sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Robô de Brinquedo

As três leis da robótica são:


1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.

3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.

Beven era um brinquedo caríssimo. De fato havia custado alguns milhares de dólares à Smith & Sons Toys and Eletronic Games. O senhor Smith achava que era um bom e válido investimento para seu tradicional estabelecimento, afinal, quem não gostaria de brincar com um robô de verdade?

Apostando nessa ideia o Senhor Smith havia comprometido boa parte do orçamento da loja adquirindo um dos moderníssimos B-7, um novo robô da US Robots and Mechanical Men que tinha o diferencial de falar. De fato ele não só falava, como podia brincar e cuidar de crianças. Em suma, um futuro sucesso.

Quando Beven chegou à loja, as filas eram gigantecas, dobravam quarteirões, cheias de crianças e até alguns adultos, alucinados para brincar um pouquinho que fosse com a novidade. O sucesso era tanto que após algumas semanas a loja começou a agendar visitas para que se pudesse ver o robô. Beven era mesmo adorável, um pequeno homem de metal, cinzento, vestindo uma bela casaca e com uma cara angulosa que lembrava um dos antigos clows medievais.

Bastava um pedido de um humano e Beven podia dançar, cantar, contar histórias - que nunca se repetiam - , ou até mesmo fazer números de malabarismo e fingir falsas quedas, muito espalhafatosas, que faziam os pequeninos rirem com gosto. Todos adoravam Beven e ele se transformou rapidamente em uma celebridade.

Existiam outros robôs da série B-7, mas aparentemente a US Robots não havia obtido sucesso em sua venda. Primeiro porque eram caros demais, segundo porque fora a grande Metrópole, onde ficava a  Smith & Sons Toys and Eletronic Games, o resto do país sofria um bocado com severas leis anti-robóticas, a maioria delas fruto da pressão de sindicatos de trabalhadores humanos.

O caso era que apesar de todo o sucesso de Beven, outras lojas não queriam correr o risco de leis anti-robóticas jogarem um investimento milionário no lixo. E a despeito da coragem e visão de negócios do Senhor Smith, a verdade é que elas estavam bem certas. Não demorou muito e um proeminente líder religioso começou uma campanha contra Beven, a  Smith & Sons Toys and Eletronic Games e a US Robots and Mechanical Men.

A campanha difamatória consistia em proferir aos gritos, na TV, que os pais estavam deixando que seus filhos fossem submetidos a presença de um ser sem alma, e que portanto só poderia ser o Diabo. E pior, que os deixava brincar e fazer amizade com ele. Foi um baque. A popularidade de Beven caiu pela metade e os olhares de desconfiança dos pais que ainda levavam seus filhos aumentaram e tornaram a experiência - outrora prazerosa - em algo aflitivo para as crianças.

Mesmo assim a Smith & Sons Toys and Eletronic Games continuou a lucrar com o robô e o manteve como destaque de sua loja, mas - por outro lado - a US Robots descontinuou a linha e passou a pesquisar robôs para outras funções, que não a diversão humana. Era o princípio do fim.

As coisas continuaram instáveis por alguns meses e só foram culminar em desastre no final daquele ano, quando Beven impediu um pai de bater em seu filho. Acontece que a 1ª lei da robótica agiu tão forte - como alias sempre age - que o robô se deslocou em uma velocidade sobre-humana, que até então ninguém sabia que ele possuia, e entrou na frente do tapa que o pai desferiu sobre seu filho. Bevin era puro metal e não preciso dizer que o pai machucou - ainda que de leve - a mão com que desferiu o tapa.

A partir dai o caminho da robótica na Terra se definiu claramente. Esse pai processou ao mesmo tempo a Smith & Sons Toys and Eletronic Games e a US Robots - que nem mais produzia a série B-7 - conseguindo uma mudança severa da opinião pública e - surpreendentemente - uma vitória jurídica que serviu para desencorajar quaisquer projetos futuros da US Robots - e de fato eles levariam décadas para retomar os robôs humanóides - e para levar inapelavelmente a falência a Smith & Sons Toys and Eletronic Games, que fechou as portas em Março do ano seguinte. 

Bevon foi considerado uma ameaça pelo tribunal do júri e destruído em seguida, mesmo com a sensata argumentação dos técnicos da US Robots and Mechanical Men, que haviam dito que o robô apenas havia interpretado com rigor excessivo a 1ª lei e que precisava de pequenos ajustes, mas que nunca havia oferecido risco para qualquer ser humano. Acontece que a humanidade, quando cria algozes, dificilmente volta atrás em seus pré-julgamentos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Infinidade

Adam Saviour pisou dentro da Caldeira. Seus lados eram perfeitamente redondos e ela se ajustava confortavelmente dentro de um eixo vertical composto de barras largamente espaçadas, que tremeluziam numa neblina invisível, dois metros acima da cabeça do homem. Este tomou os controles e acionou calmamente a alavanca de partida da Caldeira.

Não esperava sentir qualquer movimento e, de fato, não se moveu. Ao menos não em qualquer direção espacial observável. Voltando-se para um marcador digital diante de seus olhos, pôde ver números subindo vertiginosamente até 129000. Era o século para o qual estava se dirigindo, mais exatamente no ano de 128048 da Era da Infinidade.

Enquanto os motores temporais cuidavam da transferência física de Saviour e sua Caldeira através dos milênios, seu destino espacial era idêntico ao endereço de partida: a câmara de viagem temporal, mas agora nas instalações da Infinidade do século 129000. O próprio Saviour não sabia exatamente como aquilo tudo funcionava, já que mesmo tendo um cargo importante como Técnico, tinha muito pouco envolvimento com Mecânica Temporal e Matemática de Cronotopos. Sabia, no entanto, que aquela Caldeira cruzava o tempo incontáveis vezes simultaneamente nas Infinidades de incontáveis séculos, e que nunca houveram erros de cálculo ou destino.

Percebeu que o mostrador havia estancado no dia 15 do mês 3 do ano de 128048, às 9h em ponto. Era, realmente, muito raro que um Infinito se atrasasse para um compromisso, dados os meios de transporte. Olhou para fora da Caldeira. Durante a viagem, as barras cinzentas se fundiram em uma cortina de luz tremeluzente, que agora era a única coisa que o separava, de um lado, da Realidade Temporal e, de outro, da Infinidade. Ajustou os controles e, movendo-se para fora da cortina, sentiu o calafrio psicossomático oriundo da entrada em um novo ponto do tempo.

Danny Javers o aguardava, com olhar impassível. Ao observar a sala de Caldeiras em que se encontrava, Saviour não conseguiu disfarçar uma sensação de incômodo. Devia ter lido pelo menos alguma coisa sobre o século 129000 antes de viajar, e agora se amaldiçoava por não tê-lo feito. As paredes não pareciam paredes, mas formações absoluta e opressivamente lineares, retas, perfeitas, de alguma presença que poderia ser confundida até mesmo com sonhos, mas jamais com matéria comum. Saviour rapidamente compreendeu que estava em um século orientado para a energia, da mesma forma como o seu distante século 251 era orientado à matéria. Javers, à sua frente, era um exemplar absolutamente típico de um Homo sapiens, exceto pelo traje eletromagnético que o vestia, dando-lhe o irritante aspecto de um caleidoscópio psicodélico. Ao notar o evidente estranhamento de Saviour, Javers regulou as cores da sala e de sua própria roupa para tons mais estáveis.

- Muito prazer, Técnico Saviour. Sou Javers Danny, Computador-Sênior deste século. É uma honra tê-lo em nossa Infinidade.

- Peço que desculpe minha falta de hábito com os costumes de seu tempo, Computador Javers – Saviour sabia ser polido e, mesmo que não soubesse, convinha muito pouco ser rude com alguém de um cargo tão alto como um Computador-Sênior.

Caminhando pelas instalações da Infinidade local, Saviour pôde ver em funcionamento a arquitetura alienígena daquele século, onde as salas não tinham portas, com paredes que se abriam naturalmente quando alguém a menos de 30 cm fazia um gesto simples com as mãos. Dessa forma, Saviour não pôde definir por que cômodos havia passado. Chegaram, finalmente, à sala pessoal de Javers.

- Imagino que possamos tratar imediatamente do assunto de nosso encontro, sem mais delongas, dada a importância da questão.

- Sem dúvida, Computador. Serei o mais objetivo possível, ainda que minhas teorias necessitem de alguma explicação prévia.

- Pois faça-o com toda a liberdade e nenhuma pressa além da conveniente – Javers fez um gesto para um canto de sua mesa de energia, e alguns aparelhos igualmente energéticos começaram a operar, ainda que Saviour não fizesse a menor idéia acerca de suas funções. Abriu uma pasta que, feita de plástico e papel, parecia igualmente alienígena para Javers.

- O que sabe sobre o Técnico Andrew Harlan, senhor Computador? – as palavras de Saviour atingiram os ouvidos de Javers. Aquele, mais do que muitos, era um assunto pouco falado nos corredores temporais da Infinidade.

- Foi o mais competente e destacado Técnico do Tempo de que já se ouviu falar. Nasceu no século 93 e morreu aos 89 anos de fisiotempo, na Terra do século 20 ou 21.

- E o que mais sabe, senhor Computador, sobre esse homem?

Javers encolheu os ombros. Respirando profundamente, levantou os olhos da superfície reluzente da mesa e encontrou o olhar inquisitivo de Saviour. Sabia que estava diante de um Técnico, o mais ingrato e ao mesmo tempo glorioso cargo da Infinidade.

Sempre que determinado evento na Realidade Temporal se mostrava nocivo ao destino e bom andamento da raça humana, a Infinidade intervinha. Primeiro, um Observador era enviado ao ponto crítico, onde fazia centenas de anotações sobre diversos fatores relevantes. Em seguida, um Computador – não um aparelho, mas um ser humano treinado exaustivamente em Cronomecânica de Populações – analisava os cálculos e apresentava seu relatório a um Técnico. A este, talvez o mais crucial ponto do procedimento, cabia a delicada e ingrata tarefa de decidir e executar pessoalmente uma MMN, a Mínima Mudança Necessária para que se obtivessem os resultados esperados a longo prazo. Estes podiam ser de diversas naturezas, mas normalmente envolviam a alteração de centenas, milhares, às vezes dezenas de milhões de indivíduos, alguns a ponto de se tornarem pessoas completamente novas e diferentes. Aquele era um cargo similar ao de um carrasco, e igualmente imprescindível. Alguém precisava ser a mão que toca e decide o futuro da humanidade, e poucas pessoas queriam tal responsabilidade para si.

- Andrew Harlan – respondeu o Computador-Sênior Javers – foi, entre outras coisas, o responsável direto pelo fim da Eternidade.

- E o que o senhor entende como Eternidade, Computador Javers?

- Sei muito pouco sobre ela, os registros na Academia são escassos e imprecisos. Por volta do século 26, o cientista Vikkor Mallansohnne decifrou as primeiras e mais fundamentais equações da Mecânica Temporal, que posteriormente deram origem a um grupo de humanos que decidiu monitorar e conduzir os rumos da humanidade ao longo do tempo. Sua missão era garantir a continuidade da espécie por tanto tempo quanto o Universo permitisse, e rapidamente se tornaram ditadores invisíveis controlando a Terra como em um palco de marionetes.

- Está certo. E o que aconteceu com a Eternidade, Computador Javers?

- Os homens do século 10000 conseguiram desvendar a Mecânica Temporal e, sozinhos, descobriram a Eternidade e seus planos. Conceberam um contraplano, arquitetado e executado pela Dra. Noys Lambent, para encontrar uma falha no sistema. Essa falha era o coração de Harlan, que foi convencido a dar fim à maior instituição até então conhecida pelo homem.

Saviour anotava palavras isoladas do que Javers dizia. Fez uma pequena pausa, como se quisesse mudar os rumos da entrevista, e então prosseguiu.

- E o que houve com a Eternidade?

- Harlan a expôs a um paradoxo existencial quando enviou seu próprio criador, o Dr. Mallansohnne, para um século onde os avanços tecnológicos não permitiriam a criação do Campo Cronotópico. Assim, todas as conseqüências do surgimento de tal invenção foram desfeitas.

- E os habitantes do século 10000?

- A própria Dra. Lambent tornou-se uma figura histórica ao oferecer-se para levar Harlan até o século 20 e lá passar o restante de seus fisioanos com ele. Sem ela o plano jamais teria ido adiante. Uma nova instituição foi criada, a Infinidade, para cuidar dos assuntos temporais.

- E porque é que nós, da Infinidade, não somos ditadores como o eram os Eternos?

- Simples – e esta resposta o Computador Javers parecia ter aprendido muito cedo na vida – somos uma instituição de humanos, mas totalmente governada por Robôs Positrônicos, o que nos impede de desvirtuar seus princípios.

- Exatamente, Computador Javers. Somos homens que criaram Robôs incapazes de fazer o mal a um ser humano, e que então deram aos Robôs ordens para impedir que os próprios homens fizessem mal a seus semelhantes. A Infinidade é controlada por um imenso e infalível cérebro positrônico, estruturado sobre as quatro leis da robótica.

- Não vejo, Técnico Saviour, a razão de cruzar tantos milênios para sabatinar-me acerca de tais conhecimentos.

- Logo entenderá. Vê esses diagramas temporais? Referem-se a um período de tempo compreendido entre os séculos 242 e 243? Saberia referir de alguma forma tal período?

- Sim – resmungou Javers, começando a cansar-se de responder perguntas evidentes – é o milênio da Fundação, quando Hari Seldon criou seu plano de desenvolvimento para o 3º Império.

- E o Computador saberia me dizer quem, exatamente, é o grande e maior responsável pelo bom andamento e tão exemplar sucesso do Plano Seldon?

- De acordo com os registros, foi o Robô Positrônico conhecido como Daneel Olival. Ele teria deduzido a Lei Zero a partir das três originais, e assim teria desenvolvido um plano inimaginavelmente complexo para garantir o bem-estar da humanidade.

- Exatamente, Computador. E agora finalmente chegamos onde pretendia. O senhor vê as extrapolações matemáticas que fiz sobre as equações que regem o destino de Daneel? Consegue notar, abaixo da quinta linha, um condicional invariável?

E Javers, de fato, via os pontos indicados por Saviour, e a gradual mudança de tonalidade em sua pele revelou que, sem dúvida, havia compreendido tudo.

- A Eternidade ...

- ... foi planejada e construída por Daneel Olival. As equações temporais, os motores cronotópicos, tudo. Ele encontrou, finalmente, uma forma infalível de salvar a raça humana, e a realizou.

- Mas, se isso é verdade ...

- Então nós logramos seus planos? Não seja tolo, Computador Javers. Daneel sabia que Robôs Positrônicos não poderiam jamais dar ordens a seres humanos, a menos que os próprios humanos assim lhes ordenassem.

O fôlego deixou os pulmões de Danny Javers. O quadro que o Técnico Saviour lhe apresentava era demasiado absurdo, demasiado fantasioso, demasiado improvável e, o pior, estava completamente demonstrado e embasado pelas irrefutáveis extrapolações matemáticas que seus olhos observavam. Retomou o ar e perguntou, receoso.

- Está dizendo, Técnico Saviour, que o surgimento de Mallansohnne, a formação da Eternidade, sua destruição casual por Andrew Harlan e a criação de uma Infinidade feita de humanos e controlada por Robôs ...

- ... é um grande, intrínseco e incompreensível, ainda que inadmissivelmente perfeito, plano de Daneel Olival, com o objetivo de cumprir seu dever que era cuidar da raça humana.

- Então é isso? O senhor veio até aqui para mostrar-me que somos simples e irreversíveis marionetes nos dedos mecânicos de um Robô que deixou de existir ainda no século 250? O que pretende com isso?

- De forma alguma, Computador. Vim porque preciso, ou melhor, a raça humana precisa de sua ajuda.

- Não entendo como posso ajudar de qualquer forma diante de tais circunstâncias.

- Consta dos arquivos da U. S. Robots and Mechanical Men que os projetos lógicos responsáveis pela dedução da Lei Zero por parte de Daneel são oriundos de pesquisas em robopsicologia conduzidas pela Dra. Susan Calvin, no século 21. Como creio que já esteja suficientemente esclarecido, o momento em que Daneel Olival deduz a Lei Zero a partir das três primeiras é o epicentro de uma onda civilizacional que garante a prosperidade humana por mais de um milhão de anos.

- E imagino que a Dra. Calvin seja o objeto de seu interesse. Mas o que haveria ela de ter em comum com meu século? Grande Tempo, Saviour, ela é habitante da pré-história, quando nem mesmo a Eternidade existia ainda.

- O que fazemos em vida ecoa pelos milênios, Javers. Pretendo acessar dados elaborados por Erton Nalaar, arqueólogo da pré-história que retomou os trabalhos de Janov Pelorat sobre a Terra e a origem da raça humana. Em seus papéis, pretendo encontrar informação suficiente para localizar e evitar um acidente de trajeto que julgo ser capaz de encerrar a vida da Dra. Calvin.

O Computador-Sênior Javers engoliu em seco. Finalmente, após mais de uma hora de discussão e explicações, compreendera as reais proporções do risco que se apresentava. Se tudo aquilo estivesse mesmo correto...

Olhou, sobressaltado, para o Técnico Adam Saviour e perguntou:

- O senhor afirma, desta forma, que existe uma variação imprevisível na linha do tempo da Dra. Susan Calvin e que, caso ela não seja corrigida ...

- Sim, Computador Javers. Se ela não for corrigida, existirá uma probabilidade de 21,457% de que Susan Calvin não escreva tais teoremas.

- ... impedindo assim a criação de Daneel Olival.

- ... e um milhão de anos na história da humanidade.



Em memória de Isaac Asimov, pai da Fundação, da Eternidade, da Robótica e de incontáveis sonhos que me ensinaram a a crer na ciência e não temer o infinito.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Homem Que Queria Ser de Lata

A data inicial do projeto perdeu-se com o tempo. M. P. Mattos não se recordava quando a idéia primordial surgiu em sua cabeça, mas lembrava-se dos meses seguintes em que, debruçado sobre livros e papéis, trabalhava em sua execução.

Engana-se quem pensa que seu projeto mudaria o mundo. O futuro não só estava exposto lá fora, como era vívido ao seu lado, em seu fiel companheiro, Amper. Há tempos os robôs faziam parte do cotidiano humano e, até dado momento, nenhum se tornou mais inteligente que o homem e urgiu uma rebelião. Tudo estava calmo.

O processo a que M. P. Mattos trabalhava era delicado. Envolvia a biologia humana em todas suas faces. Foi necessário consultar amigos profissionais do ramo. Diversos que lhe bateram a porta até um que, feliz com o desafio, concordou com sua loucura.

Era uma ferramenta de engenharia tão bem produzida que, em todos os testes, supria perfeitamente a parte humana. Era ainda melhor, impedia que eventuais acidentes ocorressem. O que poderia, muito bem, deixá-lo viver mais.

Possuia o tamanho do original, menor do que um punho, e funcionaria da mesma maneira tradicional, conhecida pela medicina desde que o primeiro homem resolveu abrir outro para descobrir o que era aquilo que batia dentro de si.

Ninguém contrariou M.P. Mattos. Estava concentrado para realizar seu desejo com afinco. Era o sonho de sua vida. Uma alma que segue em linha reta sem enfrentar problemas. Sendo capaz, apenas, de ser aquilo que quer.

O amigo fez o corte no peito de Mattos com cuidado, observado por Amper, seu assistente-robô. Tem certeza?, perguntou. E ele deu um longo suspiro.

Dentro de si as imagens sincoparam em belos momentos, que chegaram a, momentaneamente, acelerar seu coração. Aquele objeto que, em segundos, seria desligado de seu corpo. Sim, tenho, confirmou.

Cada artéria e veia recortada do corpo do paciente desligava de uma vez por toda seu coração. Destruía uma máquina viva de sentimentos que, por vontade própria, M. P. Mattos decidiu abdicar. Tantas batidas de tristeza e mágua havia se desprendido daquele coração. Dando-lhe a única certeza de que, para viver, seria necessário não mais amar.

Era a solução do coração de metal construído por ele e seu fiel amigo robótico. Uma composição que não guardaria em si amores e tristeza, mas sim, apenas bombearia seu sangue e o faria viver, sem ser escravo das incertezas.

Foram cinco horas para finalizar a cirurgia com a certeza de que aquele coração de lata não rejeitasse seu dono. M. P. Mattos acordou eufórico. Dolorido, mas vivo.

Imaginava que a partir de agora teria uma vida plena. Sem a sombra dos enganos, e os laços do amor, que só apertam, como nós. Tudo que seria capaz era observar o mundo, sem ama-lo de fato.

Era assim o retrato que tinha de sua felicidade.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

bronzeamento satisfatório ou seu dinheiro de volta

Bronzeamento artificial era passado. As tecnologias estupidamente novas e caras convenceram todas as mulheres multimilionárias do planeta – cinco apenas - a embarcarem numa nova experiência: spa fora do território terrestre.

E eis que Martha me convence a vir aqui. Sim, eu sou um dos 8 multimilionários do planeta, possuidor de uma das 5 belíssimas damas ultra-ricas. Os outros 4 donos do mundo tiveram a decência de não casar... pois é, uns enricam por sorte, outros por competência.

Fato é que estamos aqui, desde ontem, e Martha sumiu pelos corredores desse lugar. Uma hostess loiríssima, alva, linda, alta, magra, um pedaço de estrela, catou minha esposa pela mão assim que desembarcamos na ponte de atracação. Evoé!, bela hostess. Pude ficar em paz e solidão desde ontem, nesse paraíso tecnológico futurista com paredes refratárias e muito, muito ar condicionado.

Andando aleatoriamente pelas quase infinitas bifurcações, com um copo de Dinamite fumegante como companhia, acabei chegando numa porta que dizia: “Dono”. É, tipo isso mesmo, como diziam “John U, detetive particular”, ou “Gregory Home, head doctor”, essas coisas. A diferença é que essa porta falava, e não era uma gravação de secretária eletrônica.

Ela disse: “Dono”, e eu: “Ahn?”. A porta respondeu “Aqui é o gabinete privativo do dono deste spa, seu panaca” e eu finalmente entendi. Enfim, como Martha não dava a impressão de voltar de seja lá onde estivesse, achei por bem tocar a campainha. Entendam: é difícil achar companhia num lugar fora da Terra em que só você e mais 3 pessoas tenham condições de pagar. Sério. Não faço nem ideia de onde caralhos vem todo o dinheiro desse lugar, mas com certeza não é de uma freguesia muito grande.

A porta abriu, de todo modo, e estranhamente gemeu enquanto eu atravessava o batente. O dono do lugar, largado num sofá luxuosíssimo, olhava pra mim com um sorrisinho sarcástico. Tinha dois copos de Dinamite na mão – na MESMA mão, que se dobravam em dedos pros dois lados, 10 dedos e 2 palmas. Ok, eu tenho muito dinheiro, não posso me assutar.

- Mas que porra é essa!?

Ok, acho que me assustei. Ele deu outra risadinha e se apresentou. Hélio, o nome, dono daquela estação inteira de bronzeamento e veraneio. “Porque, veja só”, ele começou a explicar, “não tem nada mais lucrativo que bronzeamento e veraneio num lugar em que sempre, SEMPRE há sol e verão. Não é de derreter o cérebro, isso?”

É. Era. No Sol é quente pra caralho, a propósito.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O Ladrão

O portão anunciava a chegada do homem em um som gritante. A vizinha espiava através da cortina translúcida, corria ao telefone e avisava as amigas. “Ele voltou”, dizia.

A casa estava suja pelo pó e pela ausência de limpeza. Mas ele não se importava.

Empurrava a sujeira com o pé enquanto abria a porta e o que ficasse, lá ficava. Acendeu a luz, mas ela oscilou e piscou, deixando a sala no escuro. Teve de ir até a cozinha em busca da luminosidade. Abriu a porta e o encontrou quase no mesmo lugar que o deixara, duas semanas antes.

O cachorro levantou os olhos para ele, na esperança estúpida de ser notado. Mas seu olhar seguia firme para o interruptor. Somente quando o acendeu, notou o volume no chão.

Havia o seguido há quase um mês para a casa. Em um momento de fraqueza, sentou na calçada e fez uma carícia. Bastou um toque no animal para que o canino sentisse em casa. E o acompanhou na longa caminhada para casa.

Parou no caminho para comprar um sanduíche e, como estava com o bolso forrado de dinheiro, comprou um para o animal também. Jogou no chão, fazendo com que ele se quebrasse em pedaços. Mas o cachorro não se importou. Comeu de maneira feroz, entupindo a barriga marcada pelos ossos.

E lá estava em sua cozinha, enrolando em si mesmo, esticando a cabeça perto de seu pé. O homem suspirou e não reagiu. Imaginou que ele deveria estar com fome. Abriu a geladeira e jogou um enlatado aberto no chão.

Voltou para a sala, esvaziando os bolsos, foram duas semanas promissoras. Não que tudo estivesse no casaco. Guardava na casa de um amigo, para evitar a justiça.

Cochilou. Não viu que hora despertou mas já era madrugada, o cachorro o fitava na sala. O que foi, perguntou. O rabo do animal começou a se balançar. O homem caminhou até a janela, o posto já tinha fechado. Merda, disse alto, com fome e sem comida. E o cachorro aproximou-se. Não estou falando com você, maldito. E forçou o pé contra o ventre do animal. O impacto o fez ir para o lado e gritar. Sentar resignado em um canto, com olhos de dor, mas ainda com esperança.

Era caminhar ou passar fome. E ele optou pela primeira opção. Teria de ir mais longe por qualquer porcaria que matasse sua fome. Os olhos estavam embaçados pelo sono.

Meia hora para ir e para voltar, já tinha comido e bebido no caminho, jogado os restos no chão. Nada para o cachorro. Estava cansado, nem percebeu que a luz da cozinha estava apagada.

Foi um baque seco. Um choque em seu ombro que o fez se deslocar para o chão e policiais que brotaram do chão, ele diria, mais tarde, em seu depoimento. No cansaço, cometeu o deslize de dizer ao homem do posto quem era e, conhecido da polícia, precisou apenas de quinze minutos para que decretassem sua prisão.

Ele sabia que esse dia ia chegar, era inevitável. Mas não suspeitava que justamente aquele animal, aquele maldito cachorro, bradaria de maneira tão feroz contra aqueles policiais. Latiria como se cuidasse de sua própria vida, ameaçando-os.

Com as mãos nas costas, sendo levado para a viatura, pousou seus olhos que iam se distanciando do cachorro. O único que havia o defendido até então. Tinha sido sua única família e, por um momento, sentiu remorso.