sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Homem que Chegava Cedo Demais

Alfredo Holmes esteve adiantado toda sua vida. Nasceu aos sete meses de gestação, com pouco mais de trinta centímetros e um peso ínfimo, como se estivesse com pressa de conhecer o mundo, para respirar primeiro o ar que muitos inalariam mais tarde. Aos sete meses já andava como se fosse um potro; com oito meses, falava com perfeita dicção. A infância de Alfredo também foi apressada. Nas festas de seus colegas, costumava chegar quando o aniversariante ainda estava no banho e era forçado a ficar sentado no sofá, assistindo os programas toscos que passavam de domingo, respondendo perguntas feitas pela metade por tias acima do peso. Era o primeiro a chegar na escola e todos os dias ficava sentado no escuro, esperando alguém mais chegar e acender as luzes da sala de aula. O pequeno Alfredo permanecia sentado, com os dedos da mão entrelaçados e um rosto impassível. Suas provas estavam sempre no fundo da pilha, os amigos contavam com ele para comprar lanches, pois estava no começo da fila e sempre conseguia assistir os filmes e shows que pretendia. Nunca perdeu a hora. Esteve em todos os vôos e viagens de ônibus ou trem; aos doze anos tinha de fazer a barba: um caso de puberdade precoce. Alfredo, aliás, foi precoce em tudo. Nietzsche e Kafka foram seus presentes de décimo terceiro aniversário e ele os leu com prazer, terminando os grossos volumes antes do que esperava. Entrou na faculdade antes de todos e percebeu a importância da filosofia cedo na vida. Concluiu o curso no terceiro ano, não por ser de uma inteligência sagaz - apesar de chegar à conclusão antes de todos - mas simplesmente por ser… adiantado. Conseguiu a vaga de professor apenas por ter sido o único a chegar no horário da entrevista, apesar da chuva impossível que despencava naquele dia, passando por enchentes e bloqueios sem perceber que o fazia.
Por toda a existência, sentia algo incômodo na cabeça, algo mais profundo do que conseguia mergulhar e enxergar com clareza. Era uma sensação deslocada de qualquer categoria e mesmo devorando Platão, Kierkegaard e Hegel, não podia entender um simples incômodo, para sua irritação.
Todos os homens seguem um de roteiro para suas vidas. Alguns tomam desvios ou têm finais abruptos, mas é quase certo que as fases da vida seguirão com natural ordem e sucessão. Infância, adolescência e a chata fase adulta culminam na velhice e o corpo enfraquece, a mente entra em uma névoa iminente e o sistema desiste do jogo e entrega os pontos. Para ele, os períodos foram todos misturados e empilhados e com isso, a infelicidade também chegou antes. Com vinte e nove anos, Alfredo enfrentava o terceiro divórcio - todos os três iniciados por ele, que chegava ao limite antes da parceira - e contava com quatro filhos. Sabia que era difícil conviver com ele. Tinha o péssimo costume de chegar ao fim das conversas com demasiada pressa, não podia comentar sobre filmes ou livros pois todos os outros ainda não haviam visto ou lido e estragava os finais com certa regularidade. Chegava a ser inconveniente em churrascos e festas por chegar muito cedo, como na infância - uma vez tomou o café da manhã na casa de seu primo, cuja festa começava às quatro da tarde. Os convites chegavam para ele com o horário atraso em quatro horas. Alfredo também era um péssimo amante, por motivos que não é preciso expor. Depois dos trinta, os ossos começaram a enfraquecer com rapidez e ele operou os olhos com trinta e cinco, deixando para trás duas cataratas. Esquecia de reuniões, deixava os livros que estava lendo em lugares dos quais não tinha memória, sentia dores nas costas e percebia sua teimosia aumentando diariamente.
No dia trinta de dezembro de 2013 ele se deitou, a velha sensação incógnita causando dor de cabeça, carrancudo e triste: um homem de trinta e nove anos, com cabelos brancos e ralos, rugas por todo o rosto e dentadura guardada em Listerine na cabeceira da cama. Amaldiçoou a vida adiantada que tinha, xingou os cabelos e unhas que cresciam antes do que deviam, a libido que se esvaiu cedo demais, o intestino que ficara precocemente sensível e os pulmões que há anos perderam parte da capacidade. Dormiu antes de conseguir enumerar os motivos que deixavam sua vida triste.
Acordou antes do sol nascer e do despertador disparar o irritante som que parecia anunciar a chegada de todos os infernos. Algo estava errado e ele procurou entender exatamente o que havia acontecido, mas falhou antes mesmo de começar. Levantou-se, lavou o rosto e escovou as gengivas, encaixando as dentaduras pela última vez antes de descer as escadas e preparar duas xícaras de café, que tomou acompanhados por panquecas um pouco cruas e manteiga derretida. Subiu as escadas novamente e trocou as roupas: hora de esticar as canelas e esperar o ano morrer. Quem sabe sua vez chegaria antes e 2014 significasse o fim de sua miséria. Não custava sonhar. Quando abriu a porta, sentiu o coração ameaçar - não pela primeira vez - parar de bater. O mundo estava branco. Olhou para as mãos e enxergou com perfeita nitidez a pele macia e livre de rugas ou as manchas escuras que começaram a aparecer no inverno passado. “Mas que porra…”, terminou a pergunta antes de chegar ao ponto de interrogação. Jovens, as mãos eram suas, mas estavam na data errada, substituindo os membros velhos de pele flácida e solta dos músculos. Podia ver a casa até a porta de entrada e depois via apenas branco. Um nevoeiro? Não, eu ainda poderia enxergar pela névoa. Colocou os dedos rejuvenescidos na boca e puxou as dentaduras, descobrindo dentes no lugar das placas removíveis. Puxou um fio de cabelo e admirou o castanho escuro que os fios possuíam até o vigésimo quarto aniversário. Há algo de errado além do meu corpo jovem e do mundo ter desaparecido… mas o quê?
Apoiou as mãos na parede da casa e tentou pisar na superfície branca, sem ter certeza de que poderia ficar sobre ela ou se despencaria eternamente em um infinito leitoso. Seus pés tocaram onde deveria haver chão e ele conseguiu ficar sobre a superfície branca. “Olá?”, ele gritou, quebrando o terrível silêncio que caía sobre o mundo. Não, ele percebeu, era muito mais do que silêncio. Alfredo experimente a completa falta de sons. Seu grito saíra abafado, todo estranho e fanho, como se não existisse lugar para barulhos aqui. Tentou juntar todo o conhecimento dos estudos filosóficos com o cérebro novamente jovem e se impressionou com o raciocínio afiado, mas falhou em encontrar explicações.
Alfredo fez a única coisa que podia e começou a caminhar, deixando a casa para trás até ela se tornar num ponto escuro no horizonte. Conseguiria voltar? Realmente importa? Horas se passaram e ele caminhava, mantendo a direção o melhor que podia, tirando prazer do exercício prolongado e das pernas novamente fortes. Sem dores nos joelhos, sem músculos fortes. O que estava acontecendo?
Foi quando encontrou os outros.
Primeiro, viu a movimentação longe, se destacando do oceano branco que tinha diante de si. Correu a longa distância, gritando e gesticulando para algumas pessoas que cortavam madeira. Um deles parou e sorriu de volta, soltando o serrote e pegando uma prancheta. “Alfredo Holmes”, perguntou antes dele parar de correr.
“Como… como você sabe meu nome?”
“Estávamos esperando por você. Na verdade, já está um pouco atrasado.” O homem estudou o relógio que tinha no pulso. “Vista isso e vamos ao trabalho, meu amigo, não temos muito tempo.”
Alfredo pegou o macacão que o homem esticou para ele e passou os dedos sobre o nome bordado na altura do coração. A. Holmes. Eles realmente esperavam por ele. Olhou ao redor e viu mais trabalhadores do que conseguia contar. Homens e mulheres pregavam pregos em tábuas, plantavam árvores, posicionavam concreto, pedras e asfaltavam um rua pré marcada com o que parecia ser giz cinza. Três grupos se penduravam em enormes escadas e pintavam o céu com um azul claro. Alfredo olhou para uma loira que pintava uma nuvem um pouco mais carregada e ela olhou de volta, acenando a mão e sorrindo. Ele a cumprimentou de volta, hesitante.
“Anda com isso”, disse o homem de antes. “Você está nos atrasando, Holmes.”
“Onde… onde estou?” Passou a língua nos lábios secos.
“Onde é uma terminologia erra, homem. Quando, eis o que você quer saber. Bem vindo ao primeiro de janeiro de 2014.”
“Impossível. Hoje é dia 31.”
“Para eles sim; para nós, dia primeiro. Dois mil e catorze, Era Comum. Para os ocidentais, pelo menos. Com os chineses, a história é outra. Mas o amanhã é o mesmo, não importa se você é rico, pobre, católico, jedi, judeu, homem, mulher ou tudo que há no meio. E mais, o amanhã é nosso dever. Agora venha comigo, vou te mostrar o que você deve fazer. Você agora é um Construtor, Holmes, sua tarefa é nos ajudar a construir o futuro.” O homem entregou uma pá para Alfredo e apontou para um canteiro. “Hoje você vai plantar rosas.”
Tentava tirar algum sentido daquilo, mas no íntimo já entendia onde… quando estava e sentia a felicidade explodir em seu peito. “Eu-eu vou construir o futuro?”
“Sim, parte dele. Tudo que fizermos aqui será usado amanhã e descartado imediatamente depois do uso. Você vai pavimentar o amanhã, Holmes. Quase literalmente, porque nosso pavimentador é o Jorge”, ele apontou para um rapaz com não mais de dezenove anos, sentado num enorme compactador de solo, trabalhando nas ruas da cidade. “Plante as rosas do dia primeiro, Holmes. Depois você pode encher os oceanos do dia”, ele chegou o cronograma, “quatro de fevereiro. E chegue mais cedo da próxima vez.” O homem se virou e caminhou para longe, gritando com um grupo de pessoas que tentava acertar a direção do vento e outro, que ajustava o sol com um longo gancho de metal.
Alfredo Holmes percebeu naquele momento, um momento no futuro, para a maioria das pessoas, que a sensação estranha havia desaparecido. Ele não mais se sentia deslocado.
Começou a assobiar uma música e enfiou a pá no solo recém criado, preparado para plantar todas as rosas do mundo.

Pela primeira vez, Alfredo se sentia na hora certa.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Vermelho

Nós fizemos sexo ontem à noite. 2013 e eu. Ela colocou os lábios no meu pau manchando-o de batom barato que comprou na 25 de Março. A recessão é foda, disse. E depois não lembrei mais nada.

Desde Outubro tinha ganas de matá-la. Mas desisti quando percebi que, ao contrário de 2011, não a encontraria tão facilmente. Então, ela veio até a mim. Vestindo vermelho, sedutora, sem um pingo de culpa, me chamando pelo nome.

Faltando um mês para morrer, não estava na mesma forma quando a vi em fevereiro, quando apareceu em meu aniversário de trinta e dois anos com a beleza mais perfeita que vi: cabelos ondulados, uma camiseta que ressaltava o tamanho de seus seios e uma saia – depois de muitos meses, descobri chamar-se plissada e que reproduz o estilo das saias das colegiais americanas, fantasia de muitos homens adultos – que exibiam as pernas como poesia.

Me encontrei com os últimos cinco anos, mas ainda não sabia como se arquitetava o nascimento de cada um. Descobri que eram capazes de escolher como nascem – masculinos, femininos ou híbridos; determinar em que fase da vida, em comparação ao desenvolvimento humano, surgiriam – recém nascidos, jovens, adultos; e o período de envelhecimento entre janeiro a dezembro. Motivo que me deixou espantando ao rever 2011, nascido como uma criança de cinco anos, velho e trocando as palavras perto do nascer do ano seguinte.

A plena juventude foi a escolha egocêntrica de 2013. Em dezembro, a beleza escorria pelos poros: os seios falharam na gravidade; na cintura evidenciava-se um pequeno acúmulo, que não a deixava menos irresistível; sofreram as pernas. Não produziam a lembrança de si mesma em fevereiro, caminho ideal para traçar os lábios.

Quando ela ficou nua para mim, as mãos mantiveram-se retesadas frente ao corpo. Ela sabia que o tempo lhe fora agressivo. A vida curta de trezentos e sessenta dias maltratou-a violentamente. Chamou-se de bruxa.

Estive apaixonado por 2013 até meados de junho. Quando sofri um viés e, se sobrevivi, foi graças a minha própria vontade e esforço. Em setembro, imaginei matá-la, como fiz com 2009, vinte e cinco dias antes do término do ano, afogando-o em um prato de sopa. Tentei procurá-la em outubro, mas não sabia como ela estaria na ocasião e nem mesmo como encontrar um dos anos mais fugidios que vivi.

Ao contemplá-la nua, antes do sexo, antes do batom barato em meu corpo, perdoei-a. Perdoei de corpo e alma. Por causa daqueles olhos amedrontados de vida; por causa daqueles olhos inseguros, necessitando de carinho, perdoei.

Na nudez, contemplei seus medos: a dor de morrer sozinha como todos; a ciência de se tornar uma lembrança sem que ninguém recordasse de fato. Um desencontro que demonstrava o quanto ela estava perdida, como eu.

Fizemos sexo como libertação. Horas depois, deitada em meu ombro, com minhas mãos acariciando os cabelos lisos e descoloridos, sussurrei baixinho te perdoo em seus ouvidos enquanto ela dormia profundamente. Dormia um sono profundo de que nunca conheceu acalanto. Eu perdera a razão, perdera os motivos, a raiva de sufocá-la com minhas mãos.

Na manhã seguinte fiz café, trouxe pão e um bolo. Ainda nua, apareceu na cozinha e sentou ao meu lado. A ponta disforme do seio tocou em meu braço e quase achei graça. A claridade do dia arranhava ainda mais sua imagem. E 2013 saboreou seu café como uma criança, degustando o pão e passando excessivamente manteiga em mais uma fatia.

Nos despedimos logo após o café. Ela, onipresente, agradeceu-me. Reconhecendo implicitamente que foi ao meu encontro para assistir seu fim antecipado. Para não ver si mesma dando os últimos suspiros nos fogos de Copacabana. Cuspindo sangue enquanto outro ano, que ainda não sabia se homem, mulher, híbrido, novo, velho, nasceria.

Nossos olhos se cruzaram pela última vez. As mãos ainda dadas. Tentei um beijo que ela desarmou com um passo para trás. Ela não mais me queria porque eu não pude matá-la.

Tenha um bom fim de ano, me disse, amarga. E seguiu caminhando rumo ao nada enquanto meus olhos a observaram até a imagem do vestido vermelho desaparecer de minha visão.

Você também, sussurrei a ninguém.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Via Lacta

“"Ora (direis) ouvir estrelas!” 
Olavo Bilac, “Via Láctea” 

 Ontem perdi o senso após o jantar. Colocávamos a estrela na árvore de natal para nos guiar o horizonte. Angulosa, brilhante, quase o menino Jesus reencarnado quando a luz acabou e a estrela não quis brilhar.

Peguei o sem fio na mão. Não funcionava sem eletricidade. Procuramos o celular, no escuro. “Tem como ligar para ele?”, não tinha. Demorados dez minutos para tateá-lo.

Ligamos para a central de energia elétrica. “Em duas horas estará estabelecida”. Mas como? Perguntei. “Duas horas, senhora”. Senhora. Explodiu a memória juvenil da voz fina. Voz de viado. Voz de bicha desmunhecando. Por que malditas duas horas? “O senhor não precisa ser hostil. É um tempo limite”.

Então, saí de casa. O bairro todo na escuridão e eu caminhando, as estrelinhas zombando de mim lá em cima. Olhei no relógio, eram quase dez. Olhei para a frente, as coxas doendo em razão do caminhar rápido, eu não chegaria a tempo.

As luzes dos carros deixavam sombras de meu corpo no chão. Sentia o vento beijando-o com a velocidade. Volta e meia alguém morre, passa no Datena, mas tanto faz. Mais vale uma alma rasgada no sangue do pneu do que uma verba não desviada para pavimentar o acostamento. Estamos acostumados.

Estava suando, reclamando por todos os poros. As luzes acabaram, demorariam duas horas. Perderia o jogo, a bebida estaria sabotada e a casa tão quente como se envolvida em um cobertor felpudo. Cinco minutos. Vamos, gordinho, ande. Não adianta correr. Gordo não corre, saibam disso. Ande um pouco mais rápido, perca o ônibus, a hora, a estação, mas não se esforce e não obrigue o mundo a ver o desastre das banhas subindo e descendo, trombando em si mesmas e escurecendo de suor as camisas mal-lavadas.

Aos três minutos, avistei o posto visível na escuridão. Cheguei à lojinha arfando, achando que não passaria deste Natal. A moça com cara de viciada em metanfetamina deve ter me dado um olhar de desdém, não vi, mas conhecia o olhar de outras vezes. Ouvi apenas um “estamos com o sistema fora do ar”

Eu queria lhe levantar o dedo e dizer: “escuta aqui, sua vadia”, mas não o fiz. Na escuridão, só havia vultos. Então, eu aproximei do balcão e lhe perguntei novamente por quê, tentando ouvir pacientemente. Enquanto fingia ouvir a lorota que culpava a falta de luz, retirei o dinheiro de meu bolso e, lentamente, coloquei o produto no bolso com o mesmo cuidado.

Agradeci e sai.

Caminhei um quarteirão sem olhar para trás. Eu dispararia se pudesse correr. Mas caminhei lentamente para casa.

Toquei meu bolso direito, sentindo-o, quase chamando meu nome. Deslizei até o bolso e retirei-o com cuidado. O papel rasgou e quase dei uma dentada no outro, de alumínio, dentro dele. Então, mordi. Uma mordida glutona, enchendo-me a boca com aquele sabor adocicado, suave, a hóstia de minha salvação.

Estava saindo da linha, mas era um pouco tarde para chorar. Pensei no doutor me dizendo para evitar os doces. Que a dieta era algo sério. Mas eu já tinha perdido três quilos que engordei nos últimos meses por conta do stress, da lasanha congelada, dos problemas familiares, do desgraçado do oficial de justiça querendo embargar minha casa, me dei a esse luxo.

E, ali, no fim de minha via Lacta, comi o chocolate com a paixão dos amantes. Lambendo a embalagem antes de descartá-la na avenida. Feliz como um César ao comandar seu exército. A alegria em centímentros de gordura, que se acomodaria feliz na parte cententrional de minha pança que começava a diminuir.

Então, olhei as estrelas. Aqueles pontinhos brilhantes lá de longe falando comigo em picos de açúcar e bombons de chocolate. Estradas pavimentadas por mousses de maracujá e montanhas de chantilly e eu me dei conta de como gostaria de estar dentro do conto de João e Maria, sonhando com a casa da bruxa. Nem sei como cheguei em casa.

As luzes voltaram quando estava na porta. O vizinho de cima gritou “Vai, Flamengo” ainda que o time não jogasse naquela noite. As cervejas estavam chocas. Ela estava deitada na frente do ventilador.

- Onde foi? – me perguntou.

- Ao paraíso, mulher, ao paraíso.

E ela me olhou com interrogação enquanto eu ainda lambia os beiços.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Jacques

Por Ana Paula Henrique - http://anahenrique.wordpress.com/

Jacques expulsava o oxigênio de seu corpo e, lentamente,  deitava no chão da piscina: a água afastava o vazio de sua realidade, e, mesmo que por apenas alguns segundos, ele se sentia um ser humano novamente. Não o garoto, cuja carreira em ascensão provocara um mudança radical em sua relação com o mundo e com as pessoas que até então haviam sido seu suporte financeiro e emocional, sua família e sua namorada. Não o modelo que enfiava dois dedos goela abaixo, expulsando toda comida de seu estômago e vendo-a desaparecer na privada em uma espiral amarelada e mal-cheirosa. Não a criatura insensível que chamara Elodie, a única mulher que verdadeiramente se preocupava com ele, de gorda ridícula, escorraçando-a como um cachorro vira-latas. Não o monstro que provocara o acidente que a fizera abortar.

Na água ele era apenas Jacques.

Jacques lutando contra a vontade esmagadora de respirar e se afogar no vazio.

Jacques residente do tradicional Arrondissement de Passy.

Jacques. Ex-modelo.

Abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio. Do fundo da piscina, viu então o contorno do telhado da casa, vacilante e impreciso como uma pintura impressionista. Tentou ignorar a agonia em seu peito, mas, não obtendo sucesso – seu corpo precisava desesperadamente de ar  –, começou a emergir. Quando chegou à superfície e pode respirar, sentiu como se algum órgão dentro de si houvesse implodido. Sua respiração, que rompeu dolorosa e ofegante, lembrava o impacto dos cascos de cavalos em uma corrida; cada pedacinho de seu pulmão brigava pelo ar que lhe era devido, assim como cada encontro firme e furioso entres os cascos e o chão provocava rítmicos estrondos que só cessariam quando a corrida acabasse.

De volta em seu quarto, sentou-se na cama king size, quebrada há mais de três meses, e fixou seu olhar na mesma porta onde, há cerca de dois anos, as batidas se repetiam insistentes. Lembranças passeavam por sua mente, afiadas e cortantes: a briga, os insultos, a raiva.

___________

Tum. Tum. Tum.

_ “Jacques! Ces’t moi. Ouvrez la porte!

_ “Jacques!”

Batidas mais forte agora.

_ “JACQUES! Abre a porta, s’il vous plait, precisamos conversar!

Jacques, semi-acordado, senta-se na cama com dificuldade. Sentindo um misto de frustração e raiva que cresce a cada batida, lembra-se do jantar no qual ela anunciou o término do relacionamento como se estivesse anunciando a previsão do tempo, enumerando suas atitudes ‘imaturas’ e culpando-o pelo afastamento dos dois. A revolta, até então reprimida,  começa a se espalhar pelo seu corpo como um câncer, obstruindo sua visão. Porra, ela não terminou tudo? Não jogou todas as coisas numa mala e saiu batendo a porta da casa que ELE comprou, com o dinheiro da profissão que ela desprezava tanto?

Do corredor, a voz de Elodie soava cada vez mais alta:

_ JACQUES, OUVREZ LA PORTE, PUTAIN DE MERDE!

_ “C’est qui?” Perguntou só pra deixá-la mais irritada.

_ “Putain! Você sabe muito bem quem é. Abre essa porta de uma vez!”

Ele abriu e a encarou com o desprezo que julgou adequado. A beleza angelical de Elodie, no entanto,   atingiu-o como um golpe, e, por um momento, Jacques se esqueceu de todo o resto: ela realmente engordara nas últimas semanas, mas os quilos ganhos só faziam ressaltar a harmonia de seus traços, a delicadeza de seu semblante. Algo novo estava operando mudanças físicas em sua ex-amante. Algo ou alguém? Será que ela já estava saindo com outro cara? Pelo que ele conhecia de Elodie isso não era provável, mas a mera possibilidade foi suficiente para trazer toda sua irritação de volta. Em um rosnado, disse:

_ O que você quer? Já não levou todas as suas tralhas?

Elodie  começou a chorar; seu corpo dobrou-se sobre si mesmo, como que contorcido por uma súbita dor de barriga. Por um momento ele considerou se abaixar para acariciar seus cabelos, imaginou-se sussurrando baixinho em seu ouvido, mas algo o fez hesitar. Lembrou-se do que ela havia dito antes,  “precisamos conversar”,  e teve um presságio: ela veio dizer o indizível. Elodie havia achado alguém melhor do que ele, alguém que não precisava se vender diariamente para ganhar dinheiro, alguém bom, alguém digno. Era isso. E isso ele simplesmente não podia suportar. Em menos de um segundo, a confusão e a revolta arrebentaram soltas e agressivas, esguichando de seus poros como água de uma mangueira.

Por conta do excesso de adrenalina que seu corpo havia produzido naqueles poucos minutos, sua memória do evento era imprecisa, arisca. Sabia que havia gritado com ela, com Elodie, empurrando-a corredor abaixo, insultando-a de vadia traiçoeira e gorda imunda, perguntando qual era o nome do filho da puta pra quem ela tava dando. Lembrava-se também que, no apogeu de sua cólera, havia agarrado seus cabelos e colocado-a para fora. Lembrava, tendo plena certeza de que para sempre lembraria, do momento em que ela olhou-o com ódio profundo e cuspiu em sua cara.

Elodie saiu correndo. Jacques ficou parado na calçada da casa que comprara há milênios. Três horas depois, a ligação da mãe de Elodie, histérica, dizendo que sua filha fora atropelada e que havia perdido a criança.

_ “Que criança?” Perguntou atônito, sentindo um pânico asfixiante embaçar seus sentidos.  Depois vomitou, naturalmente. Depois desmaiou.

___________

Pela primeira vez desde o acidente, sentado naquela cama quebrada, Jacques deixou-se absorver inteiramente pelo fantasma que o perseguia desde então: a culpa por ter ferido e mudado irreversivelmente a vida do filho e da mulher que um dia amara, que talvez ainda amasse. Acolheu então a dor e, chorando, convidou a escuridão.

De repente, Jacques, que em posição fetal se desintegrava, ouviu o suspiro de uma voz melodiosa que cantarolava provocante:

Can…

Caaaaaannnn…

Com um sobressalto, reconheceu imediatamente a melodia e a voz do cantor que, nos primeiros anos de sua adolescência, havia sido seu favorito. O suspiro veio de novo, mais alto desta vez.

…anybody…

Era como se Freddie estivesse ao seu lado, cantando as palavras que se desenrolavam sedutoras. Sentiu então sua própria voz trêmula responder desobediente:

_find me…

A continuação soou clara como água:

…somebody to love!

E lá estavam as inconfundíveis notas de piano que abriam a canção tão famosa. Olhou ao redor do quarto, mas não viu nada. A canção, no entanto, continuava e ele sentia um desejo insano de acompanhá-la:

… can barely stand on my feet. Take a look in the mirror and cry, Lord, what you’re doing to me!

Jacques  pôs-se de pé e andou em direção à porta.

I have spent all my years in believing you, but I just can’t get no relief, Lord!
Somebody, somebody

Pelos corredores imundos da casa, ele, cantando, passou. Entrou na garagem, embarcou no carro e todos os membros da banda embarcaram com ele: Roger ao seu lado, Freddie no banco de trás, sentado entre Brian e John.

Everyday – I try and I try and I try – but everybody wants to put me down; they say I’m goin’ crazy. They say I got a lot of water in my brain… Got no common sense! I got nobody left to believe

Yeah – yeah yeah yeah

Parou na frente da casa de repouso onde Elodie havia sido internada há alguns meses – não lembrava exatamente quantos. Como facilidade, ganhou acesso aos corredores e seguiu em direção ao jardim. Tinha a distinta sensação de que a encontraria lá. Ao seu redor, a música continuava otimista:

Got no feel, I got no rhythm. I just keep losing my beat…

Respondeu I’m ok, I’m alright e continuou andando.
Começou a pensar que havia se perdido em um labirinto, quando percebeu estar dentro de uma sala redonda, sem portas ou qualquer entrada visível. Como havia ido parar ali se não havia nenhuma porta? Olhou ao redor desesperado, como a porcaria de uma sala podia se colocar entre ele e seu pedido de perdão, entre ele e seu destino?

“I just gotta get out of this prison cell! Someday I’m gonna be free, Lord!”

Encostado na parede, o guitarrista tocava sua guitarra indiferente. Jacques sentiu então algo  pontudo  sob seu pé esquerdo e, ao se abaixar pra ver o que era, encontrou uma chave posta sobre sua fechadura, pronta para ser girada.

Jacques então sentiu medo; toda a coragem que o trouxera até ali desaparecera sem deixar rastro, e ele já não tinha mais certeza se queria mesmo abrir aquela porta. Entretanto, naquele momento, descobriu em si a certeza de que ele e Elodie só poderiam recomeçar suas vidas quando ele se explicasse, quando ele pedisse perdão e se redimisse de alguma forma. Quando admitisse que, acima de tudo, ainda a amava.

Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to love.
Find me .Somebody to love.
Somebody, somebody,

Girou então a chave. Sob o peso do seu corpo, a porta cedeu e pareceu alongar-se como uma prancha ou trampolim. Da sala redonda, os quatro assistiram-no mergulhar na escuridão, suas vozes se alternando de forma harmoniosa no último refrão:

Somebody, somebody,
Somebody find me
Somebody find me somebody to love
Can anybody find me…
Somebody to loooooooooooooove!

Jacques mergulhou, e só abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio.

Find me

Somebody to love.