quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Lar

Deixei a frase solta no meio da mesa da escrivaninha. Quero me separar. Chegando do trabalho, minha esposa me procura. Eu estava em silêncio no quintal mas ouvia sua voz ecoando pelos cômodos.

No escritório, a tela em branco com o cursor piscando após a frase. Limpa, livre, em destaque no monitor. Ela veio voando pelo corredor, a esposa. Olhos chorosos. Eu disse:

- Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios – sabendo que havia deixado a frase na tela para desenvolver uma ideia que me surgiu ouvindo uma versão de Caetano. Um homem que anseia terminar uma relação. Estava no quintal para pensar se o argumento tinha enredo.

Sou casado há um ano e meio, namorei por quatro, portanto, há quase seis anos que Fernanda me conhece. Ainda não se acostumou a ver minhas frases jogadas pela casa louvando musas inexistentes, desconstruindo histórias sadias, maldizendo gerações anteriores de família que minha ideia inventara.

Parte de meu primeiro aprendizado com a leitura, a literatura graúda, foi com romances policiais. As narrativas noir com detetives na margem entre a moral e a corrupção e mulheres mais fatais que uma caixa de dinamite. O resultado é que, sempre que posso, descrevo nádegas em meus textos. É um vício bobo, para me fazer rir. Normalmente no corte final retiro a bunda dissonante por não caber no texto. Mas Nanda sempre me olha de esguelha quando, ao ler as narrativas de antemão, encontra minhas bundas rondando um falso desejo.

São apenas nádegas – digo a ela – de ninguém específico – nádegas são expressivas, eu penso – não descrevo as suas porque são só minhas – ela sorri com o elogio despudorado. Seis anos de relacionamento e ela ainda imagina que eu possa incorporar um de meus personagens. Decidido, de uma hora para outra, deixá-la. E, pior, avisando-a de uma maneira brusca, insensível e irritantemente cênica. Gostaria de brincar dizendo que, se eu realmente a abandonasse, utilizaria a tática de sair para comprar cigarros. Mas ela provavelmente se irritaria e ficaria emburrada no sofá o resto da noite.

Levanto da cadeira e seguro suas mãos. Ela precisa desse contado. Ela sabe que tudo que há dentro daquele escritório é material de trabalho. Lá sou um homem inescrupuloso  um imoral, um assassino, um pervertido, um monge, uma mulher, uma mulher devassa com nádegas que param o transito, uma criança que vende trocados no sinal, o gay enrustido que só descobre aos quarenta que se enganou a vida toda e tem uma epifania.

Mas ela precisa de uma confirmação.

- Aldir Blanc e João Bosco, Incompatibilidade de Gênios. Estava ouvindo essa música ontem no disco do Caetano, não se lembra? – Ela precisa saber que aquelas palavras estão dentro do campo da ficção – isso me deu a ideia de um homem que quer deixar a esposa e começa um relato assim, sem rodeios, agressivo.

Os olhos voltam ao normal. Ela sabe. Ela se lembra. Mas o impacto causou susto. Por um lado, é positivo. Significa que o conto tem potencial. Resta-me desenvolvê-lo por completo. Então, ela me dá um beijo na boca, me dá as costas e vai para a cozinha.

- Odeio Caetano – me diz, de longe.

Enquanto aumento a voz, cantando você me deixa a rua deserta, quando atravessa e não olha para trás. E a ouço sorrindo.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

palmas aos ares

Lia, entre cerveja e outra, uma meia página pulp que sobrara no fundo do bar. Escrito estranho, dizia assim:

"Ele era o gato do destacamento. Acompanhava aquele grupo de velhos mateiros desde que saíram do Recife, alguns anos atrás. Era confortável, afinal de contas: sempre sobravam pedaços de carne, às vezes cozidos, e os homens não se importavam que ele deitasse bem perto da fogueira, roubando espaço precioso que – não houvesse gato – seria usado para aquecer a barriga embriagada de alguém.

E o que ele devia fazer em troca era bem simples. Algo que, gostava de pensar, ele faria de qualquer jeito, com homens por perto ou não. O gato caçava ratos, espantava aves e animais selvagens, cuidando para que a intendência dos bandeirantes não perdesse comida para os seres da mata. Simples, não? O gato tinha certo orgulho de fazer parte daquela bandeira. O que pensariam dele,  na  cidade,  quando  voltassem  e  todos  soubessem  da  coragem  felina  frente  aos  perigos selvagens? Ele tinha certo orgulho, de fato.

Deitado ali, no chão de terra batida sob o teto de palha recém-montado, o gato até lembrava das últimas noites, quando os homens se divertiram com a caça que finalmente alcançaram. O gato não entendia muito bem os motivos, nem que tipo de bicho era aquilo, os caçados pela bandeira. Pareciam homens, não pareciam?  O gato enxergava um mundo monocromático, pouquíssimas cores, quase nada, mas podia apostar que aqueles homens caçados, se não eram homens, eram muito parecidos com os bandeirantes a quem ele servia tão lealmente. Talvez as roupas fossem diferentes, os caçados usassem menos, fossem um pouco mais nus. Talvez fossem pouco mais escuros do que os caçadores. Mas eram todas suposições, essas, e o gato não tinha certeza de nada. 

Lembrando da noite anterior, entretanto, tinha certeza de que o cheiro de sangue era real. Os gritos, gemidos, açoites e rápido deslizar de lâminas também ecoavam no ouvido felino até agora, um dia depois. E as explosões! Mosquetes, bacamartes, pistolas piratas roubadas dos holandeses. A pólvora correndo e comendo as costas dos homens-caça, mais rápida que as garras dele, gato, voando com as quatro patas para cima de um rato hostil.

Resolveu parar de pensar. Não entendia aquilo tudo, não via nenhum triunfo na festa dos caçadores. Os homens com pouca roupa não roubavam a comida, roubavam? Porque, se roubassem, o gato já desde há muito teria enfiado as unhas na cara dos depravados. Então, se não roubavam comida, se não roubavam fogueira, por que eles eram caçados por entradas e bandeiras? 

Sem se levantar, sem mover a cabeça, os olhos do gato viam as pernas do Calabresa, um chefe de capataz. Não era capitão-do-mato, o Calabresa, mas também não era um capacho. Ficava ali pelo meio, entre o homem que cuida do banheiro e o bandeirante-mor que coordena o ataque. Calabresa aguentava o baque, isso até o gato sabia. E ali, sentado na cerca, na beirada do tablado, se protegendo da chuva fina que caía naqueles lados de agreste pernambucano, Calabresa pitava fumo e catucava com ponta de faca a sujeira das unhas todas. 

Batendo ritmados, os pés do bandeirante faziam um som bem chato, mas o gato não se mexia. Via as pernas do homem, os dois pedaços de caibro que faziam aquela cerca e, para lá dos limites telhados, a floresta verde escura anoitecida e úmida de chuva fina. Ouvia ruídos distantes mais do que sentia cheiros, mas nenhum dos barulhos dizia respeito a ele. Até onde percebia, os movimentos  em  torno  do  acampamento  não  eram  de  bicho,  nem  ratos  nem  aves,  então  os bandeirantes que se virassem. O gato não levantaria.

Mas, reparando bem, os movimentos vinham em círculos, pouco a pouco e vagarosos, aumentando o número de pontos móveis conforme se aproximavam dali. Fosse estrategista, o gato perceberia que um cerco já se formava, desde o coração da mata. Mas não era, e com o olfato danificado não sentiu o cheiro de carne podre que o teria apavorado. 

Olhando as pernas de Calabresa, o gato agora avistava um sutil movimento nas mesmas. Como se estivessem tremendo. Agora, como se estivessem levitando. Os pés a dois palmos do chão, a três, sangue, mijo e suor escorrendo da perna afora, inundando o tablado, encharcando as ceroulas. O corpo do homem tombando na mata, de costas, e o gato finalmente com a cabeça levantada. 

O cerco fechado, zumbis dos Palmares por todos os lados, a comida na intendência intacta. O gato podia dormir tranquilo: o segredo do quilombo e o lombo de pernil não seriam ameaçados, pelo menos não nos próximos dias, pelo menos não pelos homens honrados daquela bandeira, pelos homens devorados daquela bandeira."

- Que é isso aqui?, perguntou a Joana.

Ela não sabia.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

As Brumas do Farol 3 - "...São objetos úteis, pontes."


Andaram pela trilha até o sol nascer e descer três vezes. Apenas Paul sentia o esforço nas pernas e eles precisavam parar de tempo em tempo para ele se recompor e massagear os músculos doloridos. O estreito caminho aberto na mata do Bosque seguia quase em uma perfeita linha reta, desviando apenas das árvores maiores e com aparência perigosa. A flora pouco mudara durante o percurso e Paul pôde estudar um pouco mais as orquídeas que soltavam esporos, além de rosas que tinham bocas e dentes em seu centro; certo momento, cruzaram um campo de girassóis vermelhos, cujo óleo tinha o poder de matar mil vezes mil homens. Algumas árvores se moviam quando eles se aproximavam, golpeando com poderosos galhos qualquer um tolo o suficiente para entrar em sua área de alcance.
A fauna, no entanto era quase inexistente. Ao menos era o que eles viam. John, no alto, podia enxergar os animais - um termo duvidoso para categorizar as criaturas que corriam pelo Bosque - disparando em direção contrária, deixando rastros de poeira que logo se desmanchavam no ar. O Corvo escutava as vozes em sua mente, dezenas delas, todas alertando para que dessem meia volta e voltassem para o diabo de lugar de onde vieram. Tolos, as vozes diziam, a Bruma está se expandindo pela primeira vez em Eras! Por milênios ela permaneceu estática e agora os Impérios erguidos em sua fronteira tremem diante os mistérios e pesadelos que povoam a névoa amaldiçoada. Voltem para o seio de suas mães, tolos!
Por três sóis eles caminharam. Até o momento em que chegaram no grande rio e viram o velho oriental sentado em uma larga pedra. O rio corria furioso e suas águas eram turvas. Robert viu, na outra margem, o mastro de um gigantesco navio, desaparecendo rapidamente na voracidade das águas, que tudo engoliam para saciar sua ganância. Eram águas perigosas e traiçoeiras. John, o Corvo, não podia ver o começo ou o final do rio e sua largura percorria diversas horas de caminhada. Não havia possibilidades de atravessar aquelas águas em pouco tempo. E o tempo, sabia o pássaro, era o bem mais precioso que tinham. As Brumas estão vindo, pensou em sua antiga voz de humano e então escutou as vozes das criaturas uma vez mais: Voltem para o seio de suas mães, tolos!
Quase na margem do rio, uma grande pedra oval dava descanso para um velho. Ele tinha os olhos pequenos, quase dois cortes no rosto enrugado e uma longa barba branca caia sobre seu colo. Sentado em lótus, o velho usava roupas voluptuosas, parecida com as roupas dos Imperadores imortais da Ásia nos livros de história. Ao seu lado, uma velha bolsa de couro descansava na sombra de uma árvore, a primeira árvore de aparência segura que eles encontravam em dias. “Continuem em seu caminho, aventureiros. A Bruma está chegando e meu tempo é curto”, o velho disse, com uma voz calma e suave. “Persuadi-los-ia com minhas palavras a não mais seguir na direção para a qual agora estão voltados, afinal o rio oferece seus perigos e armadilhas. E a Bruma esta chegando, como anteriormente disse. Mas o caminho de vocês não é meu para tomar ou comandar. É de vocês apenas. Sigam, eu não ofereço perigo ou resistência.”
Robert, cujas feridas causadas na luta contra a mosca ainda sangravam lentamente, olhou para o rio e depois para o velho. Por fim, sentou-se encostado na pedra, acompanhado de Paul e John, que ciscava à sombra da árvore. “Como podemos atravessar o rio?”, perguntou o samurai.
O velho retirou um cachimbo de uma das mangas e algumas pederneiras. “Vocês não podem.”
“Deve haver um meio.”
“Sim, deve. Mas não há.” Ele soltou fumaça pela boca e apontou para John. “Ele pode.”
“Todos nós precisamos atravessar a ponte, não apenas meu ir… o pássaro. É nosso dever.”
“Sim. Mas é o dever de vocês ou daquele que os mandou até aqui, jovem?”
Ele parou. Abriu a boca, mas nada disse. Os quatro aceitaram o pedido do velho sem hesitar, entrando no misterioso bosque em White City, percorrendo aquele mundo estranho apenas porque ele pediu. Por um segundo sequer Robert havia se perguntado o que estava fazendo, como se soubesse de alguma forma que não vivia a vida para a qual fora destinado. A maior parte do tempo, ele e John brincavam com os brinquedos sem realmente se divertir. Iam ao cinema com seus pais, mas os filmes diziam pouco; comiam a comida sem sentir o verdadeiro sabor dos alimentos, imaginando que comia uma pasta vazia de nutrientes e paladar. Diferente das frutas que colheram e comeram nos dias anteriores, ou nos coelhos que assaram no segundo dia: cada mordida explodia em sabores exóticos, deliciosos. Robert e Paul devoraram um verdadeiro banquete, enquanto John ciscava minhocas da terra e Jimmy… Jimmy permanecia parado perto deles, calado e imóvel a maior parte do tempo. O samurai afastou os pensamentos dos alimentos e da busca, concentrando-se em Jimmy. O garoto era apenas um contorno desde que atravessaram a entrada do Bosque, ao mesmo tempo vazio e cheio de todas as coisas que existiam. Parecia que era feito de puro ar, uma linha que formava a sombra de um garoto, mas que se fosse puxada, Jimmy deixaria de existir. Como um casaco tricotado. Se você puxar um fio vezes suficiente, ele deixará de ser um casaco, pensou Robert.
“Mas ainda será lã.” A voz do velho cortou seus pensamentos e ele percebeu que estivera calado por um longo período de tempo. O cachimbo estava apagado e esfriando.
“A busca é nossa, assim como é do… do velho”, respondeu finalmente.
“Muito bem, então vocês devem atravessar o rio e entrar na Bruma.”
Paul se levantou e encarou o velho. “E como podemos atravessar o rio?”
“Eu já disse, vocês não podem atravessar o rio. Ou outro rio, ou qualquer rio que exista.” Ele abriu um sorriso e mostrou quase todos os dentes que sobravam em sua boca.
“Estou perdendo a paciência com esse velho”, Paul rangeu os dentes.
“Não”, disse Robert com meio sorriso no rosto, “ele tem razão. Pessoas não atravessam rios. Ninguém pode andar sobre a água. Andamos em madeira, em pedras… mas não na água. Nunca na água. Precisamos atravessar uma ponte e não o rio.” O casaco de lã já não existe, mas a lã ainda é lã. “Onde podemos encontrar uma ponte nesse rio, velho?” Robert esperava que a ponte, se é que ela existia, não fosse um desvio de dias. Uma parte dele sabia que havia uma casa para a qual voltar.
“Não existe ponte de madeira ou pedra ou qualquer outro material nesse rio, meu jovem.” Paul e Robert deixaram os ombros caírem, desanimados. John pegou uma minhoca especialmente gorda e se sentiu triunfante. Jimmy era um celeiro em chamas naquele momento. “Mas eu tenho uma ponte em minha bolsa. Ganhei de um viajante, há mais de dois milênios, quando estava vagando pela Europa e precisava atravessar o Rubicão. Mais tarde, ajudei um homem e seu exército, emprestando a minha ponte. São objetos úteis, pontes.”
“Você pode nos emprestar sua… ponte?”, Paul perguntou, limpando os óculos no uniforme da escola. Uma ponte dentro de um saco? Ele está louco!
“Não.” O velho retirou uma maçã da pequena bolsa de couro, de onde ele dizia poder tirar uma ponte, e começou a mastigar sonoramente. “Eu posso apostar.”
“Apostar?”
Ele engasgou e cuspiu longe um pedaço mastigado da maçã e esticou o corpo, ficando perfeitamente ereto na posição de lótus. O velho ria como um louco. “Sim, sim! Eu posso apostar minha ponte querida…”, parou e colocou um punho fechado por baixo do queixo. “Ah! Mas é perfeito! Eu aposto minha ponte contra o nome de vocês.”
O nome de vocês é um segredo para cada um de vocês e apenas para vocês mesmo, entenderam? No lugar para onde estão indo, nomes são palavras perigosas nas mãos erradas!, o Velho ecoou na cabeça de todos eles. Robert ficou sem movimento pela primeira desde que entrara no Bosque; Paul retirou um doce do saco que carregava no bolso da camisa e começou a mastigar, nervoso. Nomes, nomes. Afinal o que poderiam causar os nomes nas pessoas?
“Qual o poder de um nome?”, o samurai perguntou, dando voz para os pensamentos de Paul.
“Ora, ora, ora. Vocês realmente não sabem nada sobre os antigos poderes que prendem a pessoa ao seu nome? Pois bem, a palavra dada para definir uma pessoa que surge pela primeira vez de sua mãe, pode ser usado para comandar totalmente seu proprietário, desde que uma pessoa saiba como o fazer. Vejam, garotos, eu poderia fazer com que vocês corressem até o momento em que seus pés caíssem, o que ficassem parados até morrerem de fome e sede. Ou uma luta entre os quatro, até que um único garoto… ou corvo, fique vivo. Vejam, vejam. Agora, não entrem na aposta se não puderem honrar a divida. O nome de vocês… alguém mais o possui? As Regras me proíbem de aceitar um nome com outro controlador.”
“Nossos nomes são nossos apenas, velho!”, Robert tinha a katana em suas mãos, pronto para desferir um golpe contra o velho sentado na pedra. O ancião fechou o indicador e o polegar da mão direita e assoprou levemente antes que o samurai pudesse movimentar qualquer músculo em sua direção e uma rajada de vento arrancou a arma das mãos de Robert, girando descontroladamente antes de desaparecer entre as árvores do Bosque. O velho começou a rir novamente e deu outra mordida na fruta.
Jimmy subiu na pedra e silenciosamente se sentou na frente do velho. Ficaram parados por alguns minutos sem dizer nada, encarando um ao outro. Os outro três membros do grupo assistiam ao debate mudo que ocorria entre eles.
“Está bem”, o velho disse por fim. “Apenas o seu nome, os outros estão seguros de nossa aposta, garoto. Seu nome e minha ponte. O vencedor fica com os dois.” Terminou de falar e amarrou o saco de couro ao redor da cintura.
As águas do rio corriam mais rápidas do que nunca, prontas para engolir qualquer tolo que tentasse atravessar sua correnteza.
O velho se levantou, esticou as pernas, jogou o que sobrava da maçã para John e atravessou Jimmy, como se desaparecesse depois de entrar em uma porta, primeiro colocando um pé na confusão de imagens que era o garoto, depois passando a cabeça, um ombro e o resto do corpo.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Ligações

Há um ponto solitário - dentre as diversas solidões da existência - que permanece inalterado, sólido como uma rocha. Não é o desenlace de nenhuma história anterior, nem mesmo o arranque de nova aventura.

É hiato que abre e fecha em si mesmo. Um espaço silencioso cuja funcionalidade é a total ausência de vida, a mutabilidade de sons e a nulidade de sentimentos. Uma passarela entre um universo e outro que existe mas nada significa além de ser ou estar. Somente preenchendo a lacuna do vazio.

Um respiro fundamental que dá continuidade a linha da existência, acomodando-se em cada segmento abstrato da vida, unindo-os e fazendo deles um fio. Um tecido que retrata a vida de cada um. 

Não há maneira de se ver esse ponto. Somente senti-lo antes ou depois. No minuto anteriormente perdido ou na sensação de saciar-se com ar puro após um mergulho embaixo d´agua. É nesse local que acumula-se o transitivo. Por isso permanece eterno na existência.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

As Brumas do Farol 2 - A Sala de Estudos de Paul


O peculiar grupo andou pela trilha estreita, evitando tocar a relva e as flores que diversificavam no caminho, impondo perigo a qualquer desvio da direção demarcada. O sol havia descido e o céu vermelho estava escuro. Robert liderava os quatro amigos, perguntando para o seu íntimo quem poderia ter feito a trilha que seguiam, como a Dorothy e seus companheiros a caminho de Oz, que tipo de força poderia abrir as plantas do Bosque e sobreviver para terminar o que foi começado e contar depois. Uma entidade, com certeza, uma força viva e munida de liberdade e vontade. Mas para qual intuito? Qual finalidade? E, principalmente, como? Eles seguiam em silêncio, remoendo pensamentos e tentando entender a nova forma.
O Bosque, percebeu Robert, era um ser vivo, por sua vez. Não era uma metáfora ou analogia, procurando enfeitar o ciclo de vida e morte que ocorria naquele local, não: o Bosque estava vivo e ele quase podia ouvir sua respiração. Novamente, sua mente se encheu de perguntas e indagações. E ele soube então que poderiam facilmente se perder, pois os caminhos de um ser vivo são seus e seus apenas, mudando ao seu bel prazer e egoísta vontade. O Bosque tinha o poder de mudar os caminhos e talvez a própria trilha na qual andavam, apesar de ainda ser o único meio seguro de chegar até o Fogo.
“Eu preciso voltar para casa.” A voz de Paul saiu fraca, tímida. Ele não sabia o que os outros pensariam ou se, de fato, lembrariam de um lar, de outro mundo. Conforme avançavam para dentro do Bosque, parecia que os outros adotavam a nova identidade, primeiro colocando-a ao lado da vida que seguiam, como uma pessoa que gostava de fingir ser outro alguém; mas as duas linhas se mesclavam aos poucos, formando uma só personalidade e a mais forte imperava sobre a identidade subjugada. Paul refletia sobre a fragilidade humana. “Eu tenho uma casa, vocês sabem? Pai, mãe… minha irmã… eu… eu só quero voltar cedo e não preocupar minha família. É só isso que eu quero.”
“Quieto!” O Corvo planava sobre eles, batendo as asas escuras quando começava a perder velocidade e altitude; os olhos atentos para os perigos da trilha. John podia sentir certas presenças ao redor deles e além, presenças que flutuavam sem direção, em eterno vagar, consumidos pela agonia. Ele sabia que tinha poderes para presentear com alívio as inocentes criaturas do Bosque e terminar a quase infinita jornada, mas não sabia como e precisava cuidar do grupo que cortava a escuridão do Bosque. Bateu as asas mais uma vez e subiu. O Bosque é maior do que o Universo. Estamos tão perdidos!
Robert parou repentinamente e se ajoelho, esticando uma mão para trás. O grupo parou e John desceu para o ombro de Paul. “Acho que escutei algo”, sussurrou o samurai, já retirando a katana da bainha. “Um… zumbido.”
Jimmy levantou-se e abriu os braços. Por um momento, as imagens que cortavam o contorno humano do garoto, cessaram e ele se tornou escuro como a noite. Então, uma luz, branca e forte, atingiu os olhos de todos e, por alguns segundos, ficaram cegos. Jimmy jorrava colunas de luz por todo o Bosque, iluminando mais de um par de olhos que banqueteavam o grupo. Criaturas da noite, pesadelos esquecidos há incontáveis Eras, fugiram da luz, com a pele queimada e os olhos derretidos, esquecendo do ataque que planejavam contra os estranhos que haviam entrado em seu domínio. John os sentiu afastando com velocidade e dor. Mas havia outra presença que não fugiu da luz de Jimmy, avançando com velocidade contra eles. Robert percebeu o movimento e deferiu um limpo golpe à sua frente, traçando um arco horizontal com o metal da espada, cortando apenas o ar puro.
O monstro se deslocou para trás, evitando o golpe que causaria grandes estragos em seu corpo.
Quando finalmente conseguiram enxergar, viram uma mosca gigantesca, agarrada em uma árvore perto da trilha. Ela tinha os olhos tamanho de cabeças de cavalos e cada hexágono gelatinoso brilhava na luz que escapava de Jimmy, agora fraca e controlada, da forma que uma vela brilha no meio da noite. As asas do inseto pareciam longas cortinas e as nervuras eram como bambus crescidos. A visão causava revolta no estômago de Robert e Paul. “Um… carrinho de bebê?”, perguntou o garoto gordo, apontando para uma das seis patas da criatura. Disse então com uma voz baixa, suave, mais para si mesmo do que para os outros, “É como a maçã do Kafka.”
A primeira visão fora o suficiente para Robert e, com ou sem carrinho preso no corpo horrendo da mosca, ignorando os perigos de uma investida direta, o samurai deu um longo salto para frente e formou um corte ascendente com sua espada, cruzando a madeira da árvore na diagonal, deixando um profundo corte do qual uma seiva vermelha escorreu prontamente. A árvore parecia sangrar e raízes se ergueram do solo, procurando agarrar os pés do garoto. Robert deu pequenos passos com o calçado de madeira, evitando as armadilhas da árvore e procurou no céu escuro pela mosca. John levantou vôo enquanto Paul correu para perto de Jimmy, retirando uma bala do bolso e mastigando de forma nervosa.
Uma rajada de ar jogou Robert para o lado e a mosca pousou com um forte impacto na terra, derrubando duas árvores que estavam perto - a árvore que parecia sangrar caiu e secou em poucos segundos, suas raízes procurando pelo agressor até o último momento de sua existência. Ele disparou diversos cortes contra a mosca, mas errou todos por alguns centímetros. A mosca dançava com graça e agilidade, prevendo seus movimentos com facilidade. Quando a o fio da espada chegava onde Robert queria, o corpo da mosca estava seguro pela distância. O samurai tentava ser mais rápido do que podia e o esforço se acumulava nos músculos doloridos.
Batendo as asas freneticamente, o Corvo preparou uma espiral em direção da batalha. Se ao menos pudesse mergulhar seu bico em um dos olhos do inseto, Robert teria uma vantagem e eles poderiam continuar na busca absurda. Esticou as asas e desceu com velocidade; sentia o vento correr entre as penas e podia ver o Bosque girando. Desceu como uma flecha negra, certeira e silenciosa. A mosca, no entanto, desviou de ambos ataques com calma e, com um rápido movimento de uma das asas, lançou o corvo para a terra.
Paul assistia à luta com impotência, sem saber como ajudar os amigos. Eu tenho que ajudar de alguma forma! Concentre-se gordo, pense… pense, pelos céus! Fechou os olhos e pensou... Se não podia ajudar com sua habilidades físicas, iria participar com sua melhor arma: o cérebro. O que sabia sobre moscas? Elas tinham um curto ciclo de vida, tinha lido nos livros de biologia - avançados para o ano em que estava, mas seu pai tinha uma biblioteca vasta e diversificada - mas esse era um conhecimento inútil para aquela ocasião, a não ser que pudessem entreter o inseto gigante até ele morrer de causas naturais. Não, outro conhecimento… ele precisava saber de algo! De repente, estava dentro da própria cabeça, sentado em uma escrivaninha em um quarto mal iluminado, com milhares de arquivos e pastas ao redor. Correu para uma das gavetas cheias de arquivos e começou a procurar por algo que pudesse ajudar o samurai e o pássaro.
História, geografia, química e física. Ele procurou em todos os armários, pastas e gavetas que encontrou, mas não conseguiu achar uma única linha que fosse de importância. Moscas. Moscas. Insetos. Onde poderia encontrar aquilo que procurava? Podia sentir o desespero percorrendo suas pernas trêmulas, causando um suor pegajoso escorrer pela testa, queimando seus olhos cansados. Foi então que a memória cruzou os labirintos do desespero e ele viu com perfeição a sala de sua casa, com a televisão ligada. Duas crianças, ele e sua irmã, estavam deitados em um tapete macio, tomando suco de laranja e comendo sanduíches feitos por sua mãe. Na televisão, um documentário da BBC sobre comidas estragadas estava passando. Paul - ele não ousava pensar em seu nome verdadeiro, não enquanto permanecessem naquele lugar cheio de regras e magias antigas - adorava documentários e sempre que ligava a televisão, procurar por algum que estivesse passando em um dos canais da BBC ou do Discovery Channel. O garoto, invisível para os outros personagens no cenário, sentou no sofá e assistiu televisão.
Paul abriu os olhos. Ao seu redor, o mundo estava envolto por uma escuridão quase sobrenatural, pensou que se esticasse a mão, poderia tocar nela, como se fosse um manto negro em uma peça de teatro. A única coisa que quebrava a escuridão era Jimmy, que queimava como velas em um candelabro. Ele podia ouvir os sons de batalha, o incômodo zumbido das asas do inseto gigantesco, o carrinho ainda pendurado em sua pata chacoalhava violentamente, batendo no chão e nas plantas ao redor. Havia sangue em uma das rodas e Paul quase poda ver o filete de sangue na testa de Robert. O garoto gordo estudou o vôo de John e os cortes do samurai. “Robert”, ele disse em voz baixa. Respirou profundamente e falou alto o suficiente para alcançar os amigos: “Essa coisa pode sentir o ar se deslocando, Robert. Corte onde ela estará, não onde ela está!”
Ele não pôde ver, mas logo ficou claro que suas palavras foram entendidas, pois a mosca jazia no chão, sem uma das asas. O inseto se debatia furiosamente, jogando terra e grama prateada para todos os lados. Uma das gramas atingiu o rosto de Robert e sangue escapou de sua pele cortada.
Robert aproximou-se da mosca, assim que ela ficou imóvel e realizou um último corte, completando a dança entre eles. A musica havia parado e os holofotes estavam apagados; hora de acabar a dança e tirar as meias suadas.
“Obrigado pela informação, Paul-san. Mas é com humilhação que agradeço: um guerreiro deveria estudar seu oponente, mas minha mente estava cercada por uma cortina de violência cega. Eu não sou honrado o suficiente para continuar a jornada ao seu lado.” Robert dobrou o corpo no arco característico.
“Não diga besteira, caro Robert. Sem suas ações estaríamos todos condenados”, virou-se então para Jimmy, “você fez o suficiente, amigo”. Jimmy parou de brilhar e um céu estrelado tomou conta de sua forma. “No final das contas, temos algumas estrelas nessa noite escura.”
“John! Corvo-san! Você está bem?”
O pássaro grasnou uma resposta positiva e continuou seu vôo. Ele mentiu, não estava bem. De alguma forma, podia entender o que a mosca dizia. Sou um cientista, não uma mosca. Bzz! Bzzzzz! Sou um cientista um homem humano humanonomem. Eu matei toda a minha equipe. Não sou uma homem, sou um mosca. Bzzz. Ebzzzzzperimento errado! Eu mosca sou agora. Milhões de ovos eu botei botei botei bzztei! Bzzz bzz bzz, John sentiu as penas se arrepiarem e um dedo gelado subiu pelos ossos leves quando a mosca pareceu sorrir. Percebeu que o inseto tinha uma consciência humana em algum lugar, escondida das horríveis visões de manchas de sangue em carrinhos de bebês - que porventura ficaram presos nos grossos pelos de suas patas - e corpos dilacerados que serviriam de ninho perfeito para seu ovos. Um exército de moscas devastando o mundo que eles conheciam. Em um rápido momento, viu um homem deitado em uma mesa, líquidos verdes e azuis entravam em suas veias e aos poucos ele se transformou na enorme mosca; uma cena que parecia sair das páginas de um autor surreal. O Corvo viu a mosca voando pelos céus de diferentes cidades, matando e sugando os fluídos dos corpos sem vida, botando ovos na carne que começava a apodrecer. A mosca buscou refúgio - pois o homem que ainda morava em algum lugar perdido de sua consciência, sofria por cada homicídio do enorme inseto - nas altas montanhas do Himalaia, mas foi descoberto e realizou nova carnificina. Buscou solidão nas areias quentes dos desertos chineses, onde o sol escaldante provocava um vapor tóxico de seu corpo; passou semanas escondido no coração da floresta Amazônica, esperando que o ciclo de sua vida se completasse, mas há muitos meses havia ultrapassado a expectativa de vida das moscas comuns e não tinha como saber quanto tempo viveria. Mostrou então para o Corvo o que sabia. Em algum lugar as Engrenagens do Tempo andavam para uma grande catástrofe, sabia em seu íntimo. Sabia porque podia entender a mosca e o que ela dizia era aterrorizante. A mosca, disse algo que perturbou o pequeno coração do pássaro negro, um alerta interrompido pela espada de Robert. O Homem da Bzzzruma, ela disse. Estamos fugindo das Bzzzrumas. Vocês estão indo na direção errada, tolos. Direção err-. Um corte limpo e a voz silenciou.
Por baixo das asas negras, John, o Corvo, podia ver centenas de criaturas fugindo entre as árvores do Bosque, evitando a trilha e correndo de algo para o qual eles avançavam.
Longe, no horizonte, ele podia vê-la, como um tapete se desenrolando para eles, para dar recepcionar o pequeno grupo. O Velho os mandara para aquele lugar, os condenara a enfrentar o que chegava. Eram sinais que anunciavam uma tempestade de proporções bíblicas, mas as nuvens rolavam no chão e não no céu.
Longe, longe no horizonte, os olhos negros do pássaro viam a Bruma. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Cru

Fagiu. O gesto interrompeu o silêncio quando, em seu sulco, entrou. Perdeu a voz, o choro, o gozo. O sol fez que não viu. Continuou pelos vincos até ficar sem gosto.

Arrancou-lhe o coração como troféu de caça. Fez dos dentes colares para a família. A pele virou tecido de parábolas. Com sangue pintou os lábios, fez dos membros instrumentos de batuque, celebrando sua festa.

E mais nada aconteceu.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

um olhar sobre a frança

Eu já não enxergo como antes. Uma camada de fumaça eterna se coloca entre o mundo e minha vista. O olho esquerdo é o mais prejudicado, acho eu, por mais que o médico reclame do direito. Diz que eu não tomo cuidado. Que forço demais, que leio no escuro, que aperto as órbitas com muita força tentando limpar as remelas que se acumulam.

De dia e de noite, acumulam. Começou no fim da guerra, e Deus seja louvado pela guerra ter tido um fim. Naquele último salto, na França, naquela última andança atrás do viado nazista do Hitler, Diabo o carregue. No último salto eu comecei a perder a visão, a noção de que as coisas estavam distantes, próximas ou não, não sei. Sei que o paraquedas não abriu direito, e eu fui direto a um dos afluentes do Sena.

A morte do Senna, por exemplo, eu já não vi bem. Soube que ele tentou desviar, não desviou e foi de cara no muro. Eu, no meu tempo, fiz quase igual. Mas em vez de uma curva eu errei a corda de abrir paraquedas e fui no bloco de pedra que era a água, àquela distância. Naquela altura.

Imagine a cena: um paraquedista em queda livre com o paraquedas semiaberto e uma população de ocupados tomando café e comendo croissant ao longo do rio. Claro, havia franceses na Resistência, mas as margens do Sena eram espaços muito abertos para boas barricadas.

Quase caí na calçada. Mas não morri, como é óbvio, e cá estou, com a visão prejudicada e sem saber se aquele vulto que se aproxima com algo na mão é a garçonete com minha cerveja ou um antigo inimigo alemão que veio, finalmente, terminar o que começou muito tempo atrás.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

As Brumas do Farol 1 - Orquídea


“Ele me disse que meu nome seria John”, disse John. “Pelo menos durante nossa… missão. Meu nome não é John, não de verdade, mas eu não posso dizer meu nome verdadeiro. Sabe, ele disse que os nomes têm uma… mágica neles, um forte controle sobre seus donos.”
“Eu sou Paul. Segundo ele, esse é meu nome. Paul.”
“Jimmy.”
“ Sou irmão do… John: Robert.”, completou o garoto que também não possuía tal nome.
Os quatro garotos formavam um círculo na entrada da floresta, permanecendo de mãos dadas e se estudando. Entre eles, uma aura mística de naturalidade havia se formado instantaneamente, sentiam-se como se fossem amigos durante todos os poucos anos de vida, como se fossem irmãos em outras vidas, unidos por um único destino; no entanto, era a primeira vez que se viam, excluindo os dois irmãos, e cada um deles parecia de alguma forma especial. “Vocês também falaram com o velho.” Jimmy constatou, apertando levemente as mãos de Robert e Paul. “Ele me pediu para estar aqui, descer em White City, pegar a saída oeste e caminhar duas quadras. ‘Não se preocupe’, ele me disse, ‘você encontrará a entrada do bosque.’ Vocês sabem como foi difícil achar a saída oeste? Como eu deveria saber o que é oeste?”
“Não tinha idéia que aqui tinha uma floresta”, disse Robert. “Mamãe mandou eu não sair do caminho da escola… mas o velho me contou que era preciso… que eu ia encontrar outros garotos e que nós deveríamos parar o homem mau e trazer o Fogo de volta. Foi o que ele disse, o fogo com ‘F’ maiúsculo.”
“Eu quero ir para casa!”, Paul, que na verdade tinha o nome mais inusitado de todos, reclamou. Ele era gordo e tinha ranho pendurado em uma das narinas. O cabelo escuro caia sobre o rosto manchado por sardas e ele carregava um pacote que estava parcialmente descoberto por um dos bolsos. Ele escondeu o saco com uma das mãos e apertou o papel pardo. “Alguém quer uma bala ou um pouco alcaçuz?” Os outros meninos mexeram a cabeça, fazendo o sinal universal de negação.
Jimmy se livrou do aperto e quebrou o circulo, parando diante da entrada do pequeno bosque em White City. “Eu não fazia idéia mesmo que havia algo assim por aqui”, disse mais para si mesmo do que para os outros garotos, completo estranhos de nome falsos… mas lobos da mesma matilha. Olhou para a trilha, já enfraquecida pela ação do tempo, e sentiu um aperto no peito, como se James, da escola, estivesse sentado nele, como fazia em quase todas as aulas de educação física. Em certa ocasião, James - um garoto loiro e de olhos azuis, alvo de suspiros e olhares de todas as garotas da classe - empurrou Jimmy para dentro do banheiro feminino e fechou a porta, segurando firmemente a maçaneta. Ele gritou e gritou e gritou, até que quase todos os estudantes daquele pavilhão estivessem presentes para ver, com entusiasmo, a nova garota da escola. Quando ele soltou a porta, Jimmy puxou com força a maçaneta e bateu a maneira na testa, abrindo um largo corte. Lembrava-se do sangue queimando um dos olhos e de todos os colegas apontando e rindo. Desde então, não houve um único dia em que ele não era lembrado do incidente. Passava, sem perceber, a mão na cicatriz que tinha no meio da testa. A entrada para o bosque seguia em linha reta até onde eles podiam ver, sumindo entre as árvores e flores nativas, cortada vez ou outra por um esquilo. “Acho… acho que devemos entrar. O velho nos mandou para cá, agora eu diria que devemos entrar pela trilha.”
John também se soltou dos outros garotos e se aproximou de Jimmy. “Eu e meu irmão temos de voltar para casa depois da aula, ou nossos pais ficarão preocupados. Nós… nós temos dinheiro, sabe?”, ele disse para justificar o grau de paranóia dos genitores. Jimmy e Paul olharam para os outros meninos e reparam que usavam o mesmo uniforme: uma camisa escura, com uma pequena Union Jack costurada na altura do coração e calças azuis, combinando com os dois pares de sapatos. Robert e John tinham os rostos semelhantes e eram ruivos, além de terem praticamente a mesma altura.
Paul abaixou os olhos para as mãos e se dedicou a tirar do embrulho uma bala rosada. “Vocês são gêmeos”, constatou antes de atirar o doce para dentro da boca.
“Não”, Robert respondeu, “mas as pessoas sempre acham isso. Eu sou um ano mais velho e John será mais alto do que eu quando formos mais velhos, nós achamos. Por isso temos a mesma altura.”
“Eu tenho - que caramba de bala gostosoa - tenho uma irmãzinha. Eu sempre desejo que ela seja roubada pelo grinch ou por algum troll.”
“Que horror!”, responderam os irmãos em unísono.
“Por que você desejaria algo assim?”, Jimmy perguntou, retirando os olhos da trilha.
Encabulado, Paul disse baixinho: “Era só uma brincadeira”, e então subiu o tom, quase gritando, “Vamos entrar no bosque ou não? Estamos aqui para isso, não é? Quero entrar e ir para casa jogar vídeo-game. E brincar com minha irmã.” Ele correu pela trilha, desaparecendo de vista no momento em que pisou dentro do bosque.
Os outros três seguiram Paul, hesitantes e temerosos.
Quando atravessaram a entrada do pequeno bosque, deixaram o mundo que conheciam para trás. Entre um passo e outro, John, Jimmy e Robert deixaram seus corpos em outra realidade, esquecidos e confortavelmente protegidos na Umbra que separava aqueles dois planos da existência, revelando a verdadeira essência de cada um deles. Paul já esperava por eles daquele lado, estudando maravilhado as plantas exóticas e o céu vermelho. “Vejam isso, caras”, ele disse em tom jovial. Quando se virou para encarar os outros meninos, a orquídea que ele apontava perdera qualquer importância. Não eram mais garotos, os outros três: Jimmy era um contorno humanóide, vazio e repleto de coisas ao mesmo tempo, mudando a pele algumas vezes por minuto, vestindo o pôr do sol, um enxame de abelhas, o asfalto de alguma estrada passando a duas centenas de quilômetros horários; John batias as asas negras enquanto rodeava o grupo, abrindo o bico para soltar o grito ardido dos corvos; carregando uma espada feita do que parecia ser vidro, Robert vestia as roupas de um samurai e tinha o cabelo raspado, exceto por um tufo embolado em um coque no topo de sua cabeça. “Mas que merda aconteceu…”, a pergunta de Paul - que vestia a pele do garoto acima do peso - morreu no ar.
Com passos rápidos e silenciosos, Robert afastou-se alguns metros e desembainhou a espada que carregava na cintura. Ele era a imagem perfeita de um samurai. Disparou três rápidos cortes no ar e permaneceu em posição de ataque, envolto por uma palpável aura de serenidade. Cada golpe, Robert sabia, deveria ser único e certeiro. Não havia segundas chances em uma batalha. Ele era um guerreiro, uma máquina de morte e destruição. “Eu tomo como verdade que o pássaro negro que nos acompanha é, não podendo ser outrém, meu irmão de sangue, cuja alcunha é John. John, o Corvo.”
“Gorducho! Gorducho!”, John grasnou, no alto antes de rir em confusa cacofonia. O Corvo experimentava o vôo, realizando curvas fechadas e subindo grandes alturas.
Jimmy apontou para o chão, sua mão era agora parte do oceano, e eles viram que a sombra do corvo era ainda a de uma criança. Tentou abrir a boca para dizer algo e percebeu que não tinha lábios, línguas ou dentes sequer. Como ele enxergava, era um mistério. É melhor eu não pensar se tenho nariz ou pulmão, pensou com estranha calma, aceitando prontamente o fato.
Robert encarou o novo amigo. “Qual espécie de magia envolve sua nova forma, Jimmy? O que será esse Manto transmorfo?” Jimmy, o Manto, apenas ergueu os ombros e Robert se voltou para o menino gordo. “Sua forma sempre foi verdadeira, Paul. Venerável e apreciado Paul.”
Paul aproximou-se de um uma orquídea vermelha, flor que anteriormente estudava. Gostava de flores, gosto que escondia de todas as outras pessoas, e possuía um vasto conhecimento sobre as mais variadas espécies. Mas uma orquídea daquela cor e com o formado tão estranho era desconhecida. A flor tinha quase trinta centímetros de diâmetro e exala um doce perfume, estranho para sua estirpe. “Pessoal, venham ver isso.” Ficaram lado a lado, John pousado no ombro de Paul, e olharam para a orquídea vermelha.
“Flor! Flor!”, grasnou o Corvo.
“O que há de tão magnífico nessa planta, Paul? Explique o que meus olhos não podem enxergar.” A voz de Robert estava calma, grossa.
“Eu nunca vi uma orquídea como essa, desse tamanho, cheiro e cor. Se vocês olharem ao redor, irão perceber que a maior parte dessas plantas são estranhas e… e algumas parecem se mover. Sem mencionar o céu vermelho.”
No exato momento em que Paul terminou a frase, a orquídea abriu seu centro e soltou um grito, espalhando esporos no ar, cada estômato funcionando como um mecanismo de propulsão. John levantou vôo e Jimmy puxou Paul para trás - um toque que causou aflições em cada centímetro do pobre garoto -, enquanto Robert cortou a flor com um único movimento de seu braço. Eles se afastaram da planta morta, evitando respirar o ar contaminado pelo seus mistérios; mistérios provavelmente fatais.
O grupo andou sem trocar palavras, caminhando no estreito caminho, evitando qualquer tipo de contato com o mundo que os cercava, seguindo a única direção possível. A trilha continuava por uma extensão indeterminada, atravessando as árvores e flores distribuídas pelo caminho, respirando o ar perfumado do bosque. Por duas horas eles andaram, a espada de Robert liderando o caminho e John, poucos metros acima, procurando por perigos no caminho, jogando sua sombra de humano sobre eles. Não sabiam o porquê caminhavam, apenas seguiam adiante, era a única opção. Do velho, explicação alguma eles receberam. Sem saber onde estavam ou o que eram, os garotos caminharam na trilha que atravessava o bosque.
“Perga! Minho!”, John grasnou depois de algumas horas e voltou para o chão. Suas asas estavam cansadas e ele sentia fome. Parou diante de uma árvore e começou, com os rápidos movimentos de olhos e cabeça, a ciscar o chão na procura de minhocas.
Uma árvore cortava a trilha com suas grossas raízes, fazendo-se notar contra qualquer possibilidade. No centro dela, um coelho branco, de longas pernas e braços, jazia amarrado por um cipó. O animal tinha por volta de um metro de altura e vestia um longo sobretudo marrom. Sua cartola jazia no chão, virada pelo vento. O pescoço do coelho estava quebrado e sua cabeça pendia em um ângulo não natural. As crianças pararam há alguns passos do animal sem vida e notaram que ele tinha o pergaminho em uma das mãos. “É o coelho da Alice”, Paul disse. O garoto esticou os braços e abriu a mão rígida e peluda, pegando o pergaminho e um relógio de bolso. “Alguma coisa o pegou, é óbvio, mas será que…”, era uma idéia terrível, mas uma forte possibilidade.
“Que ele morreu para não conseguir entregar essa mensagem para nós.” Robert concluiu para ele. “Estamos em perigo.”
“Leia! Leia!”, John pediu, com uma minhoca no bico.
Paul desatou o nó que prendia o pergaminho e o desenrolou. Apesar do curto texto que tingia o papel de algodão, o pergaminho era enorme e rolou por alguns metros na terra.

Queridos Paul, John, Jimmy & Robert,

Vocês têm agora a verdadeira forma de suas almas e cada um deve fazer uso dos prodígios presenteados. Há um conjunto de regras e leis que devemos seguir nessas situações - situações únicas e que fogem da realidades, seja ela qual for. Essas leis me proíbem de explicar as habilidades que possuem e como utilizá-las. Mas devo informar que precisarão de um guia e que seguir a trilha é a única forma de voltarem para nosso mundo. Vocês DEVEM chegar ao Farol e trazer de volta o que lá encontrarem. PROCUREM pelo GUIA! Apenas ele pode cruzar as brumas, pois ele é um viajante do tempo e do espaço.
Apenas a verdade pode carregar o Fogo, é importante saber.
O Contador de Histórias interrompeu a narrativa e as linhas que dividiam os mundos está tênue. Por isso há terrores inesperados e inexplicáveis pelo Bosque que caminham. Andem com cuidado. O Bosque é maior do que o próprio Universo, mas o caminho será curto.

Dêem algo de comer para o Coelho e ignorem suas piadas sujas.

Ele terminou de ler em voz alta e prendeu um canudo de alcaçuz no pêlo do Coelho Branco, deixando o marcador de tempo em um de seus bolsos.
“Não há assinatura”, disse Robert.
“Mas há perigos”, o garoto gordo respondeu. “Eu queria ouvir pelo menos uma piada.”
Jimmy se voltou para eles e, sem pronunciar palavras, disse que precisavam ir. Era como se milhares de vozes sussurrassem a mesma coisa na mente dos outros, vozes confusas, perdidas. Vozes com medo.
Eles podiam sentir os horrores daquele lugar.
O perigo estava na trilha.
E a trilha era o único caminho.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Não

Não. Não a quero em minhas orações. Invadindo palavras como sempre faz. Não desejo suas brincadeiras de menina crescida, dando-me a mão para brincar de roda, girando e girando, fazendo-me enjoar.

Te quero sozinha no meio da rua. Sem bagagens, nem afirmações. Nua. Para que te saboreie limpa de palavras.

Não. Não quero mar de histerias. Veneno que se consome nas veias. Prefiro deixar os lábios para depois.

Você é minha invenção. O desejo inacabado sobre a escrivaninha. A imagem que mantive no peito por um absurdo.

Não. Aos diabos sua majestade. Não preciso ficar sob proteção de seu reino. Lhe aplaudo com a mesma amargura que sinto por meu pai. Por se fazer princesa e, agora lívida, em cima do trono pedir mais.

Não mais te cego. Empurro-te da ponte. Da vida. Mergulhada nas palavras de não-amor. Mentira perfumada.

Não. Sem olhos não vejo o desprezo. Sem língua não consumo a dor. Sem ouvidos não há risos de meus atos infantis e nem as histórias quando retorna da cidade.

Façamos o trato de nos esquecer. Melhor seria se não tivesse existido. Como o mágico que desaparece no final do espetáculo.

Não. Em poemas. Em orações. Silêncios. Não.

Não.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A Lanterna


Para Ana Eliza

Joshua pisou na terra dura e cruzou os braços, abraçando o próprio corpo em uma vazia tentando de afastar o frio. Sentia o vento gelado fustigar seu rosto, como pequenas lâminas açoitando a pele macia das bochechas. Ele estava na Desolação, onde nada crescia há milênios e o próprio ar corrompia os pulmões. Estudou as nuvens púrpuras que navegavam o céu com incrível velocidade, quilômetros acima de onde estava. Colidiam em violenta mutação, provocando descargas elétricas não naturais, energia que havia perdido a capacidade de se transformar, existindo apenas para destruir e matar. Joshua pisou na terra manchada pelos resíduos tóxicos e procurou pela Porta. Avançou. Avançou por dias, semanas, eras inteiras. Passo após passo após passo, o jovem caminhou a distância e sobreviveu contra todas as probabilidades, para chegar até o lugar que guardava os segredos para salvar o que sobrava da humanidade. Retirou uma das luvas, puxando primeiro um dedo, depois outro e outro, até finalmente se ver livre do couro, e pousou a mão sobre o metal frio da maçaneta. A Porta era uma contradição à sua importância, pequena e frágil, quase deitada em um inclinação descampada, como se fosse a entrada para um porão.
“Você”, a palavra fez saltar seu coração e ele se virou, antes de ter a chance de girar a maçaneta que tocava. “Você não pode estar aqui na Desolação. Desapareça e fique longe daquilo que não sabe controlar!” Joshua encarou o velho - quase uma caricatura, vestindo uniformes do que parecia ser um maquinista ferroviário e monóculo, segurando uma longa lanterna em uma das mãos - e abriu a boca para dizer que estava onde deveria estar. No segundo que precedeu sua fala, no entanto, o velho apontou a lanterna para seu rosto e apertou o pequeno botão vermelho, criando uma brilhante coluna de luz contra o rosto de Joshua. Ele sentiu o calor da luz, como um milhão de pequenos sóis queimando contra sua pápebras fechadas. Sua pele começou a desmanchar, evaporando átomo por átomo, até desaparecer no vento gelado.
Ao longe, as nuvens seguiam seu curso radioativo.

O som da arma sendo engatilhada morreu rapidamente entre os disparos do outro lado do corredor. Josh descobriu um terço do corpo e disparou quatro vezes antes de saltar para a parede perpendicular. Seus pés foram ágeis e certeiros; os tiros abriram uma pequena janela de tempo e ele aproveitou. Joshua correu pelo laboratório e desviou, pela habilidade e pela sorte, dos projéteis que explodiam ao seu redor. Girou o corpo e se jogou para trás, caindo nas escadas enquanto disparava com as duas pistolas. Pousou com leveza e formou um arco com o corpo, aterrissando com graça e segurança. Estava com a vantagem, mas precisava agir rapidamente. Checou os pentes, sua última carga, e contou dezesseis balas entre as duas armas: longe de ser o suficiente.
Estava, no entanto, perto da saída e na mochila, o Protótipo XB-19 estava embalado na câmara de Anti-Matéria, pronto para ser carregado até o Outro Lado. Se ao menos ele pudesse atravessar o laboratório e emergir das profundezas do prédio… Aquele não era o momento para desejar, Josh sabia. Ouviu passos no escuro corredor que cortava seu caminho e disparou sete vezes, ouvindo dois corpos desabarem sem vida. Nove balas, pensou antes de iniciar uma corrida apressada até a porta. Parou repentinamente, utilizando todo seu equilíbrio perfeito para não cair, quando viu o velho parado perto da saida. Ele vestia o mesmo uniforme e portava a lanterna.
“Desista”, ele disse com a voz de corvo e apontou a lanterna para o rosto suado de Joshua. “Vá para casa e não volte. Escute-me, eu rogo.” A luz atingiu seus olhos e ele deixou de existir.

Ele se jogou no chão, sentindo a corrente de ar deslocada pela cauda do dinossauro. Quando a grossa couraça do réptil se chocou contra a parede lateral do prédio, Joshua sentiu a onda de energia atingindo seu corpo e rolou alguns metros para o lado, fugindo da nuvem de pó e entulho que se erguera dos escombros. Estava deitado sobre alguns corpos espalhados, sentia o sangue ainda quente ensopando sua roupa e amaldiçoou a criatura de outra Era. Colunas de fumaça e destruição se erguiam por onde o tiranossauro passara, gritos ecoavam no vento, carregando dor e desespero para ouvidos distantes.
Joshua precisava alcançar a segurança do subsolo.
O tiranossauro rugiu uma vez mais e deu outro passo, fazendo a cidade tremer novamente. Ele era colossal; prédios desabavam como castelos de cartas em seu caminho e tanques de guerra eram cortados por suas garras sem dificuldades, tanques de papel.
O homem esperou pelo momento exato e sincronizou seus passos com o movimento da besta, cruzando heroicamente a distância até as escadarias que o levariam para o subterrâneo. Ele desceu as escadas rapidamente, dançando com os pés para não cair e despencar os metros de degraus e acabar com o pescoço quebrado. Chegou perto de uma porta verde e viu a luz amarelada que escapava dos vãos da madeira contra a parede. Ele sentia a segurança daquela luz e a desejou profundamente.
O velho surgiu das sombras, empunhando a longa lanterna contra ele e disparou a linha de luz sem dizer palavra.
De Josh, nada sobrou.

“Eu não posso mais suportar”, lamentou enquanto segurava a caneca com uma das mãos e a banana descascada com a outra. “Depois que acordo, fico por horas rolando na cama, tentando acalmar meu coração e dormir novamente. Estou dormindo o quê? Duas, três horas por noite?”
“Você precisa procurar um médico, amor”, Elaine respondeu e deu um beijo suave em sua testa. Ela deu a volta na mesa e pousou a jarra perto dos copos. “O suco de laranja está delicioso.”
Joshua teve um impulso de esmurrar o rosto da esposa. Como ela podia estar tão calma enquanto ele sofria, todas as noites, com o velho da lanterna? Não conseguia mais dormir, não podia manter a mesma linha de pensamentos por mais de alguns segundos; perdera a habilidade de imaginar e sonhar. Sentia o esgotamento tomar conta de seu corpo e sua paciência. “Todas…”, respirou e controlou a ira carregada em sua voz, suavizando o tom antes de voltar a falar. “Todas as noites, Elaine, todas as malditas noites sou expulso dos meus sonhos por aquele desgraçado. Já são oito noites seguidas, oito vezes que ele joga luz sobre meus olhos e eu não consigo terminar um sonho ou dormir novamente. Você sabe o que e isso? Ser retirado com tamanha violência de um mundo que, naquele exato momento, é real? Repetidas vezes? Eu não preciso de um médico, amor”, ele cuspiu a palavra entre os dentes, “preciso de uma noite inteira de sono!” Quando percebeu o que estava fazendo já era demasiadamente tarde para conter os músculos. A caneca que estava em suas mãos - o melhor pai do mundo! estampava em letras vermelhas e garrafais - estilhaçou em centenas de fragmentos na parede atrás de Elaine, derrubando o relógio da cozinha. A mulher soltou um grito surpreso e protegeu o rosto com ambas as mãos. Joshua notou instantaneamente as lágrimas que escorriam dos olhos da mulher.
“Oh, meu bem, me desculpe, me desculpe… Estou cansado é só iss-”, Elaine correu para fora da cozinha e subiu as escadas, batendo a porta atrás de si.
Ótimo, ele pensou enquanto recolhia o relógio e os pedaços de porcelana do chão, agora você quebra canecas na parede da própria casa. Amanhã você botará um olho roxo nela? E seus filhos? Eles também tomarão sua parte nos seus problemas? Parabéns, imbecil. Estudou o próprio rosto refletido na janela perto da pia e viu as profundas marcas deixadas pela privação do sono. Se ao menos pudesse dormir depois de ser acordado pelo velho. Não. Sentia os sonhos interrompidos no fundo de sua cabeça, como vozes que precisavam contar algo importante, mas que eram interrompidas pelo… Velho maldito. Pro inferno ele e sua lanterna!
Olhou para o relógio e percebeu que estava atrasado. Correu para seguir o mesmo ritual de todas as manhãs: terminar de vestir o terno, pegar a maleta com seus papéis e almoço; correr até o metrô mais perto. Naquela manhã, os vagões estavam cheios e o odor do suor acumulado de algumas dezenas de pessoas provocava-lhe náuseas. Ele estava de pé, balançando conforme o trem cortava as estações, segurando o peso do próprio corpo com uma das mãos, enquanto firmava a pasta contra o peito, prevenindo qualquer tentativa de roubo. Fechou os olhos e deixou-se embalar pelo ritmo dos trilhos, sentindo o calor humano se distanciar lentamente, cedendo terreno para o cansaço que dominava sua mente e corpo, lentamente escorregando para fora do metrô, fora deste mundo…

“Bonaparte?”, perguntou com genuína empolgação. Napoleão concordou com um leve aceno da cabeça e cumprimentou o mais novo comandante de suas tropas.
“Estávamos todos esperando por você, Comandante Joshua B. Mallin.” Não acreditava que o grande general lhe dirigia a palavra. Ele realmente é baixo, pensou enquanto sufocava o riso que escalava para seus lábios. “Sua vitória nos mares do Atlântico ganhou tempo precioso, meu jovem. Wellington não se recuperará tão rápido e espero que ele seja esquartejado pela realeza!” Todos ecoaram a gargalhada de Bonaparte. “Seu espólio pessoal está atrás daquela porta, vá, vá e aproveite a melhor comida e as mais insaciáveis mulheres que a França pode oferecer”, ele piscou um dos olhos quando terminou de falar, disparando dois tapas amigáveis em seu ombro.
Joshua caminhou lentamente até as grossas portas de madeira e se preparou para revelar o que Napoleão havia preparado para seu mais confiável comandante, quando sentiu um leve toque em sua nuca. Virou-se e encarou novamente o velho, vestindo o mesmo uniforme anacrônico para aquele cenário. “Não, por favor, não”, implorou em vão.

Demorou alguns segundos para perceber que a luz ainda estava em seu rosto mesmo depois de acordar. Sentiu o calor horrível do vagão parado e entendeu que havia dormido de pé, segurando em uma barra de ferro. Mas o trem estava escuro e algumas pessoas se abanavam com uma revista ou jornal.
“Está tudo bem com você? O trem está com alguns problemas técnicos, mas em breve voltará a rodar”, assegurou o fiscal. Joshua protegeu os olhos da luz que saía da lanterna e reconheceu o velho de seus sonhos. O uniforme ferroviário, a lanterna. Foi um momento surreal, onde ele não tinha certeza se estava acordado ou preso em um sonho.
Joshua pulou sobre o velho e os dois rolaram sobre algumas pessoas que estava por perto. Uma garoto gritou do outro lado. Josh colocou as mãos sobre a lanterna e a bateu contra o piso do vagão repetidas vezes. “Eu quero meus sonhos de volta!”, gritou enquanto destruía o objeto no chão do trem. “Eu quero meu sono! Minha vida! Suma de minha vida, velho! Desapareça para sempre!” Um estilhaçar metálico o fez parar e ele viu que havia sangue em suas mãos e a lanterna estava completamente destruída.
O velho estava amparado por dois homens, olhando assustado para ele. Sangue escorria de sua testa e os olhos estavam brancos. “Você não tem idéia do que acaba de fazer, Joshua, de quantas vidas condenou além da sua”, disse com a voz de corvo, diferente do tom afável que usava quando o acordou. O trem andava, finalmente percebeu, e quando o velho terminou de falar, no mesmo momento em que chegaram em uma estação e dois seguranças caíram sobre ele, conseguiu escutar o velho uma última vez. “Ignore as portas”, alarmou em grave comando, “não entre nas portas ou desça as escadas, sua vida depende disso!”
Ele foi levado para uma sela, onde iria passar a noite com ladrões e assassinos. Havia um sorriso estranho no rosto daquele homem, alguns dos criminosos preso na mesma cela iriam depor mais tarde: ele dizia algo sobre finalmente poder ver os presentes de Napoleão. “Os olhos”, disse um deles, “a loucura estava naqueles olhos.”
Joshua dormiu profundamente naquela noite, ignorando o cheiro de urina e o banco duro em que estava. Sonhou um sono sem interferências. Sem velhos e sem lanterna. Sonhou com uma porta e desta vez, nada estava em seu caminho.
No sonho, ele apertou firmemente a maçaneta e a girou. Colocou um pé, depois o outro e atravessou a porta.
Joshua nunca mais acordou.