sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Catarata

Você agora segura meu manifesto. Não é longo, por isso fique onde está, nem precisa sentar. Tampouco mudarei tua vida. Deixo este trabalho para os grandes intelectuais, para os poucos espíritos de sorte que chegaram nesse mundo com ideais bons o suficiente para influenciar as outras pessoas. Não. Eu sou um velho cansado, nada mais. Aos setenta e nove anos, vejo minha veias exaustas ainda trabalhando a pleno vapor enquanto na oncologia, vejo crianças carecas e sorumbáticas caindo como moscas. Percebe o que está errado?
São pessoas como eu e você, mas nunca poderão ver o zênite de suas vidas porque estarão de baixo da terra, vagando onde quer que os espíritos vão nos dias de hoje. Injustiça é o único termo que cruza minha mente. Considere todo o mundo e perceba que a coisa que mais nos diferencia é como gastamos as horas que temos. O problema aqui é que essas crianças não as têm: foram privadas de suas horas. E isso, meu bom rapaz, é uma bosta sem tamanho. Eu tenho sérias dificuldades em entender porque elas têm de sofrer com uma doença tão terrível enquanto um velho sem propósitos erra pelo mundo sem rumo, sem propósito. Chego todos os dias para uma casa vazia, onde apenas o fantasmas de risos infantis preenche o ar, onde fotos amareladas são os únicos resquícios de meus amores que passaram nessa Terra, deixando para trás apenas a saudade que abate os vivos.
Esforço-me para não parecer amargo em demasia, você conhece o tipo: aquele cara velho que só sabe torcer o nariz e bufar, reclamar da vida e das dores. Um português do romantismo, se assim preferir. Essa carta é o meu grito silencioso, um desabafo em rodapé. O mundo está errado. Tecnocracia, tecnomancia… chame do que quiser. Para mim, a humanidade apenas desistiu e abraçou o estado de filho da puta egoísta que todos temos, mas em níveis diferentes. Um número absurdo de pessoas morrem por desnutrição todos os dias. Pense nisso. Porra, essas pessoas sem rosto não consegue calorias o suficiente para sobreviver! Não caçam, plantam, colhem, pescam. Apenas deitam, sem forças, esmagadas pelo peso de sete bilhões de pessoas preocupadas com pouco mais do que o próprio umbigo, destroçadas pelo capitalismo e ignoradas pelo socialismo, tiveram o azar de nascer em um mundo que não lhes permitiu lutar. Ou caçar. Ou plantar. E o pior é que enquanto escrevo a carta-manifesto que você lê, espero meu disco de vitamina C terminar de diluir. E eu nem preciso dele. Tenho laranjas na geladeira e vou chupá-las mais tarde. Além do mais, não tenho câncer, então fico atrás de muitas pessoas na fila de reclamações.
Enquanto pessoas morrem de fome, nosso continente sofre com a obesidade. Mais pessoas morrem por excesso de comida do que por falta desta. Pare um pouco e pense nisso. Nós temos penicilina! Eu peguei síflis de uma prostituta quando tinha dezenove anos e tenho orgulho disso. Era um rito de passagem e criou importante laços com meu pai. Deveria estar morto há muito tempo, deformado pela doença francesa. Mas aqui estou. E com a pressão de meu sangue boa como a de uma criança. Você pode entrar em contato com qualquer pessoa hoje, precisando de pouco mais do que alguns cliques, pode fazer as compras pela internet, agendar dentista, médico, manicure. Qualquer coisa. O mundo está ao seu dispor, vinte e quatro horas por dia e, por causa disso, você provavelmente precisa sair da mesa apenas para correr até a academia por causa das calorias extras que você consumiu. Sua barriga é flácida, os músculos diminutos. Toda sua preocupação gira ao redor do nível de bateria do seu celular, mais inteligente que sua prole. Você é gordo, há tanta comida disponível que você consegue acumular gordura, caramba.
Hoje eu escutei uma enfermeira falando sobre os pacientes dizem no leito de morte. É um momento terrível e belo, ao mesmo tempo. Estive no leito de morte de muitas pessoas queridas e sempre foi algo doce e amargo. O desespero de uma longa doença chegando ao fim, quando o corpo está cansado e já entregou os pontos. Quando tudo foi dito e apenas o alívio está no futuro. Mas fica a dor, a saudade, a ausência. Um momento que define a paz para aqueles que se vão, que verdadeiramente aceitaram a partida, mas que machuca a quem não a aceitou. A enfermeira disse que sempre escuta as últimas palavras daqueles que estão morrendo sem a família ao redor e relatou alguns casos para as colegas. Eu fingi estar escolhendo um refrigerante numa máquina enquanto escutava a conversa. Há quem gostaria de ter trabalhado menos. Eu tirei minha sobrevivência daquilo que gostava e até hoje volto para o mar e lanço a linha na água; talvez algum dia desse o mar se revele meu eterno túmulo. Nada melhor para mim, uma morte salgada para uma vida vivida dentro de um barco. Outros dizem que gostaria de ter o próprio caminho ou que gostaria de ter mantido as amizades.
Bem, as pessoas se perdem algumas vezes. Mas na maioria do caso, um pouco menos de putaria e frescura seria o necessário. É o que acho. De novo, com poucos cliques você pode entrar em contato com seus amigos, novos e antigos. Não me venha chorar como uma garota. Junte o que há de orgulho e respeito dentro dessa casca que você chama de corpo e fale com seus amigos ou siga o seu caminho.
Vejo que minha carta não faz mais sentido. Poderia usar minha idade como desculpa, mas não. Estou mais lúcido do que gostaria de estar. Minhas palavras chegam desconexas pois são reflexão desse mundo em que vivemos, onde morremos cedo demais porque comemos em exagero, porque deixamos de nos movimentar pois vivemos diante de uma tela, onde não olhamos para os problemas dos outros pois estamos preocupados em conseguir mais atenção no facebook. O lugar em que morremos por tirar foto do velocímetro do carro, por digitar texto como animais irracionais em um aparelho enquanto dirigimos. Mais lúcido do que queria, repito.
É difícil controlar a fúria que carrego no estômago, que queima como o fogo de um dragão, como a fornalha do Titanic um dia queimou. Isso tudo porque vivo além do que deveria. Porque há crianças com câncer nos hospitais de todo mundo. É uma merda.
Se você ainda está lendo, peço desculpas: são palavras de um velho, um fantasma que ainda tem um corpo. Sou anacrônico e estou sendo apagado aos poucos pelo tempo. Nada tento provar com essas linhas, nada quero mudar em sua vida. Escolha seu caminho, cometa seus erros e coloque o máximo de força em seus punhos. As linhas que leu, e que quase chegam a um fim, são os fragmentos de meu pensamento; o entender do mundo vindo de um velho que nada mais entende.
Se você está lendo isso é porque eu estou morto. Mas não fique chateado por mim, bom rapaz. Eu já estou morto há tempos. Meu coração se transformou em poeira. Há poeira em meus pulmões e onde antes havia simpatia e compaixão.
Uma vez que perdemos a compaixão, meu caro, é melhor deitar e morrer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário