domingo, 1 de dezembro de 2013

Jacques

Por Ana Paula Henrique - http://anahenrique.wordpress.com/

Jacques expulsava o oxigênio de seu corpo e, lentamente,  deitava no chão da piscina: a água afastava o vazio de sua realidade, e, mesmo que por apenas alguns segundos, ele se sentia um ser humano novamente. Não o garoto, cuja carreira em ascensão provocara um mudança radical em sua relação com o mundo e com as pessoas que até então haviam sido seu suporte financeiro e emocional, sua família e sua namorada. Não o modelo que enfiava dois dedos goela abaixo, expulsando toda comida de seu estômago e vendo-a desaparecer na privada em uma espiral amarelada e mal-cheirosa. Não a criatura insensível que chamara Elodie, a única mulher que verdadeiramente se preocupava com ele, de gorda ridícula, escorraçando-a como um cachorro vira-latas. Não o monstro que provocara o acidente que a fizera abortar.

Na água ele era apenas Jacques.

Jacques lutando contra a vontade esmagadora de respirar e se afogar no vazio.

Jacques residente do tradicional Arrondissement de Passy.

Jacques. Ex-modelo.

Abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio. Do fundo da piscina, viu então o contorno do telhado da casa, vacilante e impreciso como uma pintura impressionista. Tentou ignorar a agonia em seu peito, mas, não obtendo sucesso – seu corpo precisava desesperadamente de ar  –, começou a emergir. Quando chegou à superfície e pode respirar, sentiu como se algum órgão dentro de si houvesse implodido. Sua respiração, que rompeu dolorosa e ofegante, lembrava o impacto dos cascos de cavalos em uma corrida; cada pedacinho de seu pulmão brigava pelo ar que lhe era devido, assim como cada encontro firme e furioso entres os cascos e o chão provocava rítmicos estrondos que só cessariam quando a corrida acabasse.

De volta em seu quarto, sentou-se na cama king size, quebrada há mais de três meses, e fixou seu olhar na mesma porta onde, há cerca de dois anos, as batidas se repetiam insistentes. Lembranças passeavam por sua mente, afiadas e cortantes: a briga, os insultos, a raiva.

___________

Tum. Tum. Tum.

_ “Jacques! Ces’t moi. Ouvrez la porte!

_ “Jacques!”

Batidas mais forte agora.

_ “JACQUES! Abre a porta, s’il vous plait, precisamos conversar!

Jacques, semi-acordado, senta-se na cama com dificuldade. Sentindo um misto de frustração e raiva que cresce a cada batida, lembra-se do jantar no qual ela anunciou o término do relacionamento como se estivesse anunciando a previsão do tempo, enumerando suas atitudes ‘imaturas’ e culpando-o pelo afastamento dos dois. A revolta, até então reprimida,  começa a se espalhar pelo seu corpo como um câncer, obstruindo sua visão. Porra, ela não terminou tudo? Não jogou todas as coisas numa mala e saiu batendo a porta da casa que ELE comprou, com o dinheiro da profissão que ela desprezava tanto?

Do corredor, a voz de Elodie soava cada vez mais alta:

_ JACQUES, OUVREZ LA PORTE, PUTAIN DE MERDE!

_ “C’est qui?” Perguntou só pra deixá-la mais irritada.

_ “Putain! Você sabe muito bem quem é. Abre essa porta de uma vez!”

Ele abriu e a encarou com o desprezo que julgou adequado. A beleza angelical de Elodie, no entanto,   atingiu-o como um golpe, e, por um momento, Jacques se esqueceu de todo o resto: ela realmente engordara nas últimas semanas, mas os quilos ganhos só faziam ressaltar a harmonia de seus traços, a delicadeza de seu semblante. Algo novo estava operando mudanças físicas em sua ex-amante. Algo ou alguém? Será que ela já estava saindo com outro cara? Pelo que ele conhecia de Elodie isso não era provável, mas a mera possibilidade foi suficiente para trazer toda sua irritação de volta. Em um rosnado, disse:

_ O que você quer? Já não levou todas as suas tralhas?

Elodie  começou a chorar; seu corpo dobrou-se sobre si mesmo, como que contorcido por uma súbita dor de barriga. Por um momento ele considerou se abaixar para acariciar seus cabelos, imaginou-se sussurrando baixinho em seu ouvido, mas algo o fez hesitar. Lembrou-se do que ela havia dito antes,  “precisamos conversar”,  e teve um presságio: ela veio dizer o indizível. Elodie havia achado alguém melhor do que ele, alguém que não precisava se vender diariamente para ganhar dinheiro, alguém bom, alguém digno. Era isso. E isso ele simplesmente não podia suportar. Em menos de um segundo, a confusão e a revolta arrebentaram soltas e agressivas, esguichando de seus poros como água de uma mangueira.

Por conta do excesso de adrenalina que seu corpo havia produzido naqueles poucos minutos, sua memória do evento era imprecisa, arisca. Sabia que havia gritado com ela, com Elodie, empurrando-a corredor abaixo, insultando-a de vadia traiçoeira e gorda imunda, perguntando qual era o nome do filho da puta pra quem ela tava dando. Lembrava-se também que, no apogeu de sua cólera, havia agarrado seus cabelos e colocado-a para fora. Lembrava, tendo plena certeza de que para sempre lembraria, do momento em que ela olhou-o com ódio profundo e cuspiu em sua cara.

Elodie saiu correndo. Jacques ficou parado na calçada da casa que comprara há milênios. Três horas depois, a ligação da mãe de Elodie, histérica, dizendo que sua filha fora atropelada e que havia perdido a criança.

_ “Que criança?” Perguntou atônito, sentindo um pânico asfixiante embaçar seus sentidos.  Depois vomitou, naturalmente. Depois desmaiou.

___________

Pela primeira vez desde o acidente, sentado naquela cama quebrada, Jacques deixou-se absorver inteiramente pelo fantasma que o perseguia desde então: a culpa por ter ferido e mudado irreversivelmente a vida do filho e da mulher que um dia amara, que talvez ainda amasse. Acolheu então a dor e, chorando, convidou a escuridão.

De repente, Jacques, que em posição fetal se desintegrava, ouviu o suspiro de uma voz melodiosa que cantarolava provocante:

Can…

Caaaaaannnn…

Com um sobressalto, reconheceu imediatamente a melodia e a voz do cantor que, nos primeiros anos de sua adolescência, havia sido seu favorito. O suspiro veio de novo, mais alto desta vez.

…anybody…

Era como se Freddie estivesse ao seu lado, cantando as palavras que se desenrolavam sedutoras. Sentiu então sua própria voz trêmula responder desobediente:

_find me…

A continuação soou clara como água:

…somebody to love!

E lá estavam as inconfundíveis notas de piano que abriam a canção tão famosa. Olhou ao redor do quarto, mas não viu nada. A canção, no entanto, continuava e ele sentia um desejo insano de acompanhá-la:

… can barely stand on my feet. Take a look in the mirror and cry, Lord, what you’re doing to me!

Jacques  pôs-se de pé e andou em direção à porta.

I have spent all my years in believing you, but I just can’t get no relief, Lord!
Somebody, somebody

Pelos corredores imundos da casa, ele, cantando, passou. Entrou na garagem, embarcou no carro e todos os membros da banda embarcaram com ele: Roger ao seu lado, Freddie no banco de trás, sentado entre Brian e John.

Everyday – I try and I try and I try – but everybody wants to put me down; they say I’m goin’ crazy. They say I got a lot of water in my brain… Got no common sense! I got nobody left to believe

Yeah – yeah yeah yeah

Parou na frente da casa de repouso onde Elodie havia sido internada há alguns meses – não lembrava exatamente quantos. Como facilidade, ganhou acesso aos corredores e seguiu em direção ao jardim. Tinha a distinta sensação de que a encontraria lá. Ao seu redor, a música continuava otimista:

Got no feel, I got no rhythm. I just keep losing my beat…

Respondeu I’m ok, I’m alright e continuou andando.
Começou a pensar que havia se perdido em um labirinto, quando percebeu estar dentro de uma sala redonda, sem portas ou qualquer entrada visível. Como havia ido parar ali se não havia nenhuma porta? Olhou ao redor desesperado, como a porcaria de uma sala podia se colocar entre ele e seu pedido de perdão, entre ele e seu destino?

“I just gotta get out of this prison cell! Someday I’m gonna be free, Lord!”

Encostado na parede, o guitarrista tocava sua guitarra indiferente. Jacques sentiu então algo  pontudo  sob seu pé esquerdo e, ao se abaixar pra ver o que era, encontrou uma chave posta sobre sua fechadura, pronta para ser girada.

Jacques então sentiu medo; toda a coragem que o trouxera até ali desaparecera sem deixar rastro, e ele já não tinha mais certeza se queria mesmo abrir aquela porta. Entretanto, naquele momento, descobriu em si a certeza de que ele e Elodie só poderiam recomeçar suas vidas quando ele se explicasse, quando ele pedisse perdão e se redimisse de alguma forma. Quando admitisse que, acima de tudo, ainda a amava.

Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to love.
Find me .Somebody to love.
Somebody, somebody,

Girou então a chave. Sob o peso do seu corpo, a porta cedeu e pareceu alongar-se como uma prancha ou trampolim. Da sala redonda, os quatro assistiram-no mergulhar na escuridão, suas vozes se alternando de forma harmoniosa no último refrão:

Somebody, somebody,
Somebody find me
Somebody find me somebody to love
Can anybody find me…
Somebody to loooooooooooooove!

Jacques mergulhou, e só abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio.

Find me

Somebody to love.

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