sexta-feira, 31 de maio de 2013

Espólios de Vlad

Vlad andou pelas muralhas do castelo. Gotas de chuva fina molhavam a seda dourada exaustivamente costurada. O homem andava a passos largos e apressados, atravessando as fileiras de homens mortos sem perder um batimento cardíaco diante dos horrores ao redor. Do céu, a Lua derrama uma luz prateada sobre as árvores que se erguiam ao redor. Tentando acompanhar os passos de seu senhor, um soldado tentava segurar a repulsa do que via.
“Eles já estão prontos?” A voz de Vlad era profunda, rouca. Naquele momento, havia um tom de diversão e curiosidade quase infantil. Todos que escutaram aquelas palavras sentiram um dedo frio percorrendo a espinha.
Eles, pensou o soldado, evitando tropeçar nos corpos desmembrados que jaziam no caminho. Eles, simples assim? Qual demônio é capaz de atrocidades sem fim? Pudesse eu voltar para meus dias de criança e ficar longe dos horrores dos quais tive de tomar parte, seria um homem de sorte. Deus, ó Deus, ajude minha condenada alma a transcender, ajude-me, meu Senhor, a derrotar a sombra que caminha no dia. Ajude-me a enterrar minha lâmina justiceira no coração desta criatura maligna, Senhor. Dê-me forças quando o momento chegar. “Sim, Majestade. Estão… prontos”, respondeu firme.
Vlad sorriu em resposta e lambeu os lábios. Em sua cintura, uma adaga balançava ao ritmo dos passos apressados. Raramente um dia se passava sem que olhares gananciosos encarassem o enorme rubi encrustado no pomo da arma. Ele se divertia com o brilho no olhar de seus homens e havia prometido a pedra para aquele que conseguisse passar pela sua prontidão afiada e tocasse na jóia vermelha. Metade de sua tropa contava menos de dez dedos; alguns tentavam mais de uma vez tocar na pedra e contavam, igualmente, uma cabeça menos. Vlad respeitava a ganância: desgraçado é o homem que ignora um artefato como aquele, que traria riquezas para gerações incontáveis de sua família, mas desprezava a idiotice. Aqueles homens não tinham espaço em suas fileiras.
Atravessaram rapidamente o que restava da extensão da construção castelar e chegaram aos portões protegidos por grossas toras, todas fixadas por placas de metal e seguras por caldeirões de óleo quente, prontos para serem derramados sobre qualquer exército tolo o suficiente para cercar o temeroso Vlad.
Nas mediações, uma floresta começava abruptamente, cortando a clareira onde as fortificações foram levantadas com o sangue de escravos. Vlad olhou, satisfeito, para as centenas de cruzes que se espalhavam. Formavam uma floresta espetacular, todas os trocos cortados e trabalhados pelos homens, formando cruzes e estacas. Em cada árvore plantada por Vlad, um corpo pendia, pendurado pelos membros ou empalados até o começo da caixa torácica. Em uma das cruzes, um homem loiro pendia pregado pelas mãos e pés. Este era recém plantado, uma mudinha ainda. Chorava copiosamente, clamando por perdão e confesso arrependimento; mentiras, Vlad bem sabia, provocadas pelos seus métodos perspicazes para suprimir as idéias revoltosas dos camponeses que residiam em seu reino. Vlad, o Empalado. Usava o nome com orgulho e se esforçava para fazer jus a ele. Cunhara a fama através de atrocidades sem igual, formara uma imagem que era usada pelas mães na hora de assustar crianças. Pelos quatro cantos do mundo, o Empalador vagava pela escuridão, espalhando dor e miséria com o uso de poderes misteriosos e macabros.
O homem crucificado derramava lágrimas que corriam o rosto e se misturavam no sangue seco, encrustado no pescoço torturado. Conforme havia comandado, as tripas do homem haviam sido retiradas cuidadosamente por uma pequena incisão, evitando a morte quase imediata da vítima. Logo os corvos virão banquetear-se e o quadro poderá ser pintado.
Dois corpos para esquerda, Vlad encontrou uma mulher empalada cruelmente. Ainda gemia e uma poça de sangue se espalhava ao redor, juntado pedaços de ossos e fezes. “O que ela fez?”
O soldados olhou para a imagem viceral e sentiu o pão preto que comera há pouco escalar em sua garganta. “Adultério, Majestade.”
“Ótimo. Isso mandará uma mensagem para qualquer porca com pensamentos impuros. Corte a madeira na base e a exponha em todas as cidades por uma semana. Quero seus ossos de volta.”
“Sim, Majestade.”
O soldado deu um sutil sinal para outros dois homens e em questão de segundos a madeira estava sendo serrada. A mulher voltou a chorar pela dor provocada na vibração da madeira.
Andaram por mais alguns minutos, encontrando velhos, crianças, mulheres e estrangeiros submissos aos mais ardilosos tratamentos. Vlad parou novamente diante de uma criança amarrada em uma árvore. “Meu cálice”, estendeu a mão para o soldado e esperou pelo objeto. Sentiu o peso do ouro entre seus dedos e retirou a adaga de sua cintura. Os soldados sabiam o que viriam em seguida e buscaram entrar no estado de torpor mental que se tornara em lugar comum para qualquer um da guarda real, uma artimanha necessária para conservar a sanidade. Vlad, o Vampiro. Eis um novo nome para o Empalador. O Vampiro da Noite. O Homem que Bebia Sangue. Portando o cálice e a adaga, cujo rubi reluzia na luz da lua, Vlad surpreendeu os observadores e caminhou até o soldado que estava em seu serviço naquele momento, enterrando a lâmina profundamente em seu estômago. O homem sentiu um jorro quente partindo do ventre e olhou, confuso, para baixo, molhando os dedos no próprio sangue. Vlad encostou o cálice na cintura do soldado e deixou o líquido vermelho acumular. “Você acha que não entenderia suas intenções no olhar, cão? Seu corpo transbordava repulsa, seus movimentos transpiravam traição. Você não é melhor do que eles”, fez um arco com a mão que segurava a arma e indicou a floresta morta, “você agora será plantado em meu jardim.”
O soldado juntou o que lhe restava de forças e esticou uma das mãos, tocando na pedra preciosa da adaga. Perfeito, ele pensou pouco antes de mergulhar em um mundo escuro, agora eu sou rico.
A imagem congelou-se de repente.
Duas barras amarelas tomaram conta no canto da televisão, mostrando os dedos estáticos tocando a jóia, e Jorge se esticou para pegar mais pipoca e refrigerante.
“Fique vendo agora, Jorge, o cara vai ser crucificado, mas ele será resgatado e vai matar o Vlad! Quando você acha que ele morreu, bam! Ele vem e mata todos os cara maus. Cara, a cena final é espetacular, principalmente quando o Vlad acaba empalado e…”

“Porra, cara. Spoiler é maldade. Assim não, poxa. Isso é crueldade.” 

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Os vinte anos do cruel

Há vinte anos, o roqueiro brasileiro Zeike Good lançava um dos discos mais emblemáticos da década de oitenta. Influência para diversas bandas do rock paulista, mesmo longe do sucesso público, El Cru, foi o segundo álbum do músico, lhe dando o status em que até hoje é lembrado: um homem mal amado.

Composto em vinte e seis dias, o título que parece remeter-se a uma expressão hispânica é apenas uma troca das sílabas da palavra Cruel. Nas palavras do autor, uma anotação lida ao contrário pareceu mais sonora do que o título inicialmente pensado para a obra.

As doze canções que compõe o álbum formam um enredo sobre a perda amorosa. Good separou-se após um relacionamento de três anos e, repleto de amargura e raiva, dedicou um álbum para sua ex-amada sem deixar de lado a língua ferina. A musa não é poupada em nenhum momento, sendo desconstruída a cada canção com maciças doses de violência verbal, compostas de maneira poética e bem equilibrada entre a desilusão e a ironia.

Abrindo o disco, Eu Sei o Que Fiz é atestado de mea culpa do cantor. Good assume seus erros compartilhando a mesma situação da amada que o deixou. Expõe seu lado grotesco para, equilibrando com os defeitos dela, dar início a uma sessão que desmoronará cada aspecto da relação amorosa.

A falta de companheirismo, a relação desequilibrada, o sexismo de ambas as partes, nada é poupado. O título de cada canção evoca o estilo punk presente no rock da década mas, em contrapartida a um som agressivo, são as letras afiadas que provocam incômodo. Good faz reverência ao estilo mas insere sua personalidade nas canções autorais. Fazendo de uma canção intitulada Vômito uma discussão as avessas em que se destaca a poesia de uma cena de amor realizada como discussão, que eclode no duelo dos solos de guitarra sem perder o vigor.

A força mantida pelo álbum ainda hoje gera a reflexão a respeito do momento depressivo em que vivia o cantor, responsável pela potência das canções. Good nunca teve o merecido reconhecimento no lançamento do disco e, após uma sequencia de outros álbuns sem fôlego, foi esquecido por grande parte do público e da mídia.

O relançamento comemorativo de vinte e anos de seu único álbum primordial demonstra como o espelho da arte necessita de elementos sensíveis para se conceber. Sem a perda inestimável do relacionamento, o disco nunca veria a luz.

Ainda hoje o cantor evita falar da ex-amada, acreditando que tudo o que poderia ser dito está presente nas doze faixas. O vocabulário em que se refere à moça demonstra o quão agressiva foi o término para o cantor. “Me pedem para dizer quem é ela, quem é ela, quem é ela, afinal? Nem mesmo eu soube nos três anos de relacionamento e o melhor que fiz foi esquecer dessa puta. E gosto de puta porque simboliza tudo que senti sobre ela. Não falo da boca para fora, é triste quando você descobre que não é exatamente você que ela admira e sim qualquer homem que esteja com o membro ereto”. Se depender do cantor, a polêmica não cessará tão cedo.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

crueldade

- Cara, você não cansa?

- Canso. Ô, como canso.

- Então por que não pára?

- E como poderia? A vida vai e vem e me incentiva, é ela que pinta um alvo na testa do dia, não eu.

- Tu só atira.

- Eu só atiro.

...

- Mas precisava também dar-lhe com o pau de macarrão na cabeça, meu irmão?

sábado, 25 de maio de 2013

boom

A última coisa que ouviu de Fiat foi para que tomasse cerveja. Muitas. Isso ajudaria no pós-coito da carona, dissera. "Como!?", mas bebeu.

O Clube explodiria. No meio tempo, de todo modo, Anselmo e Fiat conseguiriam esticar o dedão pro universo.

Do outro lado do planeta, o lado que explodiu primeiro, Sefod esticou o dedo do meio ao raio da morte. Suas três cabeças sorriam.

...

- Fiat, onde estava este texto?, perguntou Anselmo, já entrados no bucho da nave.

- Este? Aqui. Sempre esteve. Mas coberto por uma toalha, claro. Leitores são seres vorazes, mas muito estúpidos. São capazes de ler qualquer coisa, mas só vêem o que estiver grafado em letras garrafais. Vorazes, mas incrivelmente estúpidos.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Como permanecer vivo hoje e evitar não estar vivo amanhã (Ou: O que aprendi lendo o Guia).


DON'T PANIC

E carregue sempre uma toalha com você, costumamos nos esquecer de como elas são úteis.
Aprenda a realizar perguntas corretamente. Ou as respostas não serão vazias.
Visite os Fjords, eles ganharam um prêmio intergalático. Antes que eles sejam destruídos para dar espaço para vias rápidas.
Mas, principalmente,

DON´T PANIC

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A Garota Que Não Conhecia o Guia



Para Karina Audi


Marcaram o primeiro encontro nas vésperas das férias escolares. Quando recorda a história, não se lembra o que vestiu, tamanho o nervosismo. Lembra que se olhou uma última vez no espelho após ela tocar o interfone lhe dizendo: oi, sou eu. Frase que o fez sorrir pela maneira como ela se anunciava. Eu, quem?, pensou. Mas sabia que era a garota, não esperava mais ninguém.

Percebia que embora a sequência dos acontecimentos fosse evidente, não saberia descrevê-los por completo. Tudo que via era pequenos flashes: o caminho até a sorveteria em que brincou com o sobrenome dela, o mesmo de uma loja local. O fio de conversa que conseguiram manter durante todo o trajeto, não dando espaço ao silêncio esmagador. A conversa na sorveteria sobre filmes, literatura, seriados e todo o blá blá blá de um nerd que sabia o nome de toda a equipe do homem morcego e falas completas do primeiro Duro de Matar.

Ele gostava da maneira como ela lhe ouvia e, atenta aos fatos, pontuava suas opiniões em meio a suas frases repleta de referências. Frases que hoje lhe fazem pensar, deus, como ela não saiu correndo dali? Imagina a cena pelo olhos dela, lhe perguntando o que a fez permanecer ali.

Quando ela lhe disse, não, não li, em resposta à pergunta você já leu o Guia do Mochileiro das Galáxias?, ele soltou o primeiro olhar enviesado da noite. Era um simulacro incrédulo de raiva para fazê-la rir. Subiu seu tom de voz perguntando-lhe como não e versou por cinco minutos aproximados sobre como o livro de Douglas Adams poderia ser considerada a bíblia sagrada. 

A conversa prosseguiu após o sorvete e depois do aviso da dona do estabelecimento de que fechariam em quinze minutos. Foram caminhando até suas casas. Ao chegar na frente de seu prédio, hesitou. Perguntou se poderia acompanhá-la até sua casa. Em parte, prezando a segurança, em outra porque não gostaria de abandoná-la. Pediu que aguardasse um momento e subiu para seu apartamento. Distraiu-se no espelho, ajeitando um fio de cabelo que insistia em seu rosto. Prestes a trancar a porta, lembrou-se do porquê fora a casa. Foi até a estante, retirou um de seus livros com cuidado, colocando-o na mochila. E saiu.

Passaram a noite em claro conversando e trocando beijos. Amanhecia e, naquele mesmo dia, eles voltariam para suas cidades para as férias. Sem querer, guardavam uma surpresa um para o outro. Ela lhe deu uma foto, para você lembrar de mim. Ele, abrindo a mochila, retirou cuidadosamente seu exemplar do Guia do Mochileiro das Galáxias e entregou a ela. Para reparar esse terrível erro em sua conduta nerd, disse.

Se beijaram e se despediram. Tanto fazia se haveria sol ou chuva naquele dia.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Querida Margaret; Somme, 1916.


As balas passavam por nós como abelhas furiosas. Elas voavam sobre nossas cabeças, prontas para arrancar o cérebro das caixolas no caso de um movimento estúpido.
Estávamos atolados na lama, eu e um homem magricela, Osbart Harpert. Osbart era um cara legal, desses que a gente esbarra na fila do pão e acaba convidando para o jantar. Depois é aquela correria, para comprar mais carne, gelar a bebida e deixar as crianças limpas e trocadas, você sabe, construir da baderna a impressão de uma família normal. E foi justamente isso que fiz quando encontrei Osbart em, quem diria, uma fila para comprar pão.
Foram dias estranhos, aqueles que passei de volta com minha família; jogue um homem e uma arma numa trincheira fétida por algumas semanas e tente ficar surpreso quando ele esquecer o significado de carinho e conforto. O conforto me deixa desconfortável, usando um péssimo trocadilho. Eu já não era mais parte daquele mundo de ternura e respeito. Sentia-me estranho acima do solo; totalmente despido por estar longe da proteção da trincheira. Não havia gases venenosos, eu não tinha de respirar em pequenos soluços pelo ar viciado de uma máscara, não havia necessidade de afiar minha baioneta, ou procurar por outra mais leve para matar com mais facilidade. O toque de Margaret… a sensação de seu corpo ao lado do meu na calada da noite, confundia meus pensamentos. Para variar, havia um corpo quente ao meu lado e a cama macia lutava contra as lembranças da terra dura e cheia de raízes; o teto me protegia dos elementos e lençóis de algodão roçavam contra minhas pernas despidas, um contraste agudo quando me pegava pensando na lama de algum rio fedorento da França. Somme. Eu prometi cuspir cada vez que repetisse esse nome amaldiçoado. Isso, é claro, se conseguir sair daqui. Mas estou divagando dentro da minha divagação. Quero que você entenda quão estranho é para um soldado que volta para o seio de sua família depois de alguns dias em batalha estar ao lado de uma pessoa respirando. Eu ficava horas observando a respiração profunda de Margaret. Os seios firmes baixavam e levantavam… baixavam e levantavam. Era fascinante estar tão perto da vida, longe da inacreditável bagunça que se formava quando algumas centenas de homens tentavam se matar. Quando eu me cansava, andava até a janela e acendia um cigarro, pensando nos meus irmãos de armas que ficaram para trás. Quantos estariam vivos quando eu voltasse? Quais deles teria respirado aquela porra amarela e queimado por dentro? Quantas cabeças estouradas pelas metralhadoras que ceifavam nossos homens? Mais algumas horas e eu descia, checava o bebê e ia para a cozinha, esquentava um pouco de água para tomar chá. Enquanto o fogo fazia sua mágica, eu normalmente retirava a escopeta Springfield de meu pai e a limpava. Só depois de ter o metal frio em minha mãos que o sono me levava, enquanto a água evaporava por inteiro até o fogo se apagar lentamente.
Margaret não me reconhecia mais e um desespero maior do que o do combate tomava conta do meu peito quando percebia que a distância entre nós crescia. Ela sorria de forma mecânica quando estava ao meu redor e uma tensão em seus ombros era construída durante as minhas licenças. Talvez ela estivesse vendo outro homem e como eu, o soldado de minha pátria, poderia culpá-la? Margaret, para começar, era linda e muitos homens passavam noites inteiras com mãos dentro da cueca, pensando no toque quente de minha esposa. Certeza de que eu voltaria havia, mas Margaret não tinha como saber se estaria sobre minhas próprias pernas ou em um caixote de madeira. E quem colocaria pão em nossa mesa? Osbart, o espantalho? Não, seria alguém cuja vida não fora maculada pela guerra.
A sensação de deslocamento se quebrou por inteiro quando vi o torso magro de Osbart na fila do pão. Jesus, qualquer homem podia contar facilmente as costelas saltadas por baixo do tecido barato. Em 1915 havíamos passado algum tempo juntos quando nosso pelotão se perdeu em uma floresta. Passamos a madrugada inteira em um silêncio tenso, esperando pelo ataque que nunca veio. Nesta ocasião eu e Harpert descobrimos que éramos da mesma cidade e ficamos conversando por alguns minutos, até o superior nos mandar calar a merda de nossas bocas. Mas fora o suficiente para um vínculo se formar entre nós. Éramos garotos de uma mesma casa, perdidos em uma floresta gelada em um país que não era a grande Pátria Mãe, matando e morrendo por uma ideologia que não nos pertencia. Na verdade, éramos muitos de uma mesma cidade naquela floresta, alguns do mesmo bairro e, pelos céus, dois irmãos. Não é muito inteligente, se você pensar um pouco, colocar um punhado de meninos de uma mesma família para o abate. Se houvesse alguma inteligência por parte de algum governo, se você pensar um pouco mais, não estaríamos naquele lugar. O sol nasceu e achamos nosso caminho para fora daquela mata congelada. Vivos para morrer em outra ocasião.
Quando o vi naquela fila, parecia que o resto da imagem estava borrada e apenas em sua figura magra havia nitidez. Com ele por perto, eu não estava mais deslocado, era a cidade em paz que se encontrava no lugar errado. Na manhã que nos encontramos na fila do pão, um pouco do que sentia pelo homem multiplicou-se como mágica e na mesma noite ele se sentava em minha mesa, conversando animado com minha esposa, partindo o pão seco, engolindo carne enlatada e bebendo de meu vinho. Conversamos até o sol nascer e além, falamos sobre o preço absurdo do pão - repetidas vezes duro e mofado - e de como os velhos nos viam como soldados idealizados, juventude destinada a pagar pela paz da cidade e do país. Falamos sobre nossos companheiros, alguns mortos, outros amputados, todos destruídos. Lembramos daquela noite na floresta; fizemos uma promessa de visitar a mãe dos irmãos que morreram dois dias depois, por conta de uma granada defeituosa. Desgraça para mais de uma geração. Por fim, Osbart se levantou e disse que tinha de voltar para a casa, rindo o sorriso bobo dos bêbados. Ele se foi, cambaleando para um lar vazio, onde todos aqueles que amava estavam enterrados no pequeno jardim, levados pela fome generalizada.
Duas semanas depois fomos despachados para a Frente e então veio o Somme. François LeVerud, um francês arrogante que estava conosco há mais de uma estação, dizia, em julho daquele ano, que tinha conhecimento do alto escalão e que logo estaríamos indo para o rio. “Os russos vão atacar”, ele dizia com aquele nariz fino empinado, como se a informação privilegiada o tornasse melhor do que o resto dos pobres coitados que o rodeavam, “e os italianos também. Vamos fazer essas frauleins chorarem, rapazes.” As batalhas no Somme foram - são - cruéis, eu te digo. Oxford, o soldado mais calado que já conheci, sempre com um livro nas mãos, caiu na primeira semana. Depois dele foram os rapazes de Cambridge e Liverpool. Um por um, todos os meus amigos morreram. Um buraco cavado na terra sanguinolenta do Somme não oferece abrigo contra um canhão de oito polegadas, no final das contas. Um por um, consegue imaginar? O próprio François foi mandado para casa depois de perder a visão por causa do Gás Mostarda.
Outros chegaram no lugar deles, é claro. Rostos jovens, olhos assustados e sem brilho. Garotos que cheiravam ao leite das tetas brancas de suas mães, com poucas semanas de treino. Eram os que mais gritavam quando as balas perfuravam suas barrigas. Uma visão aterradora se formava, quando eles tentavam recolher as tripas espalhadas pelo solo sujo. A guerra faz muito mais do que tornar homens em cadáveres: ela também transforma os vivos em sacos sem vida, um corpo vivo, mas sem vida em si. Um coração que bate no vazio. Eis o que sou: vejo, falo, bebo, respiro, evacuo e me masturbo, mas não sinto nada. Foi como se cada bala zunindo tivesse matado uma pequena parte do marido e pai que era há apenas um punhado de anos.
As balas passavam por nós como abelhas furiosas. Já estávamos no mesmo buraco, feito por uma das bombas alemãs, por mais de quatro horas, eu e Osbart. Sentado onde estava, imóvel, eu olhava para o antigo companheiro, para o homem com quem dividi incontáveis refeições, algumas com a ração insossa que o exército nos mandava, outras com provisões roubadas das casas francesas; uma delas na mesa em que comia com minha família. E lá estava ele, aquele rosto angular, com o bigode ralo e o nariz torto. Olhava com ternura para o corpo de Osbart, tentando ignorar as partes de seu cérebro que escapavam pelo buraco em sua nuca. Os olhos de Osbart me encaravam de volta. Notei então que a falta de brilho em seu olhar não se diferenciava muito do meu. Eu sei, sussurrei para o defunto, também sou como ti. Já pagamos Caronte, bravo amigo, agora só nos resta fazer a travessia.
Um sentimento começou a tomar conta de mim, forte a avassalador como as nevascas que atingiam a Escócia. Eu sentia inveja de Osbart. Ele nada mais sentia, nada o incomodava naquele instante. Meias molhadas não perturbam os mortos. Fome, frio, medo, angústia… Osbart estava privado de todas as emoções que se acumulavam em meus nervos. Os olhos de Osbart sorriam em zombaria pura. Ei, estou livre camarada, eles diziam.
Chutei seus pés sem vida, extravasando parte da minha ira. Ele não tinha mais ninguém, podia partir sem deixar para trás aqueles que dependiam de seus músculos para colocar comida na mesa; corria livre pelo mundo. Osbart Harpert estava enterrado no jardim de sua casa há muitos anos, vivia apenas para cumprir seu papel no teatro de batalhas, essa era a verdade. E de todos os sentimentos que um homem podia sentir, escolhi a inveja. Inveja de quem ainda vive em desgraça. Uma inveja cega e egoísta. “Veja, estou em paz”, ele dizia.
“Cale essa boca imunda, seu rato. Eu não posso simplesmente levantar e morrer aqui, preciso ver Margaret, ao menos uma vez… sentir seus lábios uma última noite. Preciso ver minha criança crescer!”
“Para que?”, perguntavam aqueles olhos irônicos. “Ver seu menino crescer para morrer em outra guerra que ele não queria lutar? Fique em paz comigo, companheiro. Erga rapidamente a cabeça. Só um pouquinho, como aqueles maricas que levantam a mão com um cigarro aceso para fora das trincheiras, para serem mandados para casa com uma mão inútil, mas com vida e alegria em seus corações.”
Eu não posso, eu não posso, eu não posso, eu não posso.
Permaneci em posição fetal, escutando a voz de meu amigo morto até que os primeiros raios do sol quebraram a escuridão e o céu ficou tão vermelho quanto o sangue que tingia o Somme. Meus rapazes enxergaram as cores que eu vestia e disparam em grosso calibre contra os alemães para que eu pudesse me arrastar até a segurança falsa da trincheira. Antes de sair do buraco em que estava, peguei as botas novas de Harpert e a baioneta que ele trouxera de nossa última licença, mais afiada e leve do que a minha. Aos menos essa inveja eu não teria de suportar por mais tempo.
Como fui parar naquele buraco? Eu não conseguia me lembrar. Quando Osbart havia morrido? Não saberia responder.
Eu vivi para morrer em outra ocasião.
Depois da morte de Osbart, ouço o sorriso mudo de seus olhos assombrando meus sonhos.
A cada noite, sinto a inveja se enterrando em meu peito.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Around The Clock

Mais uma manhã comum, de uma quarta feira comum, de uma reunião semanal costumeira para balanço da semana anterior e eventuais análises de casos problemáticos na empresa. 

Eram seis, em uma mesa circular, com seus cafés recém saídos da máquina de expresso e os rostos ainda projetados no breve adormecer da noite anterior. Mesmo que todos, com a exceção do chefe, tentassem esconder a sonolência com maquiagem ou roupas alinhadas.

Ainda atrelada aos seus pensamentos, Camila fitava o rosto do chefe sem discernir ao certo suas palavras, pronunciadas em uma cadência longa e em tom baixo que mais relaxava-a, aproximando-se da vontade de apoiar os braços e a cabeça ali mesmo na mesa, do que lhe despertava. Levantou-se para retirar mais uma xícara de café da máquina.

O barulho dos grãos sendo moídos pelo processador incomodaram o chefe que interrompeu a fala fazendo a mulher enrubescer. Ela lhe deu um sorriso com todos os dentes, como quem pede desculpa, e voltou para a mesa. Quando seu despertar aconteceu.

Sentada na cadeira ao seu lado, Luciana, sua colega, apoiou-se em uma das mãos, direcionando a cabeça para o chefe. Seu punho direito, até então escondido pela manga cumprida, se revelou. Fazendo os olhos de Camila brilharem.

Era feito de metal em entalhes dourados e prateados. Aro pequeno, delicado, que a fez lembrar doces de confeitaria que, além de saborosos, são um deleite aos olhos. Mas o que lhe deu um arrepio em todo corpo foi o nome estampado no centro do marcador.

Era o relógio que Camila desejava há meses mas que não podia comprar por causa da dívida sempre infinda dos cartões de créditos. E lá estava ele, brilhante, admirável, lindo, no pulso de outra mulher que não ela. 

Cada movimento de Luciana era acompanhado pelos olhos ternos de Camila. Estava apaixonada. Durante tanto tempo havia desejado o relógio, mas pela primeira vez o via a olhos nus e ele se revelava mais do que perfeito do que as imagens que via nas revistas ou nas lojas virtuais.

O tempo se arrastou na hora seguinte e Camila pouco prestou atenção na reunião. Pensava na mudança que sua vida teria ao tê-lo em seu pulso, via-se ganhando uma promoção, escolhendo roupas que combinassem com o adorno mas, ao voltar a realidade, sabia que ainda não seria aquele mês que poderia arriscar uma prestação a longo prazo.

Quando a reunião acabou, ela olhou para o relógio da colega como se despedisse de uma paixão platônica. Deu um longo suspiro e, ao olhar em seus pulsos, riu ao ver apenas uma fita vermelha presa em um deles.

Aproveitou a hora do almoço para descer ao centro da cidade. Olhou as lojas de roupas como de costume e, em uma relojoaria, se encantou com o mesmo relógio visto anteriormente. Ali, com o reflexo do vidro, parecia mais pálido. Se eu tivesse dinheiro, pensou. 

Ao retornar para o trabalho, parou na banca de camelô que visitava quase todos os dias. Ocupava uma longa parede de uma loja desativada e a variedade vasta ia desde filmes piratas, bijouterias, até óculos de sol e relógios de grandes marcas a preços módicos que o vendedor garantia a originalidade.

E ali o viu. Entre outras marcas, sua pulseira de metal em prata e dourado, aro pequeno como um doce bem confeitado. Parecia tão real, idêntico ao que ela viu no pulso da colega que, quando percebeu, já estava com ele nas mãos, posando para um pequeno espelho que o vendedor tinha na loja improvisada. Resolveu leva-lo por trinta e cinco reais.

Colocou-o no pulso como se trajasse uma das joias da rainha, nunca pareceu tão altiva no trabalho, nunca tão carinhosa em saudar a todos erguendo a mão para um rápido aceno. Desejava que todos observassem a nova conquista.

Mas Camila ainda sentia-se entristecida. Estava com o relógio há quatro horas e tudo estava igual. Ninguém lhe perguntara a respeito. No fim do expediente, o chefe, despedindo-se, perguntou sobre o adorno.

Sentiu outro arrepio com a mesma intensidade daquela da manhã. Era o momento de mostrar ao chefe o requinte,  beleza, e de como ela, elegante, merecia muito mais na empresa.

- É muito bonito sim – lhe disse – mas a Luciana não tem um igual?

Foi por pouco, mas seu sorriso quase se desfez.

- Tem sim, mas – e aproximou-se brevemente dele, diminuindo a voz – o dela é falso, desses comprados em camelô. - o chefe assentiu, lhe deu aceno e foi caminhando para o estacionamento.

Ela sabia que havia contado uma mentira. Mas era uma mentira tão pequena que não significava nada. Não haveria de significar. Foi Luciana que se atreveu a comprar o relógio antes dela. Essa era a verdade. E, pensava, aquela sonsa bem que mereceu

14 de Maio de 2013

segunda-feira, 13 de maio de 2013

sei que pira

- Inveja do...

- Falo! Tá bom, Joaquim, eu falo. Que diabos, que coisa chata, por que você não para? Qual teu problema?Hein? Se acha uma estrela, ator principal, algo assim? Por que nada é pra mim, poss'saber? Por que pra você, sempre, as luzes todas, aplausos, as flores, toalha branca no camarim? É o fim da picada, Joaquim, é o fim. Eu falo. Falo que não aguento mais! Dividir o palco contigo é uma merda, uma merda, e não no sentido francês. É no bem brasileiro, mesmo, uma merda tremenda, bosta total, puta que pariu, viu? Mas tudo bem, somos contratados do Municipal, eles pagam meu salário então não falo mal de nada, nem de estar contigo. Arte é minha vida, mas lá é só serviço. Vou, bato ponto, saio, faço o que tenho que fazer, contigo ou sem, pra mim tanto faz. Tanto faz. Mas não preciso dividir a vida contigo também, não, preciso não. Não preciso mais. Que seja, já era. Fora. Estou fora. Agora. Pega as tuas coisas e vai embora, por favor, pega teu troféu de melhor ator, a placa de menção honrosa, a chave da cidade, o que quiser, hoje vou dormir na Paty. Amanhã, quando eu chegar, faz favor de ter ido embora. Pra nem voltar.

- Inveja do falo, coisa do Freud, moça impotente, péssima atriz. Vou. Vou feliz. Toma aqui, pega essa nota - é grande, basta - e paga a conta. Eu já parti.

- E quebre a perna. Filho da puta.

domingo, 12 de maio de 2013

Amor e outras delícias


Nessa semana temática, um autor convidado: Raphael Tarso.
Texto originalmente publicado em: http://tocadotarso.blogspot.com.br/

Uma noite eterna se arrastava enquanto da cama Alice olhava as estrelas imóveis na janela. Pensava sobre a vida, sobre a tinta do teto, sobre o som distante do mundo lá fora, enquanto, na parede oposta do abafado cômodo, Carlos a olhava com o carinho costumeiro. Ele era o motivo dela manter a sanidade nestes últimos anos, sua razão de viver, um ombro sempre disponível. Mesmo no escuro era possível ver seus traços generosos, bem definidos. Alice o encarava há alguns minutos em silêncio, admirando a pele bronzeada, os cabelos despenteados e jogados sobre o rosto, a boca entreaberta. Queria ir até ele e abraça-lo, dizer e demonstrar o quanto o amava. Foi quando sentiu em sua mão o anel dourado que anos atrás ganhara de Augusto. Sentiu o estômago embrulhar, não era remorso, tão pouco medo, já não sabia o que tanto lhe causava enjôos quando pensava no assunto. Carlos saiu das sombras e sentou na cama, era como se ele a acariciasse com seu sorriso.

 - Você está linda como sempre. Precisa ser forte, as coisas vão melhorar, um dia ele irá entender. Se a ama irá entender.
- Duvido muito, ele é louco, disse que prefere que um de nós morra. Tenho medo de que seja eu...

Alice deseja sentir o abraço do homem ao seu lado, mas ele levanta da cama e senta em um cadeira próxima sem sequer toca-la. Ela nunca entendeu esta distância que ele mantinha. Sem beijos, abraços, toques, nada, apenas olhares, elogios e insinuações. Uma lágrima caiu sobre sua mão, não aceitava a situação.

- Por que não me abraça? Por que não me toca? Sabe o que sinto, sabe o que quero. Então por que?
- Da mesma forma você sabe que não podemos, que é impossível. - disse ele.
- Odeio essa situação, odeio tudo isso...
- Por mais linda que fique chorando, por favor, não chore, a vida é assim. Temos de nos virar da melhor maneira possível, porém há coisas que não podem ser mudadas, precisamos aceitar e seguir em frente.

Os olhos castanhos transbordavam, apertava o peito tentando fazer a dor passar. Inútil. Ela mordeu o lábio e lembrou quando viu Augusto pela primeira vez, um homem forte, alto, muito bonito, extremamente educado e sedutor. Maldito mentiroso, descobriu. Virou o rosto para Carlos. Os dois se olharam, se aproximaram e, então, ouviram passos rápidos vindo do corredor logo antes da porta se abrir com um estrondo.

- Meu amor! - disse um homem entrando pela porta, sem obter resposta. - Seu silêncio me dói, sabe disso, por favor, fale comigo. Até quando irá continuar com isso, Alice? Trago flores, meu amor, faço tudo para que seja feliz e não recebo nem uma palavra, acha justo?
- ...
- Que seja. Trouxe comida, vou deixar aqui, está quente. Sabe, hoje tenho ótimas notícias, arquivaram seu caso, não precisamos mais nos preocupar com nada, somos livres para viver, amor.

Incrédula fixou os olhos vidrados nele, as lágrimas caiam copiosamente.

- Não chore, meu anjo. É o que sempre sonhamos, não?

Alice não sabia sequer o que pensar, um turbilhão de vozes, imagens e sensações congestionava seus pensamentos, sentiu que ia desmaiar. Abaixou a cabeça entre as pernas até a luz voltar ao seu mundo.

- Está tudo bem, amor? A notícia foi repentina eu sei, desculpe por não prepara-la. Farei assim, amanhã irei trocar o quadro da janela! Que tal um dia ensolarado? Já deve estar cansada das estrelas! - riu.

Ela não respondia, mal ouvia a voz de Augusto, tudo parecia leve, fantasmagórico. Ele falou algo mais, entretanto só viu a boca do homem se mexendo, não havia qualquer som, só um zumbido forte e agudo. Quando o mundo parou de girar ele já estava na porta.

- ... certo? Não quero fazer isso, mas não é normal. Então pare de agir como se houvesse alguém aqui com você, parece uma louca e isso não me agrada, amor. Vou providenciar móveis novos, pintar as paredes, também quero pensar em um modo para que não precise das correntes. Seus pais podem ter desistido de você, mas eu não. Até amanhã. Tome o remédio, este porão as vezes é úmido.

E fechou a porta.



sexta-feira, 10 de maio de 2013

Marte não pede por óculos (2)

Primeira parte: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/2013/05/marte-nao-pede-por-oculos-1.html


Harry fechou os olhos e controlou os impulsos violentos que procuravam o controle de suas ações. “Brenda, querida, não podemos olhar para trás o tempo todo, as coisas vão melhorar, você vai ver. Estou entrando no último quarto do livro e você sabe o quanto escrevo rápido nesses finais. Está tudo pronto, o cenário já está montado, as pessoas sentadas do outro lado da cortina vermelha… tudo que preciso fazer é colocar as palavras certas nas bocas das pessoas e entregar um final memorável”, Brenda notou com um certo asco o tom condescende de Harry e teve vontade de jogar em seu rosto o que lhe sobrava de vinho. Tomou-o no entanto, não iria desperdiçar uma boa garrafa daquele jeito, não com aquele homem.
“Seus livros são…”, parou novamente.
“São o quê, brenda?” Ela olhou para longo, ignorando os olhos opacos do escritor. “Vamos, o que você ia dizer sobre meus livros?”
“Eu não quero brigar, deixe estar.”
“Não, não vou deixar. O que você tem a dizer sobre meus livros, Brenda?”, cuspiu o substantivo entre lábios cerrados.
Brenda fechou o Murakami com um baque abafado. “Ok, porra. Seus livros são difíceis de engolir, você não arrisca em suas histórias, não inova. Seus livros não farão novos fãs, Harry. É isso, eis o que você tem: fãs que morrerão entre um livro e outro, até que seu nome não consiga mais vender a bosta de uma revista de fofocas. Então não me venha com essa merda de que tudo vai melhorar no próximo outono, não, vocês venderão o que sempre venderam, talvez menos, e a gente ainda vai continuar afundado até o pescoço nessa merda alemã!”
“Olha eu sei que foi cagada minha, mas eu te disse, você pode pular fora do barco quando quiser.” Arrependeu-se das palavras um momento antes delas saírem de sua boca, mas não conseguiu segurá-las. Odiava quando a tratava mal daquela maneira. Porra, você pode ser uma puta ingrata, às vezes, pensou em silêncio. Ele apertou a mão dela com delicadeza. “Desculpe, meu amor. Você… eu te devo tudo por ainda estar aqui, por não me abandonar. Não foi justo o que acabei de dizer.”
“Harry, o que estou tentando explicar é que seria muito errado apostar tudo que temos em um único cavalo…”
“Não há cavalo algum, meu amor. Não é uma aposta de risco. Por favor, acredito no meu trabalho!”
Ela suspirou. “Eu sinto falta disso”, disse.
“Disso o quê? Me humilhar? Tirar qualquer crédito profissional que tenho?”
“Chega, Harry, me desculpe. Não quis ofender. É que nossa situação financeira não estará boa para sempre e acho que vivemos em uma bolha utópica, isso não é bom. Esse livro, esse cara, ele me fez perceber o quanto estamos fechados um com o outro, amor. Quero viver como os diálogos desses livros, reais, verdadeiros, com algum significado! Uma conversa, olho no olho, nossos narizes quase encostando, a saliva voando pelos lados no meio dos berros.” Ela o encarava profundamente, agora em um olhar etílico. Brenda arquejava e Harry achou por um segundo que a mulher iria vomitar sobre a manta que a cobria ou em cima da flanela que usava. Ela abriu a boca, não para vomitar, mas para se livrar de um peso que esmagava seu peito há anos. “Por quanto tempo você a comeu?”
Ele soltou os dedos gelados da mulher e encarou o teto, soltando um grunhido carregado de ira. “Eu não vou fazer parte disso.”
“Sim, você irá”, respondeu. “Escute bem, seu filho de uma puta, se você quiser que eu continue presa nesse apartamento dentro da merda dessa cidade fedorenta, é melhor abrir essa boca inútil e começar a falar, eu preciso disso, entendeu? Preciso ter uma conversa verdadeira neste instante, sem ter medo de pisar em ovos, sem tatear em um labirinto de espinhos. Por quanto tempo vocês tiveram um caso?”
“Duas semanas”, disse com a cabeça apoiada nas duas mãos, cabelo caindo entre os dedos cravados no couro cabeludo. “Simplesmente aconteceu, não foi nada planejado.”
“Nada planejado por duas semanas?”
Ele não achou resposta para dar.
“O que vocês fizeram?”
“Oh, Brenda, qual é.”
“Esse seu caso destruiu nossas vidas, Harry. Eu quero saber dessas coisas.”
“Sem pisar em ovos, certo?” Ela concordou com um aceno da cabeça. “Fizemos muitas coisas, mais do que eu poderia repetir sem vomitar nos meus pés. Ela gostava de me… ela gostava de sexo oral. Eu precisava de um escape, Brenda, era muita pressão, você não entende. Era isso ou enfiar um escopeta na minha boca e espalhar meu cérebro na parede da garagem. Eu nunca, nunca, nunca quis te machucar, não fiz isso par…”
“Você gostava dela?”
“Porra Brenda. Você e esses livros malucos.”
“Você gostava dela? Responda.”
“Não… sim, não sei.” Ficaram um tempo olhando para as estrelas no céu de Berlim. Era uma noite clara, a lua gorda lançava sobre aquela parte da Terra uma luz espectral e as rajadas de vento ficavam mais fortes e geladas. Logo teriam de entrar no apartamento a fim de não pegarem uma forte gripe. “Era uma mulher bonita, o que você quer escutar de mim? Ela era linda, sensual. Você não estava falando direito comigo, eu sei que estava insuportável naqueles dias, amor, mas tinha tanta coisa girando em minha cabeça… tantas preocupações e ansiedades. Transamos algumas vezes e mais nada. Bem, havia a coca, é claro. Mas não senti nada por ela, ou duvidei que te amava.”
Parecia que Brenda poderia socá-lo naquele instante. Harry sentiu-se um amontoado de clichês. O isolamento que ele próprio construiu no relacionamento, o eventual contato com sua secretária, deixar-se seduzir, pular naquele turbilhão sem retorno de pernas, braços, orgasmos e cocaína. Essa foi a primeira fase. A segunda era ainda mais previsível. Ele voltou para Brenda, arrependido, jurando amor incondicional dali pra frente e suas opções não eram melhores, ele podia apenas rezar para que ela o aceitasse de volta. Orar fora justamente a principal ocupação de Harry naquelas semanas seguintes à morte de Monique. Eles se trancaram em um hotel por dois dias e três noites, ela cheirou um caminhão do pó branco e teve um overdose fatal, apagam-se as luzes e o palco fica devastado pelo fim da peça. Os jornalistas, a vergonha, o escândalo. Ele foi para fora do país, esperar a poeira abaixar e voltar com um romance pronto para atingir as prateleiras, contornar a situação e trabalhar em sua imagem. Ele rezou para ficar longe da prisão. Rezou para não ser exilado do seio familiar. Mas suas rezas mais fervorosas eram pelo perdão de sua esposa. Brenda o aceitou de volta, o que mais poderia fazer? A menina fora estúpida o suficiente para cheirar mais pó em um só dia do que seu nariz encontrara a vida toda e Harry parecia sincero, afundado em um próprio tanque de medo, arrependimento e dor. Sim, ela o aceitaria de volta; sim, iria para a Alemanha, quem sabe seria um lugar bom para ela.
“Eu estou no meu limite, Harry. O livro acendeu algumas luzes na minha cabeça e acho que não tenho como ignorar o que foi iluminado. Estamos em uma encruzilhada, percebe a seriedade disso? Eu preciso saber, de verdade, se você está dentro do próprio jogo, seguindo as regras certas. Quero uma atualização do seu livro, quero que esteja sóbrio”, com um tapa jogou longe o resto de bourbon que ele segurava. “Quero minha vida de volta, você está pronto para devolvê-la?”
Ele olhou para as estrelas. Um ponto vermelho piscava no céu, brilhando como sempre. Por quanto tempo, ele não poderia dizer. Quem sabe mais tempo que a própria Terra. Imaginou-se de pé naquele ponto vermelho, com sorte um planeta rochoso. Naquele lugar ele não existia e tudo que fizera, todos seus erros, todas as pessoas que havia machucado não importavam. Alí ele podia novamente ser quem realmente era, alí poderia escrever com toda sua alma. Aquilo é Marte? Ou é Orion? Preciso ler mais sobre astronomia. Estava pronto para voltar e encarar o julgamento de todos? As pessoas amavam as histórias sobre decadência sexual regada à drogas e mortes, mas gostavam igualmente da escalada de volta ao topo? Brenda estaria esperando para refrescar seu corpo cansado uma vez terminada a escalada?
O escritor sentia o cheiro de vinho e bourbon. Retirou os óculos da face redonda e os entregou para a mulher ao seu lado. Sem a correção do vidro polido não podia ver as expressões de Brenda, era impossível prever a direção que estavam seguindo. Abriu a boca e deu a melhor resposta que poderia dar, a única que tinha, verdade seja dita. “Veja, eu limpei as lentes.”

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Marte não pede por óculos (1)


Estava sentado no escuro, iluminado apenas pela luz artificial do monitor ligado. Se você olhasse agora pela porta entreaberta, poderia ver o reflexo do que acontecia no computador nos óculos grossos que permaneciam no rosto do escritor - lentes riscadas e sebosas pelos dias de uso contínuo. Ele nunca lavava os óculos e isto a incomodava profundamente. Era engraçado. Possuía uma higiene pessoal primorosa, incluindo os centímetros de pele entre sua orelha e a nuca, terra de ninguém, esquecida por toda a humanidade, menos por ele. Mas não os óculos, nunca. As lentes ficavam esbranquiçadas, nojentas e a mulher se perguntava como ele conseguia enxergar a própria merda quando estava sentado na privada. “Eu não encaro minhas próprias fezes, mulher”, respondeu quando confrontado, “você está maluca?” Os óculos também acumulavam pele morta nas pernas da armação e duas vezes por semana ela retirava o instrumento enquanto ele dormia e os lavava na pia do banheiro. Gostava lavar os óculos por ele, sentia como se ele precisasse dela por perto, como se o caos fosse tomar conta sem sua presença na casa.
O que ela não sabia era que estava certa.
Ele escrevia com velocidade, não desgrudava os olhos das palavras que nasciam como mágica e sentia os olhos ardendo pela luz quase fictícia que iluminava o rosto. Cachos de cabelo caiam sobre a testa alongada e um copo cheio de bourbon descansava ao lado do teclado. Periodicamente ele levava o vidro à boca e sorvia da bebida, fazendo uma careta enquanto sentia a garganta e o estômago arderem. Harry, o escritor, retirou os óculos e pressionou ambos os olhos com dedos da mão esquerda, vendo pequenos pontos de luz mesmo com as pálpebras abaixadas. Porra, como eles ardiam. Talvez fosse hora de parar por hoje. Talvez ele devesse espremer mais uma ou duas páginas antes de procurar por Brenda. Talvez eu devesse limpar essa merda, pensou, encarando os as lentes sujas. Enxergo melhor sem eles, poxa. Esfregou-os na flanela que usava e, em rápidos movimentos circulares, jogou a gordura acumulada para os cantos da armação. Colocou os óculos contra a luz que entrava pela fresta na porta e notou Brenda na sacada do apartamento em uma imagem distorcida pelas lentes convexas. Ela tinha os cabelos castanhos presos em um coque e descansava em uma cadeira de vime. Estava linda sob a luz amarelada que emanava do globo acima. O nariz de Brenda era fino e arredondado, com suaves abas que limitavam as narinas; o queixo fino e pequenas covas nas bochechas se completavam em um estado quase perfeito de composição. Mas foram os olhos os culpados pelo amor de Harry. Brenda tinha, e ainda tem, os olhos mais enigmáticos que o experiente escritor havia visto. Sempre que sua mente divagava até o balcão do bar em que se conheceram, Harry via apenas os olhos da mulher na escuridão confusa, do jeito como apenas uma escuridão de bar podem ser, carregadas pelo fumo inebriante de dezenas de fumantes e o cheiro de bebida azeda na pedra grudenta do lugar. Eram pérolas, aqueles olhos amarelados, dois círculos de âmbar que haviam sugado sua alma, como os marinhos que se jogavam ao mar, hipnotizados pelo canto de sereias. Ele a estudou. Em uma mão, um cigarro já pela metade queimava, esquecido pelo livro aberto na outra mão. Não podia ler o título de onde estava, mas sabia que era um Murakami: Brenda experimentava uma fase profundamente marcada pelo autor japonês. Uma taça com vinho branco permanecia na mesa redonda ao seu lado. Uma visão perfeita, reconheceu Harry. A coluna de fumaça subia em colunas caóticas, construindo imagens que diferir-se-iam nas interpretações de cada pessoa. Naquele momento ele a amou com todo seu ser. Desejou ser melhor para ela, parar com a infantilidade de seus sentimentos egoístas, se abrir novamente para a mulher que aturava todas as merdas que ele tinha de jogar em alguém para manter a própria sanidade. Harry se detestou, odiou ser difícil, complicado… humano.
Deslizou suavemente a tela do computador e o fechou com um sonoro click. Andou, mais cambaleante do que julgava, até Brenda, sem esquecer o resto do bourbon no copo que agora estava firmemente preso em sua mão. Harry era especialmente cuidadoso com suas doses. “Noite fria”, ele disse enquanto encostava no parapeito, olhando a rua solitária abaixo. Vez ou outra um carro passava pelas esquinas em que moravam e eram como brinquedos, nada mais do que ilusões que o lembravam que o mundo continuava fora daquelas paredes e de seu livro. Tendia a esquecer do mundo real às vezes, refugiando nas infinitas possibilidades de sua arte diante da realidade entediante e impiedosa das outras pessoas. Odiava outras pessoas, aliás.
Brenda desviou o nariz do livro por um breve instante e o estudou com um leve sorriso no canto da boca. “Seja um amor e alcance aquela manta, por favor”, apontou o sofá da sala com a ponta vermelha da cigarro. Harry pegou uma manta verde de algodão e a lançou para Brenda. Um vento gelado soprava da sul e o cabelo do escritor dançava livremente. Ela puxou o pano até o meio de sua barriga e afundou na cadeira de leitura. “Sabe”, disse com a voz rouca, “esse cara realmente me pegou. Sinto como… eu não sei, como se no meio dessas histórias bizarras e personagens fodidos eu estivesse de fato aprendendo algo sobre o mundo. Como se o modo como penso mudasse um pouco mais a cada página.”
“Não se empolgue tanto, querida”, pescou um cigarro no maço de Brenda e o acendeu na quase-bituca que ela segurava com os longos dedos de pianistas. Harry amava aqueles dedos, sensuais, habilidosos. Brenda era uma mulher magra, cigarros e bebidas pareciam completar as sombras que lançava pela casa. Sombras que dançavam nas paredes. “Quando descobrimos um bom autor sempre passamos períodos de tempo que nenhum outro nome estampado em uma capa irá valer seu preço. Esse cara deve ter seus truques, mas logo ele será um nome para sua galeria, apenas isso, mais um nome entre gigantes.”
“Está com ciúmes”, roçava o pé nas nádegas de Harry, fazendo uma voz quase infantil. Harry olhou para trás e teve uma súbita vontade de fazer amor com ela ali mesmo, na sacada do pequeno apartamento, sob a vigília de uma lua cheia. “Você sabe quem é meu gigante favorito”, continuou a provocar.
Deu um leve tapa no pé da mulher e sentou na outra cadeira. Estavam separados apenas pela pequena mesa redonda. “Palhaça. Você entendeu o que eu quis dizer. Quando eu tinha… não mais do que doze anos, Stephen King era o melhor escritor do planeta e qualquer que discordasse de tal fato não passaria de um imbecil analfabeto. O mesmo aconteceu com Hemingway depois e uns anos mais tarde foi a vez do Kafka. Tolkien, Dostoyevsky, Bradbury, Dickens, LeHane… todos tiveram esse momento mágico de descoberta, querida. Eles foram os melhores.”
“Fitzgerald”, ela disse, folheando o livro. Deus, eu a teria agora mesmo, pensou. Mas não faria o gasto primeiro movimento que eventualmente os levariam para uma transa, não naquele momento. Brenda era provocante como todos os pecados reunidos em um só ato e quando conversavam sobre livro… bem, para Harry era como fornicar com palavras. Livros e Brenda, tudo que lhe dava tesão em apenas um lugar. Uma ótima noite.
Ele tragou e deixou a fumaça sair lentamente pelas narinas. “Fitzgerald. Meu Deus… foi um período estranho de minha vida, não?”
“O mais estranho de todos, meu Faulkner. Você andava como o imbecil do Gatsby o tempo todo, como se fosse um viajante do tempo perdido em minha casa.”
“Me deixei levar mais do que deveria, devo concordar.”
Ela terminou o cigarro e esmigalhou a bituca no cinzeiro de plástico. “Mas esse escritor japonês… é diferente, Harry. Os livros dele têm uma aura mágica, que agarra meu pensamentos mais íntimos e os enrola em um bastão e só para de espancar minha alma quando eu termino o último parágrafo, é assim. Os diálogos são de uma naturalidade brutal, chega a doer.” Harry esticou a mão e pegou os dedos compridos da mulher, acariciando-os com calma. Seu pênis doía, preso na calça jeans com a maior ereção das ultimas semanas. “Às vezes parece que eu sou a ficção e os livros que ele escreve são janelas para o mundo real. Eu só posso enxergar de verdade através deles.”
Não pôde deixar de sentir um leve ciúme pela empolgação de sua mulher. Os terror, por vezes apelativos e banais, livros de sedução comercial, era a zona de conforto de Harry e ele escrevia de forma segura dentro dos limites do estilo, utilizando-se de todos os clichês e frases de efeito que apareciam em seu caminho. Ele era um bom escritor, o tipo de cara que você acaba segurando em uma livraria e leva para casa sem pensar muito, devora a história em três ou quatro dias e esquece de tudo também três ou quatro dias depois. O que importava para seus editores era que Harry vendia; para Brenda era ver a felicidade do marido enquanto escrevia e o orgulho que sentia dos seus títulos. Mas ele queria algo além, queria provocar nas pessoas os sentimentos que o maldito japonês causava na mente da mulher perfeita que estava sentada ao seu lado. Para Harry, o mais importante era ter seus livros nas bibliotecas bem depois que ele estivesse morto, mas estava condenado a sentar junto com os escritores de segundo escalão, na turma dos que quase fizeram alguma diferença para a literatura. Na seqüencia de títulos, Harry sabia que as vendas caíam com velocidade regular e isso o preocupava, apesar dos panos quentes colocados pelos editores. O dinheiro era bom, por enquanto. Muito mais do que eles poderiam imaginar com as mais altas das esperanças, mas ele ainda se sentia como um fantasma do que poderia ser um bom escritor. Ele culpava o mercado, jogava em seus argumentos os agentes capitalistas em estado predatório; culpava Brenda, culpava a si mesmo. No íntimo sabia que não poderia culpar os fatores externos. Brenda não segurava seus dedos e escrevia os livros, uma letra por vez, não. Harry, e Harry apenas, era o culpado por toda aquela bagunça fodida.
Escolhera um gênero difícil, limitado quanto ao tópico do público alvo, mas achava que poderia ganhar um dinheiro sério com as vendas. O que eles tinham era por conta dos livros, uma verdade que deve ser logo dita, mas o pequeno apartamento em Berlim e o Smartcar momentaneamente esquecido do outro lado da rua eram os maiores bens do escritor e de sua mulher.
“Me fez pensar”, ela disse, séria. Os olhos estavam chegando naquele aspecto vidrado que ela sempre exibia quando bebia mais vinho do que seu sistema poderia processar em 24 horas.
“Desculpe?”
“Me fez pensar, eu disse. O livro. O livro me fez pensar.”
Engoliu em seco. “Fez pensar no quê, Brenda?”
“Em tudo, nas pessoas que passaram por minha vida… em nós, presos nessa merda de cidade por causa…”, deixou a frase morrer em pleno ar, uma granada lançada que não explodiu, mas caiu na areia fofa, esperando para detonar na menor das vibrações. 

Segunda parte: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/2013/05/marte-nao-pede-por-oculos-2.html

segunda-feira, 6 de maio de 2013

montra

- Vindo pra cá, na madrugada - orra, claro, são já quatro da manhã -, eu vi um casal sentado em frente à loja em Taquaranã, sabe? Claro que a loja tava fechada, mas a vitrine não tinha grade e uma luz azulzinha iluminava os produtos ali, as estatuinhas. Aham, estatuinhas. Era engraçado, uma série de degraus cobertos com pano dourado - parecia um altar de umbanda - e em cada um dos degraus um monte de imagenzinhas, pequenos santos, budinhas, cristo crucificado, cristo sorrindo, cristo curando o leproso. Tinha pra todo gosto, mesmo. E o casal lá, parado, um do lado do outro, sentados no banco em frente - que era tipo mureta - e olhando e olhando e olhando pra vitrine de luz azul, pros degraus pra umbanda à venda. Eram indianos, acho, ou paquistaneses. Ou de Bangladesh. Aliás, ontem mesmo eu tava andando pra casa e apareceu um rapaz indiano paquistanês que depois descobri ser bangladeshiano e ele queria saber o caminho pra minha casa. Não, bicho, pra um lugar na esquina de casa. Queria que eu dissesse o percurso do busão que ia dali pra lá, mas como eu não sabia, porque eu não dirijo, entrei no carro com ele e com outro muçulmano doido vesgo e com barbão sunita e fomos indo, aí sim que eu consegui explicar o caminho.  Mas o casal eu não sei, poderiam ser de qualquer lugar, até porque era tarde madrugada e a mulher tinha um lenço na cabeça - tava frio pra diaba essa noite, acho que agora esquentou - então eu não vi. O que eu vi, nos poucos segundos em que passava pela calçada atrás deles, atrás da vitrine, com a luz azul refletindo na lua, era que eles olhavam imóveis pros bonequinhos estátuas imagenzinhas de santos. Imóveis. Por alguns segundos, pelo menos, porque eu passei rápido, tava com pressa pra chegar aqui que eu tinha combinado um lance com Joana e já era tarde, como eu disse. Mas sei lá, na minha cabeça aquelas imagenzinhas olhavam de volta o casal e o casal olhava de ida as imagens e o tempo entre o vidro e os olhos estava parado, parado. Arrisco dizer - arrisco sim, que que eu tenho a perder? - que o tempo parou mesmo e continua lá, paradinho, prendendo o fôlego pra ver quem primeiro abandona a mirada. Cara! Saquei. Eles estavam brincando de "quem pisca primeiro" com as imagens. Meu deus! Tavam, tavam sim. Eles dois, provavelmente depois de uma briga, de um aborrecimento, de um aborto, da morte do sogro, de qualquer merda dessas, qualquer fato tenso, qualquer caso triste. Era isso! Estavam descontraindo. Lá, na vitrine, olhando jesus cristinho olhar pra eles. Tristes. Parados. Sorrindo.

A partir de hoje nós, aqui do Clube, voltamos a postar textos temáticos. A proposta já foi utilizada antes, logo no começo deste blog: a partir de um tema - um mote, uma sugestão -, todos os integrantes desenvolvem suas próprias ficções. O tema desta semana é "um casal".

sexta-feira, 3 de maio de 2013

As Brumas do Farol 12 - Final - "The Rain Song"

Assim para o prefácio, "A Lanterna", todo o Brumas é dedicado para Ana Eliza. Obrigado por tudo.
Link para todas as partes: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/search/label/Brumas


Paul ficou surpreendido com a pele quebradiça do homem que surgira do nada, do puro ar - era um órgão sem vida, translúcida e opaca. Estranho, estranho, estranho. Ele estava magro e o garoto podia contar os ossos distinguíveis, se quisesse. O garoto cogitou entregar um de seus doces para o homem, mas o Guia pareceu ler sua mente e o impediu.
“Você provavelmente iria matá-lo,” disse com uma voz grave, “o corpo dele não está pronto para tanto açúcar, garoto, o açúcar vai parar de vez o organismo deste homem. Vamos, vamos ajudá-lo a se levantar, acho que isso vai chacoalhar a poeira… ao menos um pouco.”
“Eles… eles estão soltos.” O homem barbudo começou a chorar como uma criança. Paul sentiu milhares de facas despedaçarem o seu coração. Era uma visão triste presenciar o estado deplorável do homem, completamente vulnerável e privado de forças; chorava copiosamente. Um choro de culpa. “Os Pe-pe-pesadelos…,” fungou um catarro amarelado que escapava das narinas ressecadas, “os Pesadelos estão soltos e é tudo culpa minha, por quebrar a lanterna. Eu quebrei a lanterna e machuquei o velho.” Lágrimas caíam no chão do Farol e Paul achou que o homem viraria um amontoado de pó depois de perder mais água. “Eles me prenderam e escaparam. Escaparam, vocês entendem? Eu os soltei!”
“Calma, calma. Não há nada que não possamos arrumar,” o Guia mudou a voz para um tom mais calmo. Eles sabiam que o desespero nos olhos do homem desmentiam as palavras calmas, mas o homem pareceu se acalmar de fato. Paul segurou um dos braços magros e o ajudou a sentar, encostado na lanterna do Farol.
O garoto então parou para olhar ao redor. Observou a beleza majestosa do Bosque, as árvores colossais que erguiam os galhos e folhas ao céu azul e límpido; pássaros exóticos mergulhavam entre a vegetação e voltavam com pequenos mamíferos nos bicos, aproveitando o largo campo de visão reconquistado. Havia magia naquele cenário, Paul tinha certeza, algo natural e antigo, enterrado na memória de culturas sem escrita, confundida por mitologia para as outras civilizações. Sentia uma estranha familiaridade, agora que a Bruma estava dissipada, uma nostalgia que tomava conta de seu coração, como se ele fosse parte daquele cenário, tão parecido com os mundos dos livros que lia escondido de seus pais. Duna, Terra Média, Nárnia, a cidade de Tanelorn e a Roda do Tempo… por que sinto que nada disso é apenas literatura? Acho… acho que sou parte do Bosque.
Um barulho cortou seus pensamentos e Paul virou a cabeça. Jimmy e Robert entraram pela pequena porta de metal e andaram até eles, analisando o cenário, alertas por causa da destruição do lugar.
“O Dragão?” Paul e o Guia perguntaram em perfeita sincronia.
“Não será mais um problema,” Robert respondeu. Cortou o passo que dava e desembainhou alguns centímetros da katana presa à sua cintura. “Quem é esse homem?”
“Este homem foi o que causou o caminho de vocês.” Ele achou uma posição mais confortável e enxugou as lágrimas que ainda caíam pela face angular. “O que vocês sabem sobre esse lugar?”
Paul sentou na frente do homem e respodeu: “Não muito. Um velho nos parou na volta da escola e aqui estamos. Tudo que precisávamos fazer era atravessar a Bruma com o Guia e recuperar o Fogo do Farol.” Olhou para a própria barriga. E agora eu sou o Farol, pensou, sentindo um sopro surreal no estômago.
“O velho achou vocês também. Ele é a chave da porta que impede o mundo como conhecemos de vazar para outras realidades, ele mantém cada sala fechada, cada mundo em seu próprio território. Assim as realidades não encostam umas nas outras, ficam em seu devido lugar, evitando catástrofes em escala inimaginável. Ao menos era o que ele fazia até todos nós esquecermos nossos papéis. Eu sou o Guardião… era o Guardião. Seguia meus dias em um trabalho massacrante, entediado e cego para quem era. Até que os sonhos começaram. Todas as noites eu sonhava com uma porta. Os lugares mudavam, quem eu era no sonho também mudava, mas sempre havia uma porta e ele teria de ser aberta. Antes de conseguir, toda santa noite, antes de conseguir abrir a porta, uma luz me tirava do sonho e eu acordava às duas ou três da manhã e não conseguia dormir mais. Isso começou a acumular dentro da minha paciência. As noites mal dormidas, a sensação de que alguém atrás da porta me chamava, clamava por socorro. Eu precisava espiar atrás da porta! Mas o velho com a lanterna na minha cara… eu pensava que ele era meu inimigo, meu obstáculo final… até o dia em que o encontrei no trem. O mesmo velho, vestido com o uniforme de sempre, portando a longa lanterna que me acordava noite após noite. Eu o ataquei e quebrei a lanterna.” Novas lágrimas molhavam suas bochechas. “Naquela noite eu abri a porta e soltei os Pesadelos no mundo.”
Normalmente, Paul desviaria daquele homem, tentando ao máximo ignorar sua existência. Ele podia ver a cena, voltando para casa com a mochila carregada de livros, formando um arco na calçada para ficar fora da área de alcance do bêbado barbudo sentado na calçada. Pelos céus, Paul provavelmente mudaria de calçada apenas para fugir do cheiro de urina. Mas naquele lugar ele era a peça central. “Como você adquiriu o conhecimento?” Quando ficava sério, Paul tendia a ser formal e ele acabava falando de vários modos, mas nunca como uma criança.
“Depois de um tempo no mundo dos Pesadelos tudo voltou em minha mente, claro como um quadro que esteve em uma sala escura esse tempo todo. Eu simplesmente acendi a luz, rapaz. Eu, você… todos nós. Nós somos parte do alicerce de toda a realidade, somos agentes deste universo, se preferir. O Guia tem uma função que apenas ele pode realizar. Ele encontra o caminho, porque seus olhos já viram mais de uma realidade e ele aprendeu a ver além dos obstáculos mundanos; você pode carregar o Fogo do Farol pois mantém a mesma natureza em qualquer realidade. Aquele garoto” - apontou para Jimmy - “é a porta que nos liga às Terra Distantes e o mundo do sonho pode nos levar para qualquer outra passagem. Cada um de nós carrega um papel único. E isso é verdade para cada um dos seres vivos. Tudo está ligado e para girar, o universo precisa de todas as peças. Cada uma delas. Quando uma cessa o movimento, tudo desmorona. E o nosso Escritor parou de escutar a voz, rapazes, ele está deixando nossa memória morrer. Pelo que entendi, e posso estar totalmente - totalmente - errado, o Escritor mantém a mágica fluindo. Nossos papéis são definidos por ele, nossos poderes melhorados por sua escrita e nosso caminho praticamente traçado. O problema é que ele parou de escrever. E um escritor somente pode ser chamado como tal quando escreve. Por isso nossas memórias se enfraqueceram e morreram. O velho tinha a lanterna, um lembrete de sua natureza e assim conservou suas tarefas. Mas eu… eu ignorei meu papel e fiz exatamente aquilo que deveria impedir.” Sua voz estava fraca e ele se cansava apenas por falar. “Quando fiquei preso no mundo dos Pesadelos, percorrendo um mundo escuro e vazio, gélido como uma noite no meio do inverno, eu vi novamente uma luz me guiando. O Farol. Vocês me tiraram de lá. E acho que é nosso dever prender novamente as abominações que libertei. Depois, precisamos fazer o escritor voltar a criar.”
Ficaram em silêncio absoluto. O Farol deveria ser a linha de chegada e significaria o fim da loucura, o fim do Bosque e o retorno para casa.
“Bem,” Robert quebrou o silêncio, “acho que sentiria falta da katana, de qualquer forma. Conte comigo.” Jimmy colocou a mão sobre um dos ombros do samurai, apoiando a decisão e pesando seu voto.
O Guia moveu a arma dentro do coldre. Sentir seu peso o acalmava. “De quantos Pesadelos estamos falando?”
“Eu não sei. Eu vi marinheiros escapando pela abertura que criei, frutos dos navios à deriva, de homens mortos pela inanição terrível quando os ventos pararam de soprar em suas velas; krakens, orcs, dragões, palhaços assassinos… o pesadelo de milhares de crianças… moscas gigantes… uma mulher que conseguia voltar no tempo… Eu realmente não sei quantos ou como encontrá-los.”
“Ou como pará-los.”
“Ou como pará-los,” concordou. “Vamos para as Terras Distantes. Lá poderei me curar mais rapidamente e vamos ter uma noção melhor de onde procurar. Só assim poderei reparar meu erro.”
“Vamos,” Paul concordou. Ele era o Fogo. Não poderia voltar para a Londres cinzenta. O garoto sentia que teria ataques de raiva e enjôos cada vez que olhasse pela janela e encontrasse o nevoeiro da capital inglesa. Não queria mais olhar para o céu escuro. Ele era, afinal, o Fogo do Farol.
O homem que vivia outra vida também não tinha escolha. O grupo precisava de sua habilidade de encontrar caminhos e os levar do ponto A para o ponto B. Ele já não tinha uma casa de verdade… sequer um mundo de verdade. Talvez fosse um caminho para casa. Talvez estivesse preso ao seu próprio pesadelo. Suspirou profundamente e atravessou Jimmy, entrando nas Terras Distantes.
Paul, Robert e o Guardião começaram a seguir o Guia. Apenas John permaneceu parado no lugar. Atagarasu disse que corvos são criaturas solitárias. E o garoto que era um pássaro começou a acreditar nas palavras do Corvo de três patas, uma pata para cada revelação, uma garra afiada para cada verdade que o machucava profundamente. John não iria com o grupo. Corvos eram criaturas solitárias, de fato.
Pela primeira vez, o pássaro pôde sentir os olhos de Jimmy. No Farol restava apenas os dois amigos e no olhar do Corvo um brilho de despedida.
Jimmy assentiu com a cabeça e desapareceu.
O Corvo bateu as asas e deixou o Bosque para trás.

Um sol fraco brilhava no céu, além do topo de algumas árvores. Em algum lugar, latidos de cachorros ecoavam e faziam com que pássaros disparassem rapidamente por todas as direções. Ele moveu os braços, queria acompanhar os animais que voavam livremente. Por todo seu corpo, pontos de dor explodiam com o mais simples dos movimentos. Palavras. As vozes que ouvia estavam longe a apenas um leve toque das palavras chegavam até ele, fracas o suficiente para não ter sentido. Uma luz atingiu seu rosto e ele esperou acordar de um pesadelo, coberto de suor no conforte de sua cama. Ficou desnorteado quando o mundo continuou e o tempo prosseguiu. Por que não acordei?
Por que o mundo continuava?
Logo outra voz se juntou à primeira. E mais uma. E mais uma. Em poucos minutos, o garoto estava cercado por homens e mulheres de jaleco amarelo, dois cachorros farejavam e latiam para ele. Uma maca e algumas dezenas de jornalistas depois, ele estava em uma ambulância.
Era notícia mundial. Dos quatro garotos desaparecidos no bosque, apenas um retornou para casa. Um dos irmãos, a mídia mundial ressaltou. Encontrado deitado em uma vala, perto da entrada de uma caverna nunca antes notada, ele estava desnutrido e semi-consciente. Mais notícias depois do intervalo.
Não lembrava de muita coisa, não sabia como havia entrado ou saído da caverna, ou onde os outros estavam. Sua história foi o mistério do ano e bateria após bateria de interrogatórios e sessões psiquiátricas, nada mais foi revelado. Ele foi alvo de filmes, músicas, investigações profissionais e três médiuns que diziam ter sonhado com corvos.
Mas ele simplesmente não tinha memórias do que acontecera. Mal lembrava do próprio irmão, como poderia se lembrar de outras duas crianças desconhecidas?
Todos o chamavam de Alice, pois entrara no buraco do coelho. Britânicos têm um humor estranho. Ele, no entanto, gostava de se chamar de Bilbo. Lá e de volta outra vez. Mesmo sem saber exatamente onde ou o porquê. Ele fora e voltara. Missão feita, olhar para o futuro.
A história ganhou pó; o quarto de seu irmão foi desmontado e seus pais nunca mais tocaram no assunto. A mídia se cansou do garoto e os microfones se viraram para o próximo adolescente drogado que atirou em um casal de idosos para roubar dez libras. Ele cresceu. Aprendeu na escola e arrumou brigas, namoradas. Usou drogas e roubou carros; depois, conseguiu um diploma e vestiu um terno, seguiu o caminho dos justos, costumava dizer. Por toda a vida, manteve duas paixões: a primeira eram os pássaros. Ele tinha cartazes colados em todos os cômodos da casa e o predileto, um cartaz originado d’Os Pássaros, de Hitchcock, em um quadro acima da cabeceira de sua cama. A segunda paixão era a música. Ele tinha qualquer coisa que havia encontrado sobre o Led Zeppelin. Algo na voz de Robert Plant e na guitarra de Jimmy Page construía uma magia absurda, que rodava no conforto do baixo de John Paul Jones.
Sentia-se, entretanto, isolado do resto do mundo. Parte sua, ele sabia sem saber o quanto, estava em outro lugar. Talvez em outros mundos, pensava com um sorriso no canto da boca. Uma sombra em seu peito dizia que não estava onde deveria estar e corvos se juntavam em grandes círculos toda vez que ele permanecia muito tempo em um mesmo lugar. Passava as noites acordado, olhando a chuva caindo sobre a grama fresca, escutando a música das florestas, escutando seu chamado. O mundo continuou e ele queria descobrir porque.
Até que os sonhos vieram, anos mais tarde. Sempre corvos. Sonhava com os pássaros negros todas as noites. Eles grasnavam algo importante, mas não podia entender aquela língua e, em fúria, os animais atacavam seu rosto, arrancando olhos, nariz e lábios. Noite após noite após noite, um Prometeu moderno.
Os sonhos se transformaram em pesadelos.
E o menino, agora um homem, voltou a ser corvo.