber que a imagem está mais próxima de uma idéia americana e sinto pena de mim pelos filmes.

Pergunto-me como viveram nossos avós nesta cidade interiorana. Sinto que o Brasil é um país sem passado. Olhar para trás é contemplar, somente, a opressão.

Esqueço que minha avó teve infância, ouviu Dalva e Herivelto, tinha como filha bonecas de papelão e, com amigas, produziam lacinhos para se empetecarem. O tempo não sentido parece abstrato. Sou incapaz de vê-lo com cronologia. Todo passado é névoa.

Se conduzir essa jornada me fosse possível, estaria ao seu lado. Abraçado em seu calor como minha dádiva. Mas não posso contrariar os caminhos que Ray me leva. Cada vez mais distante desse espaço concreto. Em épocas onde somente a escuridão causava medo, a pureza não era absurdo.

No presente, tento situar meus pensamentos. Não há varanda com casa decorada. No bolso, trocados que não pagariam a bebida mais barata da casa. Os vizinhos não acenam quando passo por eles.

Nada aqui além de mim. Nada exceto eu observando abismos. Olho para o relógio ainda no pulso, faltam semanas. Mas aqui estou, paciente. Em vigília pelo seu amor.

Meus olhos vacilam enquanto Ray sussurra uma canção de namorados. Deito-me no chão sentindo as luzes do lá fora em maiores sombras aqui dentro. Te espero, enquanto não vem. De braços e chagas abertas aguardando o labirinto de seu ser.

Tudo que possuo é o amor.