Por Ana Paula Henrique - http://anahenrique.wordpress.com/
Jacques expulsava o oxigênio de seu corpo e, lentamente, deitava no chão da piscina: a água afastava o
vazio de sua realidade, e, mesmo que por apenas alguns segundos, ele se sentia
um ser humano novamente. Não o garoto, cuja carreira em ascensão provocara um
mudança radical em sua relação com o mundo e com as pessoas que até então
haviam sido seu suporte financeiro e emocional, sua família e sua namorada. Não
o modelo que enfiava dois dedos goela abaixo, expulsando toda comida de seu
estômago e vendo-a desaparecer na privada em uma espiral amarelada e mal-cheirosa.
Não a criatura insensível que chamara Elodie, a única mulher que
verdadeiramente se preocupava com ele, de gorda ridícula, escorraçando-a como
um cachorro vira-latas. Não o monstro que provocara o acidente que a fizera
abortar.
Na água ele era apenas Jacques.
Jacques lutando contra a vontade esmagadora de respirar e se afogar
no vazio.
Jacques residente do tradicional Arrondissement
de Passy.
Jacques. Ex-modelo.
Abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta
de oxigênio. Do fundo da piscina, viu então o contorno do telhado da casa,
vacilante e impreciso como uma pintura impressionista. Tentou ignorar a agonia
em seu peito, mas, não obtendo sucesso – seu corpo precisava desesperadamente
de ar –, começou a emergir. Quando
chegou à superfície e pode respirar, sentiu como se algum órgão dentro de si
houvesse implodido. Sua respiração, que rompeu dolorosa e ofegante, lembrava o
impacto dos cascos de cavalos em uma corrida; cada pedacinho de seu pulmão
brigava pelo ar que lhe era devido, assim como cada encontro firme e furioso
entres os cascos e o chão provocava rítmicos estrondos que só cessariam quando
a corrida acabasse.
De volta em seu quarto, sentou-se na cama king size, quebrada há mais de três meses, e fixou seu olhar na
mesma porta onde, há cerca de dois anos, as batidas se repetiam insistentes.
Lembranças passeavam por sua mente, afiadas e cortantes: a briga, os insultos,
a raiva.
___________
Tum. Tum. Tum.
_ “Jacques! Ces’t moi. Ouvrez la porte!
_ “Jacques!”
Batidas mais forte agora.
_ “JACQUES! Abre a porta, s’il vous plait, precisamos
conversar!
Jacques, semi-acordado,
senta-se na cama com dificuldade. Sentindo um misto de frustração e raiva que
cresce a cada batida, lembra-se do jantar no qual ela anunciou o término do
relacionamento como se estivesse anunciando a previsão do tempo, enumerando
suas atitudes ‘imaturas’ e culpando-o pelo afastamento dos dois. A revolta, até
então reprimida, começa a se espalhar
pelo seu corpo como um câncer, obstruindo sua visão. Porra, ela não terminou
tudo? Não jogou todas as coisas numa mala e saiu batendo a porta da casa que
ELE comprou, com o dinheiro da profissão que ela desprezava tanto?
Do corredor, a voz de Elodie soava cada vez mais alta:
_ JACQUES, OUVREZ LA PORTE, PUTAIN DE MERDE!
_ “C’est qui?” Perguntou só pra deixá-la mais
irritada.
_ “Putain! Você sabe muito bem quem é. Abre essa porta
de uma vez!”
Ele abriu e a encarou com o
desprezo que julgou adequado. A beleza angelical de Elodie, no entanto, atingiu-o como um golpe, e, por um momento,
Jacques se esqueceu de todo o resto: ela realmente engordara nas últimas
semanas, mas os quilos ganhos só faziam ressaltar a harmonia de seus traços, a
delicadeza de seu semblante. Algo novo estava operando mudanças físicas em sua
ex-amante. Algo ou alguém? Será que ela já estava saindo com outro cara? Pelo
que ele conhecia de Elodie isso não era provável, mas a mera possibilidade foi
suficiente para trazer toda sua irritação de volta. Em um rosnado, disse:
_ O que você quer? Já não levou todas as suas tralhas?
Elodie começou a chorar; seu corpo dobrou-se sobre
si mesmo, como que contorcido por uma súbita dor de barriga. Por um momento ele
considerou se abaixar para acariciar seus cabelos, imaginou-se sussurrando
baixinho em seu ouvido, mas algo o fez hesitar. Lembrou-se do que ela havia
dito antes, “precisamos conversar”, e teve um presságio: ela veio dizer o
indizível. Elodie havia achado alguém melhor do que ele, alguém que não
precisava se vender diariamente para ganhar dinheiro, alguém bom, alguém digno.
Era isso. E isso ele simplesmente não podia suportar. Em menos de um segundo, a
confusão e a revolta arrebentaram soltas e agressivas, esguichando de seus
poros como água de uma mangueira.
Por conta do excesso de
adrenalina que seu corpo havia produzido naqueles poucos minutos, sua memória
do evento era imprecisa, arisca. Sabia que havia gritado com ela, com Elodie,
empurrando-a corredor abaixo, insultando-a de vadia traiçoeira e gorda imunda,
perguntando qual era o nome do filho da puta pra quem ela tava dando.
Lembrava-se também que, no apogeu de sua cólera, havia agarrado seus cabelos e
colocado-a para fora. Lembrava, tendo plena certeza de que para sempre
lembraria, do momento em que ela olhou-o com ódio profundo e cuspiu em sua
cara.
Elodie saiu correndo.
Jacques ficou parado na calçada da casa que comprara há milênios. Três horas
depois, a ligação da mãe de Elodie, histérica, dizendo que sua filha fora
atropelada e que havia perdido a criança.
_ “Que criança?” Perguntou
atônito, sentindo um pânico asfixiante embaçar seus sentidos. Depois vomitou, naturalmente. Depois
desmaiou.
___________
Pela primeira vez desde o acidente, sentado naquela cama quebrada,
Jacques deixou-se absorver inteiramente pelo fantasma que o perseguia desde
então: a culpa por ter ferido e mudado irreversivelmente a vida do filho e da
mulher que um dia amara, que talvez ainda amasse. Acolheu então a dor e,
chorando, convidou a escuridão.
De repente, Jacques, que em posição fetal se desintegrava, ouviu o
suspiro de uma voz melodiosa que cantarolava provocante:
Can…
Caaaaaannnn…
Com um sobressalto, reconheceu imediatamente a melodia e a voz do
cantor que, nos primeiros anos de sua adolescência, havia sido seu favorito. O
suspiro veio de novo, mais alto desta vez.
…anybody…
Era como se
Freddie estivesse ao seu lado, cantando as palavras que se desenrolavam
sedutoras. Sentiu então sua própria voz trêmula responder desobediente:
_find me…
A continuação
soou clara como água:
…somebody to love!
E lá estavam as inconfundíveis notas de piano que abriam a canção
tão famosa. Olhou ao redor do quarto, mas não viu nada. A canção, no entanto,
continuava e ele sentia um desejo insano de acompanhá-la:
… can barely stand on
my feet. Take a look in the mirror and cry, Lord, what you’re doing to me!
Jacques pôs-se de pé e andou em direção à porta.
I have spent all my years in believing you, but I just can’t get no
relief, Lord!
Somebody, somebody
Pelos corredores imundos da casa, ele, cantando, passou. Entrou na
garagem, embarcou no carro e todos os membros da banda embarcaram com ele:
Roger ao seu lado, Freddie no banco de trás, sentado entre Brian e John.
Everyday – I try and I try and I try – but everybody wants to put me
down; they say I’m goin’ crazy. They say I got a lot of water in my brain… Got
no common sense! I got nobody left to believe
Yeah – yeah yeah yeah
Parou na frente da casa de repouso onde Elodie havia sido internada
há alguns meses – não lembrava exatamente quantos. Como facilidade, ganhou
acesso aos corredores e seguiu em direção ao jardim. Tinha a distinta sensação
de que a encontraria lá. Ao seu redor, a música continuava otimista:
Got no feel, I got no rhythm. I just keep losing my beat…
Respondeu I’m ok, I’m alright
e continuou andando.
Começou a pensar que havia se perdido em um labirinto, quando
percebeu estar dentro de uma sala redonda, sem portas ou qualquer entrada
visível. Como havia ido parar ali se não havia nenhuma porta? Olhou ao redor
desesperado, como a porcaria de uma sala podia se colocar entre ele e seu
pedido de perdão, entre ele e seu destino?
“I just gotta get out
of this prison cell! Someday I’m gonna be free, Lord!”
Encostado na parede, o guitarrista tocava sua guitarra indiferente.
Jacques sentiu então algo pontudo sob seu pé esquerdo e, ao se abaixar pra ver
o que era, encontrou uma chave posta sobre sua fechadura, pronta para ser
girada.
Jacques então sentiu medo; toda a coragem que o trouxera até ali
desaparecera sem deixar rastro, e ele já não tinha mais certeza se queria mesmo
abrir aquela porta. Entretanto, naquele momento, descobriu em si a certeza de
que ele e Elodie só poderiam recomeçar suas vidas quando ele se explicasse,
quando ele pedisse perdão e se redimisse de alguma forma. Quando admitisse que,
acima de tudo, ainda a amava.
Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to
love.
Find me. Somebody to
love.
Find me .Somebody to
love.
Somebody, somebody,
Girou então a chave. Sob o peso do seu corpo, a porta cedeu e
pareceu alongar-se como uma prancha ou trampolim. Da sala redonda, os quatro
assistiram-no mergulhar na escuridão, suas vozes se alternando de forma
harmoniosa no último refrão:
Somebody, somebody,
Somebody find me
Somebody find me
somebody to love
Can anybody find me…
Somebody to
loooooooooooooove!
Jacques
mergulhou, e só abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a
falta de oxigênio.
Find me
Somebody to love.
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