sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Homem que Chegava Cedo Demais

Alfredo Holmes esteve adiantado toda sua vida. Nasceu aos sete meses de gestação, com pouco mais de trinta centímetros e um peso ínfimo, como se estivesse com pressa de conhecer o mundo, para respirar primeiro o ar que muitos inalariam mais tarde. Aos sete meses já andava como se fosse um potro; com oito meses, falava com perfeita dicção. A infância de Alfredo também foi apressada. Nas festas de seus colegas, costumava chegar quando o aniversariante ainda estava no banho e era forçado a ficar sentado no sofá, assistindo os programas toscos que passavam de domingo, respondendo perguntas feitas pela metade por tias acima do peso. Era o primeiro a chegar na escola e todos os dias ficava sentado no escuro, esperando alguém mais chegar e acender as luzes da sala de aula. O pequeno Alfredo permanecia sentado, com os dedos da mão entrelaçados e um rosto impassível. Suas provas estavam sempre no fundo da pilha, os amigos contavam com ele para comprar lanches, pois estava no começo da fila e sempre conseguia assistir os filmes e shows que pretendia. Nunca perdeu a hora. Esteve em todos os vôos e viagens de ônibus ou trem; aos doze anos tinha de fazer a barba: um caso de puberdade precoce. Alfredo, aliás, foi precoce em tudo. Nietzsche e Kafka foram seus presentes de décimo terceiro aniversário e ele os leu com prazer, terminando os grossos volumes antes do que esperava. Entrou na faculdade antes de todos e percebeu a importância da filosofia cedo na vida. Concluiu o curso no terceiro ano, não por ser de uma inteligência sagaz - apesar de chegar à conclusão antes de todos - mas simplesmente por ser… adiantado. Conseguiu a vaga de professor apenas por ter sido o único a chegar no horário da entrevista, apesar da chuva impossível que despencava naquele dia, passando por enchentes e bloqueios sem perceber que o fazia.
Por toda a existência, sentia algo incômodo na cabeça, algo mais profundo do que conseguia mergulhar e enxergar com clareza. Era uma sensação deslocada de qualquer categoria e mesmo devorando Platão, Kierkegaard e Hegel, não podia entender um simples incômodo, para sua irritação.
Todos os homens seguem um de roteiro para suas vidas. Alguns tomam desvios ou têm finais abruptos, mas é quase certo que as fases da vida seguirão com natural ordem e sucessão. Infância, adolescência e a chata fase adulta culminam na velhice e o corpo enfraquece, a mente entra em uma névoa iminente e o sistema desiste do jogo e entrega os pontos. Para ele, os períodos foram todos misturados e empilhados e com isso, a infelicidade também chegou antes. Com vinte e nove anos, Alfredo enfrentava o terceiro divórcio - todos os três iniciados por ele, que chegava ao limite antes da parceira - e contava com quatro filhos. Sabia que era difícil conviver com ele. Tinha o péssimo costume de chegar ao fim das conversas com demasiada pressa, não podia comentar sobre filmes ou livros pois todos os outros ainda não haviam visto ou lido e estragava os finais com certa regularidade. Chegava a ser inconveniente em churrascos e festas por chegar muito cedo, como na infância - uma vez tomou o café da manhã na casa de seu primo, cuja festa começava às quatro da tarde. Os convites chegavam para ele com o horário atraso em quatro horas. Alfredo também era um péssimo amante, por motivos que não é preciso expor. Depois dos trinta, os ossos começaram a enfraquecer com rapidez e ele operou os olhos com trinta e cinco, deixando para trás duas cataratas. Esquecia de reuniões, deixava os livros que estava lendo em lugares dos quais não tinha memória, sentia dores nas costas e percebia sua teimosia aumentando diariamente.
No dia trinta de dezembro de 2013 ele se deitou, a velha sensação incógnita causando dor de cabeça, carrancudo e triste: um homem de trinta e nove anos, com cabelos brancos e ralos, rugas por todo o rosto e dentadura guardada em Listerine na cabeceira da cama. Amaldiçoou a vida adiantada que tinha, xingou os cabelos e unhas que cresciam antes do que deviam, a libido que se esvaiu cedo demais, o intestino que ficara precocemente sensível e os pulmões que há anos perderam parte da capacidade. Dormiu antes de conseguir enumerar os motivos que deixavam sua vida triste.
Acordou antes do sol nascer e do despertador disparar o irritante som que parecia anunciar a chegada de todos os infernos. Algo estava errado e ele procurou entender exatamente o que havia acontecido, mas falhou antes mesmo de começar. Levantou-se, lavou o rosto e escovou as gengivas, encaixando as dentaduras pela última vez antes de descer as escadas e preparar duas xícaras de café, que tomou acompanhados por panquecas um pouco cruas e manteiga derretida. Subiu as escadas novamente e trocou as roupas: hora de esticar as canelas e esperar o ano morrer. Quem sabe sua vez chegaria antes e 2014 significasse o fim de sua miséria. Não custava sonhar. Quando abriu a porta, sentiu o coração ameaçar - não pela primeira vez - parar de bater. O mundo estava branco. Olhou para as mãos e enxergou com perfeita nitidez a pele macia e livre de rugas ou as manchas escuras que começaram a aparecer no inverno passado. “Mas que porra…”, terminou a pergunta antes de chegar ao ponto de interrogação. Jovens, as mãos eram suas, mas estavam na data errada, substituindo os membros velhos de pele flácida e solta dos músculos. Podia ver a casa até a porta de entrada e depois via apenas branco. Um nevoeiro? Não, eu ainda poderia enxergar pela névoa. Colocou os dedos rejuvenescidos na boca e puxou as dentaduras, descobrindo dentes no lugar das placas removíveis. Puxou um fio de cabelo e admirou o castanho escuro que os fios possuíam até o vigésimo quarto aniversário. Há algo de errado além do meu corpo jovem e do mundo ter desaparecido… mas o quê?
Apoiou as mãos na parede da casa e tentou pisar na superfície branca, sem ter certeza de que poderia ficar sobre ela ou se despencaria eternamente em um infinito leitoso. Seus pés tocaram onde deveria haver chão e ele conseguiu ficar sobre a superfície branca. “Olá?”, ele gritou, quebrando o terrível silêncio que caía sobre o mundo. Não, ele percebeu, era muito mais do que silêncio. Alfredo experimente a completa falta de sons. Seu grito saíra abafado, todo estranho e fanho, como se não existisse lugar para barulhos aqui. Tentou juntar todo o conhecimento dos estudos filosóficos com o cérebro novamente jovem e se impressionou com o raciocínio afiado, mas falhou em encontrar explicações.
Alfredo fez a única coisa que podia e começou a caminhar, deixando a casa para trás até ela se tornar num ponto escuro no horizonte. Conseguiria voltar? Realmente importa? Horas se passaram e ele caminhava, mantendo a direção o melhor que podia, tirando prazer do exercício prolongado e das pernas novamente fortes. Sem dores nos joelhos, sem músculos fortes. O que estava acontecendo?
Foi quando encontrou os outros.
Primeiro, viu a movimentação longe, se destacando do oceano branco que tinha diante de si. Correu a longa distância, gritando e gesticulando para algumas pessoas que cortavam madeira. Um deles parou e sorriu de volta, soltando o serrote e pegando uma prancheta. “Alfredo Holmes”, perguntou antes dele parar de correr.
“Como… como você sabe meu nome?”
“Estávamos esperando por você. Na verdade, já está um pouco atrasado.” O homem estudou o relógio que tinha no pulso. “Vista isso e vamos ao trabalho, meu amigo, não temos muito tempo.”
Alfredo pegou o macacão que o homem esticou para ele e passou os dedos sobre o nome bordado na altura do coração. A. Holmes. Eles realmente esperavam por ele. Olhou ao redor e viu mais trabalhadores do que conseguia contar. Homens e mulheres pregavam pregos em tábuas, plantavam árvores, posicionavam concreto, pedras e asfaltavam um rua pré marcada com o que parecia ser giz cinza. Três grupos se penduravam em enormes escadas e pintavam o céu com um azul claro. Alfredo olhou para uma loira que pintava uma nuvem um pouco mais carregada e ela olhou de volta, acenando a mão e sorrindo. Ele a cumprimentou de volta, hesitante.
“Anda com isso”, disse o homem de antes. “Você está nos atrasando, Holmes.”
“Onde… onde estou?” Passou a língua nos lábios secos.
“Onde é uma terminologia erra, homem. Quando, eis o que você quer saber. Bem vindo ao primeiro de janeiro de 2014.”
“Impossível. Hoje é dia 31.”
“Para eles sim; para nós, dia primeiro. Dois mil e catorze, Era Comum. Para os ocidentais, pelo menos. Com os chineses, a história é outra. Mas o amanhã é o mesmo, não importa se você é rico, pobre, católico, jedi, judeu, homem, mulher ou tudo que há no meio. E mais, o amanhã é nosso dever. Agora venha comigo, vou te mostrar o que você deve fazer. Você agora é um Construtor, Holmes, sua tarefa é nos ajudar a construir o futuro.” O homem entregou uma pá para Alfredo e apontou para um canteiro. “Hoje você vai plantar rosas.”
Tentava tirar algum sentido daquilo, mas no íntimo já entendia onde… quando estava e sentia a felicidade explodir em seu peito. “Eu-eu vou construir o futuro?”
“Sim, parte dele. Tudo que fizermos aqui será usado amanhã e descartado imediatamente depois do uso. Você vai pavimentar o amanhã, Holmes. Quase literalmente, porque nosso pavimentador é o Jorge”, ele apontou para um rapaz com não mais de dezenove anos, sentado num enorme compactador de solo, trabalhando nas ruas da cidade. “Plante as rosas do dia primeiro, Holmes. Depois você pode encher os oceanos do dia”, ele chegou o cronograma, “quatro de fevereiro. E chegue mais cedo da próxima vez.” O homem se virou e caminhou para longe, gritando com um grupo de pessoas que tentava acertar a direção do vento e outro, que ajustava o sol com um longo gancho de metal.
Alfredo Holmes percebeu naquele momento, um momento no futuro, para a maioria das pessoas, que a sensação estranha havia desaparecido. Ele não mais se sentia deslocado.
Começou a assobiar uma música e enfiou a pá no solo recém criado, preparado para plantar todas as rosas do mundo.

Pela primeira vez, Alfredo se sentia na hora certa.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Vermelho

Nós fizemos sexo ontem à noite. 2013 e eu. Ela colocou os lábios no meu pau manchando-o de batom barato que comprou na 25 de Março. A recessão é foda, disse. E depois não lembrei mais nada.

Desde Outubro tinha ganas de matá-la. Mas desisti quando percebi que, ao contrário de 2011, não a encontraria tão facilmente. Então, ela veio até a mim. Vestindo vermelho, sedutora, sem um pingo de culpa, me chamando pelo nome.

Faltando um mês para morrer, não estava na mesma forma quando a vi em fevereiro, quando apareceu em meu aniversário de trinta e dois anos com a beleza mais perfeita que vi: cabelos ondulados, uma camiseta que ressaltava o tamanho de seus seios e uma saia – depois de muitos meses, descobri chamar-se plissada e que reproduz o estilo das saias das colegiais americanas, fantasia de muitos homens adultos – que exibiam as pernas como poesia.

Me encontrei com os últimos cinco anos, mas ainda não sabia como se arquitetava o nascimento de cada um. Descobri que eram capazes de escolher como nascem – masculinos, femininos ou híbridos; determinar em que fase da vida, em comparação ao desenvolvimento humano, surgiriam – recém nascidos, jovens, adultos; e o período de envelhecimento entre janeiro a dezembro. Motivo que me deixou espantando ao rever 2011, nascido como uma criança de cinco anos, velho e trocando as palavras perto do nascer do ano seguinte.

A plena juventude foi a escolha egocêntrica de 2013. Em dezembro, a beleza escorria pelos poros: os seios falharam na gravidade; na cintura evidenciava-se um pequeno acúmulo, que não a deixava menos irresistível; sofreram as pernas. Não produziam a lembrança de si mesma em fevereiro, caminho ideal para traçar os lábios.

Quando ela ficou nua para mim, as mãos mantiveram-se retesadas frente ao corpo. Ela sabia que o tempo lhe fora agressivo. A vida curta de trezentos e sessenta dias maltratou-a violentamente. Chamou-se de bruxa.

Estive apaixonado por 2013 até meados de junho. Quando sofri um viés e, se sobrevivi, foi graças a minha própria vontade e esforço. Em setembro, imaginei matá-la, como fiz com 2009, vinte e cinco dias antes do término do ano, afogando-o em um prato de sopa. Tentei procurá-la em outubro, mas não sabia como ela estaria na ocasião e nem mesmo como encontrar um dos anos mais fugidios que vivi.

Ao contemplá-la nua, antes do sexo, antes do batom barato em meu corpo, perdoei-a. Perdoei de corpo e alma. Por causa daqueles olhos amedrontados de vida; por causa daqueles olhos inseguros, necessitando de carinho, perdoei.

Na nudez, contemplei seus medos: a dor de morrer sozinha como todos; a ciência de se tornar uma lembrança sem que ninguém recordasse de fato. Um desencontro que demonstrava o quanto ela estava perdida, como eu.

Fizemos sexo como libertação. Horas depois, deitada em meu ombro, com minhas mãos acariciando os cabelos lisos e descoloridos, sussurrei baixinho te perdoo em seus ouvidos enquanto ela dormia profundamente. Dormia um sono profundo de que nunca conheceu acalanto. Eu perdera a razão, perdera os motivos, a raiva de sufocá-la com minhas mãos.

Na manhã seguinte fiz café, trouxe pão e um bolo. Ainda nua, apareceu na cozinha e sentou ao meu lado. A ponta disforme do seio tocou em meu braço e quase achei graça. A claridade do dia arranhava ainda mais sua imagem. E 2013 saboreou seu café como uma criança, degustando o pão e passando excessivamente manteiga em mais uma fatia.

Nos despedimos logo após o café. Ela, onipresente, agradeceu-me. Reconhecendo implicitamente que foi ao meu encontro para assistir seu fim antecipado. Para não ver si mesma dando os últimos suspiros nos fogos de Copacabana. Cuspindo sangue enquanto outro ano, que ainda não sabia se homem, mulher, híbrido, novo, velho, nasceria.

Nossos olhos se cruzaram pela última vez. As mãos ainda dadas. Tentei um beijo que ela desarmou com um passo para trás. Ela não mais me queria porque eu não pude matá-la.

Tenha um bom fim de ano, me disse, amarga. E seguiu caminhando rumo ao nada enquanto meus olhos a observaram até a imagem do vestido vermelho desaparecer de minha visão.

Você também, sussurrei a ninguém.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Via Lacta

“"Ora (direis) ouvir estrelas!” 
Olavo Bilac, “Via Láctea” 

 Ontem perdi o senso após o jantar. Colocávamos a estrela na árvore de natal para nos guiar o horizonte. Angulosa, brilhante, quase o menino Jesus reencarnado quando a luz acabou e a estrela não quis brilhar.

Peguei o sem fio na mão. Não funcionava sem eletricidade. Procuramos o celular, no escuro. “Tem como ligar para ele?”, não tinha. Demorados dez minutos para tateá-lo.

Ligamos para a central de energia elétrica. “Em duas horas estará estabelecida”. Mas como? Perguntei. “Duas horas, senhora”. Senhora. Explodiu a memória juvenil da voz fina. Voz de viado. Voz de bicha desmunhecando. Por que malditas duas horas? “O senhor não precisa ser hostil. É um tempo limite”.

Então, saí de casa. O bairro todo na escuridão e eu caminhando, as estrelinhas zombando de mim lá em cima. Olhei no relógio, eram quase dez. Olhei para a frente, as coxas doendo em razão do caminhar rápido, eu não chegaria a tempo.

As luzes dos carros deixavam sombras de meu corpo no chão. Sentia o vento beijando-o com a velocidade. Volta e meia alguém morre, passa no Datena, mas tanto faz. Mais vale uma alma rasgada no sangue do pneu do que uma verba não desviada para pavimentar o acostamento. Estamos acostumados.

Estava suando, reclamando por todos os poros. As luzes acabaram, demorariam duas horas. Perderia o jogo, a bebida estaria sabotada e a casa tão quente como se envolvida em um cobertor felpudo. Cinco minutos. Vamos, gordinho, ande. Não adianta correr. Gordo não corre, saibam disso. Ande um pouco mais rápido, perca o ônibus, a hora, a estação, mas não se esforce e não obrigue o mundo a ver o desastre das banhas subindo e descendo, trombando em si mesmas e escurecendo de suor as camisas mal-lavadas.

Aos três minutos, avistei o posto visível na escuridão. Cheguei à lojinha arfando, achando que não passaria deste Natal. A moça com cara de viciada em metanfetamina deve ter me dado um olhar de desdém, não vi, mas conhecia o olhar de outras vezes. Ouvi apenas um “estamos com o sistema fora do ar”

Eu queria lhe levantar o dedo e dizer: “escuta aqui, sua vadia”, mas não o fiz. Na escuridão, só havia vultos. Então, eu aproximei do balcão e lhe perguntei novamente por quê, tentando ouvir pacientemente. Enquanto fingia ouvir a lorota que culpava a falta de luz, retirei o dinheiro de meu bolso e, lentamente, coloquei o produto no bolso com o mesmo cuidado.

Agradeci e sai.

Caminhei um quarteirão sem olhar para trás. Eu dispararia se pudesse correr. Mas caminhei lentamente para casa.

Toquei meu bolso direito, sentindo-o, quase chamando meu nome. Deslizei até o bolso e retirei-o com cuidado. O papel rasgou e quase dei uma dentada no outro, de alumínio, dentro dele. Então, mordi. Uma mordida glutona, enchendo-me a boca com aquele sabor adocicado, suave, a hóstia de minha salvação.

Estava saindo da linha, mas era um pouco tarde para chorar. Pensei no doutor me dizendo para evitar os doces. Que a dieta era algo sério. Mas eu já tinha perdido três quilos que engordei nos últimos meses por conta do stress, da lasanha congelada, dos problemas familiares, do desgraçado do oficial de justiça querendo embargar minha casa, me dei a esse luxo.

E, ali, no fim de minha via Lacta, comi o chocolate com a paixão dos amantes. Lambendo a embalagem antes de descartá-la na avenida. Feliz como um César ao comandar seu exército. A alegria em centímentros de gordura, que se acomodaria feliz na parte cententrional de minha pança que começava a diminuir.

Então, olhei as estrelas. Aqueles pontinhos brilhantes lá de longe falando comigo em picos de açúcar e bombons de chocolate. Estradas pavimentadas por mousses de maracujá e montanhas de chantilly e eu me dei conta de como gostaria de estar dentro do conto de João e Maria, sonhando com a casa da bruxa. Nem sei como cheguei em casa.

As luzes voltaram quando estava na porta. O vizinho de cima gritou “Vai, Flamengo” ainda que o time não jogasse naquela noite. As cervejas estavam chocas. Ela estava deitada na frente do ventilador.

- Onde foi? – me perguntou.

- Ao paraíso, mulher, ao paraíso.

E ela me olhou com interrogação enquanto eu ainda lambia os beiços.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Jacques

Por Ana Paula Henrique - http://anahenrique.wordpress.com/

Jacques expulsava o oxigênio de seu corpo e, lentamente,  deitava no chão da piscina: a água afastava o vazio de sua realidade, e, mesmo que por apenas alguns segundos, ele se sentia um ser humano novamente. Não o garoto, cuja carreira em ascensão provocara um mudança radical em sua relação com o mundo e com as pessoas que até então haviam sido seu suporte financeiro e emocional, sua família e sua namorada. Não o modelo que enfiava dois dedos goela abaixo, expulsando toda comida de seu estômago e vendo-a desaparecer na privada em uma espiral amarelada e mal-cheirosa. Não a criatura insensível que chamara Elodie, a única mulher que verdadeiramente se preocupava com ele, de gorda ridícula, escorraçando-a como um cachorro vira-latas. Não o monstro que provocara o acidente que a fizera abortar.

Na água ele era apenas Jacques.

Jacques lutando contra a vontade esmagadora de respirar e se afogar no vazio.

Jacques residente do tradicional Arrondissement de Passy.

Jacques. Ex-modelo.

Abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio. Do fundo da piscina, viu então o contorno do telhado da casa, vacilante e impreciso como uma pintura impressionista. Tentou ignorar a agonia em seu peito, mas, não obtendo sucesso – seu corpo precisava desesperadamente de ar  –, começou a emergir. Quando chegou à superfície e pode respirar, sentiu como se algum órgão dentro de si houvesse implodido. Sua respiração, que rompeu dolorosa e ofegante, lembrava o impacto dos cascos de cavalos em uma corrida; cada pedacinho de seu pulmão brigava pelo ar que lhe era devido, assim como cada encontro firme e furioso entres os cascos e o chão provocava rítmicos estrondos que só cessariam quando a corrida acabasse.

De volta em seu quarto, sentou-se na cama king size, quebrada há mais de três meses, e fixou seu olhar na mesma porta onde, há cerca de dois anos, as batidas se repetiam insistentes. Lembranças passeavam por sua mente, afiadas e cortantes: a briga, os insultos, a raiva.

___________

Tum. Tum. Tum.

_ “Jacques! Ces’t moi. Ouvrez la porte!

_ “Jacques!”

Batidas mais forte agora.

_ “JACQUES! Abre a porta, s’il vous plait, precisamos conversar!

Jacques, semi-acordado, senta-se na cama com dificuldade. Sentindo um misto de frustração e raiva que cresce a cada batida, lembra-se do jantar no qual ela anunciou o término do relacionamento como se estivesse anunciando a previsão do tempo, enumerando suas atitudes ‘imaturas’ e culpando-o pelo afastamento dos dois. A revolta, até então reprimida,  começa a se espalhar pelo seu corpo como um câncer, obstruindo sua visão. Porra, ela não terminou tudo? Não jogou todas as coisas numa mala e saiu batendo a porta da casa que ELE comprou, com o dinheiro da profissão que ela desprezava tanto?

Do corredor, a voz de Elodie soava cada vez mais alta:

_ JACQUES, OUVREZ LA PORTE, PUTAIN DE MERDE!

_ “C’est qui?” Perguntou só pra deixá-la mais irritada.

_ “Putain! Você sabe muito bem quem é. Abre essa porta de uma vez!”

Ele abriu e a encarou com o desprezo que julgou adequado. A beleza angelical de Elodie, no entanto,   atingiu-o como um golpe, e, por um momento, Jacques se esqueceu de todo o resto: ela realmente engordara nas últimas semanas, mas os quilos ganhos só faziam ressaltar a harmonia de seus traços, a delicadeza de seu semblante. Algo novo estava operando mudanças físicas em sua ex-amante. Algo ou alguém? Será que ela já estava saindo com outro cara? Pelo que ele conhecia de Elodie isso não era provável, mas a mera possibilidade foi suficiente para trazer toda sua irritação de volta. Em um rosnado, disse:

_ O que você quer? Já não levou todas as suas tralhas?

Elodie  começou a chorar; seu corpo dobrou-se sobre si mesmo, como que contorcido por uma súbita dor de barriga. Por um momento ele considerou se abaixar para acariciar seus cabelos, imaginou-se sussurrando baixinho em seu ouvido, mas algo o fez hesitar. Lembrou-se do que ela havia dito antes,  “precisamos conversar”,  e teve um presságio: ela veio dizer o indizível. Elodie havia achado alguém melhor do que ele, alguém que não precisava se vender diariamente para ganhar dinheiro, alguém bom, alguém digno. Era isso. E isso ele simplesmente não podia suportar. Em menos de um segundo, a confusão e a revolta arrebentaram soltas e agressivas, esguichando de seus poros como água de uma mangueira.

Por conta do excesso de adrenalina que seu corpo havia produzido naqueles poucos minutos, sua memória do evento era imprecisa, arisca. Sabia que havia gritado com ela, com Elodie, empurrando-a corredor abaixo, insultando-a de vadia traiçoeira e gorda imunda, perguntando qual era o nome do filho da puta pra quem ela tava dando. Lembrava-se também que, no apogeu de sua cólera, havia agarrado seus cabelos e colocado-a para fora. Lembrava, tendo plena certeza de que para sempre lembraria, do momento em que ela olhou-o com ódio profundo e cuspiu em sua cara.

Elodie saiu correndo. Jacques ficou parado na calçada da casa que comprara há milênios. Três horas depois, a ligação da mãe de Elodie, histérica, dizendo que sua filha fora atropelada e que havia perdido a criança.

_ “Que criança?” Perguntou atônito, sentindo um pânico asfixiante embaçar seus sentidos.  Depois vomitou, naturalmente. Depois desmaiou.

___________

Pela primeira vez desde o acidente, sentado naquela cama quebrada, Jacques deixou-se absorver inteiramente pelo fantasma que o perseguia desde então: a culpa por ter ferido e mudado irreversivelmente a vida do filho e da mulher que um dia amara, que talvez ainda amasse. Acolheu então a dor e, chorando, convidou a escuridão.

De repente, Jacques, que em posição fetal se desintegrava, ouviu o suspiro de uma voz melodiosa que cantarolava provocante:

Can…

Caaaaaannnn…

Com um sobressalto, reconheceu imediatamente a melodia e a voz do cantor que, nos primeiros anos de sua adolescência, havia sido seu favorito. O suspiro veio de novo, mais alto desta vez.

…anybody…

Era como se Freddie estivesse ao seu lado, cantando as palavras que se desenrolavam sedutoras. Sentiu então sua própria voz trêmula responder desobediente:

_find me…

A continuação soou clara como água:

…somebody to love!

E lá estavam as inconfundíveis notas de piano que abriam a canção tão famosa. Olhou ao redor do quarto, mas não viu nada. A canção, no entanto, continuava e ele sentia um desejo insano de acompanhá-la:

… can barely stand on my feet. Take a look in the mirror and cry, Lord, what you’re doing to me!

Jacques  pôs-se de pé e andou em direção à porta.

I have spent all my years in believing you, but I just can’t get no relief, Lord!
Somebody, somebody

Pelos corredores imundos da casa, ele, cantando, passou. Entrou na garagem, embarcou no carro e todos os membros da banda embarcaram com ele: Roger ao seu lado, Freddie no banco de trás, sentado entre Brian e John.

Everyday – I try and I try and I try – but everybody wants to put me down; they say I’m goin’ crazy. They say I got a lot of water in my brain… Got no common sense! I got nobody left to believe

Yeah – yeah yeah yeah

Parou na frente da casa de repouso onde Elodie havia sido internada há alguns meses – não lembrava exatamente quantos. Como facilidade, ganhou acesso aos corredores e seguiu em direção ao jardim. Tinha a distinta sensação de que a encontraria lá. Ao seu redor, a música continuava otimista:

Got no feel, I got no rhythm. I just keep losing my beat…

Respondeu I’m ok, I’m alright e continuou andando.
Começou a pensar que havia se perdido em um labirinto, quando percebeu estar dentro de uma sala redonda, sem portas ou qualquer entrada visível. Como havia ido parar ali se não havia nenhuma porta? Olhou ao redor desesperado, como a porcaria de uma sala podia se colocar entre ele e seu pedido de perdão, entre ele e seu destino?

“I just gotta get out of this prison cell! Someday I’m gonna be free, Lord!”

Encostado na parede, o guitarrista tocava sua guitarra indiferente. Jacques sentiu então algo  pontudo  sob seu pé esquerdo e, ao se abaixar pra ver o que era, encontrou uma chave posta sobre sua fechadura, pronta para ser girada.

Jacques então sentiu medo; toda a coragem que o trouxera até ali desaparecera sem deixar rastro, e ele já não tinha mais certeza se queria mesmo abrir aquela porta. Entretanto, naquele momento, descobriu em si a certeza de que ele e Elodie só poderiam recomeçar suas vidas quando ele se explicasse, quando ele pedisse perdão e se redimisse de alguma forma. Quando admitisse que, acima de tudo, ainda a amava.

Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to love.
Find me .Somebody to love.
Somebody, somebody,

Girou então a chave. Sob o peso do seu corpo, a porta cedeu e pareceu alongar-se como uma prancha ou trampolim. Da sala redonda, os quatro assistiram-no mergulhar na escuridão, suas vozes se alternando de forma harmoniosa no último refrão:

Somebody, somebody,
Somebody find me
Somebody find me somebody to love
Can anybody find me…
Somebody to loooooooooooooove!

Jacques mergulhou, e só abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio.

Find me

Somebody to love.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Catarata

Você agora segura meu manifesto. Não é longo, por isso fique onde está, nem precisa sentar. Tampouco mudarei tua vida. Deixo este trabalho para os grandes intelectuais, para os poucos espíritos de sorte que chegaram nesse mundo com ideais bons o suficiente para influenciar as outras pessoas. Não. Eu sou um velho cansado, nada mais. Aos setenta e nove anos, vejo minha veias exaustas ainda trabalhando a pleno vapor enquanto na oncologia, vejo crianças carecas e sorumbáticas caindo como moscas. Percebe o que está errado?
São pessoas como eu e você, mas nunca poderão ver o zênite de suas vidas porque estarão de baixo da terra, vagando onde quer que os espíritos vão nos dias de hoje. Injustiça é o único termo que cruza minha mente. Considere todo o mundo e perceba que a coisa que mais nos diferencia é como gastamos as horas que temos. O problema aqui é que essas crianças não as têm: foram privadas de suas horas. E isso, meu bom rapaz, é uma bosta sem tamanho. Eu tenho sérias dificuldades em entender porque elas têm de sofrer com uma doença tão terrível enquanto um velho sem propósitos erra pelo mundo sem rumo, sem propósito. Chego todos os dias para uma casa vazia, onde apenas o fantasmas de risos infantis preenche o ar, onde fotos amareladas são os únicos resquícios de meus amores que passaram nessa Terra, deixando para trás apenas a saudade que abate os vivos.
Esforço-me para não parecer amargo em demasia, você conhece o tipo: aquele cara velho que só sabe torcer o nariz e bufar, reclamar da vida e das dores. Um português do romantismo, se assim preferir. Essa carta é o meu grito silencioso, um desabafo em rodapé. O mundo está errado. Tecnocracia, tecnomancia… chame do que quiser. Para mim, a humanidade apenas desistiu e abraçou o estado de filho da puta egoísta que todos temos, mas em níveis diferentes. Um número absurdo de pessoas morrem por desnutrição todos os dias. Pense nisso. Porra, essas pessoas sem rosto não consegue calorias o suficiente para sobreviver! Não caçam, plantam, colhem, pescam. Apenas deitam, sem forças, esmagadas pelo peso de sete bilhões de pessoas preocupadas com pouco mais do que o próprio umbigo, destroçadas pelo capitalismo e ignoradas pelo socialismo, tiveram o azar de nascer em um mundo que não lhes permitiu lutar. Ou caçar. Ou plantar. E o pior é que enquanto escrevo a carta-manifesto que você lê, espero meu disco de vitamina C terminar de diluir. E eu nem preciso dele. Tenho laranjas na geladeira e vou chupá-las mais tarde. Além do mais, não tenho câncer, então fico atrás de muitas pessoas na fila de reclamações.
Enquanto pessoas morrem de fome, nosso continente sofre com a obesidade. Mais pessoas morrem por excesso de comida do que por falta desta. Pare um pouco e pense nisso. Nós temos penicilina! Eu peguei síflis de uma prostituta quando tinha dezenove anos e tenho orgulho disso. Era um rito de passagem e criou importante laços com meu pai. Deveria estar morto há muito tempo, deformado pela doença francesa. Mas aqui estou. E com a pressão de meu sangue boa como a de uma criança. Você pode entrar em contato com qualquer pessoa hoje, precisando de pouco mais do que alguns cliques, pode fazer as compras pela internet, agendar dentista, médico, manicure. Qualquer coisa. O mundo está ao seu dispor, vinte e quatro horas por dia e, por causa disso, você provavelmente precisa sair da mesa apenas para correr até a academia por causa das calorias extras que você consumiu. Sua barriga é flácida, os músculos diminutos. Toda sua preocupação gira ao redor do nível de bateria do seu celular, mais inteligente que sua prole. Você é gordo, há tanta comida disponível que você consegue acumular gordura, caramba.
Hoje eu escutei uma enfermeira falando sobre os pacientes dizem no leito de morte. É um momento terrível e belo, ao mesmo tempo. Estive no leito de morte de muitas pessoas queridas e sempre foi algo doce e amargo. O desespero de uma longa doença chegando ao fim, quando o corpo está cansado e já entregou os pontos. Quando tudo foi dito e apenas o alívio está no futuro. Mas fica a dor, a saudade, a ausência. Um momento que define a paz para aqueles que se vão, que verdadeiramente aceitaram a partida, mas que machuca a quem não a aceitou. A enfermeira disse que sempre escuta as últimas palavras daqueles que estão morrendo sem a família ao redor e relatou alguns casos para as colegas. Eu fingi estar escolhendo um refrigerante numa máquina enquanto escutava a conversa. Há quem gostaria de ter trabalhado menos. Eu tirei minha sobrevivência daquilo que gostava e até hoje volto para o mar e lanço a linha na água; talvez algum dia desse o mar se revele meu eterno túmulo. Nada melhor para mim, uma morte salgada para uma vida vivida dentro de um barco. Outros dizem que gostaria de ter o próprio caminho ou que gostaria de ter mantido as amizades.
Bem, as pessoas se perdem algumas vezes. Mas na maioria do caso, um pouco menos de putaria e frescura seria o necessário. É o que acho. De novo, com poucos cliques você pode entrar em contato com seus amigos, novos e antigos. Não me venha chorar como uma garota. Junte o que há de orgulho e respeito dentro dessa casca que você chama de corpo e fale com seus amigos ou siga o seu caminho.
Vejo que minha carta não faz mais sentido. Poderia usar minha idade como desculpa, mas não. Estou mais lúcido do que gostaria de estar. Minhas palavras chegam desconexas pois são reflexão desse mundo em que vivemos, onde morremos cedo demais porque comemos em exagero, porque deixamos de nos movimentar pois vivemos diante de uma tela, onde não olhamos para os problemas dos outros pois estamos preocupados em conseguir mais atenção no facebook. O lugar em que morremos por tirar foto do velocímetro do carro, por digitar texto como animais irracionais em um aparelho enquanto dirigimos. Mais lúcido do que queria, repito.
É difícil controlar a fúria que carrego no estômago, que queima como o fogo de um dragão, como a fornalha do Titanic um dia queimou. Isso tudo porque vivo além do que deveria. Porque há crianças com câncer nos hospitais de todo mundo. É uma merda.
Se você ainda está lendo, peço desculpas: são palavras de um velho, um fantasma que ainda tem um corpo. Sou anacrônico e estou sendo apagado aos poucos pelo tempo. Nada tento provar com essas linhas, nada quero mudar em sua vida. Escolha seu caminho, cometa seus erros e coloque o máximo de força em seus punhos. As linhas que leu, e que quase chegam a um fim, são os fragmentos de meu pensamento; o entender do mundo vindo de um velho que nada mais entende.
Se você está lendo isso é porque eu estou morto. Mas não fique chateado por mim, bom rapaz. Eu já estou morto há tempos. Meu coração se transformou em poeira. Há poeira em meus pulmões e onde antes havia simpatia e compaixão.
Uma vez que perdemos a compaixão, meu caro, é melhor deitar e morrer.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A Hora do Demônio

As guitarras de Eric Clapton e Jeff Beck dedilhavam a ponte de Can’t Find My Way Home, fazendo as caixas de som pulsarem em harmonia. António Marín acompanhava o dedilhado em uma guitarra invisível, movendo os dedos e balançando a cabeça. Essa era uma vida que poucos conheciam. O negócio é o seguinte: António Marín tinha uma vida secreta. Aos diabos com isso, António Marín vivia três vidas pelo menos. “Mas eu não consigo encontrar meu caminho para casa”, cantarolou em português, fazendo um eco exógeno para a letra da música. Estava sentado no lado do motorista no pequeno carro britânico, parado em uma escura viela do centro de Oxford. Olhou para o relógio: três da manhã, a Hora Morta dos poetas; Hora do Demônio para os fanáticos religiosos e a Hora de Marín para Harry Gorgorith, o próximo nome de sua lista.
António desligou o rádio, sentindo uma tristeza por cortar a música durante o solo e desceu do carro, sem tirar os olhos do céu sem estrelas, talvez procurando por algo que deveria estar lá. Torceu a boca e se concentrou.
Maldita hora. Sempre agia às três da madrugada. Meia noite não funcionava para ele. Era a hora entre o bem e o mal, quando o mundo começa a se desligar e as pessoas deitavam em suas camas ou se preparavam para fornicar, talvez planejando o dia seguinte ou se fazendo preces para a prova de matemática. Meia noite e todos estão com um olho aberto e olhos abertos não são bons para a vida secreta de António Marín. Ao menos não para esta, veja bem. Uma, duas horas da madrugada e as ruas estão vazias, excluindo uma ou outra ronda policial, vigilantes comunitários, bêbados e pervertidos. São presenças indesejadas, almas perdidas que vagam pela noite, procurando suas presas, encontrando inocência para manchar e estuprar. Marín os desprezava e desejava colocar suas mãos nas gargantas sujas dos predadores noturnos. Mas não agora, não hoje. Mais tarde do que isso, cinco da manhã, digamos, e os padeiros estarão acordados. Talvez aquele aluno desesperado com a prova de matemática já está com o abajur ligado, tentando absorver as fórmulas ignoradas por meses a fio. Moleque imbecil.
Três da madrugada, caro leitor. Eis o sweet spot de António Marín, a hora e a vez de seu compromisso, os sessenta minutos do dia em que o tempo congela e Deus hesita em seu trono celestial, pestanejando com pálpebras pesadas. Era quando ele entrava em ação.
Marín andou nas pedras antigas e encharcadas da rua em que estava, equilibrando seu centro de gravidade para não escorregar. Chegou na pequena casa de número 1906 e parou, olhando ao redor. O mundo parecia deserto e ele sorriu. A Hora do Demônio, pensou. Retirou duas barras de metal retorcido e, mais rápido do que você imagina, destravou a porta e ganhou acesso para o interior. Olhou rapidamente para as paredes da pequena sala, certificando-se da inexistência de alarmes. Nada. E esse era o problema, na opinião de Marín: as pessoas se tornavam descuidadas, preguiçosas e, na maioria dos casos, prepotentes. Um sentimento de imortilidade normalmente atingia seus alvos, o que tornava seu trabalho - um dos trabalhos, vamos lembrar - fácil, tão fácil que chegava a ser entediante. O que não fazia sentido, em sua opinião, uma vez que para entrar em sua lista, o cliente tinha de estar metido na merda até o pescoço. Merda séria, do tipo que deixa corpos empilhados por todo o caminho. Nas pontas dos pés, avançou para as escadas e parou por duas vezes quando os degraus rangeram, os sentidos afiados em prontidão. Por todo o percurso, analisou os pequenos indícios que traduziam o cotidiano da casa. Os móveis estavam limpos - até mesmo a base do corrimão estava polido - e indicavam um ambiente bem planejado; havia latas verdes de heineken espalhadas na mesa de centro e na cozinha, onde diversas travessas descartáveis de refeições congeladas permaneciam jogadas e esquecidas, parcialmente amassadas depois de inúmeros jantares sem sabor e de nutrientes sem valor. Harry Gorgorith vivia à base de cerveja e pratos feitos, aparentemente. Caso precisasse lutar, não tinha expectativas de enfrentar um Jason Bourne. Novamente, o descuido. A ausência de brinquedos era um alívio. Não porque ele pensaria duas vezes em apagar um pai de família, António Marín estava acima dos laços sanguíneos ou da santidade do seio familiar. O alívio existia por que crianças significavam imprevistos. Crianças têm o péssimo costume de acordar na Hora Morta para fazer xixi ou correr até a cama dos pais, chorando por causa de um pesadelo ou querendo água. Mesmo entediado, Marín não tomaria nenhum prazer em assassinar crianças.
Empurrou a porta semi-aberta e entrou no quarto de Harry Gorgorith. Ele roncava alto, a barriga inchada subindo e descendo com regularidade. Na Hora Morta, todos estão em REM. Harry dormia sozinho e Marín descartou qualquer outro morador na pequena casa. Viu o passaporte russo de Gorgorith ao lado da escrivaninha, o único documento que o colocava naquele país. Marín abriu um zíper de sua jaqueta e recolheu o passaporte, o que daria algumas horas de vantagem sobre a polícia, que precisaria recorrer a medidas mais demoradas para identificar o corpo de Gorgorith.
António Marín ficou parado no meio do quarto, como a sombra do ceifador observando o sono pacífico de sua próxima vítima. Harry dormia o sono dos justos, enquanto cometia atrocidades no submundo político, prejudicando uma longa lista de nomes inocentes. Podia contar ao menos quinze pais de família que conhecia, homens corretos e honestos que perdiam o sono, tentando decidir qual conta pagar e qual serviço seria cortado, água ou gás. Um mundo justo, ele pensou com uma pontada de ira no peito. Marín não sabia ao certo, era parte de seu trabalho resolver problemas com o mínimo de conhecimento, mas era sempre motivo político. Ficava atento aos noticiários logo depois de um contrato e sempre descobria que o morto estava metido em um ou mais escândalo parlamentar. Harry Gorgorith era um homem sujo, mas ele não sabia o quanto. Era uma ignorância cronológia, bem sabia.
Repentinamente, Harry sentou na cama epuxou a gaveta do criado mudo ao seu lado. O assassino viu a arma, uma pistalo .22 provavelmente carregada e engatilhada, e puxou a própria pistola, uma Desert Eagle monstruosa. “Eu não faria isso, Harry. Seria uma escolha… prejudicial para a sua saúde. Você não precisa morrer hoje”, mentiu.
“Quem… quem te mandou?”, Harry perguntou com a voz letárgica e carregada por um sotaque pesado, “foram eles, certo? O Círculo. Eu sabia que esse dia chegaria.”
“Vamos lá, meu chapa, solte essa arma, você não quer continuar apontando ela para meu peito. Eu costumo ficar ofendido com pessoas que me deixam na mira. Estou aqui para te dar um recado.”
“E como sei que você não vai me matar, seu merdinha. Eu não tenho medo de você… ou do Círculo. Apenas uma pessoa sairá daqui hoje. E logo depois, vou pegar um por um deles, hoje mesmo, antes que eles saibam que o… o assassino que eles contrataram falhou. Filhos de uma puta.” A mão de Harry tremia.
“Você quer abaixar a arma, sério”, Marín advertiu. “Meu dedo é bem mais rápido que o seu, tenho certeza. E depois o quê, Harry, hein? Você vai colocar uma calça nessa sua bunda gorda e perseguir todo o Círculo?”, Marín não tinha idéia do que falava, sabia apenas que precisava blefar se queria evitar que Harry disparasse em seu peito. “Nós dois sabemos que você não conseguirá passar pelo primeiro segurança da primeira casa, cara. Estou aqui para te dar uma nova chance. Você fodeu tudo, cara, cagou em todo o plano. Eles me mandaram para te fazer desaparecer… não mate o mensageiro, certo? Pegue seu dinheiro, suas coisas e suma. Mude o nome, tinja o cabelo. Vá vender pranchas de surf em Porto Rico, vá dar a bunda, não me importo com o que você irá fazer daqui em diante. Desde que suma daqui. Nessa noite, hoje. Se você disparar agora, pode ser que erre, pode ser que me mate. E mesmo que acertar, pode ser que eu consiga disparar. Já viu uma Eagle cuspindo bala? Não sobra nada, cara. Caixão fechado, porra. Então, a não ser que você tenha nascido com esse cu feio virado para a lua, abaixe a porra dessa arma. AGORA!”
Harry Gorgorith não se sentia com sorte e abaixou a arma. Obedeceu, em seguida, ao movimento do homem que estava no seu quarto no meio da noite - procurou pelo relógio que tinha na parede: três e quinze da manhã, um horário injusto para ser despertado pelo seu anjo da morte - e jogou a arma para o pé da cama. “Eu vou, eu vou.” António guardou a arma e Harry suspirou, aliviado. Levantou-se para começar a fazer a mala e comprar o primeiro vôo para a Terra do Nunca, quando sentiu falta do passaporte. Voltou-se para sua arma, tarde demais. Harry Gorgorith nunca viu os dois disparos que destruíram seu cérebro e espalharam massa cinzenta ao redor de seu corpo.
Ele largou a arma de Harry, achando conveniente que ele tinha uma pistola com o número de série raspado e silenciador rosqueado. A Desert Eagle deixaria seus ouvidos doendo e despertaria metade de Oxford. “Obrigado, Harry”, ele disse antes de largar a arma no chão e disparar para o carro.
O pequeno carro inglês pegou na primeira tentativa e ele começou a dirigir para Londres, onde estava hospedado. Escutou músicas antigas por todo o percurso, de Creedence até Queen, passando por Beatles e The Who, cantando as letras em uma tradução simultânea para o português. No caminho, parou para queimar as roupas e as luvas que usava, trocando-se rapidamente para não congelar no rigoroso inverno britânico. Quando parou, olhou para os céus novamente, como se estivesse procurando por algo.
Quando chegou no hotel, António Marín discou para um número e desligou em seguida, retirando a bateria do celular e quebrando o pequeno chip no meio. Missão cumprida com louvor.
Aquela vida de António Marin estava enterrada por mais alguns meses e ele poderia voltar para o Brasil, assumindo novamente sua vida de comerciante de calçados. António Marín, o pai dedicado, vendedor de calçados ortopédicos e Maçom de alto nível hierárquico, um homem que todos conheciam. Poucos conheciam o António Marín apaixonado por miniaturas e ferroramas e meia dúzia de pessoas em todo o mundo conhecia António Marín, o melhor assassino do mundo. Ele não deixava rastros, não fazia pergunta e não mostrava clemência.
Ele empurrou a porta de correr da gigantesca sacada - amava o luxo e sempre ficava nos melhores quartos quando estava trabalhando em um contrato, outro António Marín que pouquíssimos conheciam - e olhou para o céu, sentindo o coração pular uma ou duas batidas com o que viu. Um frio escalou em sua espinha e fez todo seu corpo arrepiar, descarregando uma enorme quantidade de adrenalina. Aquela, caro leitor, era a vida secreta de António Marín que apenas António Marín conhecia.
Durante toda sua infância, nos momentos que definiram suas várias vidas paralelas, Marín via gigantescos números no céu. A primeira vez, o número 54 em letras garrafais, apareceu quando seus pais morreram em um acidente. Ainda se lembrava do momento, os olhos cheios de lágrimas, ranho escapando pelo nariz avermelhado, olhou para cima e achou que estava tendo ilusões, que estava em choque. Em pouco segundos o número desapareceu. Alguns meses depois, enquanto pulava de adoção para adoção, ele via os números no céu, gigantes como planetas colossais em rota de colisão com a Terra. Também avançavam: 55, 56, 60. Ele era o único que os via piscando no céu, dia ou noite. Mas sempre que vivia momentos importantes, para o melhor ou pior, vitórias ou derrotas, eles apareciam sem falha. Seu recrutamento pelo Mossad (120) e, anos mais tarde, quando executou todos os que conheciam sua verdadeira identidade (140, 142, 147 e 148) para desaparecer e iniciar uma carreira autônoma (155).
Depois de seu primeiro assassinato solo (183), Marín entendeu o que eram os números e uma certeza se instalou em seu cérebro. António Marín, o homem que colecionava miniaturas de trens e vendia sapatos para crianças de pernas tortas, o assassino profissional procurado pelo Mossad era, acima de tudo, o antagonista de um livro. Os números que via no céu eram as páginas que desenvolviam o papel que deveria seguir, era a única explicação plausível. Aos poucos descartou a idéia de ser apenas um personagem em um grande livro, não, ele era bom demais para ser secundário. Tampouco poderia ser o protagonista: faltava-lhe carisma, determinação. Tudo que queria era ver crianças de postura saudável e fechar contratos que o enriqueciam em escala astronômica. António Marín, senhoras e senhores, era o antagonista daquela história… desta história. E, pelos deuses, daria tudo de si para ser o melhor antagonista que o mundo já conhecera.
Apoiado na parapeito da sacada, Marín admirava o único número estampado no céu de Londres (1). O sol nascia e número (1), perto do London Eye, se tornava alaranjado. Estava no início do livro, podia visualizar o parágrafo que abria sua história: António Marín observou Londres acordar. Deixava o conhaque descer por sua garganta, queimando seu estômago e aquecendo seu corpo, regozijando-se pelo trabalho bem feito. Repassou rapidamente a madrugada anterior em sua mente, à procura de falhar, mas sabia que seu trabalho era perfeito. Ele era, afinal, o melhor assassino para contratar e suas execuções eram perfeitas. O que António Marín não sabia era que acabava de sair da excessão que comprovava a regra. Talvez estivesse ficando descuidado - adjetivo que dava para seus alvos - ou cansado, mas falhou em reconhecer as pontas soltas.
Ergueu o copo de conhaque que surgira em sua mão e brindou o autor. Note como ele parece olhar para você, veja como ele pisca um único olho em sua direção, um olhar sádico, lunático… perigoso.
O número 1 desapareceu e ele ficou assistindo o sol nascer para mais um dia. Mais um dia na vida de todos aqueles que permaneciam no jogo.
Mais um dia para a grande maioria dos vivos, mas o dia em que a vida de António Marín começava de verdade. Mal podia conter a curiosidade que tinha no fundo da mente. Apostava consigo mesmo até qual página conseguiria chegar vivo.
António Marín voltou para o quarto e se jogou na cama, precisaria descansar o máximo possível: sua verdadeira vida secreta começava agora.

(Fim do Capítulo 01)

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O Conto da Raposa

“É assim que funciona, eu juro”, disse a Raposa. “O Homem Que Canta recebe mais comida do que consegue ingerir e o Homem Que Levanta morre de fome. Eu vi com meus olhos, comi de seu lixo… Digo mais, os lixos dos que Cantam são os melhores que a comida dos que se Levantam! Escutem o que eu digo”, continuou a Raposa, enquanto brincava com o próprio rabo, “o Homem Que Canta é rei dentre os animais.”
“Eles não trabalham, os Homens que Cantam?”, perguntou o Corvo, tentando segurar a rodela de queijo que carregava por baixo das asas. Ele segurou o queijo cuidadosamente até terminar a frase, depois o voltou para a boca, provocando uma gula quase incontrolável na Raposa. Gostava de provocá-la e não tencionava comer o laticínio: queijos davam-lhe dor de barriga e pássaros têm um ligeiro problema com seus excrementos naturalmente ácidos. Se eu comer, vou ter de voar com a bunda para cima, brincou com a Hiena em certa ocasião, antes de gargalharem da Raposa por alguns bons minutos.
A Raposa fitou o Corvo parado em um dos galhos mais altos da árvore, os olhos cheios de uma chama furiosa. “Que tal você descer para eu não gritar?”
Fez uma cesta com as asas e derrubou o queijo antes de responder: “Que tal você continuar sua história ou vou para casa comer um pouco de queijo?”
Os animais começaram a desfazer a roda e a Raposa, sentindo o estômago reclamar, interveio: “Tudo bem, tudo bem. Eu continuo com minha voz alta. Eles trabalham, mas pouco tempo. Outros Homens que Levantam levam comida e bebida todos os dias, além de outros objetos que eles fazem para passar o tempo, vocês sabem: aqueles retângulos mágicos que passam outros mundos ou as caixas pretas que tomam todo o tempo que não podem se dar ao luxo de perder. Os que Cantam raspam as pernas ou coaxam por poucas horas todos os dias e têm de tudo. Inclusive parceiras. Ah, quantas parceiras! O pior é que os mais admirados, não cantam tão bem, ou têm um canto… vazio.” A Raposa mais declamava do que falava; era melhor ser o centro das atenções e se distrair do que ficar remoendo seus pensamentos, enquanto o estômago roncava em resposta.
“Injusto!”, protestou a Cigarra, magra e faminta. Raspou uma perna na outra e produziu o som característico. “Eu fico o tempo todo tentando atrair uma única senhora e o que ganho? Eles jogam venenos na gente. Veneno!”
A coruja abriu os olhos amarelos e estudou a postura da Raposa. “Diga mais, como os Homens que Cantam ajudam seus irmãos?”
“Aí que está! Eles não ajudam. Ao menos eu nunca vi um deles compartilhando com os famintos”, a Raposa fez uma pausa dramática e encarou o Corvo novamente, “eles simplesmente vivem do trabalho dos outros. Quando entro nas cidades, fico completamente confusa.”
“E por que você vai até lá?”, perguntou a Coruja, interessada no relato.
“Ora, para ter comida. Depois que eles se amontoam em um canto ou outro do mundo, você sabe como ficamos sem caça ou coleta, então eu vou caçar em seu território. Coletar em seus lixos, na verdade. Eles deixam cada coisa boa naquelas latonas, vocês nunca acreditariam. Eles brigam por causa de suas fêmeas, sem antes procurar por outra que não vá arranjar confusão; eles se matam por baterem uma caixa de rodas na outra. Eu vi, certa vez. Um deles estava numa caixa vermelha e fez uma curva desastrosa, que acabou de frente com outra caixa de rodas. As duas fizeram um barulhão que fez meu rabo entrar até as minhas patas dianteiras, eu juro. Uma fêmea desceu da caixa vermelha e começou a usar aquelas coisinhas que eles usam para falar com quem está longe, já que seu canto é fraco e muitas vezes os outros não conseguem… ou não querem… escutar. Da outra caixa, saiu um macho e simplesmente matou a fêmea. Ele bateu nela até o que está dentro da cabeça deles voasse para todos os lados. Depois chegaram outras caixas de rodas e levara a fêmea morta e o macho violento para longe. O pior é que eles deixam a carne estragar… quero dizer, ela já estava morta. O mínimo que você podia fazer por ela era comer um braço ou uma perna, estou certa?” A Raposa parou alguns segundo para recuperar o fôlego e apontou para o Corvo: “Se eu caísse mortinha agora, tenho certeza que aquele cara lá viria e pegaria pelo menos um dos olhos sem vida. E sequer derrubaria o queijo, este maldito. É o que devemos fazer, oras. Esses homens são estranhos. Mas seus lixos, deliciosos.”
“E o que eles fazem para se divertir?”, perguntou o Sapo, que carregava o Escorpião em suas costas.
A Raposa girou algumas vezes, tentando pegar o rabo, e sentou em seguida, lambendo uma das patas. “Muitas coisas. Sabe aqueles momentos que você começa a coaxar só para passar o tempo? Às vezes acho que eles coaxam daquela forma estranho por horas e horas e horas, só para não se entediarem. Não os vejo planejando a caça, ou se preparando contra os elementos. Eles abrem a boca cheia de dentes brancos e falam por nada. Algumas vezes procuram parceiras para acasalar, mas mesmo quando estão entre outros homens, os machos falam o tempo todo, como se quisessem dormir com os do mesmo gênero. Eles mostram os dentes o tempo todo, também. E cheiram pós brancos que colocam por aí. O pior é que quando cheiram esses pós ou colocam fogo em bastões que estão em sua boca, começam a se sentir mal e algumas vezes deitam para morrer. Como aquele cachorro que vivia com a gente até achar um chocolate deixado pelos humanos que dormiram na grande árvore, lembram?” Os animais concordaram, cada um ao seu modo. “Mesmo caso. Sabem que aquilo pode matá-los, mas consomem mesmo assim. Eu, por exemplo, não comeria um coelho morto há mais de algumas horas. Meu corpo ficaria doente e aquele cara lá viria bicar meus olhos. Sem derrubar o queijo, no entanto.” A Raposa pensou por alguns instantes. “Ah, tem mais. Eles vivem com gatos e cachorros. São seus amigos. Eu conversei com cachorros de Homens Que Cantam e eles comiam de tudo, tudo mesmo. E tudo que precisam fazer é deitar e virar a barriga para ganhar agrado.”
“Em resumo”, a Coruja interrompeu, girando a cabeça em 180 graus, “os homens fazem coisas à toa até morrerem, como se quisessem matar o chamado tédio até o leito da morte, é isso? Eles se matam por causa de caixas estúpidas com rodas estúpidas e perdem a razão estúpida quando encontram Homens Que Cantam. Estúpidos! Cheiram cheiros que os destrói por dentro e acendem… coisas que colocam na boca e morrem. Ontem, você estava falando dos homens que comem tanto que ficam redondos e macios… mas de alguma forma continuam a conseguir comida, mesmo lentos. Outro dia, em outra lua, você nos contou que alguns deles bebem até vomitar e andar engraçado, mas no outro dia voltam a beber da mesma água com gosto amargo. Isso não faz sentido! Que tipo de animal sem entranhas faria isso? Eu acho que você mente, Raposa.”
“Ah é? Espere até eu contar que eles usam mais de uma fala e que alguns se matam porque não compreendem as palavras um do outro.” A Raposa agora estava em posição de ataque, com as patas dianteiras esticadas e o corpo inclinado, mostrando os dentes para a Coruja que sabia demais.
Os Coelhos começaram a dispara para todos os lados; o Corvo gargalhou e quase derrubou o queijo, enquanto o Escorpião tentou picar o Sapo, sua única forma para voltar de onde viera. A confusão reinou entre os animais do bosque, esmagado entre três cidades que cresciam rapidamente.
“Chega!”, uivou o Último Lobo, que até então fingia desinteresse. Ele era grande, tinha os pêlos cinzas e uma cicatriz profunda no lugar do olho esquerdo. “Chega desta palhaçada. Combinamos em nos encontrar aqui todas as noites e contar histórias sobre eles. Coruja”, rosnou para o pássaro, “você deu a idéia, dizendo que assim poderíamos entendê-los e, com sorte, tirar algum conhecimento de seu comportamento, só assim poderíamos encontrar uma nova casa, com ar puro e água potável. Agora você acusa nossa principal batedora de ser uma mentirosa? Escolha uma opinião e fique com ela, Coruja. Seus olhos são tão grandes, você deveria enxergar melhor a situação.”
Os animais pararam, encarando o Lobo sentado no meio da clareira. Temiam o temperamento selvagem do velho lobo que perdera toda sua matilha para jovens homens disparando pequenas pedras de pólvora. A Raposa abriu a boca e deixou uma lebre pular para longe.

“Hoje é a noite das fábulas e vou contar uma”, continuou o Lobo, que raramente se pronunciava. Limpou a garganta com um rosnado baixo e começou: “Era uma vez um lobo que uivava menino todos os dias…”

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Um Corderinho, Dois Cordeirinhos

- Era diferente, naquele tempo – me contava o velho Jones, amigo do meu falecido avô – bem diferente. Por mim, teria pego aquele menino, amarrado na árvore mais próxima, cortado as vísceras, esperando que o lobo viesse para comê-lo. Merecia por nos atazanar.

Não contive meu espanto e Jones percebeu a contração em meu rosto.

- O quê? Acha que no meu tempo não fazíamos isso? Fomos diversas vezes acudir o garoto, saindo às pressas, deixando o trabalho ou doses de birita pela metade, com a arma em punho, para quê? Vê-lo gargalhando de nossa preocupação? Por mim, amarrava. Deu no que deu.

E tomou o gole final do café batendo com o copo vazio com o jornal matinal que destacava a prisão de Pedro após uma série de latrocínios.

A história não era nova para mim. Meu falecido avô Matias contava-me essa história de sua juventude. Colocava-me no colo, dizia que, na época dele, a vila era rodeada por florestas e que havia muita fauna selvagem. Pelo perigo constante, a maioria dos homens andava armada para eventuais problemas, não importava de qual espécie, humana ou animal.

E foi nesse tempo que o garoto Pedro, de cabelos dourados, permaneceu um mês pregando peça nos mais velhos. Ia até a divisa da vila com a floresta e gritava a plenos pulmões sobre um ataque de lobos. Os homens empunhavam suas armas, preparados para lutar, as mulheres recolhiam seus filhos e a vila inteira se preparava para um ataque que nunca acontecia. Dizem que um tempo depois o garoto foi atacado por um lobo, um de verdade. Mas nessa época, ele tinha se acostumado a contar mentiras.

Órfão de mãe, o garoto vivia com o pai bêbado. Não era tão ruim, dizia meu avô, mas o garoto vivia em uma das piores casas da vila, sempre sujo, com uma cara ensebada que só não escondia sua perversão.

Depois do caso com os lobos, começou a maltratar os animais da cidade. Encontraram um cachorro preso em uma cruz na época de Páscoa. Todos acusaram o garoto. Mas o pai, entre um gole e outro de birita, fedendo a graxa e suor, dizia que seu filho era um anjo.

Aos dezesseis engravidou Ismália, uma menina franzina de seios pequenos que tanto meu avô quanto Jones me disseram que parecia um menino. Cabelo curtinho, queixo protuberante, dava dó, disseram. A princípio, disse que iria assumir o bebê, mas esta foi a primeira vez que fugiu. Evaporou como álcool. Seu Joaquim, pai de Ismália, organizou um bando para procurar o garoto. Foi de cidade em cidade atrás de Pedro, mas ele não apareceu.

Descobriram muito tempo depois que o garoto havia roubado gado em outro estado e passou um tempo na prisão. Prisão não, que menor não ficava preso. Era uma casa de retenção, disse meu avô. Destinada aos menores infratores para se recuperarem. E Pedro voltou de lá mudado. Tinha aprendido a matar.

Saiu ao fazer dezoito anos, mais forte e com um olhar baço que meu vô dizia que lhe deixava assustado. Voltou pra vila pra assumir o filho de Ismália, mas o pai havia mandando a garota para a capital, na casa de uma tia. Pedro brigou pelo endereço, mas, mesmo após um talho de faca no abdômen, o velho não disse. Foi a última vez que a vila viu o garoto, que disse que iria até o inferno para caçar seu filho.

As notícias que chegavam vinham com fama lendária. Eram bárbaras se comparadas à traquinagem de menino de Pedro com os lobos. Alguns diziam que ele cuidava de uma fazenda, assassinava boias-frias pela estradas, outros afirmavam que se endireitou e pregava o evangelho.

Então, quando o jornal estampou a foto de um rapaz com nome e sobrenome, e origem, a mesma vila do meu avô, eu fui atrás do velho Jones para confirmar se esse era o Pedro da lenda. Eu fazia poucas visitas a Jones porque ele lembrava meu avô. Doía fundo no peito. Mas, naquela manhã, a vila toda parecia mais iluminada. Como se a prisão de Pedro fosse uma redenção. O mal que retorna à Caixa de Pandora onde nunca deveria ter saído.

Passamos a manhã toda entre cafezais conversando sobre o passado. A ferida cravou-se fundo em meu peito e o velho Jones também sentia a falta de vovô. A ponta dolorida do passado não deixava o presente mais triste. Era impossível não mencionar Pedro que, desde a fundação da vila, havia feito traquinagens com lobos, animais, Ismálias e o que mais sua mente doentia poderia fazer. Havia um júbilo no ar que, mesmo sem percebermos, nos deixava com mais dentes no sorriso. Depois de acabar mais uma xícara de café moído na hora, o velho Jones virou-se pra mim com olhar renovado.

- É aquela velha moral, meu filho – fez uma pausa de suspense – filho da puta é sempre filho da puta.

E rimos um bocado.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

mother goose

- Pé-de-vento.

- Como?

- Pé-de-vento, foi como acabou que ela se chamava.

- Conta essa história direito, cara.

- Tá. No meio do mato do planalto, tu sabe, tem gente que diz que tem uma gente antiga, gente bicho, diferente da gente gente, mas é mentira. O que tem no planalto é formiga trabalhadeira e sol e céu e eu tava lá, veja você, esperando pra conhecer a gente mesma do lugar. A gente gente, que eu não sou desses de crendice em achar que gente bicho existe.

- Sei.

- E me perdi.

- Claro.

- E me vi metanorfo... metanosf... metarmo... Porra!, transformado num inseto enorme e...

- Quando acordou?

- Quê?

- Quando acordou. Quando acordou, se viu metamorfoseado num inseto enorme?

- Não, bestão, eu tava andando. Daí eu andava com oito patas e quan...

- Seis.

- Cês o quê?

- Seis. Seis patas. Se fossem oito, tu seria uma aranha enorme. Ou ácaro. Acho que até carrapato, mas não inseto. Inseto é seis.

- Ta'queu'pa! Ok, aracnídeo enorme e eu andava mais rápido porque tinha pressa e vi lá essa mulher e ela era, nem sei como explicar... era como se ela tivesse vento nos cabelos e o tempo passasse e corresse mais e mais barulhentados com ela ao lado. Rainha-mãe das andorinhas, chamava ela.

- Não era Pé-de-vento?

- Foda-se!, foda-se. Não conto mais essa merda de fábula porra nenhuma. Que o diabo te carregue, e leve tu e tua moral da história junto. Que coisa impossível, velho, tá louco...

Joana sorria e servia mais cerveja àqueles dois, que havia muito não pintavam pelo Clube.

Moral da história: o bom filho à casa torna antes bem acompanhado do que mal sempre tem cerveja a mais nunca falta amor em nenhum canto da vida e o pássaro que canta antes afugenta a comida.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Cliomancia

O parque estava cheio de casais andando com as mãos dadas, trocando carinhos e retirando sacos plásticos dos bolsos para recolher fezes de seus cachorros. Eu estava sozinho. Sozinho e miserável. Lembro de ter encontrado meu próprio fundo do poço emocional. E não desci todo confortável, senhoras e senhores, ah não, eu caí de cara. De repente, vi meu futuro, claro como aquelas piscinas naturais que vemos nos documentários do National Geographic: ataques de pânico, solidão, terapias caríssimas, solidão, tentativas encenadas de suicídio, solidão, pílulas e um tanto absurdo de tempo sozinho. E foi tudo por causa da felicidade ao meu redor. Como se eu fosse um ímã para boas vibrações, o parque era provavelmente o lugar mais pacífico e amoroso em todo o mundo, porra. Tudo que eu queria era ver pessoas miseráveis, dor, medo, impotência… Queria estar perto de magnatas falidos, alcoólatras recorrentes e viciados sem esperanças, queria sorver os vapores inumanos que exalavam de seus poros, minha própria comparação de egos maléfica e egoísta. Só assim eu me sentiria bem, o Edgar Allan Poe de todos os ids.
Eis que me encontrava no maldito parque, entretanto. Aqueles imbecis sorriam enquanto catavam merda de seus cachorros, meu Deus! Faziam piqueniques numa grama atolada em carrapatos e formigas. Retiravam insetos de pedaços de bolo, sentiam o cheiro acre de corredores suados e ficavam de olho em suas crianças. Ainda assim, eu via sorrisos, mãos dadas e afeto. Que cena horrível. Entenda, leitor, no lugar em que eu estava e, com isso, quero dizer o lugar dentro de minha cabeça, uma jaula de ferro maciço, trancada e acorrentada em grossos elos.
Levantei do banco e comecei a andar, carrancudo e com as mãos nos bolsos da calca. Duas crianças passaram correndo por mim e por pouco, mais pela surpresa - meu pé vacilou por um centésimo de segundo e chegou atrasado - do que pela consciência, quase as derrubei. Seria delicioso escutar o choro estridente e com sorte, um dente ou outro se quebrando no concreto. Ah, por favor, retire suas interjeições, leitor. Não há lugar para falsa humanidade por aqui. Olhei para meus pés, pensei em como eles quase machucaram duas crianças e comecei a abraçar a fome maldosa que crescia em meu âmago.
Foi quando a vi. O corpo parecia uma prancha e ela mais parecia um esqueleto vestindo peles do que um ser vivo, propriamente dito. Usava óculos redondos e gigantescos, do tipo que a faria parecer uma mosca, caso fossem escuros. Os cabelos encaracolados cresciam vertiginosamente ao infinito e, posso estar exagerando, mas pareciam impermeáveis, como se a água fosse defletida em cada tentativa de banho. Ela sorriu para mim, com dentes surpreendentemente brancos e perfeitamente alinhados. Foi um sorriso belo, sincero, uma demonstração de atenção para um completo estranho que tocou até mesmo meu coração, que navegava um mar nada amigável. Estava sentada em um dos bancos do parque e me pegou desprevenido quando bateu a palma ao seu lado, convidando-me para me aproximar.
Ainda não sei explicar porque obedeci, mas quando percebi, já estava ao seu lado. Sua pele, clara como aquele dia bonito, parecia sedosa e ao mesmo tempo quebradiça, velha, como se a moça existisse por mais tempo do que poderíamos contar. O mais engraçado? Ela não parecia ter mais do que trinta anos.
“Olá, meu bom rapaz”, ela disse.
“O-Olá. O que… o que você quer?”
“Ora, você tomou a iniciativa, eu estava sentada aqui sozinha, acompanhada apenas pelos meus pensamentos. Por que essa cara feia? Um rapaz tão bonito não deveria ter o sorriso para baixo, veja. Esse seu sorriso está ao contrário!” Suas palavras eram quase como música. Havia lirismo no modo como ela dizia e, se eu prestasse atenção e escutasse além de sua bela voz, às vezes parecia que eu estava escutando um coro completo. Soprano, baixos e tudo aquilo que existia entre eles. Sem esperar por minha resposta, a mulher abriu a bolsa que descansava em seu colo e pegou um baralho de cartas amareladas. Tarôt.
Mostrei as duas mãos para ela, tentando me desculpar enquanto erguia meu corpo. Doida de pedra, eu pensei. “Olha, não é nada pessoal, é só que eu não acredito nessa merda toda.”
Esta merda toda? Escute bem, Jó, essas são cartas normais, são usadas para jogar.”
Como, pelos céus, ela sabia meu nome? “Não, não. Chega, é o suficiente. Eu não sei quem a senhora é ou como sabe a porra do meu nome, mas Tarôt é… fica além… ah, foda-se.”
Movimentei as pernas e comecei a me distanciar enquanto ela embaralhava o conjunto de cartas, revelando a primeira. “A Torre significa que todas as mudanças são naturais, bom rapaz. O que aconteceu não foi culpa sua, mas algo que estava em seu próprio curso. Por isso você se sente um saco vazio, mas na verdade, não havia nada que pudesse fazer.”
Parei. Congelei, para ser mais preciso. Diabos de mulher! “Como você sabe tudo isso?”, gritei contra ela. As pessoas ao redor olharam, alarmadas. Uma criança deu um pequeno salto e derrubou o sorvete que logo estaria em toda sua face. “Ei, cara!”, disse o pai da criança. Olhei para eles e disparei: “Vá cagar. Ela está uma porca, de qualquer forma. Eu fiz um favor, se você quer saber.” A pequena começou a chorar e correu para longe, seguida por um pai indignado.
“Isso foi… desnecessário, Jó, acalme sua voz”, a mulher magra disse. Agora, ela estava mais parecida com uma bruxa, um contraste interessante com a visão anterior, uma louca assediando moralmente as pessoas que iam para a praça. (Enquanto escrevo o que aconteceu, percebo que me vi nela. Eu estava assediando os outros. Que merda). “Você precisa cortar os palavrões, eles ficam feios em sua boca.” (Puta merda, ela tem a porra da razão.) Quando percebi, estava novamente ao seu lado. “Sente-se. O Tarôt surgiu no século dezesseis, no norte da Itália e não tinha nada, absolutamente nada, de magia ou qualquer mancia. Ele era, veja bem, usado como um baralho normal. Paus, ouro, copas e espada. Nada de diferente: baralhos diferentes para jogos diferentes, nada de diferente, não senhor. Apenas em alguns países o Tarôt é usado por charlatãs. No meu caso”, ela disse com um acento forte, olhando-me sobre seus óculos, “eu posso ver não o seu futuro, pois este pertence às três irmãs, mas o seu passado. Engraçado, não? Eu nasci com uma habilidade interessante, que se revelou a mais desinteressante de todas. Sem fortuna para ti, minha mãe costumava a dizer. Ah, não senhor! Sem fortuna para ti ou para me. Ofereço memórias, Jó. Suas memórias, pobre rapaz. Não faça essa cara, ofereço ajuda, não medo. Veja, pense em mim e puxe uma carta.” Ela abriu um leque com o baralho velho e eu obedeci. Era uma figura feminina, parecida com as damas dos baralhos que podemos comprar por aí, por menos que um maço de cigarros. “A Papisa. Representa sabedoria, visão. Entendeu? São representações, estamos combinados. Vou ler o seu passado, Jó. Pelos próximos minutos, você vai sentar aqui, puxar cartas e me escutar, entendido? E esse é o máximo de futuro que consigo prever.”
Ela devolveu a carta e abriu um novo leque. Com dedos trêmulos, puxei uma nova carta. Vi o desenho de um bufão, um louco da corte segurando o que parecia ser uma trouxa. Na outra mão, apoiava parte do peso sobre um cajado.
“O Louco. Conveniente”, disse com um sorriso aberto no rosto. “Sua história é sobre buscas. Você sempre esteve vagando por aí, correto? À procura de algo para completar um vazio que tem no peito, buscando por um peso para seu peito leve. Enquanto muitos imploram por alívio, você quer o peso para carregar. O Louco, pois bem. Eis sua definição. Toda busca, no entanto, tem significado. Ela resulta de sua solidão e das dores de seu passado, das cicatrizes que ainda não se fecharam por completo. Sua solidão, Jó, é resultado de sua errância. Você não é um ser solitária, mas adquiriu tal qualidade com suas desavenças. Puxe outra.”
Assim o fiz. No entanto, meus dedos escorregaram e duas cartas caíram sobre o banco de madeira. Uma delas mostrava um lobo mal desenhado sobreposto numa lua redonda e inchada de forma impossível; a outra representava o mesmo lobo domado por uma mulher. Talvez fosse um homem, eu não tinha muita certeza.
“A Lua e a Força. Agora começo a entender seus caminhos. Você experimentou um mundo de reflexos. Imagens, reflexões, pensamento… são as características desta carta”, levantou o lobo e a lua. “Mas, a Força… ela representa o que impulsiona, a sede que o faz levantar todas as manhãs. Julgando por seu semblante, eu diria que fazia se levantar. Essa é a beleza do passado, meu caro. Ele não é uma ciência exata e exige muita, muita interpretação. Sou como um Sherlock Holmes, vê? Procuro por indícios... já leu O Nome da Rosa?”
“Acho que vi metade do filme”, respondi.
Ela sorriu novamente, complacente desta vez. “Logo no início, o personagem principal… nosso Holmes da Idade Média, descobre a raça e o nome de um cavalo apenas por indícios físicos e geográficos. Por Deus, ele descobre que a confusão era sobre um cavalo, em primeiro lugar, sem qualquer dica. Fantástico, se você me perguntar. E tudo por causa de um sorriso. Mas eu divago. O que me resta com essas duas cartas é justamente interpretar os indícios. Eu vejo uma força muito poderosa em seu passado, algo que fazia seu mundo girar como o sol para o mundo de Galileu. Era algo centralizador, talvez um catalizador de todas as suas ações.” Ela se calou e me observou. “Essa força… ela normalmente se revela como um grande objetivo. Você me cita algo e eu posso mostrar a Força. Um Jedi, se quiser. Escrever um livro, ser presidente, deitar com cem mulheres. Dinheiro, fama, poder ou”, apontou para a marca branca que rodeava meu dedo anular, “amor. Você está divorciado. Pelo menos separado. É o seu eclipse, estou certa?”
Concordei com a cabeça. Eu sentia falta de Laura. Laura, meu mundo, minha paixão. No final, minha queda.
“Agora, a Lua. Era tudo uma imagem daquilo que você desejava. Seus olhos viam nela o que você queria, não o que era. Talvez fosse interesse ou necessidade, mas nunca amor de verdade. Agora você está aqui, um homem com o coração partido, um Louco que procura por sofrimento, por solidão. Vamos ver o que aconteceu. Puxe outra carta.”
Não queria continuar com a loucura daquela mulher. Ela estava cutucando com unhas afiadas as minhas feridas que ainda sangravam, para começar. O pior é que ela estava se divertindo com aquilo. Eu podia me levantar e ir embora, podia simplesmente abrir a minha boca como se estivesse em um bar e derramar a minha história triste para ela, explicar como essa sombra crescia em meu coração e como, centímetro por centímetro, eu deixava a noite tomar conta de quem era, deixava a bruma envolver minha mente. Estava entrando em piloto automático e revelando uma pessoa estranha que vivia em mim. Uma pessoa cruel. Medo. Acho que foi essa a cola que me deixou preso naquele banco. E, caro leito, eu estava aterrorizado.
“Ah”, seu rosto se iluminou. “El Diablo. Entendo. Tentação, destino… o que você quiser chamar. Clichê?”
“Sim”, respondi com uma voz fraca. De repente, minha garganta estava seca. “O maior clichê, na verdade. Ela me começou a dormi-”
A mulher ergueu a mão e me interrompeu. “O passado não é uma ciência exata e sua história é desnecessária e estou aqui para te lembrar do que aconteceu, Jó. Apenas sei o seu nome. As cartas me contaram, ou os pássaros, se preferir. Sua história é sua e sua apenas. O diabo aconteceu, talvez literalmente. Você era feliz, tinha sua vida protegia e vivia o sonho, com uma bela mulher e toda a felicidade que um homem poderia experimentar. Isso foi antes, antes de se tornar no Louco. Cristal, é como vejo seu passado agora: transparente como cristal. Não os fatos, os fatos pouco importam para mim, Jó. Eu vejo as cristas, as ondas, o impacto dos fatos. Eu vejo seu cavalo, sua cor e nome, por assim dizer.” Ela se levantou num ímpeto que me assustou. Se estivesse segurando um sorvete, o teria derrubado. Karma, talvez; coincidência, provavelmente. “Estou atrasada. Mas ofereço uma última carta. Quando você olha tempo o suficiente para o passado, Jó, o futuro se conquista facilmente, como uma meretriz bêbada. Talvez a próxima carta revele seu futuro. Talvez eu seja uma louca que você conheceu na praça. Me chame de louca, me chame de Clio, me chame de bruxa. Mas vá em frente, pegue uma última vez.”
Com dedos suados, puxei duas cartas. Ela não as revelou. Numa explosão, revi minha vida. O tempo parou e todas minhas decisões realizaram uma parada diante dos meus olhos. Quem eu era, quem fui e o que aconteceu. Laura dormindo com algum desconhecido sem rosto, figura que eternamente faria parte de meus pesadelos, foi algo que quebrou o espelho e me fez olhar para sua carne, a verdadeira Laura, pela primeira vez. Vi novamente aquela figura horrível, mesquinha e manipuladora, a pele tentadora banhada pela luz da lua e as cordas que me faziam dançar penduradas de seus dedos, sem nada prender na outra ponta. Eu estava livre. Livre para ser um louco sem rumo, sem pertences ou destino. Duas cartas com as costas viradas para mim. Eu era o Louco. Erro, procuro. Sofro. Sou, realmente, o Louco? Era esse o meu futuro?
Escolha, ela dizia com os olhos. Tudo depende de suas escolhas.
Escolhi.
Ela recolheu a outra carta e a enfiou no meio do baralho. “Olhe para o futuro e aprenda o passado”, ela disse antes de sumir entre os casais felizes que andavam de mãos dadas. Eles não eram mais pessoas malditas. Eram simplesmente casais de mãos dadas. É tudo uma questão de interpretação… de como escolher ver o mundo e agir conforme. Escolhas. O futuro - qual futuro - dependia de minhas escolhas.
Virei a carta.

O Mundo.