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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Homem que Chegava Cedo Demais

Alfredo Holmes esteve adiantado toda sua vida. Nasceu aos sete meses de gestação, com pouco mais de trinta centímetros e um peso ínfimo, como se estivesse com pressa de conhecer o mundo, para respirar primeiro o ar que muitos inalariam mais tarde. Aos sete meses já andava como se fosse um potro; com oito meses, falava com perfeita dicção. A infância de Alfredo também foi apressada. Nas festas de seus colegas, costumava chegar quando o aniversariante ainda estava no banho e era forçado a ficar sentado no sofá, assistindo os programas toscos que passavam de domingo, respondendo perguntas feitas pela metade por tias acima do peso. Era o primeiro a chegar na escola e todos os dias ficava sentado no escuro, esperando alguém mais chegar e acender as luzes da sala de aula. O pequeno Alfredo permanecia sentado, com os dedos da mão entrelaçados e um rosto impassível. Suas provas estavam sempre no fundo da pilha, os amigos contavam com ele para comprar lanches, pois estava no começo da fila e sempre conseguia assistir os filmes e shows que pretendia. Nunca perdeu a hora. Esteve em todos os vôos e viagens de ônibus ou trem; aos doze anos tinha de fazer a barba: um caso de puberdade precoce. Alfredo, aliás, foi precoce em tudo. Nietzsche e Kafka foram seus presentes de décimo terceiro aniversário e ele os leu com prazer, terminando os grossos volumes antes do que esperava. Entrou na faculdade antes de todos e percebeu a importância da filosofia cedo na vida. Concluiu o curso no terceiro ano, não por ser de uma inteligência sagaz - apesar de chegar à conclusão antes de todos - mas simplesmente por ser… adiantado. Conseguiu a vaga de professor apenas por ter sido o único a chegar no horário da entrevista, apesar da chuva impossível que despencava naquele dia, passando por enchentes e bloqueios sem perceber que o fazia.
Por toda a existência, sentia algo incômodo na cabeça, algo mais profundo do que conseguia mergulhar e enxergar com clareza. Era uma sensação deslocada de qualquer categoria e mesmo devorando Platão, Kierkegaard e Hegel, não podia entender um simples incômodo, para sua irritação.
Todos os homens seguem um de roteiro para suas vidas. Alguns tomam desvios ou têm finais abruptos, mas é quase certo que as fases da vida seguirão com natural ordem e sucessão. Infância, adolescência e a chata fase adulta culminam na velhice e o corpo enfraquece, a mente entra em uma névoa iminente e o sistema desiste do jogo e entrega os pontos. Para ele, os períodos foram todos misturados e empilhados e com isso, a infelicidade também chegou antes. Com vinte e nove anos, Alfredo enfrentava o terceiro divórcio - todos os três iniciados por ele, que chegava ao limite antes da parceira - e contava com quatro filhos. Sabia que era difícil conviver com ele. Tinha o péssimo costume de chegar ao fim das conversas com demasiada pressa, não podia comentar sobre filmes ou livros pois todos os outros ainda não haviam visto ou lido e estragava os finais com certa regularidade. Chegava a ser inconveniente em churrascos e festas por chegar muito cedo, como na infância - uma vez tomou o café da manhã na casa de seu primo, cuja festa começava às quatro da tarde. Os convites chegavam para ele com o horário atraso em quatro horas. Alfredo também era um péssimo amante, por motivos que não é preciso expor. Depois dos trinta, os ossos começaram a enfraquecer com rapidez e ele operou os olhos com trinta e cinco, deixando para trás duas cataratas. Esquecia de reuniões, deixava os livros que estava lendo em lugares dos quais não tinha memória, sentia dores nas costas e percebia sua teimosia aumentando diariamente.
No dia trinta de dezembro de 2013 ele se deitou, a velha sensação incógnita causando dor de cabeça, carrancudo e triste: um homem de trinta e nove anos, com cabelos brancos e ralos, rugas por todo o rosto e dentadura guardada em Listerine na cabeceira da cama. Amaldiçoou a vida adiantada que tinha, xingou os cabelos e unhas que cresciam antes do que deviam, a libido que se esvaiu cedo demais, o intestino que ficara precocemente sensível e os pulmões que há anos perderam parte da capacidade. Dormiu antes de conseguir enumerar os motivos que deixavam sua vida triste.
Acordou antes do sol nascer e do despertador disparar o irritante som que parecia anunciar a chegada de todos os infernos. Algo estava errado e ele procurou entender exatamente o que havia acontecido, mas falhou antes mesmo de começar. Levantou-se, lavou o rosto e escovou as gengivas, encaixando as dentaduras pela última vez antes de descer as escadas e preparar duas xícaras de café, que tomou acompanhados por panquecas um pouco cruas e manteiga derretida. Subiu as escadas novamente e trocou as roupas: hora de esticar as canelas e esperar o ano morrer. Quem sabe sua vez chegaria antes e 2014 significasse o fim de sua miséria. Não custava sonhar. Quando abriu a porta, sentiu o coração ameaçar - não pela primeira vez - parar de bater. O mundo estava branco. Olhou para as mãos e enxergou com perfeita nitidez a pele macia e livre de rugas ou as manchas escuras que começaram a aparecer no inverno passado. “Mas que porra…”, terminou a pergunta antes de chegar ao ponto de interrogação. Jovens, as mãos eram suas, mas estavam na data errada, substituindo os membros velhos de pele flácida e solta dos músculos. Podia ver a casa até a porta de entrada e depois via apenas branco. Um nevoeiro? Não, eu ainda poderia enxergar pela névoa. Colocou os dedos rejuvenescidos na boca e puxou as dentaduras, descobrindo dentes no lugar das placas removíveis. Puxou um fio de cabelo e admirou o castanho escuro que os fios possuíam até o vigésimo quarto aniversário. Há algo de errado além do meu corpo jovem e do mundo ter desaparecido… mas o quê?
Apoiou as mãos na parede da casa e tentou pisar na superfície branca, sem ter certeza de que poderia ficar sobre ela ou se despencaria eternamente em um infinito leitoso. Seus pés tocaram onde deveria haver chão e ele conseguiu ficar sobre a superfície branca. “Olá?”, ele gritou, quebrando o terrível silêncio que caía sobre o mundo. Não, ele percebeu, era muito mais do que silêncio. Alfredo experimente a completa falta de sons. Seu grito saíra abafado, todo estranho e fanho, como se não existisse lugar para barulhos aqui. Tentou juntar todo o conhecimento dos estudos filosóficos com o cérebro novamente jovem e se impressionou com o raciocínio afiado, mas falhou em encontrar explicações.
Alfredo fez a única coisa que podia e começou a caminhar, deixando a casa para trás até ela se tornar num ponto escuro no horizonte. Conseguiria voltar? Realmente importa? Horas se passaram e ele caminhava, mantendo a direção o melhor que podia, tirando prazer do exercício prolongado e das pernas novamente fortes. Sem dores nos joelhos, sem músculos fortes. O que estava acontecendo?
Foi quando encontrou os outros.
Primeiro, viu a movimentação longe, se destacando do oceano branco que tinha diante de si. Correu a longa distância, gritando e gesticulando para algumas pessoas que cortavam madeira. Um deles parou e sorriu de volta, soltando o serrote e pegando uma prancheta. “Alfredo Holmes”, perguntou antes dele parar de correr.
“Como… como você sabe meu nome?”
“Estávamos esperando por você. Na verdade, já está um pouco atrasado.” O homem estudou o relógio que tinha no pulso. “Vista isso e vamos ao trabalho, meu amigo, não temos muito tempo.”
Alfredo pegou o macacão que o homem esticou para ele e passou os dedos sobre o nome bordado na altura do coração. A. Holmes. Eles realmente esperavam por ele. Olhou ao redor e viu mais trabalhadores do que conseguia contar. Homens e mulheres pregavam pregos em tábuas, plantavam árvores, posicionavam concreto, pedras e asfaltavam um rua pré marcada com o que parecia ser giz cinza. Três grupos se penduravam em enormes escadas e pintavam o céu com um azul claro. Alfredo olhou para uma loira que pintava uma nuvem um pouco mais carregada e ela olhou de volta, acenando a mão e sorrindo. Ele a cumprimentou de volta, hesitante.
“Anda com isso”, disse o homem de antes. “Você está nos atrasando, Holmes.”
“Onde… onde estou?” Passou a língua nos lábios secos.
“Onde é uma terminologia erra, homem. Quando, eis o que você quer saber. Bem vindo ao primeiro de janeiro de 2014.”
“Impossível. Hoje é dia 31.”
“Para eles sim; para nós, dia primeiro. Dois mil e catorze, Era Comum. Para os ocidentais, pelo menos. Com os chineses, a história é outra. Mas o amanhã é o mesmo, não importa se você é rico, pobre, católico, jedi, judeu, homem, mulher ou tudo que há no meio. E mais, o amanhã é nosso dever. Agora venha comigo, vou te mostrar o que você deve fazer. Você agora é um Construtor, Holmes, sua tarefa é nos ajudar a construir o futuro.” O homem entregou uma pá para Alfredo e apontou para um canteiro. “Hoje você vai plantar rosas.”
Tentava tirar algum sentido daquilo, mas no íntimo já entendia onde… quando estava e sentia a felicidade explodir em seu peito. “Eu-eu vou construir o futuro?”
“Sim, parte dele. Tudo que fizermos aqui será usado amanhã e descartado imediatamente depois do uso. Você vai pavimentar o amanhã, Holmes. Quase literalmente, porque nosso pavimentador é o Jorge”, ele apontou para um rapaz com não mais de dezenove anos, sentado num enorme compactador de solo, trabalhando nas ruas da cidade. “Plante as rosas do dia primeiro, Holmes. Depois você pode encher os oceanos do dia”, ele chegou o cronograma, “quatro de fevereiro. E chegue mais cedo da próxima vez.” O homem se virou e caminhou para longe, gritando com um grupo de pessoas que tentava acertar a direção do vento e outro, que ajustava o sol com um longo gancho de metal.
Alfredo Holmes percebeu naquele momento, um momento no futuro, para a maioria das pessoas, que a sensação estranha havia desaparecido. Ele não mais se sentia deslocado.
Começou a assobiar uma música e enfiou a pá no solo recém criado, preparado para plantar todas as rosas do mundo.

Pela primeira vez, Alfredo se sentia na hora certa.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Catarata

Você agora segura meu manifesto. Não é longo, por isso fique onde está, nem precisa sentar. Tampouco mudarei tua vida. Deixo este trabalho para os grandes intelectuais, para os poucos espíritos de sorte que chegaram nesse mundo com ideais bons o suficiente para influenciar as outras pessoas. Não. Eu sou um velho cansado, nada mais. Aos setenta e nove anos, vejo minha veias exaustas ainda trabalhando a pleno vapor enquanto na oncologia, vejo crianças carecas e sorumbáticas caindo como moscas. Percebe o que está errado?
São pessoas como eu e você, mas nunca poderão ver o zênite de suas vidas porque estarão de baixo da terra, vagando onde quer que os espíritos vão nos dias de hoje. Injustiça é o único termo que cruza minha mente. Considere todo o mundo e perceba que a coisa que mais nos diferencia é como gastamos as horas que temos. O problema aqui é que essas crianças não as têm: foram privadas de suas horas. E isso, meu bom rapaz, é uma bosta sem tamanho. Eu tenho sérias dificuldades em entender porque elas têm de sofrer com uma doença tão terrível enquanto um velho sem propósitos erra pelo mundo sem rumo, sem propósito. Chego todos os dias para uma casa vazia, onde apenas o fantasmas de risos infantis preenche o ar, onde fotos amareladas são os únicos resquícios de meus amores que passaram nessa Terra, deixando para trás apenas a saudade que abate os vivos.
Esforço-me para não parecer amargo em demasia, você conhece o tipo: aquele cara velho que só sabe torcer o nariz e bufar, reclamar da vida e das dores. Um português do romantismo, se assim preferir. Essa carta é o meu grito silencioso, um desabafo em rodapé. O mundo está errado. Tecnocracia, tecnomancia… chame do que quiser. Para mim, a humanidade apenas desistiu e abraçou o estado de filho da puta egoísta que todos temos, mas em níveis diferentes. Um número absurdo de pessoas morrem por desnutrição todos os dias. Pense nisso. Porra, essas pessoas sem rosto não consegue calorias o suficiente para sobreviver! Não caçam, plantam, colhem, pescam. Apenas deitam, sem forças, esmagadas pelo peso de sete bilhões de pessoas preocupadas com pouco mais do que o próprio umbigo, destroçadas pelo capitalismo e ignoradas pelo socialismo, tiveram o azar de nascer em um mundo que não lhes permitiu lutar. Ou caçar. Ou plantar. E o pior é que enquanto escrevo a carta-manifesto que você lê, espero meu disco de vitamina C terminar de diluir. E eu nem preciso dele. Tenho laranjas na geladeira e vou chupá-las mais tarde. Além do mais, não tenho câncer, então fico atrás de muitas pessoas na fila de reclamações.
Enquanto pessoas morrem de fome, nosso continente sofre com a obesidade. Mais pessoas morrem por excesso de comida do que por falta desta. Pare um pouco e pense nisso. Nós temos penicilina! Eu peguei síflis de uma prostituta quando tinha dezenove anos e tenho orgulho disso. Era um rito de passagem e criou importante laços com meu pai. Deveria estar morto há muito tempo, deformado pela doença francesa. Mas aqui estou. E com a pressão de meu sangue boa como a de uma criança. Você pode entrar em contato com qualquer pessoa hoje, precisando de pouco mais do que alguns cliques, pode fazer as compras pela internet, agendar dentista, médico, manicure. Qualquer coisa. O mundo está ao seu dispor, vinte e quatro horas por dia e, por causa disso, você provavelmente precisa sair da mesa apenas para correr até a academia por causa das calorias extras que você consumiu. Sua barriga é flácida, os músculos diminutos. Toda sua preocupação gira ao redor do nível de bateria do seu celular, mais inteligente que sua prole. Você é gordo, há tanta comida disponível que você consegue acumular gordura, caramba.
Hoje eu escutei uma enfermeira falando sobre os pacientes dizem no leito de morte. É um momento terrível e belo, ao mesmo tempo. Estive no leito de morte de muitas pessoas queridas e sempre foi algo doce e amargo. O desespero de uma longa doença chegando ao fim, quando o corpo está cansado e já entregou os pontos. Quando tudo foi dito e apenas o alívio está no futuro. Mas fica a dor, a saudade, a ausência. Um momento que define a paz para aqueles que se vão, que verdadeiramente aceitaram a partida, mas que machuca a quem não a aceitou. A enfermeira disse que sempre escuta as últimas palavras daqueles que estão morrendo sem a família ao redor e relatou alguns casos para as colegas. Eu fingi estar escolhendo um refrigerante numa máquina enquanto escutava a conversa. Há quem gostaria de ter trabalhado menos. Eu tirei minha sobrevivência daquilo que gostava e até hoje volto para o mar e lanço a linha na água; talvez algum dia desse o mar se revele meu eterno túmulo. Nada melhor para mim, uma morte salgada para uma vida vivida dentro de um barco. Outros dizem que gostaria de ter o próprio caminho ou que gostaria de ter mantido as amizades.
Bem, as pessoas se perdem algumas vezes. Mas na maioria do caso, um pouco menos de putaria e frescura seria o necessário. É o que acho. De novo, com poucos cliques você pode entrar em contato com seus amigos, novos e antigos. Não me venha chorar como uma garota. Junte o que há de orgulho e respeito dentro dessa casca que você chama de corpo e fale com seus amigos ou siga o seu caminho.
Vejo que minha carta não faz mais sentido. Poderia usar minha idade como desculpa, mas não. Estou mais lúcido do que gostaria de estar. Minhas palavras chegam desconexas pois são reflexão desse mundo em que vivemos, onde morremos cedo demais porque comemos em exagero, porque deixamos de nos movimentar pois vivemos diante de uma tela, onde não olhamos para os problemas dos outros pois estamos preocupados em conseguir mais atenção no facebook. O lugar em que morremos por tirar foto do velocímetro do carro, por digitar texto como animais irracionais em um aparelho enquanto dirigimos. Mais lúcido do que queria, repito.
É difícil controlar a fúria que carrego no estômago, que queima como o fogo de um dragão, como a fornalha do Titanic um dia queimou. Isso tudo porque vivo além do que deveria. Porque há crianças com câncer nos hospitais de todo mundo. É uma merda.
Se você ainda está lendo, peço desculpas: são palavras de um velho, um fantasma que ainda tem um corpo. Sou anacrônico e estou sendo apagado aos poucos pelo tempo. Nada tento provar com essas linhas, nada quero mudar em sua vida. Escolha seu caminho, cometa seus erros e coloque o máximo de força em seus punhos. As linhas que leu, e que quase chegam a um fim, são os fragmentos de meu pensamento; o entender do mundo vindo de um velho que nada mais entende.
Se você está lendo isso é porque eu estou morto. Mas não fique chateado por mim, bom rapaz. Eu já estou morto há tempos. Meu coração se transformou em poeira. Há poeira em meus pulmões e onde antes havia simpatia e compaixão.
Uma vez que perdemos a compaixão, meu caro, é melhor deitar e morrer.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A Hora do Demônio

As guitarras de Eric Clapton e Jeff Beck dedilhavam a ponte de Can’t Find My Way Home, fazendo as caixas de som pulsarem em harmonia. António Marín acompanhava o dedilhado em uma guitarra invisível, movendo os dedos e balançando a cabeça. Essa era uma vida que poucos conheciam. O negócio é o seguinte: António Marín tinha uma vida secreta. Aos diabos com isso, António Marín vivia três vidas pelo menos. “Mas eu não consigo encontrar meu caminho para casa”, cantarolou em português, fazendo um eco exógeno para a letra da música. Estava sentado no lado do motorista no pequeno carro britânico, parado em uma escura viela do centro de Oxford. Olhou para o relógio: três da manhã, a Hora Morta dos poetas; Hora do Demônio para os fanáticos religiosos e a Hora de Marín para Harry Gorgorith, o próximo nome de sua lista.
António desligou o rádio, sentindo uma tristeza por cortar a música durante o solo e desceu do carro, sem tirar os olhos do céu sem estrelas, talvez procurando por algo que deveria estar lá. Torceu a boca e se concentrou.
Maldita hora. Sempre agia às três da madrugada. Meia noite não funcionava para ele. Era a hora entre o bem e o mal, quando o mundo começa a se desligar e as pessoas deitavam em suas camas ou se preparavam para fornicar, talvez planejando o dia seguinte ou se fazendo preces para a prova de matemática. Meia noite e todos estão com um olho aberto e olhos abertos não são bons para a vida secreta de António Marín. Ao menos não para esta, veja bem. Uma, duas horas da madrugada e as ruas estão vazias, excluindo uma ou outra ronda policial, vigilantes comunitários, bêbados e pervertidos. São presenças indesejadas, almas perdidas que vagam pela noite, procurando suas presas, encontrando inocência para manchar e estuprar. Marín os desprezava e desejava colocar suas mãos nas gargantas sujas dos predadores noturnos. Mas não agora, não hoje. Mais tarde do que isso, cinco da manhã, digamos, e os padeiros estarão acordados. Talvez aquele aluno desesperado com a prova de matemática já está com o abajur ligado, tentando absorver as fórmulas ignoradas por meses a fio. Moleque imbecil.
Três da madrugada, caro leitor. Eis o sweet spot de António Marín, a hora e a vez de seu compromisso, os sessenta minutos do dia em que o tempo congela e Deus hesita em seu trono celestial, pestanejando com pálpebras pesadas. Era quando ele entrava em ação.
Marín andou nas pedras antigas e encharcadas da rua em que estava, equilibrando seu centro de gravidade para não escorregar. Chegou na pequena casa de número 1906 e parou, olhando ao redor. O mundo parecia deserto e ele sorriu. A Hora do Demônio, pensou. Retirou duas barras de metal retorcido e, mais rápido do que você imagina, destravou a porta e ganhou acesso para o interior. Olhou rapidamente para as paredes da pequena sala, certificando-se da inexistência de alarmes. Nada. E esse era o problema, na opinião de Marín: as pessoas se tornavam descuidadas, preguiçosas e, na maioria dos casos, prepotentes. Um sentimento de imortilidade normalmente atingia seus alvos, o que tornava seu trabalho - um dos trabalhos, vamos lembrar - fácil, tão fácil que chegava a ser entediante. O que não fazia sentido, em sua opinião, uma vez que para entrar em sua lista, o cliente tinha de estar metido na merda até o pescoço. Merda séria, do tipo que deixa corpos empilhados por todo o caminho. Nas pontas dos pés, avançou para as escadas e parou por duas vezes quando os degraus rangeram, os sentidos afiados em prontidão. Por todo o percurso, analisou os pequenos indícios que traduziam o cotidiano da casa. Os móveis estavam limpos - até mesmo a base do corrimão estava polido - e indicavam um ambiente bem planejado; havia latas verdes de heineken espalhadas na mesa de centro e na cozinha, onde diversas travessas descartáveis de refeições congeladas permaneciam jogadas e esquecidas, parcialmente amassadas depois de inúmeros jantares sem sabor e de nutrientes sem valor. Harry Gorgorith vivia à base de cerveja e pratos feitos, aparentemente. Caso precisasse lutar, não tinha expectativas de enfrentar um Jason Bourne. Novamente, o descuido. A ausência de brinquedos era um alívio. Não porque ele pensaria duas vezes em apagar um pai de família, António Marín estava acima dos laços sanguíneos ou da santidade do seio familiar. O alívio existia por que crianças significavam imprevistos. Crianças têm o péssimo costume de acordar na Hora Morta para fazer xixi ou correr até a cama dos pais, chorando por causa de um pesadelo ou querendo água. Mesmo entediado, Marín não tomaria nenhum prazer em assassinar crianças.
Empurrou a porta semi-aberta e entrou no quarto de Harry Gorgorith. Ele roncava alto, a barriga inchada subindo e descendo com regularidade. Na Hora Morta, todos estão em REM. Harry dormia sozinho e Marín descartou qualquer outro morador na pequena casa. Viu o passaporte russo de Gorgorith ao lado da escrivaninha, o único documento que o colocava naquele país. Marín abriu um zíper de sua jaqueta e recolheu o passaporte, o que daria algumas horas de vantagem sobre a polícia, que precisaria recorrer a medidas mais demoradas para identificar o corpo de Gorgorith.
António Marín ficou parado no meio do quarto, como a sombra do ceifador observando o sono pacífico de sua próxima vítima. Harry dormia o sono dos justos, enquanto cometia atrocidades no submundo político, prejudicando uma longa lista de nomes inocentes. Podia contar ao menos quinze pais de família que conhecia, homens corretos e honestos que perdiam o sono, tentando decidir qual conta pagar e qual serviço seria cortado, água ou gás. Um mundo justo, ele pensou com uma pontada de ira no peito. Marín não sabia ao certo, era parte de seu trabalho resolver problemas com o mínimo de conhecimento, mas era sempre motivo político. Ficava atento aos noticiários logo depois de um contrato e sempre descobria que o morto estava metido em um ou mais escândalo parlamentar. Harry Gorgorith era um homem sujo, mas ele não sabia o quanto. Era uma ignorância cronológia, bem sabia.
Repentinamente, Harry sentou na cama epuxou a gaveta do criado mudo ao seu lado. O assassino viu a arma, uma pistalo .22 provavelmente carregada e engatilhada, e puxou a própria pistola, uma Desert Eagle monstruosa. “Eu não faria isso, Harry. Seria uma escolha… prejudicial para a sua saúde. Você não precisa morrer hoje”, mentiu.
“Quem… quem te mandou?”, Harry perguntou com a voz letárgica e carregada por um sotaque pesado, “foram eles, certo? O Círculo. Eu sabia que esse dia chegaria.”
“Vamos lá, meu chapa, solte essa arma, você não quer continuar apontando ela para meu peito. Eu costumo ficar ofendido com pessoas que me deixam na mira. Estou aqui para te dar um recado.”
“E como sei que você não vai me matar, seu merdinha. Eu não tenho medo de você… ou do Círculo. Apenas uma pessoa sairá daqui hoje. E logo depois, vou pegar um por um deles, hoje mesmo, antes que eles saibam que o… o assassino que eles contrataram falhou. Filhos de uma puta.” A mão de Harry tremia.
“Você quer abaixar a arma, sério”, Marín advertiu. “Meu dedo é bem mais rápido que o seu, tenho certeza. E depois o quê, Harry, hein? Você vai colocar uma calça nessa sua bunda gorda e perseguir todo o Círculo?”, Marín não tinha idéia do que falava, sabia apenas que precisava blefar se queria evitar que Harry disparasse em seu peito. “Nós dois sabemos que você não conseguirá passar pelo primeiro segurança da primeira casa, cara. Estou aqui para te dar uma nova chance. Você fodeu tudo, cara, cagou em todo o plano. Eles me mandaram para te fazer desaparecer… não mate o mensageiro, certo? Pegue seu dinheiro, suas coisas e suma. Mude o nome, tinja o cabelo. Vá vender pranchas de surf em Porto Rico, vá dar a bunda, não me importo com o que você irá fazer daqui em diante. Desde que suma daqui. Nessa noite, hoje. Se você disparar agora, pode ser que erre, pode ser que me mate. E mesmo que acertar, pode ser que eu consiga disparar. Já viu uma Eagle cuspindo bala? Não sobra nada, cara. Caixão fechado, porra. Então, a não ser que você tenha nascido com esse cu feio virado para a lua, abaixe a porra dessa arma. AGORA!”
Harry Gorgorith não se sentia com sorte e abaixou a arma. Obedeceu, em seguida, ao movimento do homem que estava no seu quarto no meio da noite - procurou pelo relógio que tinha na parede: três e quinze da manhã, um horário injusto para ser despertado pelo seu anjo da morte - e jogou a arma para o pé da cama. “Eu vou, eu vou.” António guardou a arma e Harry suspirou, aliviado. Levantou-se para começar a fazer a mala e comprar o primeiro vôo para a Terra do Nunca, quando sentiu falta do passaporte. Voltou-se para sua arma, tarde demais. Harry Gorgorith nunca viu os dois disparos que destruíram seu cérebro e espalharam massa cinzenta ao redor de seu corpo.
Ele largou a arma de Harry, achando conveniente que ele tinha uma pistola com o número de série raspado e silenciador rosqueado. A Desert Eagle deixaria seus ouvidos doendo e despertaria metade de Oxford. “Obrigado, Harry”, ele disse antes de largar a arma no chão e disparar para o carro.
O pequeno carro inglês pegou na primeira tentativa e ele começou a dirigir para Londres, onde estava hospedado. Escutou músicas antigas por todo o percurso, de Creedence até Queen, passando por Beatles e The Who, cantando as letras em uma tradução simultânea para o português. No caminho, parou para queimar as roupas e as luvas que usava, trocando-se rapidamente para não congelar no rigoroso inverno britânico. Quando parou, olhou para os céus novamente, como se estivesse procurando por algo.
Quando chegou no hotel, António Marín discou para um número e desligou em seguida, retirando a bateria do celular e quebrando o pequeno chip no meio. Missão cumprida com louvor.
Aquela vida de António Marin estava enterrada por mais alguns meses e ele poderia voltar para o Brasil, assumindo novamente sua vida de comerciante de calçados. António Marín, o pai dedicado, vendedor de calçados ortopédicos e Maçom de alto nível hierárquico, um homem que todos conheciam. Poucos conheciam o António Marín apaixonado por miniaturas e ferroramas e meia dúzia de pessoas em todo o mundo conhecia António Marín, o melhor assassino do mundo. Ele não deixava rastros, não fazia pergunta e não mostrava clemência.
Ele empurrou a porta de correr da gigantesca sacada - amava o luxo e sempre ficava nos melhores quartos quando estava trabalhando em um contrato, outro António Marín que pouquíssimos conheciam - e olhou para o céu, sentindo o coração pular uma ou duas batidas com o que viu. Um frio escalou em sua espinha e fez todo seu corpo arrepiar, descarregando uma enorme quantidade de adrenalina. Aquela, caro leitor, era a vida secreta de António Marín que apenas António Marín conhecia.
Durante toda sua infância, nos momentos que definiram suas várias vidas paralelas, Marín via gigantescos números no céu. A primeira vez, o número 54 em letras garrafais, apareceu quando seus pais morreram em um acidente. Ainda se lembrava do momento, os olhos cheios de lágrimas, ranho escapando pelo nariz avermelhado, olhou para cima e achou que estava tendo ilusões, que estava em choque. Em pouco segundos o número desapareceu. Alguns meses depois, enquanto pulava de adoção para adoção, ele via os números no céu, gigantes como planetas colossais em rota de colisão com a Terra. Também avançavam: 55, 56, 60. Ele era o único que os via piscando no céu, dia ou noite. Mas sempre que vivia momentos importantes, para o melhor ou pior, vitórias ou derrotas, eles apareciam sem falha. Seu recrutamento pelo Mossad (120) e, anos mais tarde, quando executou todos os que conheciam sua verdadeira identidade (140, 142, 147 e 148) para desaparecer e iniciar uma carreira autônoma (155).
Depois de seu primeiro assassinato solo (183), Marín entendeu o que eram os números e uma certeza se instalou em seu cérebro. António Marín, o homem que colecionava miniaturas de trens e vendia sapatos para crianças de pernas tortas, o assassino profissional procurado pelo Mossad era, acima de tudo, o antagonista de um livro. Os números que via no céu eram as páginas que desenvolviam o papel que deveria seguir, era a única explicação plausível. Aos poucos descartou a idéia de ser apenas um personagem em um grande livro, não, ele era bom demais para ser secundário. Tampouco poderia ser o protagonista: faltava-lhe carisma, determinação. Tudo que queria era ver crianças de postura saudável e fechar contratos que o enriqueciam em escala astronômica. António Marín, senhoras e senhores, era o antagonista daquela história… desta história. E, pelos deuses, daria tudo de si para ser o melhor antagonista que o mundo já conhecera.
Apoiado na parapeito da sacada, Marín admirava o único número estampado no céu de Londres (1). O sol nascia e número (1), perto do London Eye, se tornava alaranjado. Estava no início do livro, podia visualizar o parágrafo que abria sua história: António Marín observou Londres acordar. Deixava o conhaque descer por sua garganta, queimando seu estômago e aquecendo seu corpo, regozijando-se pelo trabalho bem feito. Repassou rapidamente a madrugada anterior em sua mente, à procura de falhar, mas sabia que seu trabalho era perfeito. Ele era, afinal, o melhor assassino para contratar e suas execuções eram perfeitas. O que António Marín não sabia era que acabava de sair da excessão que comprovava a regra. Talvez estivesse ficando descuidado - adjetivo que dava para seus alvos - ou cansado, mas falhou em reconhecer as pontas soltas.
Ergueu o copo de conhaque que surgira em sua mão e brindou o autor. Note como ele parece olhar para você, veja como ele pisca um único olho em sua direção, um olhar sádico, lunático… perigoso.
O número 1 desapareceu e ele ficou assistindo o sol nascer para mais um dia. Mais um dia na vida de todos aqueles que permaneciam no jogo.
Mais um dia para a grande maioria dos vivos, mas o dia em que a vida de António Marín começava de verdade. Mal podia conter a curiosidade que tinha no fundo da mente. Apostava consigo mesmo até qual página conseguiria chegar vivo.
António Marín voltou para o quarto e se jogou na cama, precisaria descansar o máximo possível: sua verdadeira vida secreta começava agora.

(Fim do Capítulo 01)

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O Conto da Raposa

“É assim que funciona, eu juro”, disse a Raposa. “O Homem Que Canta recebe mais comida do que consegue ingerir e o Homem Que Levanta morre de fome. Eu vi com meus olhos, comi de seu lixo… Digo mais, os lixos dos que Cantam são os melhores que a comida dos que se Levantam! Escutem o que eu digo”, continuou a Raposa, enquanto brincava com o próprio rabo, “o Homem Que Canta é rei dentre os animais.”
“Eles não trabalham, os Homens que Cantam?”, perguntou o Corvo, tentando segurar a rodela de queijo que carregava por baixo das asas. Ele segurou o queijo cuidadosamente até terminar a frase, depois o voltou para a boca, provocando uma gula quase incontrolável na Raposa. Gostava de provocá-la e não tencionava comer o laticínio: queijos davam-lhe dor de barriga e pássaros têm um ligeiro problema com seus excrementos naturalmente ácidos. Se eu comer, vou ter de voar com a bunda para cima, brincou com a Hiena em certa ocasião, antes de gargalharem da Raposa por alguns bons minutos.
A Raposa fitou o Corvo parado em um dos galhos mais altos da árvore, os olhos cheios de uma chama furiosa. “Que tal você descer para eu não gritar?”
Fez uma cesta com as asas e derrubou o queijo antes de responder: “Que tal você continuar sua história ou vou para casa comer um pouco de queijo?”
Os animais começaram a desfazer a roda e a Raposa, sentindo o estômago reclamar, interveio: “Tudo bem, tudo bem. Eu continuo com minha voz alta. Eles trabalham, mas pouco tempo. Outros Homens que Levantam levam comida e bebida todos os dias, além de outros objetos que eles fazem para passar o tempo, vocês sabem: aqueles retângulos mágicos que passam outros mundos ou as caixas pretas que tomam todo o tempo que não podem se dar ao luxo de perder. Os que Cantam raspam as pernas ou coaxam por poucas horas todos os dias e têm de tudo. Inclusive parceiras. Ah, quantas parceiras! O pior é que os mais admirados, não cantam tão bem, ou têm um canto… vazio.” A Raposa mais declamava do que falava; era melhor ser o centro das atenções e se distrair do que ficar remoendo seus pensamentos, enquanto o estômago roncava em resposta.
“Injusto!”, protestou a Cigarra, magra e faminta. Raspou uma perna na outra e produziu o som característico. “Eu fico o tempo todo tentando atrair uma única senhora e o que ganho? Eles jogam venenos na gente. Veneno!”
A coruja abriu os olhos amarelos e estudou a postura da Raposa. “Diga mais, como os Homens que Cantam ajudam seus irmãos?”
“Aí que está! Eles não ajudam. Ao menos eu nunca vi um deles compartilhando com os famintos”, a Raposa fez uma pausa dramática e encarou o Corvo novamente, “eles simplesmente vivem do trabalho dos outros. Quando entro nas cidades, fico completamente confusa.”
“E por que você vai até lá?”, perguntou a Coruja, interessada no relato.
“Ora, para ter comida. Depois que eles se amontoam em um canto ou outro do mundo, você sabe como ficamos sem caça ou coleta, então eu vou caçar em seu território. Coletar em seus lixos, na verdade. Eles deixam cada coisa boa naquelas latonas, vocês nunca acreditariam. Eles brigam por causa de suas fêmeas, sem antes procurar por outra que não vá arranjar confusão; eles se matam por baterem uma caixa de rodas na outra. Eu vi, certa vez. Um deles estava numa caixa vermelha e fez uma curva desastrosa, que acabou de frente com outra caixa de rodas. As duas fizeram um barulhão que fez meu rabo entrar até as minhas patas dianteiras, eu juro. Uma fêmea desceu da caixa vermelha e começou a usar aquelas coisinhas que eles usam para falar com quem está longe, já que seu canto é fraco e muitas vezes os outros não conseguem… ou não querem… escutar. Da outra caixa, saiu um macho e simplesmente matou a fêmea. Ele bateu nela até o que está dentro da cabeça deles voasse para todos os lados. Depois chegaram outras caixas de rodas e levara a fêmea morta e o macho violento para longe. O pior é que eles deixam a carne estragar… quero dizer, ela já estava morta. O mínimo que você podia fazer por ela era comer um braço ou uma perna, estou certa?” A Raposa parou alguns segundo para recuperar o fôlego e apontou para o Corvo: “Se eu caísse mortinha agora, tenho certeza que aquele cara lá viria e pegaria pelo menos um dos olhos sem vida. E sequer derrubaria o queijo, este maldito. É o que devemos fazer, oras. Esses homens são estranhos. Mas seus lixos, deliciosos.”
“E o que eles fazem para se divertir?”, perguntou o Sapo, que carregava o Escorpião em suas costas.
A Raposa girou algumas vezes, tentando pegar o rabo, e sentou em seguida, lambendo uma das patas. “Muitas coisas. Sabe aqueles momentos que você começa a coaxar só para passar o tempo? Às vezes acho que eles coaxam daquela forma estranho por horas e horas e horas, só para não se entediarem. Não os vejo planejando a caça, ou se preparando contra os elementos. Eles abrem a boca cheia de dentes brancos e falam por nada. Algumas vezes procuram parceiras para acasalar, mas mesmo quando estão entre outros homens, os machos falam o tempo todo, como se quisessem dormir com os do mesmo gênero. Eles mostram os dentes o tempo todo, também. E cheiram pós brancos que colocam por aí. O pior é que quando cheiram esses pós ou colocam fogo em bastões que estão em sua boca, começam a se sentir mal e algumas vezes deitam para morrer. Como aquele cachorro que vivia com a gente até achar um chocolate deixado pelos humanos que dormiram na grande árvore, lembram?” Os animais concordaram, cada um ao seu modo. “Mesmo caso. Sabem que aquilo pode matá-los, mas consomem mesmo assim. Eu, por exemplo, não comeria um coelho morto há mais de algumas horas. Meu corpo ficaria doente e aquele cara lá viria bicar meus olhos. Sem derrubar o queijo, no entanto.” A Raposa pensou por alguns instantes. “Ah, tem mais. Eles vivem com gatos e cachorros. São seus amigos. Eu conversei com cachorros de Homens Que Cantam e eles comiam de tudo, tudo mesmo. E tudo que precisam fazer é deitar e virar a barriga para ganhar agrado.”
“Em resumo”, a Coruja interrompeu, girando a cabeça em 180 graus, “os homens fazem coisas à toa até morrerem, como se quisessem matar o chamado tédio até o leito da morte, é isso? Eles se matam por causa de caixas estúpidas com rodas estúpidas e perdem a razão estúpida quando encontram Homens Que Cantam. Estúpidos! Cheiram cheiros que os destrói por dentro e acendem… coisas que colocam na boca e morrem. Ontem, você estava falando dos homens que comem tanto que ficam redondos e macios… mas de alguma forma continuam a conseguir comida, mesmo lentos. Outro dia, em outra lua, você nos contou que alguns deles bebem até vomitar e andar engraçado, mas no outro dia voltam a beber da mesma água com gosto amargo. Isso não faz sentido! Que tipo de animal sem entranhas faria isso? Eu acho que você mente, Raposa.”
“Ah é? Espere até eu contar que eles usam mais de uma fala e que alguns se matam porque não compreendem as palavras um do outro.” A Raposa agora estava em posição de ataque, com as patas dianteiras esticadas e o corpo inclinado, mostrando os dentes para a Coruja que sabia demais.
Os Coelhos começaram a dispara para todos os lados; o Corvo gargalhou e quase derrubou o queijo, enquanto o Escorpião tentou picar o Sapo, sua única forma para voltar de onde viera. A confusão reinou entre os animais do bosque, esmagado entre três cidades que cresciam rapidamente.
“Chega!”, uivou o Último Lobo, que até então fingia desinteresse. Ele era grande, tinha os pêlos cinzas e uma cicatriz profunda no lugar do olho esquerdo. “Chega desta palhaçada. Combinamos em nos encontrar aqui todas as noites e contar histórias sobre eles. Coruja”, rosnou para o pássaro, “você deu a idéia, dizendo que assim poderíamos entendê-los e, com sorte, tirar algum conhecimento de seu comportamento, só assim poderíamos encontrar uma nova casa, com ar puro e água potável. Agora você acusa nossa principal batedora de ser uma mentirosa? Escolha uma opinião e fique com ela, Coruja. Seus olhos são tão grandes, você deveria enxergar melhor a situação.”
Os animais pararam, encarando o Lobo sentado no meio da clareira. Temiam o temperamento selvagem do velho lobo que perdera toda sua matilha para jovens homens disparando pequenas pedras de pólvora. A Raposa abriu a boca e deixou uma lebre pular para longe.

“Hoje é a noite das fábulas e vou contar uma”, continuou o Lobo, que raramente se pronunciava. Limpou a garganta com um rosnado baixo e começou: “Era uma vez um lobo que uivava menino todos os dias…”

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Cliomancia

O parque estava cheio de casais andando com as mãos dadas, trocando carinhos e retirando sacos plásticos dos bolsos para recolher fezes de seus cachorros. Eu estava sozinho. Sozinho e miserável. Lembro de ter encontrado meu próprio fundo do poço emocional. E não desci todo confortável, senhoras e senhores, ah não, eu caí de cara. De repente, vi meu futuro, claro como aquelas piscinas naturais que vemos nos documentários do National Geographic: ataques de pânico, solidão, terapias caríssimas, solidão, tentativas encenadas de suicídio, solidão, pílulas e um tanto absurdo de tempo sozinho. E foi tudo por causa da felicidade ao meu redor. Como se eu fosse um ímã para boas vibrações, o parque era provavelmente o lugar mais pacífico e amoroso em todo o mundo, porra. Tudo que eu queria era ver pessoas miseráveis, dor, medo, impotência… Queria estar perto de magnatas falidos, alcoólatras recorrentes e viciados sem esperanças, queria sorver os vapores inumanos que exalavam de seus poros, minha própria comparação de egos maléfica e egoísta. Só assim eu me sentiria bem, o Edgar Allan Poe de todos os ids.
Eis que me encontrava no maldito parque, entretanto. Aqueles imbecis sorriam enquanto catavam merda de seus cachorros, meu Deus! Faziam piqueniques numa grama atolada em carrapatos e formigas. Retiravam insetos de pedaços de bolo, sentiam o cheiro acre de corredores suados e ficavam de olho em suas crianças. Ainda assim, eu via sorrisos, mãos dadas e afeto. Que cena horrível. Entenda, leitor, no lugar em que eu estava e, com isso, quero dizer o lugar dentro de minha cabeça, uma jaula de ferro maciço, trancada e acorrentada em grossos elos.
Levantei do banco e comecei a andar, carrancudo e com as mãos nos bolsos da calca. Duas crianças passaram correndo por mim e por pouco, mais pela surpresa - meu pé vacilou por um centésimo de segundo e chegou atrasado - do que pela consciência, quase as derrubei. Seria delicioso escutar o choro estridente e com sorte, um dente ou outro se quebrando no concreto. Ah, por favor, retire suas interjeições, leitor. Não há lugar para falsa humanidade por aqui. Olhei para meus pés, pensei em como eles quase machucaram duas crianças e comecei a abraçar a fome maldosa que crescia em meu âmago.
Foi quando a vi. O corpo parecia uma prancha e ela mais parecia um esqueleto vestindo peles do que um ser vivo, propriamente dito. Usava óculos redondos e gigantescos, do tipo que a faria parecer uma mosca, caso fossem escuros. Os cabelos encaracolados cresciam vertiginosamente ao infinito e, posso estar exagerando, mas pareciam impermeáveis, como se a água fosse defletida em cada tentativa de banho. Ela sorriu para mim, com dentes surpreendentemente brancos e perfeitamente alinhados. Foi um sorriso belo, sincero, uma demonstração de atenção para um completo estranho que tocou até mesmo meu coração, que navegava um mar nada amigável. Estava sentada em um dos bancos do parque e me pegou desprevenido quando bateu a palma ao seu lado, convidando-me para me aproximar.
Ainda não sei explicar porque obedeci, mas quando percebi, já estava ao seu lado. Sua pele, clara como aquele dia bonito, parecia sedosa e ao mesmo tempo quebradiça, velha, como se a moça existisse por mais tempo do que poderíamos contar. O mais engraçado? Ela não parecia ter mais do que trinta anos.
“Olá, meu bom rapaz”, ela disse.
“O-Olá. O que… o que você quer?”
“Ora, você tomou a iniciativa, eu estava sentada aqui sozinha, acompanhada apenas pelos meus pensamentos. Por que essa cara feia? Um rapaz tão bonito não deveria ter o sorriso para baixo, veja. Esse seu sorriso está ao contrário!” Suas palavras eram quase como música. Havia lirismo no modo como ela dizia e, se eu prestasse atenção e escutasse além de sua bela voz, às vezes parecia que eu estava escutando um coro completo. Soprano, baixos e tudo aquilo que existia entre eles. Sem esperar por minha resposta, a mulher abriu a bolsa que descansava em seu colo e pegou um baralho de cartas amareladas. Tarôt.
Mostrei as duas mãos para ela, tentando me desculpar enquanto erguia meu corpo. Doida de pedra, eu pensei. “Olha, não é nada pessoal, é só que eu não acredito nessa merda toda.”
Esta merda toda? Escute bem, Jó, essas são cartas normais, são usadas para jogar.”
Como, pelos céus, ela sabia meu nome? “Não, não. Chega, é o suficiente. Eu não sei quem a senhora é ou como sabe a porra do meu nome, mas Tarôt é… fica além… ah, foda-se.”
Movimentei as pernas e comecei a me distanciar enquanto ela embaralhava o conjunto de cartas, revelando a primeira. “A Torre significa que todas as mudanças são naturais, bom rapaz. O que aconteceu não foi culpa sua, mas algo que estava em seu próprio curso. Por isso você se sente um saco vazio, mas na verdade, não havia nada que pudesse fazer.”
Parei. Congelei, para ser mais preciso. Diabos de mulher! “Como você sabe tudo isso?”, gritei contra ela. As pessoas ao redor olharam, alarmadas. Uma criança deu um pequeno salto e derrubou o sorvete que logo estaria em toda sua face. “Ei, cara!”, disse o pai da criança. Olhei para eles e disparei: “Vá cagar. Ela está uma porca, de qualquer forma. Eu fiz um favor, se você quer saber.” A pequena começou a chorar e correu para longe, seguida por um pai indignado.
“Isso foi… desnecessário, Jó, acalme sua voz”, a mulher magra disse. Agora, ela estava mais parecida com uma bruxa, um contraste interessante com a visão anterior, uma louca assediando moralmente as pessoas que iam para a praça. (Enquanto escrevo o que aconteceu, percebo que me vi nela. Eu estava assediando os outros. Que merda). “Você precisa cortar os palavrões, eles ficam feios em sua boca.” (Puta merda, ela tem a porra da razão.) Quando percebi, estava novamente ao seu lado. “Sente-se. O Tarôt surgiu no século dezesseis, no norte da Itália e não tinha nada, absolutamente nada, de magia ou qualquer mancia. Ele era, veja bem, usado como um baralho normal. Paus, ouro, copas e espada. Nada de diferente: baralhos diferentes para jogos diferentes, nada de diferente, não senhor. Apenas em alguns países o Tarôt é usado por charlatãs. No meu caso”, ela disse com um acento forte, olhando-me sobre seus óculos, “eu posso ver não o seu futuro, pois este pertence às três irmãs, mas o seu passado. Engraçado, não? Eu nasci com uma habilidade interessante, que se revelou a mais desinteressante de todas. Sem fortuna para ti, minha mãe costumava a dizer. Ah, não senhor! Sem fortuna para ti ou para me. Ofereço memórias, Jó. Suas memórias, pobre rapaz. Não faça essa cara, ofereço ajuda, não medo. Veja, pense em mim e puxe uma carta.” Ela abriu um leque com o baralho velho e eu obedeci. Era uma figura feminina, parecida com as damas dos baralhos que podemos comprar por aí, por menos que um maço de cigarros. “A Papisa. Representa sabedoria, visão. Entendeu? São representações, estamos combinados. Vou ler o seu passado, Jó. Pelos próximos minutos, você vai sentar aqui, puxar cartas e me escutar, entendido? E esse é o máximo de futuro que consigo prever.”
Ela devolveu a carta e abriu um novo leque. Com dedos trêmulos, puxei uma nova carta. Vi o desenho de um bufão, um louco da corte segurando o que parecia ser uma trouxa. Na outra mão, apoiava parte do peso sobre um cajado.
“O Louco. Conveniente”, disse com um sorriso aberto no rosto. “Sua história é sobre buscas. Você sempre esteve vagando por aí, correto? À procura de algo para completar um vazio que tem no peito, buscando por um peso para seu peito leve. Enquanto muitos imploram por alívio, você quer o peso para carregar. O Louco, pois bem. Eis sua definição. Toda busca, no entanto, tem significado. Ela resulta de sua solidão e das dores de seu passado, das cicatrizes que ainda não se fecharam por completo. Sua solidão, Jó, é resultado de sua errância. Você não é um ser solitária, mas adquiriu tal qualidade com suas desavenças. Puxe outra.”
Assim o fiz. No entanto, meus dedos escorregaram e duas cartas caíram sobre o banco de madeira. Uma delas mostrava um lobo mal desenhado sobreposto numa lua redonda e inchada de forma impossível; a outra representava o mesmo lobo domado por uma mulher. Talvez fosse um homem, eu não tinha muita certeza.
“A Lua e a Força. Agora começo a entender seus caminhos. Você experimentou um mundo de reflexos. Imagens, reflexões, pensamento… são as características desta carta”, levantou o lobo e a lua. “Mas, a Força… ela representa o que impulsiona, a sede que o faz levantar todas as manhãs. Julgando por seu semblante, eu diria que fazia se levantar. Essa é a beleza do passado, meu caro. Ele não é uma ciência exata e exige muita, muita interpretação. Sou como um Sherlock Holmes, vê? Procuro por indícios... já leu O Nome da Rosa?”
“Acho que vi metade do filme”, respondi.
Ela sorriu novamente, complacente desta vez. “Logo no início, o personagem principal… nosso Holmes da Idade Média, descobre a raça e o nome de um cavalo apenas por indícios físicos e geográficos. Por Deus, ele descobre que a confusão era sobre um cavalo, em primeiro lugar, sem qualquer dica. Fantástico, se você me perguntar. E tudo por causa de um sorriso. Mas eu divago. O que me resta com essas duas cartas é justamente interpretar os indícios. Eu vejo uma força muito poderosa em seu passado, algo que fazia seu mundo girar como o sol para o mundo de Galileu. Era algo centralizador, talvez um catalizador de todas as suas ações.” Ela se calou e me observou. “Essa força… ela normalmente se revela como um grande objetivo. Você me cita algo e eu posso mostrar a Força. Um Jedi, se quiser. Escrever um livro, ser presidente, deitar com cem mulheres. Dinheiro, fama, poder ou”, apontou para a marca branca que rodeava meu dedo anular, “amor. Você está divorciado. Pelo menos separado. É o seu eclipse, estou certa?”
Concordei com a cabeça. Eu sentia falta de Laura. Laura, meu mundo, minha paixão. No final, minha queda.
“Agora, a Lua. Era tudo uma imagem daquilo que você desejava. Seus olhos viam nela o que você queria, não o que era. Talvez fosse interesse ou necessidade, mas nunca amor de verdade. Agora você está aqui, um homem com o coração partido, um Louco que procura por sofrimento, por solidão. Vamos ver o que aconteceu. Puxe outra carta.”
Não queria continuar com a loucura daquela mulher. Ela estava cutucando com unhas afiadas as minhas feridas que ainda sangravam, para começar. O pior é que ela estava se divertindo com aquilo. Eu podia me levantar e ir embora, podia simplesmente abrir a minha boca como se estivesse em um bar e derramar a minha história triste para ela, explicar como essa sombra crescia em meu coração e como, centímetro por centímetro, eu deixava a noite tomar conta de quem era, deixava a bruma envolver minha mente. Estava entrando em piloto automático e revelando uma pessoa estranha que vivia em mim. Uma pessoa cruel. Medo. Acho que foi essa a cola que me deixou preso naquele banco. E, caro leito, eu estava aterrorizado.
“Ah”, seu rosto se iluminou. “El Diablo. Entendo. Tentação, destino… o que você quiser chamar. Clichê?”
“Sim”, respondi com uma voz fraca. De repente, minha garganta estava seca. “O maior clichê, na verdade. Ela me começou a dormi-”
A mulher ergueu a mão e me interrompeu. “O passado não é uma ciência exata e sua história é desnecessária e estou aqui para te lembrar do que aconteceu, Jó. Apenas sei o seu nome. As cartas me contaram, ou os pássaros, se preferir. Sua história é sua e sua apenas. O diabo aconteceu, talvez literalmente. Você era feliz, tinha sua vida protegia e vivia o sonho, com uma bela mulher e toda a felicidade que um homem poderia experimentar. Isso foi antes, antes de se tornar no Louco. Cristal, é como vejo seu passado agora: transparente como cristal. Não os fatos, os fatos pouco importam para mim, Jó. Eu vejo as cristas, as ondas, o impacto dos fatos. Eu vejo seu cavalo, sua cor e nome, por assim dizer.” Ela se levantou num ímpeto que me assustou. Se estivesse segurando um sorvete, o teria derrubado. Karma, talvez; coincidência, provavelmente. “Estou atrasada. Mas ofereço uma última carta. Quando você olha tempo o suficiente para o passado, Jó, o futuro se conquista facilmente, como uma meretriz bêbada. Talvez a próxima carta revele seu futuro. Talvez eu seja uma louca que você conheceu na praça. Me chame de louca, me chame de Clio, me chame de bruxa. Mas vá em frente, pegue uma última vez.”
Com dedos suados, puxei duas cartas. Ela não as revelou. Numa explosão, revi minha vida. O tempo parou e todas minhas decisões realizaram uma parada diante dos meus olhos. Quem eu era, quem fui e o que aconteceu. Laura dormindo com algum desconhecido sem rosto, figura que eternamente faria parte de meus pesadelos, foi algo que quebrou o espelho e me fez olhar para sua carne, a verdadeira Laura, pela primeira vez. Vi novamente aquela figura horrível, mesquinha e manipuladora, a pele tentadora banhada pela luz da lua e as cordas que me faziam dançar penduradas de seus dedos, sem nada prender na outra ponta. Eu estava livre. Livre para ser um louco sem rumo, sem pertences ou destino. Duas cartas com as costas viradas para mim. Eu era o Louco. Erro, procuro. Sofro. Sou, realmente, o Louco? Era esse o meu futuro?
Escolha, ela dizia com os olhos. Tudo depende de suas escolhas.
Escolhi.
Ela recolheu a outra carta e a enfiou no meio do baralho. “Olhe para o futuro e aprenda o passado”, ela disse antes de sumir entre os casais felizes que andavam de mãos dadas. Eles não eram mais pessoas malditas. Eram simplesmente casais de mãos dadas. É tudo uma questão de interpretação… de como escolher ver o mundo e agir conforme. Escolhas. O futuro - qual futuro - dependia de minhas escolhas.
Virei a carta.

O Mundo.  

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Demão

Apertou o seio que estava confortavelmente protegido em sua mão. O quarto tinha o ar carregado, pesado pelo sexo desenfreado mais ou menos contínuo nas últimas seis horas. O casal respirava pesado, cabelos em puro caos, roupas espalhadas por todos os cantos. Um aparelho tocava Beatles. Ou The Who. Talvez fosse Queen, ele não conhecia muito sobre bandas de caras cabeludos. Olhou para o teto, observou a pintura rachada e sorriu, enxergando perfeição e paz naqueles detalhes ao redor. Um teto descascado. Havia algo mais singular do que camadas de tinta caindo sobre eles durante a transa? Foi como viu no primeiro filme que assistiram juntos, Quase Famosos. Os dois protagonistas conversavam sobre… sobre bandas de caras cabeludos e um deles, o guitarrista ou baterista - talvez ele precisasse prestar mais atenção no que era importante para ela - falava sobre o que sobrevivia ao desafio do tempo. Ele usava uma música como exemplo e não falava sobre o solo ou sobre a letra. Referia-se no sutil oh no final da canção. Aquilo era memorável. O breve oh que sobressaltava, mesmo diante da maestria musical de algum cabeludo qualquer. Vá saber. Era o mesmo, com as camadas de tinta que se desprendiam do teto e caiam ao redor, colando nos corpos suados. A tinta representava a nova vida, a completa paz que sentia naqueles dias.
“Precisamos desencostar a cama da parede.” Suas mãos ainda acariciavam o corpo nú, uma delas nas nádegas firmes da mulher.
“Você acha que os vizinhos vão se incomodar? Eles nunca reclamaram, não vai ser da vigésima vez que vão se importar com nossos… hum… barulhos.”
Ergueu o corpo com um pouco de dificuldade e puxou uma casca de tinta branca. “Vamos acabar derrubando o prédio, baby. Uma camada de tinta por vez.” Olhou para os dedos do pé e o balançou de um lado para o outro. “Vigésima? Por um acaso está contanto?”
“Claro que não”, mentiu, “eu perdi a conta lá por maio. Trinta e oito, acho. Estamos em…”
“Novembro.”
“Isso, novembro. Deus, estou perdendo a noção do tempo. Estou bem feliz com você, sabia? Você me completa.”
“Quem escuta CDs ainda? Temos de comprar um MP3 para você ouvir suas músicas, querida.”
Ela se livrou do abraço e sentou na cama, dobrando as pernas em lótus, rolando os olhos enquanto pegava o maço de cigarros e o isqueiro de plástico. Pescou um cigarro e acendeu. “Eu gosto dos meus CDs, ok? Deixe suas patinhas bem longe deles. E você não me respondeu”, terminou com um leve tapa na barriga dele.
Envolveu-a novamente num abraço galante. “É claro que também estou feliz. Eu te amo mais do que qualquer coisa.” Beijou a barriga diversas vezes, antes de se afastar, tossindo, da terrível fumaça do cigarro.
“O que você tem para fazer o resto do dia?”
“Nada muito importante. O de sempre. Voltar para o escritório e pegar a pasta que esqueci. O que é isso que está tocando?”
“Led Zeppelin. Você esquece toda vez, poxa. Sempre que sua mente explodir durante um riff, é Led Zeppelin.”
“Achei que fosse Beatles. Ou The Who… Tá bom, achei que fosse Queen.”
A música acabou e outro CD começou a tocar em seguida.
“Agora você está simplesmente cuspindo nome de bandas”, disse.
“Essa é outra do Led Zeppelin!” Apontava para o rádio, como se fosse um promotor utilizando o melhor gesto acusador que tinha, depois de anos e anos de prática.
“Rolling Stones. Você é péssimo nisso, né amor?” Fechou os olhos por alguns instantes e escutou Paint in Black, deixando a melodia entrar em sua cabeça. O corpo estava dolorido, mas era o tipo de dor que a faria sorrir durante o banho. Olhou para o teto e descobriu que realmente precisavam pintar o teto da casa que dividiam. “O que você está lendo atualmente?”
O homem se sentou na cama e esticou os braços, anulando uma pequena parte da tensão que tinha sobre os ombros. Viu, do lado do rádio, um Tolkien com dois marca-páginas enfiados no mesmo lugar. “Não sei como você consegue perder tempo com essas porcarias, sinceramente. Dragões, elfos, gnomos, orcs… tudo isso não faz bem para você, garota.”
Adorava quando ele a chamava de garota, mas odiava quando desconversava. Odiava ainda mais quando criticava seus gostos. “Eu leio o que quero. Além disso, Tolkien é do caralho e…”
“Era um filólogo e por isso escrevia pra caramba”, terminou a frase para ela. “Eu sei, eu sei. O tempo é seu e você o usa como bem entender, eu suponho.” Abotoava a camisa enquanto falava, já procurando pelas outras peças que vestia quando entrou no apartamento, horas atrás. “Respondendo: um livro sobre sexo na Idade Média. Bem interessante. Costumes em comum, por assim dizer… estupros coletivos, execuções em fogueira e auto-flagelo, só coisa leve. Sabia que as mulheres eram punidas severamente por adultério, enquanto os homens recebiam penas leves? A Igreja entendia que as mulheres eram lascivas, no geral.”
“As mulheres, sei.”
“É sério, meu amor. Eu sei que é machismo, mas era assim. Pura história. Escuta essa, então: se um homem cometesse adultério com uma mulher feia, a pena era muito maior do que se transasse com uma mulher bonita, porque a tentação seria menor, naquele caso, e ele demonstraria uma fé fraca. Percebe? Uma mulher não-atraente seria fonte de pouca tentação e pecar com ela, sinal de que o homem não era virtuoso. Já as mulheres lindas justificavam o pecado. Em se tratando de sexo, as mulheres eram verdadeiras súcubus. Súcubuses? Enfim, qualquer que seja a palavra. Uma ajuda com a gravata? Obrigado… Numa região, os homens matavam o tédio bebendo, brigando e cometendo estupros coletivos, visando mulheres que já não eram virgens ou estavam separadas dos maridos. Eles queriam manter a graça das mulheres corretas. Cúmulo, né? A Igreja era foda.”
Ela terminou o nó mal feito e voltou para o cigarro, agora pela metade. Achava interessante que ele lia livros diversos, apesar de ser um contador profissional. Números, quantias, valores, câmbios, esse era o seu mundo e não as prostitutas esquecidas pelo peso de séculos e séculos no passado. “E os homens nunca tinham culpa?”
“Tinham, sim senhora. Senhorita, desculpa. Eles pegavam penas leves, como eu disse. Por estupro, passavam alguns dias na prisão ou pagavam uma multa. Se fizessem sexo durante a menstruação, masturbação em conjunto com outros homens, sodomia… tudo era punível com alguns dias de pão e água, um sinal de cruz e pronto: alma limpa e pé na estrada. Acho que eles pegavam algo mais por se masturbarem em buracos feitos na madeira.”
“Farpas, por exemplo?”
Fez uma careta de dor e respondeu “Farpas, por exemplo.” Terminou de calçar os sapatos e caminhou até o livro do Tolkien, uma cópia do Contos Inacabados. Estudou por alguns segundos a figura, uma cópia de algum deus nórdico, que se erguia da água, majestoso e ameaçador. Nunca entendeu o apelo daqueles livros, suas regras e seriedade. Porque aquele deus que se levantava do mar não podia invadir o continente e acabar como todos os inimigos dos homens bons? Com um tridente como o da capa, ele com certeza arrasaria muitos orcs sem qualquer esforço. Livro besta. Olhou sobre o ombro para a mulher. Ela era linda com aqueles olhos redondos, seios empinados e coxas firmes. Ela fumava, olhos fechados e a mão direita dedilhando cordas invisíveis. Puxou um dos marca-páginas e o escorregou para dentro do bolso da calça. Marca-páginas davam boas histórias e eram uma ótima ferramenta para aquilo que queria. Prendeu o relógio ao redor do pulso e disse: “Baby, tenho de ir, tenho muita coisa para fazer.” Ela não respondeu. “No que você está pensando?”
Abriu um dos olhos e mandou um beijo para ele. “Que tenho sorte por ter você. Com ou sem Igreja regulando os orgasmos das pessoas e como elas deveriam fazer sexo para fugir do inferno, tenho certeza que te amo e que você é a pessoa certa para mim.”
Pulou na cama, sem se importar com a roupa já amarrotada e a beijou longamente. “Isso, minha princesa, é amor. Puro e simples.” Pegou uma das mãos da mulher e beijou os dedos. Foi quando lembrou do anel. O coração pulou no peito e ele se ergueu num ímpeto, procurando pela aliança na bancada, bagunçando CDs e livros.
“Está no banheiro, ao lado da minha”, disse sem precisar perguntar. A cara de culpa era quase hilária, não fosse trágica. Considerava-se mais forte nesse aspecto e sabia que se algum dia fossem descobertos, seria culpa dele.
Olhou para ela, sem graça, e concordou com a cabeça. No banheiro, achou a aliança com facilidade. “Quer a sua?”, perguntou.
“Depois eu pego, vou tomar banho e voltar para casa. Quando você volta para cá?”
Quando respondeu, já estava girando a maçaneta do quarto, pronto para desaparecer por uns dias. “Não sei. Vou viajar com minha esposa no final de semana - os pais dela querem ver os gêmeos - e estou atolado de trabalho no escritório.” Pensou por alguns instantes e continuou. “Acho que é a minha vez de fazer jejum, de certa forma.”
“Tudo bem, eu fico em casa algum tempo, para ter certeza que estamos seguros.”
Ele piscou e fechou a porta. A mulher aumentou o som do rádio e ligou o chuveiro. Ele calculou que ela já estava com a aliança no dedo e pensou se tinha mais energia sexual. Decidiu em negativa e caminhou até a porta da sala. Poucos minutos depois, estava dirigindo automaticamente. Escolheu o caminho para casa, quando sentiu as nádegas coçarem. Aproveitou um sinal vermelho para colocar uma das mãos para dentro da calça e tirou de lá um pedaço de tinta. Sorriu. Perfeito. Começou a dirigir novamente, pensando em ir para o braço de sua esposa, mas seus instintos eram fortes e a fome, insaciável. Ele fez curvas e mais curvas, desviando do caminho que deveria pegar. Estacionou na frente do Clube e tirou do bolso o novo marca página. Ainda tinha três horas antes de voltar para casa e estava pronto para jejuar por alguns dias. Jejuar fazia bem, limpava a mente e tirava um pouco o peso de seus pecados. Ainda bem que não acredito nessas coisas. Minha alimentação seria praticamente pão e água o tempo todo, refletiu. O tempo todo. Guardou a casca de tinta velha no porta luvas, onde ficou esquecida para sempre.
Estudou o marca-página. Pensou na história que contaria, de como aquele marca-página havia parado em suas mãos e saiu do carro.

Que mal havia em um banquete antes de começar o jejum?

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Corvos

O sobretudo estava sujo; a barba crescia selvagem até seu pomo de adão, um toque de branco nas pontas dos fios. Ele caminhava, traçando um caminho tortuoso pelas ruas de Londres. Em suas mãos, a mochila com poucos pertences e uma garrafa com dois dedos restantes de rum, alternavam-se constantemente, procurando balancear o peso. Desta forma, ele incrivelmente conseguia alguns metros em linha reta. Poderia atravessar a porra do Canal da Mancha numa corda bamba, pensou pouco antes de se escorar na parede mais próxima.
Um policial se aproximava. O mendigo prontamente ajustou a postura e procurou uma bala que tinha num dos bolsos. Colocou-a na boca alguns segundos - saboreando a menta artificial - para depois voltar o doce para o mesmo bolso. Com o tempo, descobrira que hálito era um importante fator para conversar com os policiais que o abordavam. Por isso, sempre que podia, dava preferência para a vodka. Vodkas não deixavam cheiro e rapidamente alcançavam o grau ideal de torpor. Algo menos do que a quantidade perfeita de bebida para afundar seu cérebro no confortável véu do álcool e ele começava a pensar no que havia deixado para trás. E em corvos. Corvos de todos os tamanhos e - um pesadelo recorrente - um único corvo de três patas.
“Vamos, campeão, circulando”, disse o policial, retirando a tonfa da cintura.
O homem tentou caminhar, mas dá um passo em falso, denunciando a embriaguez. “Só preciso me sentar um pouco, senhor Corvo. Só alguns minutos e estarei bem.”
Fazendo uma careta, o policial continuou: “Corvo? Vocês fodem essa cidade, pelos diabos. Nove da manhã de uma quarta-feira ensolarada e já bêbado. Sabe o quanto é raro um sol desses por aqui? Se você tivesse de enfrentar a cara da minha mulher todas as manhãs, teria desculpa para beber, campeão. Mas assim? É apenas… uma merda. Nada pessoal, no entanto. Apenas fazendo meu trabalho.” Esticou a perna e enxotou o mendigo espalhado pela calçada toda.
“Me deixe em paz, não consigo andar. Vá embora, voe para longe. Não faça como antes, quando estávamos desaparecidos e a mamãe chorava toda a noite, porfavorporfavorporfavor…”, ele começou a chorar e sua voz se tornou mais e mais aguda.
“Ei, ei, ei. Está bem, eu te dou alguns momentos” O policial dobrou as pernas e se sustentou no mesmo muro que o mendigo e ficaram, lado a lado por alguns segundos. “Como você veio parar nas ruas?”, ele perguntou. Se tinha de esperar para removê-lo, pelo menos escutaria uma boa história.
O mendigo tirou a tampa da garrafa e deu um demorado gole e ofereceu para o policial. Ficou surpreso quando a garrafa foi puxada de sua mão e lançada para dentro de uma lixeira ao redor. “Bem, ela já estava seca mesmo.” Passou a língua nos lábios e prosseguiu: “Você não acreditaria na minha história, sou apenas um velho bêbado.” O policial respondeu girando o dedo indicador de uma das mãos: pare de enrolar e conte logo. “Quando eu era pouco mais que um pirralho, eu e meu irmão entramos em um bosque e desaparecemos por alguns dias. Ou semanas, já não me lembro. Acho que éramos em cinco ou seis crianças. Mas apenas eu retornei. Você pode facilmente encontrar essa história nos jornais. Foi uma confusão só. Todos queriam saber onde eu fiquei, o que aconteceu e onde estavam as outras crianças mas… eu simplesmente não sei. Não me lembro do que aconteceu nesse tempo. Ou onde estava o meu irmão, ou os outros. Merda, sequer sei porque fui o único a escapar. Nos próximos anos, psicólogos, drogas, hipnose… todo o procedimento padrão se desenrolou. Na minha cabeça, apenas as asas negras do corvos. Eu sonhava com pássaros negros quase todas as noites e algumas vezes eles falavam comigo, alguns me chamavam de traidor, outros de irmão. O único que não repetia estas palavras era um corvo que parecia ser o líder, um corvo de três patas. Suplicava para que eu entrasse novamente na Bruma. Não uma bruma qualquer, mas uma com B maiúsculo. A Bruma. Loucura, não?” O mendigo passou as mãos nos lábios secos e reclamou: “Você não devia ter jogado meu álcool fora. Foi sacanagem.”
“E depois? Acharam seu irmão?”
“Nunca. A única coisa que acharam no bosque em que nos perdemos - e que não existe mais - foram muitas penas de corvos.” Como se tivessem escutado o que diziam, dois corvos pousaram na calçada, há poucos metros de onde estavam. O policial tentou espantá-los, mas eles continuaram a pular, procurando migalhas no chão. Tentou negar o dedo frio que subia por sua coluna, mas falhou miseravelmente.
“Fugi de casa na primeira oportunidade, desapareci como se nunca houvesse existido naquele teto”, continuou o mendigo. De repente, senti que precisava encontra a tal Bruma, havia uma voz que não a minha em minha cabeça e ela gritava o tempo todo. Vá para o Bosque e entre na Bruma, seu irmão precisa de você! A mesma coisa, todos os dias, todas as horas e em cada maldito minuto. Eu saí de casa, depois da cidade e, no fim das contas, vaguei por todos os cantos do mundo. Em poucos meses gastei tudo que consegui e sobrevivi com o dinheiro de trabalhos menores, virando hambúrgueres, pintando casas ou deixando piscinas limpas para as festas durante o fim de semana. Fiz coisas das quais não me orgulho e vez ou outra flertei com químicos mais pesados que aquele rum ali. Morei na Bolívia, no Egito, nas Coréias e Austrália.” Viu que agora, quase uma dezena de corvos estavam amontoados ao redor.
Uma fina camada de nevoeiro começava a cobrir a rua e o policial olhava para cima, confuso com a névoa que persistia, apesar do sol forte.
“Nunca consegui parar em um só lugar. Algo… essa mesma voz alienígena em minha cabeça, me mandava seguir adiante, procurar pela Bruma. Sentia-me cada vez mais como um pássaro fora do ninho, que voou para longe e se perdeu, um corvo solitário que procura pelas outras partes de uma identidade quebrada.” O mendigo olhava os pássaros, quase como se pudesse entendê-los. O policial estudava seu rosto, tendo a certeza que via pontas negras crescerem dentre a barba hirsuta. Um corvo?, perguntou-se no instante em que foram engolidos por uma névoa pesada e escura, vinda de lugar nenhum.
A névoa subiu rapidamente e logo estava alcançando o segundo andar dos prédios. O policial podia escutar dezenas - ou seriam centenas? - de asas batendo em todos os cantos do mundo, ao que parecia. De repente, a névoa mudou. O policial sentiu um espécie de bolha se formando, englobando toda o centro de Londres. Vozes começaram a surgir e os corvos grasnaram vigorosamente. Sem conseguir acreditar no que acontecia, o policial compreendeu duas palavras dos pássaros: traidor e irmão. O mendigo se levantou e começou a caminhar lentamente, produzindo o som afogado de lágrimas escorrendo para dentro da garganta, concordando com as vozes como se finalmente se lembrara de algo há muito esquecido. Por alguns instantes, ele viu o mendigo como um corvo gigantesco e contou três patas. “Me diga seu nome, posso ajudá-lo a--”
“Nomes são poderosos, agora eu me lembro. Não posso entregá-lo assim, Policial.” O homem-corvo disse a palavra como se fosse o verdadeiro nome do homem que ainda estava agachado na calçada. “Dizer meu nome seria como entregar minha alma, deixá-la em suas mãos. Cráá”, o som saiu de sua garganta, horrível e rouco. “Preciso ir, eles me esperaram o suficiente e os Pesadelos estão cada vez mais fortes. É fácil, como não percebi antes? Só preciso seguir a luz do Farol.”
Tão rápido quanto subiu, a névoa desceu e se extinguiu. O policial se viu sozinho, encostado em um prédio qualquer de Londres, sentindo o uniforme grudado na pele. Tudo se tornou sem sabor e a realidade parecia… menos real. Como se ele estivesse em um dos mundos dentro de um dos Universos. Bem, ele pensou, é um entendimento que desqualifica o Universo enquanto Uni.

Sem o mendigo por perto - ou os corvos, se isso importar, ele fez a única coisa que lhe pareceu plausível: levantou-se e pegou a garrafa de rum. Poucos instantes depois, sua garganta não estava mais seca.