sexta-feira, 23 de outubro de 2009

almas gêmeas

Eram silenciosos. Calmos. Introspectivos, mesmo.

Conheceram-se de relance, numa passagem por aquela cidade lá. Foram apresentados, sorriram, perfeitos um para o outro.

Eram calmos e falavam pouco. Sem arroubos.

Como estavam de passagem, foram logo. Um para um lado, outro pro outro. Não eram de se animar demais com nada.

Perfeitos uma para o outro. Foram embora sem se falar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Em Seu Lugar

A seqüência de ladrinhos estava molhada. Secando com o calor que fazia naquele fim de tarde. A sala cheirava a limpeza e, prostrado em um canto, evitando sujar o trabalho feito, ele esperava pelos minutos que pudesse volta a se locomover sem criar uma trilha suja pelos sapatos.

Como um artesão, que completa uma obra de arte, admirou seu trabalho. Naquele ambiente, tudo estava em seu lugar. As peças formavam novamente um par, as revistas se reencontravam em sua pilha habitual, e até mesmo os móveis exalavam um cheiro de limpeza raro, sem a poeira que, de costume, os cobria.

Refletiu, “alguém que não me lembro, disse, uma vez, que quando respondemos as respostas que nos cercam, inevitavelmente, surgem mais perguntas”. E assim, tornou a olhar sua obra, analisando que o caos que vivia em seu ambiente, ajudava a turvar seus pensamentos. A casa limpa dava espaços em brancos para fazer com que a mente se perdesse em novas perguntas.

Deitou-se, vendo a brancura do teto refletir sobre paredes e no chão, agora ausentes de seus papéis e de seu desarranjo em manter a ordem. “Os espaços vazios parecem que esperam uma resposta de mim, como homens ansiosos por uma atitude”.

Como os pingos de chuva que agora caiam lá fora, em sua mente brotaram-se diversas perguntas. Mas era incapaz de responde-las. Sentiu-se menor. Sabia que se espalha-se as revistas de volta no chão não encontraria a paz dessas palavras que lhe invadiam a cabeça.

Foi até o espelho e observou-se. Velha face conhecida. Sorriu, observando quantos vincos um simples sorriso produziria em seu rosto. Eram poucos, ainda. Bafejou no espelho e, enquanto o calor não dissipava no vidro, fez um símbolo de interrogação.

A dúvida era a circunstância que mais lhe incomodava nesse instante. Como se caminhasse por ladrinhos que não conhecesse, como se não fosse capaz de visualizar o passo seguinte. Sem saber se pisaria em terra fofa ou cairia em um abismo. Voltou para a cama, refletiu. Estava a sombra de si mesmo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

da zaga

Gavilanes era peça chave na seleção de 84. Seleção paraibana. Na época foi convocado até mesmo pro time do Crato, primeira divisão. Faz alguns anos, isso, e Doris esteve com ele desde o começo.

Desde antes, desde a série E, desde bem antes mesmo. Sempre se amaram. Felizes, planos e prestações vencidos, conquistados. Casa própria em outro estado, salário fixo e mesmo uma pensão prevista, pra caso o fim da vida. Dele.

Gavilanes ia mudar, agora, de time e de lugar. Era um jogador modelo, exemplo, zagueiro e capitão. Isso desde antes da seleção: Gavilanes era um jogador perfeito, justo e pacífico. Um fair play. Gabava-se apenas de nunca ter, nunca, levado um vermelho. Só mesmo um cartão amarelo, uma vez, que ele admitia. Merecera.

Doris não o aguentava mais. Tinha a casa, tinha a pensão... Não ia mais mudar de canto, aos 30 e tantos, com quatro filhos na mão e outro no buxo. Ele que fosse sozinho. Era um jogador exemplar, não era? Era justo e a perfeição, não era? Ele que fosse sozinho.

Um homem bom não faz falta.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

À Sombra de Iago

Lambo Iago com a ponta de meus dedos, viro as páginas da tragédia do Mouro de Veneza, torcendo para que a tenacidade do vilão vença e o troféu – triunfal prêmio chamado Desdêmona – caia em sua mão.

A vileza está nos olhos de quem vê, a moral é uma arma pagã para que marionetes não fujam de seu controle. Quero ser o homem que derruba os pinos do boliche. Capaz de destruir estruturas aparentemente estáticas e ilusoriamente sólidas.

Ela esqueceu seu lenço quando passava por mim. Distraiu-se entre um gracejo e outro e, ao cair no chão, eu o recolhi e o pus no bolso. Pouco me importa se seu mouro foi o homem que lhe deu o presente. O lenço me pertence como quero pertencer a ela. Entrar nos poros de sua pele e sugar seu cheiro.

Estou enlouquecendo ou ontem seu olhar dizia algo para mim. Algo mais do que a simples constatação do ver. Era um pedido, a lava do desejo, mais nada. Aqueles olhos ou dissimulam ou chamavam este Iago, Chama-me, chama-me com seus lábios, seus olhares, seu corpo, que deixou seu lenço para trás e me cubro de teu corpo nu. É nele que quero morar.

Um maestro em cima do palco rege uma orquestra. Teu corpo é minha sinfonia. A sua melodia curvilínea Desdemona transformada em deusa do amor. Te chamo de Vênus, enquanto sussurra em meus ouvidos Vamos, esperando que eu a possua.

Oh, volúpia, ardor e desejo que desperta. Quero a paixão viva que escorre dos seus lábios. E que seus lábios provem do gosto do veneno de Iago. Nem que te tenha por caminhos vis, justificando os meios de minhas ação. Nem que o mouro pereça. Meu corpo será seu abrigo.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Desenfreado

Era o segundo dia que tomava lanche em seu escritório. Dois dias sem almoço nem janta em casa. Chegava muito tarde da noite, entre 22h ou 22h30, e degustar alguma janta estaria fora de questão. No máximo um aperitivo, metade de um pão, que nunca seria considerado uma janta de verdade.

Olhou o relógio e encontrou os ponteiros em 1 hora e 11 minutos. Teria uma reunião em menos de meia hora. Voltou a comer os últimos pedaços de sanduiche e deu o gole final em sua Coca Cola de latinha, que por sinal, ele odiava. "A lata a deixa com um gosto ruim!".

Terminado seu almoço, se reclinou na cadeira para descançar alguns minutos. Queria que o tempo parasse e pudesse dormir algumas horas. Na noite anterior tivera insônia e já tinha acordado atrasado por isso. Após cinco minutos, abriu os olhos, aproximou-se da mesa, com a caneta na mão anotou na folha em sua frente: "Tempo, tempo, mano velho". Foi para a reunião.

Saiu com o carro em cima da hora, esquecera seus óculos de sol, foi presenteado com uma dor de cabeça que prosseguiria até o final da noite. As 18 horas, sentiu fome, foi na lanchonete ao lado do trabalho, comeu uma esfiha de frango, saborosa, mas que o aborreceu por ser sua janta. Tomou de novo uma latinha de Coca, reclamou novamente: "Porque não vendem as garrafinhas aqui?"

Voltou ao trabalho meia hora depois. Sentou em seu computador, conferiu dados, massageou a cabeça esperando uma melhora, se distraiu por alguns minutos e prosseguiu.

As 21h30 terminou seu trabalho, estava quase sozinho por lá. Deu adeus aos colegas, um "até amanhã" para o segurança e rumou para sua casa.

Deitado em sua cama duas horas depois, lembrou-se de suas resoluções de ano novo. Uma delas era não ser mais escravo do tempo. Agradeceu que o ano finalmente estava no final, talvez seria por isso que agora teria de correr contra o tempo.

Acordou no horario no dia seguinte. Antes de sair de casa avisou a esposa, dessa vez, depois de dois dias, almoçaria em casa, impreterivelmente.

Saiu de sua casa sonhando com o sabor das batatas e do bife que estaria deliciosamente pronto para o almoço.

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Comentário do autor: Este texto é antigo, de anos atrás, mas veio a tona em minha mente esses dias quando notei quantos amigos tenho a margem do tempo. Correndo sempre como se tivessem em uma maratona e não soubessem quando ela vai terminar. Diante dessa reflexão sobre o tempo e sua dilatação, pensei em republicar esse texto.
Normalmente minha composição textual se dá por momentos que vejo e, em reflexão, escrevo a respeito. Mas, por fim, acabei refletindo novamente nesse texto, por isso a sua apresentação tardia. Não interpretem isso como uma ausência de algo novo e sim de uma releitura mental de um texto.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Vida Como Objeto Pontiagudo

De um lado a aspereza do asfalto contraí a pele de seu rosto, do outro a sola grossa que o deixou no chão produz uma marca além da violência. A sensação de ter as mãos atadas, sem nada fazer. Apenas erguer os braços, gritar inocência e que levem logo a carteira.

Sentimentos como esse vem à tona vez ou outra na escuridão da noite. Em uma noite que parecia ser boa, com lençóis recém postos, um clima agradável para um sono que não vem. Assim os pensamentos flutuam longe.

Se transmutam em uma borboleta horrenda que pousa em seus abismos. Cada retorcida na cama, cada troca de lado, cada amassada no travesseiro é uma manifestação para evitar os pensamentos ruins.

A vida como arma adentrando seu peito parece inevitável. Ontem descobriu a tristeza de uma amiga pelo luto, em menos de um mês perdeu duas pessoas. Ficou sem palavras para lhe dar conforto.

Na rua, dos poucos amigos que vê, não reconhece mais a partícula de si próprio que deixou neles. Seus planos fogem dos planos deles. Planejam juntar trapos, morar em outras cidades – tem a sensação que mais por fuga do que por desejo, velarem seus mortos enquanto outros aguardam a chegada de uma menina. Tempos modernos, dizem alguns. Tempos mudados, ele afirma.

Com as luzes da casa apagadas se torna difícil observar a inutilidade da mobília. Com a claridade tudo parece pálido, como um cadáver. Cada qual em seu lugar. Falta caos, desarranjo nessa harmonia. Tem a sensação que o próximo passo natural é ser um jovem suburbano comum. Uma denominação que não gostaria de se encaixar.

O despertador toca as seis e vinte da manhã. Quando percebe, da porta aberta do quarto, o dia dá sinais de vida, não parecia tão cedo. Dormiu pouco, refletiu demais, dormiu nada.

Um café duplo para reanimar e fazer nascer seu dia, anestesiando os pensamentos. Sanduíche de queijo e presunto, duas fatias de bolo. O caminho para o metrô. Pelo horário de seu relógio de pulso, chegará atrasado ao seu turno.

Seu plantão começa as sete de hoje e termina as treze de amanhã. Seu desejo é que seja fácil, mas sabe que será dificil.

Na porta do hospital, o que o faz prosseguir é saber que nas próximas trinta horas, ele fará o possível para fazer a diferença. Salvar, pensa, quem conseguir com sua aptidão e habilidade.

Passos antes de entrar nas portas largas da emergência ele para, observando a placa de Pronto Atendimento em cima dela. Após um suspiro pergunta-se quando conseguirá salvar a si mesmo.

Fecha os olhos com força, abre-os, coloca o estetoscópio no pescoço e entra na sala iluminada, sorrindo, e dando bom dia a todos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

nostragamus

O último alimento do mundo tinha acabado. Ali, agora, naquele momento mesmo. Houve pânico e horror. Depois, com calma, fúria. O último alimento do mundo tinha sido devorado por um deles, quase na surdina. Rápido como o agudo ruflar de asas. Os outros, pouco a pouco, formaram um círculo em torno dele, do que comera. Dela, na verdade. Uma fêmea.

Era previsto, eles sabiam, era profecia: um dia o mundo não ia mais ter horizontes pra criar outras comidas, outras fontes de nada disso. Ela sabia, em especial: era profecia. Comida a última porção, o comedor seria, ritualmente, posto de lado.

Porque, vejam, não era possível aceitar Aquele-que-devora-sozinho-o-que-é-de-todos. O círculo se fechava em torno da fêmea acuada, tremida, manchada com os restos da Última Refeição.
“Não há mais para onde ir no mundo”, pensavam, “Os horizontes estão fechados e o solo que nutria acabou de acabar. A última gota foi sorvida”.

Ela esperava ser banida, mas não estava pronta praquilo que vinha, pro que ocorreu. Com o alimento ainda no bucho, no centro da roda, a fêmea foi despedaçada pela horda. Tripas, asas, pernas finas foram arremessadas. A gota de sangue que sorvera era, agora, repartida pelos que restavam.

No quarto, morto, um corpo seminu. Em torno, paredes, janelas fechadas e, infelizmente pra eles, nenhuma frestinha por onde pudessem voar.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Natureza Sangue

“…o escorpião, precisando atravessar um curso d'água, pergunta ao sapo se ele pode ajudá-lo, ficando nas suas costas enquanto o anfíbio nada até o outro lado. O sapo alega que será ferroado, mas o escorpião lhe garante que não fará isso, pois senão os dois morrerão afogados. O sapo então carrega o escorpião em suas costas, mas enquanto estão ainda no meio da água, o outro lhe dá uma ferroada. Antes de morrer, o sapo pergunta o porquê para o escorpião. Este responde: "Eu não pude evitar, é a minha natureza"”
A fabula do Escorpião e do Sapo


A astrologia para mim sempre foi uma bobagem, uma pseudociência mal formatada para que mocinhas com resquícios de inocência tracem um paralelo dos problemas de sua vida com as poucas linhas proféticas do horóscopo. Eu não era o tipo de homem que abria o jornal nessa página, mas lá estava a folha estendida sobre minha frente: as casas do zodíaco lado a lado.

Olhei de relance meu signo, e fui interrompido pela secretária, “adoro horóscopo, leia o meu para mim?”. Com uns olhos daquele, ela podia pedir o que quisesse, mas só queria uma breve leitura. Perguntei o signo, “virgem”, respondeu. Com um par de seios daquele, só podia ser de signo.

Ela me interrompeu três vezes para fazer paralelos com sua vida. A cereja do bolo era a última frase, “Para viver bem no amor, é preciso conter seu jeito crítico”. Seus olhos foram para baixo, a boca se inclinou, e ela debruçou sobre a mesa que nos separava. “Me diga, João, eu sou muito crítica para você?”. Camila era minha secretária, diabos. Eu lá prestava atenção em algo mais do que o trabalho razoável que ela realizava e o brilho que ela trazia ao ambiente com seu corpo? Resolvi responder retoricamente, frase de psicólogo. “Você se acha crítica?”.

Camila rodopiou e sentou-se na cadeira, cruzando as pernas, a abertura da saia salientou seu corpo. Falamos sobre horóscopo, eu acho. Retruquei algumas palavras enquanto ela analisava sua vida e voltei ao jornal. A página ridícula da minha frente.

Meu nome me fez voltar a história de Camila, “... é a terceira vez que pergunto, João, o que houve com o seu braço?”. Não pude esconder minha decepção comigo. A manga da camisa erguida demais revelava a mordida. Animal, mamífero, gênero feminino, um metro e sessenta e dois de desejo e selvageria, uma marca ainda roxa no meu braço. “Nada”, tentei esconder e fazer com que Camila voltasse a contar sua história. Vinte minutos depois ela estava sentada em sua mesa e eu com dor de cabeça.

Memórias eram desnecessárias para me lembrar, a marca que meu corpo preservava era profunda o suficiente para doer e avisar aonde me meti nos últimos meses. Mesmo assim fechei os olhos. Lembrando o êxtase de prazer que ela teve ao morder-me. Posei a cabeça nas mãos e pensei novamente, o que diabos você fez nos últimos meses?

Era como uma missão suicida de um policial que se infiltra em uma quadrilha perigosa. Ela não era meu lugar, mas era aonde eu queria estar. Eu poderia dizer que as coisas simplesmente aconteceram repetidamente, mas eu calculei meus passos, calculei até me irritar e decidir que iria vencer a garota.

Ela é do tipo que parece dócil até ganhar o primeiro naco de comida. Depois rosna mais alto que uma cadelinha e mostra-se selvagem. Esperneia, faz escândalos, cada um de seus atos requer uma reação à altura. Uma resposta as suas maneiras desesperadas de obter atenção, de demonstrar que você não valia nada. Eu estava farto. Estava liquidado.

Há histórias em nossa vida em que podemos apenas continuar seguindo-as. Um caminho que, de um lado, está com água até os dentes e a única opção é o outro lado do mapa. Foi assim. Era como caminhar para a prancha em um barco pirata.

Não fui inocente, confesso. Tive cartas na manga e usei uma a uma, até acabar todo o baralho. Apelei para minhas palavras até ela me calar com seus beijos. Usei meu instinto até ela come-lo por completo. Faltou-me emaranhar-me e cortar minha cabeça. Cada ato sádico lhe dava prazer.
Eu era um homem perdido. Apaixonado por uma mulher que tinha doce nos lábios e veneno nas mãos. Meu extermínio era questão de meses, horas. Era esperar e ver. Eu via, de olhos abertos, poderia ver tudo.

Meu olhar disperso, a garrafa de bebida, o cigarro aceso, e a foto que eu faria questão de deixar ao meu lado enquanto a chamasse de cabra vadia. Admirando meu braço. Observando a cicatriz daquela mordida que nunca fecharia por completo.

Camila estava ao meu lado e nem percebi. “Ainda nessa página? Tentado decorar todos para virar um astrólogo?”. Sorri com a piada imbecil e respondi, “rindo de uma ironia, algo engraçado em que não acredito mas que faz sentido”. Seus olhos mudaram de expressão, de súbito, novamente, o rodopio sentando e a cruzada de pernas. Aproximou-se a cadeira da mesa e curvou seu corpo nela. Conjunto completo só para me perguntar: “Posso saber o por quê?”.

Eu ri. E apontei a ela, nascidos entre final de outubro a novembro, escorpiões. “O que tem?”, perguntou novamente. E retirei da gaveta um bilhete de agradecimento, datado de 29 de outubro, escrito por aquela que me mordera: “Obrigado por lembrar de meu aniversário ontem”.

Ela olhou-me com olhar estranho, sem saber correlacionar os fatos. Eu ri novamente, dessa vez de sua estupidez. “Não entende, Camila?” e estendi o braço ferido, “faz parte de sua natureza, o que mais eu posso fazer?”. E escondi novamente a marca com a camiseta. “Agora, se me permite, vou ao almoço.”. E refleti, enquanto vestia o casaco, que era impossível retirar a natureza de certas mulheres, por mais que tentássemos. Assim, suspirei e desejei que minha morte fosse rápida e não tanto dolorosa. Ela sabia que eu já estava em suas garras.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

You Saw Me Standing Alone

A blue moon Billy Holliday.

As fases de sua lua. Nova e perfumada ao descobrir aquilo que não viu. Crescente quando invade um novo lugar para observar, Cheia de mistério de olhos fechados e Minguante quando entra em sua escuridão.

De longe encobre-se. Astrônomos sem talento perdem a minúcia de seus reflexos. Desorientam-se na rotação, na mudança de suas fases. Outros permanecem nos quintais de suas casas, sentados no abismo, observando a luz azulada que sai de seus blues. Sua voz doce e rasgada.

Poetas fazem da lua sua amante bailarina. São dançarinos enquanto ela muda suas faces. Se espantam, se alegram, se embriagam. Mesmo a milhas de distância.

Lua, satélite, luz, loucura, esfera. Além das fases, é ela. Lua em forma de dúvida, canção vestida de poesia noturna. Êxtase que cala todas as palavras na escuridão.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Barão de Lucena (só pra não passar em branco)

Hoje, bem pela manhã, quando o sol não subira nem mesmo onze horas, saí.

O hospital ao longe fundo do parque jardim frontal, ou o que seja aquele bando de mato com "Não pise na grama", o hospital ao longe ia ficando perto. Lá da calçada, entre carrinhos de DVDs-a-dois-reais, tecnobrega e feijão verde, o prédio distante parecia um monstro. Um monstro morto-vivo, caído aos pedaços, sinistro, pesado, escuro. Quando foi chegando perto, até que era ajeitadinho.

Por fora.

Pisado o corredor inicial, sem ter a quem perguntar, andei. Pra dentro, obviamente. Quando o primeiro corredor descascado, com pessoas indo e vindo, muitas pessoas indo e vindo, quando o primeiro corredor acabou, veio outro. E no outro encontrei, por fim, uma enfermeira. Tava salvo.

Nada.

Era um homem, ali. Mas não um homem enfermeiro - que teria ajudado do mesmo jeito, indicando o caminho pra onde andar -, era nada. Um homem vestido de mulher vestida de enfermeira. Uma nurse queen, ou o que o valha. E valha-me Deus, Nossa Senhora, que pra depois da drag ali tinha uma feira monstruosa. Uma feira, com barracas, gritos, compras, só não tinham cabritos mas empada de queijo de cabra com certeza tinha, ali. Tinha sim. E depois, além, depois da feira no correr do hospital, um algo feito confraternização de fim de ano de velhinhas amigas velhas, sabem? Com microfone e tudo, tava lá. No hospital.

E eu, de minha parte, passando mal.

Hoje, bem pela manhã, quando o sol não subira nem mesmo onze horas, saí. Antes não tivesse acordado.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

No Meio de Tudo, Você.

Carter não conseguia imaginar como alguém tão bela parecia tão diferente nas fotografias que tirava. Havia ângulos errados e obtusos, tirados as pressas, que mais revelavam as poucas saliências defeituosas daquele rosto do que sua beleza iluminada. “Tenho olhos com problemas ou fotos revelam demais”, pensou.

Virou-se na cama e, ao seu lado, deixou que a imaginação pregasse-lhe um truque. Seus olhos a refizeram ali. Recordando mentalmente a sua imagem, notou os vincos que os retratos revelavam. Após refletir, retirando-a de sua cama e da memória, feito fumaça, concluiu que não. Confirmando sua hipótese mais provável de que retratos eram um remendo mal feito agarrado pelo tempo.

Mas não fora esse o foco de seu incomodo real. Mas sim despertar e logo encontra-la em seus pensamentos, sem conseguir afugenta-la. Lembrou-se de um sonho, apenas pequenas partículas em lembrança, em que estava com um dos braços abertos esperando que ela chegasse de onde estava para que seu braço entrelaçasse sua cintura. Carter lembrava-se de que caminhavam junto alguns passos e ele dizia algo a ela, remetendo-se a um assunto recém comentado. Imaginou que a proximidade significava que talvez estivesse chovendo.

A razão desse devaneio e o que respondeu a ela, não lembrava. Tinha a sensação de ter sido algo importante e jocoso. Algo que a faria rir por alguns segundos e refletir em seguida.

Levantou-se da cama, imaginando que uma caneca de café clarearia suas idéias. A fumaça fumegante do líquido amargo sempre abria-lhe as idéias, antes mesmo de toma-lo. Tomar café sozinho em um ambiente silencioso sempre lembrava filmes em que personagens gastavam dispendiosas horas tomando suas bebidas e refletindo sobre a vida.

“Não vejo relevância em ficar tanto tempo destinado a permanecer em um só local, em uma só reflexão. É necessário caminhar com elas, para brotar conclusões”, pensou, enchendo outra caneca de café.

Mesmo que a reprimisse pelo resto do dia, matando-a um milhão de vezes em seus pensamentos, sabia que essa memória tácita voltaria a surgir. Fosse em fagulhas que ligavam-se ao cheiro dela em um corredor de supermercado onde Carter, de repente, caminharia mais lento para aspirar melhor suas lembranças. Ou em alguma palavra que ouviria em conversas alheias, possuindo a mesma cadência da maneira que ela tinha de pronunciar as palavras.

Cerrou os olhos com a intenção de afunilar, em vão, as memórias. Mas naquele dia não lutou contra si mesmo. Quis experimentar o que o próprio consciente poderia lhe trazer. Entregou-se. Fosse o que fosse, suas memórias não lhe deixariam em paz. Em goles suaves de café, entre a fumaça quente que saia da caneca, deixou que seus desejos o invadisse e, aos poucos, ela formou-se ao seu lado e ambos começaram a caminhar novamente.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

respeitável público...

O cara subiu no palco. Tava não vestido de mágico, tava não. Trajava um terno cortado de fraque, com aquele rabinho bacana de pinguim, pequenos óculos redondos e uma cara apatetada. Não parecia com um mágico, em nada.

Era fim de noite, de meios euros gastos e de meia embriaguez latente. A platéia tinha sono, marcas de batom no colarinho e os dedos prontos a discar pro serviço de táxi. Daí foi que o rapazinho subiu ao palco, pigarreou no microfone bem preso por fita isolante e fio de cobre e, sem cobrar mais nada além do couvert de praxe, estalou os dedos.

Estalou juntando as duas mãos entrelaçadas e virando ao contrário, clec, vocês sabem. A meia embriaguez de todo mundo foi-se embora. Ou ficou embriaguez inteira, ninguém sabe. Fato é que o estalo de uns dedos encharcados de suor foi bem mais alto que o mínimo esperado, e a platéia teve um sobressalto. As marcas de batom continuavam nos colarinhos, mas as bocas semi-abertas olhavam pro que o rapazinho ali no palco ia, pouco a pouco, apresentando.

Enfiou a mão direita na manga esquerda do fraque e puxou um canivete. Com um movimento rápido fez o canivete quintuplicar de tamanho, virando uma espada que ele, rapazinho, jogou pro alto, sem olhar. Depois, com a mão esquerda puxou do bolso in terno uma lagarta, que jogou pro alto rumo à faca. À espada. A lagarta virou borboleta no instante em que tocou a espada, e a espada se desfez em chuva ácida.

As bocas semi-abertas eram olhares espantados, agora, a gritar assombros e exclamações. O rapazinho no palco parecia injuriado, como quem não consegue o que tá tentando conseguir. Mas ninguém sabia, ali da platéia, ninguém queria saber. A chuva ácida caía, e o rapaz do palco cutucava pela sola do sapato com um ar compenetrado. Procurando algo.

Tirou um barbante que enrolou rápido no dedo médio da mão esquerda, depois jogando pro alto, sempre pro alto, com um peteleco. No ar, barbante vira corda, corda vira cobra, cobra vira um grande tapete de pele a receber toda a chuva nas costas. A chuva ácida. Depois, em vez de um tapete esburacado, plumas. Multicoloridas, mas com uma predominância de azul. As plumas caíam, e o rapaz começava a soltar o corpo sobre o chão.

A platéia, os funcionários, o dono do bar e até a polícia que vinha toda noite receber sua propina estavam conquistados. Não percebiam o estado de aborrecimento do rapaz. Não sabiam o que ele queria, mas ele sabia (ele sabia, inclusive, o que eles queriam, mas pouco se importava, e continuava a procurar o que procurava).

As plumas caíram formando um fofo travesseiro, quase ao mesmo tempo, mas um pouco antes, da queda do rapaz, de bunda, sobre o chão. O microfone regulou sua altura, ficando bem pertinho do menino, e de dentro do estojo de courino que trouxera dos bastidores - antevendo que seria útil - aquele mágico puxou um papelzinho.

- Ah!, minha poesia. Ainda bem que trouxe outra cópia. Senhoras e senhores, boa noite. Hoje vim aqui tão-somente para ler essa epopéia...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Nada Além

a reflexão quebrada no espelho

Hoje, no pôr do sol, o prédio que mora ao meu lado ficou avermelhado. Parecia um portal para o inferno se houvesse labaredas. Mas foi só a noite descer que tudo se escureceu como de costume.

Admirei o céu até ficar escuro, como minha alma e voltei a deitar. Ou estou com dor nas costas ou prestes a morrer a qualquer momento. Tenho apreço por esse sentimento espontâneo. Sentimento de que algo grandioso vai acontecer. O mundo vai desabar, as paredes dissolver e eu continuarei sozinho.

Tenho me olhado no espelho e não reconhecido quem sou. Não reconheço nem o mundo a minha volta. Tudo parece velho. O que vejo são apenas estilhaços de um mundo quebrado. Escuto cacofonias sem saber de onde vem tantas vozes. Estou ficando maluco.

Quando durmo, tenho a sensação que estou em casa. Mas logo percebo que não há cheiro de café vindo da cozinha e me lembro que estou em um lugar escuro que não quero estar. Estou só na terra de ninguém.

Hoje até a lua se escondeu no céu perene, meus olhos estão mais fracos que o habitual. Estou suando frio sem saber o que fazer.

Uma voz sussurra ao meu lado dizendo, deixa estar. E minha mente confirma que já deixei. Fui deixado.

Deixaram-me com nada além de mim.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

de laboratório

Foi assim: dente fodido, dente quebrado. Grão de arroz cru ou muito duro, não importa, fez as vezes de aríete pra boca. Comida vegetariana com esmalte dentífico, toma limonada e continua, já que quebrou mesmo, essa merda. Daí depois, um bem depois, corre pra atendimento de emergência da Odonto faculdade. Faculdade pública, estudantes públicos, serviço público de qualquercoisa, sabe como é...

Era fim de semestre. Finzinho, mesmo, tipo última semana. Semana de provas. Talvez até semana de exames, já, praqueles superlegais que tomaram pau na prova antes e iam a fazer prova agora. Mas como é de graça, não se joga fora. Porra de dente quebrado, "Esse é só um provisório, vá na Dentística, vá?, e tenta se encaixar". Fim de semestre, eu disse, mas bem que me encaixei. E não só fim de semestre, mas fim de expediente, horário letivo, a porra que seja. Prova, dupla latina - um paraguaio, uma chilena - "Vamos tirar radiografia. Duas", "Duas porra nenhuma, Rita, duas nenhuma, que estamos atrasados. Mira la face del demonio, aquela professora é um saco". E tirou só uma.

"O que é? Vocês têm pouco tempo, vão desligar o compressor, rápido, rápido. É esse que dói?, deixa ver. Ah!, é canal. Canal não faz aqui, não. Agora, esse de cima..."

Esse de cima? Nunca teve nada nesse de cima. Teve nada, ora, nada nada. Nem doía. "Nosotros vamos empastar tu diente. Rita, saca el equipo". E que porra foi, então, que empastaram mesmo. Buraco de dois dedos num dente que nem esse espaço todo tem... E o quebrado? Provisório? Ainda, ora, porque era canal, certo?, canal. "Marca pra daqui a dois meses, semestre que vem". Marquei.

"Então falaram que era canal? Ah, certo. Aqui mesmo, tu diz? Uma professora? Certo". É, cara, mas sei lá, me senti meio cobaia - "esse tá complicado demais e não tem tempo. Façam aquele outro ali de cima, que não tem nada e é o que falta pra vocês fecharem a nota" -, saca? Parecia que eu era um daqueles camundongos brancos de laboratório que são mortos judiosamente puxando cabeça de um lado, rabo de outro. Argh! "Bom, a gente vai ver. Tirar outra radiografia, então, Mário?", "É, tira uma periopetrial, e a gente vê". Certo, vamos lá, então, digo eu comigo mesmo.

E fomos.

Sala velha de radiografia, cadeira nazista de chumbo, placa de chumbo na porta, canhão de raio-x frouxo que precisava de uma mão pra ficar na posição certa... continuava me sentindo um ratinho de laboratório. "Veste isso, mestre". Colete de chumbo. Do peito aos joelhos. "E isso". Coleira de chumbo. Co-lei-ra.

Eles saem. Seguro o raio-x. Sinto ainda um rato de laboratório, ou mais. Uma cobaia. O raio-x faz barulho, esquenta, queima meus dedos, mas não solto. Queima meu antebraço, esquenta mais, acho estranho e olho. Porra, cadê todo mundo? Por que meu braço tá queimando até o ombro, e que gritaria é essa? Deus, por que tô ficando verde? Por que caralho eu ah grr uargh!, ESMAGA!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Rosas e Vinho Tinto

O ritmo estava devagar. A canção em um momento errado trazia sono do que prazer. Mais um gole daquele vinho, comprado especialmente para a ocasião, poderia fazer com que as pálpebras se fechassem. Quebraria toda a preparação e transformaria essa noite em potencial em um desastre completo.

Estavam juntos, sentados próximos no sofá, em frete a televisão. O filme parecia tedioso para ambos, mas nenhum dos dois, até os créditos finais, ousou dizer palavra alguma. Muito menos pausá-lo, tentando estabelecer algum diálogo que já nasce morto. Fora de questão.

Ele achava que seduziria-a no primeiro momento. Ela imaginava que ali, longe das mesas de reuniões, seria diferente. Mas o mesmo silêncio e respeito entre secretária e chefe era presente. Do trabalho ao seu apartamento do quinto andar.

Antes do tédio em frente a tevê, comeram uma massa caseira, preparada por ele. Nessa hora ela parecia diferente, mais solta. Conversou sobre suas preferências culinárias, os quitutes da mãe e pode reparar no olhar curioso do outro lado da mesa. Como um cientista que observa uma descoberta em seu microscópio.

A noite fora preparada com cuidado de ambas as partes. Tudo parecia tão preso e ensaiado que nada aconteceu. As roupas compradas e escolhidas para a ocasião não funcionaram. Os perfumes mais se trombaram do que trouxeram a sensação de desejo que esperavam.

Quando os letreiros da trama boba que assistiam subiu a tela, ficaram em silêncio e, quase sem perceber, um admirou o relógio do outro. Levantaram-se, como se ambos estivessem em um lugar desconhecido e precisassem partir.

Ele fez perguntas sobre o sabor do jantar, ela timidamente respondeu com elogios enquanto caminhava para a mesa do canto onde deixara bolsa e casado.

Foi isso. Despediram-se de um encontro morno, quase frio.

Enquanto trancava a porta do apartamento, via o que sobrou daquele encontro. Comida fria, vinho tinto, o cheiro de perfume emaranhado ao seu. Se renovou-se, não sabendo o porque. Deu dois passos rumo a mesa, dois goles do vinho e abriu a porta. Gritou o nome dela lá mesmo, ecoando pelos corredores.


Ela, em seu passo lento, estava perto e segui seu chamado prontamente. Quando se encontraram no meio do caminho, as luzes do corredor se apagaram. Um pequeno empurrão para um beijo ou para uma fuga as escuras. Sentiram-se a vontade na escuridão e deram vazão ao desejo esperado.

Quando um vizinho reacendeu as luzes do pátio, um observava o outro de perto. Ele disse boa noite e ela até amanhã.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

pirata do tietê

O chinês imaginário era um corsário, hoje. Atracou silenciosamente na margem do rio Tietê e fincou os pés em terra. Pouco depois, bem pouco, colocou pé frente do outro, sacudiu-se e foi andar. Andando andando andando, não se sabe lá bem como, chegou à avenida Paulista, aquele assombro. Chegou. Percorreu de ida-e-volta umas três vezes a avenida, porque sim, porque queria ver que maravilha escondida estava escondida ali. Tesouro, um algo, qualquer coisa do tipo rica. Achou foi muita coisa, porção de mulher bonita, e tabuletas de "Compro Ouro" e tabuletas do fim do mundo e tabuletas de shows escusos na rua Augusta. O que o chinês imaginário viu foi uma pusta lua encoberta por um pó fininho cinzento que partia do chão e ia até o alto céu, ou vinha do céu e caía no asfalto quente preto poluído, tanto faz.

Lembrou das Termópilas, desfiladeiro estreito e alto, garganta do diabo, quando viu o mar de prédios ambos lados na avenida do estado. Parecia mesmo que 300 bons guerreiros parariam um mundo inteiro de inimigos se parassem pra um café. O chinês imaginário, então, sentou numa mesinha na calçada e tomou um curto café preto acompanhado tão-somente de poluição, que devorava a bocadas. O ar dessa cidade não é como o ar da Ásia de onde veio, e com um pão de queijo dá até pra disfarçar o gosto de fuligem, medo e mal. Levantou sem pagar a conta e seguiu mais adiante, ensombrado pelos prédios gigantes que o cercavam.

Ao atravessar a rua, avenida, viu um jovem meio forte de cabeça bem raspada e rosto bravo. Vestia uma jaqueta dos Spartans, esse macho, e a metáfora toda fez sentido pro chinês. O desfiladeiro paulistano tinha uma multidão de muitíssimos mais que 300, tinha sim, para defendê-lo. Graças a deus, porque pro chinês é impossível parar ali. E não parou. Seguindo Augusta, uma velha velha puta que caminha sampa adentro, seguindo Augusta, viu parar em uma esquina um grandíssimo caminhão escrito Brahma. Parou num solavanco, e o chinês - pra acompanhar - solavancou também. De dentro dele, caminhão, pularam dois homens a abrir as portas e tirar cervejas, a fazer entregas. De dentro dele, chinês corsário de estrada e sangue, uma vontade de caminhar.

Passou pelo caminhão, armou-se de uma garrafa, tirou a tampa com o dente e seguiu quase que invisível, por certo que transparente, pelas veias da cidade que o expeliam num cuspe só.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

No Bar, estão um comediante e uma moça...

Pedi uma bebida, ela deixou um copo d´agua em cima da bancada. “Pela sua cara, você só pode pagar uma água”. Eu sorri pela ironia de suas palavras e repliquei, “mas você tem o poder de me dar um drinque de verdade”. Ela sorriu em resposta e me deu algo quente para beber, tomei de um gole.

“Novo na cidade?” perguntou. “Novo em qualquer lugar.”, respondi. “Quanto drama. Faz teatro?” e ergueu a mão direita imitando a cena do príncipe com a caveira. “Desde que nasci”, falei.

“Tem cara de quem faz tragédias, você não parece do tipo que ri”, e esboçou um sorriso falso. “A vida já é uma tragédia, querida. Não precisamos mais dela. Faço as pessoas rir, não rio de mim mesmo, tem cigarro?” e mostrei meu isqueiro. “Não fumo”, ela disse. “Nem eu, achei que uma nova cidade e um novo vício fariam-me bem”.

Ergueu-me o dedo contra a face, “Então é novo na cidade!”. De sorriso transpassado respondi, “novo, que seja, mas macaco velho. Não consegue perceber? Não consegue perceber a cara de um comediante?”.

Eles tem caras agora? Como máscaras de tragédia e comédia? Para mim são todos iguais.

Bobagem. Consigo ver o riso aonde os outros não conseguem, sou especial para alguma coisa”.

Ela encheu meu copo, fez uma regência com uma das mãos apontando ao bar e disse: “Valendo uma rodada, faça-me rir”. Gostei de seu desafio, “só se me acompanhar”. E encheu outro copo.

Escolhi o homem do canto. Quarentão, óculos quadrado, cara de perdedor. Soltei quatro piadas seguidas sobre ele. Ela riu, de leve. Apontei para três sujeitos e fiz mais algumas piadas. Uma delas a fez rir muito, perdendo o fôlego.

“Diabos”, arfando, “Você até que é bom, como se faz?”. Refleti por um momento e respondi com ironia, “basta ser desiludido com a vida. Pense em um presente perfeito de natal, quebre-o por completo. E veja aquilo que sobrou. Tirei daí a miséria do riso”.

“Insisto que você é bom para tragédia. Quanto drama. Já pensou em fazer monólogos clássicos?” perguntou-me, interessada em mim.

“Não. São belos, mas não tenho expressão facial para tanto. Meu rosto se comporta de duas maneiras. Triste e miseravelmente triste”. Ela riu. Mas eu falava sério aquela hora. Fechei minha cara.

“O que foi?” perguntou. “Eu falava sério”, disse. “Desculpe. Acho que não tenho tanto para entender comediantes.” Tentando consertar seu desarranjo.

“Sem problemas. Eles estão mortos mesmos”. E ela tornou a rir de minha desgraça. Minha sina de trazer o riso até em funerais. Pedi outra bebida. Ela encheu o copo sem perguntar se eu tinha dinheiro.

“Que horas sai?”, perguntei. “Logo, por quê?”, respondeu.

“Ainda tenho algumas piadas na manga. Que tal ouvi-las após sair dessa pocilga?”, disse tomando a bebida.

Ela sorriu, sem que eu imaginasse o porque do riso. "Certo, comediante. Saio em meia hora.”

E eu me preparava para, mais uma vez, encontrar um motivo qualquer para levar uma qualquer para a cama. Foi então que ri da estupidez da minha vida. Eu era um comediante, afinal.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

poste atrasado

A máfia italiana nunca pensou que seria confrontada pelos índios sulamericanos dos Cárpatos. Nunca pensou nem nunca foi. O célebre episódio dos Tiros em Tiramissu foram travados na ponta da bota, munidos de confete e alfajores.

Argentinos dançam tango em cabeças de porcos. Marcam ritmo com castanholas de castanhas-do-pará, enquanto Garantido e Caprichoso fundem-se azulvermelho como os velhos Double Dragon.

Nada é certo nada é firme. A vida é ritmo na cabeça do careca. Ritmo que escorrega. E viva a transferência transcendental.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Meu Inferno

“Procedimento normal”, sorriso opaco e cansado. “Acontece muito”. Devia estar há muito tempo lá, final de plantão. Quis perguntar, mas hesitei. Quando o médico chegou, mais simpático que o habitual, perguntou-me o óbvio. “Se cortou?”, quis responder que foi fazendo a barba.

Os vizinhos ouviram minha fúria. A cadeira contra o espelho, o som das lascas no chão, a faixa ensangüentada na mão enquanto descia as escadas. Não perguntaram nada. Podiam imaginar.

Minha imagem me incomodava pelo que sentia. Fiz o espelho quebrar – o único em casa – para não me ver mais. Primeiro a cadeira, as mãos depois. Na volta, com a mão bem enfaixada, sangue seco e estilhaços no carpete. Retrato do que sou.

Arranquei a roupa ainda suja, abri as janelas, morrer de fome ou de frio, quem viesse primeiro. Fui até o quarto, as luzes de fora davam-me o necessário para ver. Abri o armário, retirei roupas. Na mesa de cabeceira mais uma pílula. Uns fumariam cigarros, outros beberiam whiskey. Eu, violentei o espelho.

Na cozinha achei a tesoura que procurava. Cortei os cabelos, carpete de vidro, sangue, fibras e pelos. Não quero ser o que sou. Mas da carapaça não sai nenhuma máscara, não escorre nenhuma maquiagem. Sou o que fiz, fiz o que sou. Lobo de mim.

O frio adentra a espinha. Eu me voltaria a Deus se ele ajudasse. Eu lavaria as mãos se a água pudesse limpar. Tudo parece o mesmo caldo.

Quase nu, vou à janela. Observo um homem sombrio em atitude sombria. Apoio as mãos no parapeito, lembro-me do corte que havia esquecido. Aperto-as para sentir doe-las. A vida pulsa em meus ouvidos, estrelas fulguram em meus olhos. “Até onde pode agüentar, homem?”, me pergunto. E na escuridão vejo a faixa enrubescer.

Respiro fundo para não proclamar minha dor. Caminho para a cama. Uma pílula já foi passear, duas acompanham seu caminho.

Durmo.

Monstro. Homem. Deus. Nada. Ninguém.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

eles passarão

"Informe de última hora: astrônomos da Universidade do Sul da Macadânia indicam que a rota do famoso cometa Halley foi desviada e passará, dentro de algumas horas, pela tangente da Terra. O fenômeno poderá ser visto na Patagônia, sul da Austrália, em todo o continente antártico e em pleno alto-mar. Mais notícias durante a programação"

Parece que há cem anos... parece mesmo que já faz muito mais tempo. Mas nem nada, né? Rápido, um respiro só pra quem tem milhões de anos de idade. Bilhões, feito a Terra. Que ela pensa de mim? "Besta, menino apressado, besta besta, tsc tsc. Nunca poderia ser planeta". Aposto. Ela pensa isso, eu sei. Um grão de areia, eu, poeira da Terra velha.

"Extra: depois deste, próximo avistamento do cometa só em 2114"

Mas eu nem queria ser planeta, não. Paciente, girando sempre a mesma bola, órbita, com os olhos saltados fora porque os pés não enxergam longe... eu não, queria não. A Terra que seja planeta por mim. Eu tô é mesmo por aqui cheio de pressas, de vais-e-voltas, bem mais de um a cada hora. Sem curso certo, sem rumo, tipo cometa, mesmo.

"Matéria completa: saiba tudo sobre os asteróides"

Fico esperando aqui, um pouco mais, porque o cometa vai passar. E nem só isso; mais que cometa, logo chega ela também. Êa... parece que faz cem anos.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Mãos Dadas

“Amor consiste em duas solidões que protegem,
aconchegam e apóiam uma à outra.”
Rainer Maria Rilke


As mãos dadas são um dos símbolos mais felizes que posso conceber em minhas memórias. A divisão mutua do calor, quando acrescido do amor, é uma dessas sensações belas e inexplicáveis, devo confessar. Andar de mãos dadas é tão profundo que enriquece poemas e canções. O toque das mãos é o início de tudo, mãos que se tocam e depois encontram o corpo de seus pares.

Há quem diga que uma mão entrelaçada parece com um coração. Outros vêem o visível aos olhos, de que o contato é um elo íntimo. Uma prova do amor. Duas pessoas formando ali um único ponto.

Nunca compreendi, ao certo, o movimento do amor. Tenho mais costume por sua ressaca do que pelo seu sabor fresco. Assim, enigmático para mim é a transformação do duplo em uno. Um casal que se ama e se entrelaça formando um só.

Duas pessoas que trilhavam caminhos diferentes agora não só seguem juntos um horizonte, como parecem perder o esquife que determina aonde começa um e outro. Perdem primeiro sua identidade para, no final, perderem o amor e depois o amor pela vida.

Não há mais a primeira pessoa no vocabulário. Os planos viram projetos para um par. Eu se transforma em Nós. Nós acabam machucando quando bem atados.

Onde um vai o outro está. Perde-se o aconchego próprio, o tempo necessário para ouvir a própria escuridão. Com as luzes apagadas é confortável saber que uma mão amável está por perto, para salvar de um susto. Mas perde-se as horas para chorar sozinho. O tempo de lamentar-se para a lua, brincando ser um lobo que uiva. Amar é não dar espaço para a matéria de que somos feitos, a solidão.

Nunca compreendi esses casais que começam a tratar a si mesmos como uma entidade superior. Uma dupla que, por estarem em dois, tem mais valia do que os solitários. Saem em parceria com outros casais, fazem reuniões daqueles que fingiram se fundir em um. Fazem questão de dividir os times. Os saudáveis e o clube dos corações solitários.

Falam o tempo todo na pessoa amada, não por amor. Mas pela dúvida em amá-la de verdade e perceber, no meio do dia, que seus pensamentos estão em outra pessoa. Repetem seu nome como feitiço conjurado, como uma oração. Para lembrar que estão unidos, mesmo que o silêncio apareça mais que o verbo.

As batalhas que escolhi lutar em minha vida foram positivas e me ajudaram a definir quem sou. Foram preciso marcas, dores, muito sangue escorrido pela boca, para agora admirar minhas cicatrizes e saber que me conheço. Pouco, evidente, mas posso dizer que sei daquilo que gosto.

Gosto dos amores que não censuram. Dos caminhos que são feito juntos não por obrigação ou unidade, mas pela simples vontade de estar de mãos dadas e caminhar, até as pernas doerem para um descanso breve. Caminho feito a quatro pés. Amores que não se consagram em nós. Amores que definem bem que duas pessoas compartilham o mesmo amor e não a mesma voz, o mesmo corpo, a mesma perfeita sintonia.

A parte disso, sou um daqueles poetas que nunca aprendeu a amar. Vivo na solidão única de mim, sabendo que assim, ninguém poderá me perder. Nasci para não saber amar. Morrerei só, com a mesma sentença dos amantes. Mas lúcido, sabendo que dentro de mim permanecerei eu mesmo.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

quem matou odete roitman?

- Ele é o assassino!

- Quem é o assassino?

- Ele é o assassino...

- Ei!, eu não sou o assassino.

- Claro que é. Vejo o sangue em suas mãos.

- Há sangue nas mãos dele?

- Não há sangue, não há. Eu não sou o assassino.

- Você é!

- É isso aí... você é!

- Não sou.

- Polícia!, polícia! Aqui está o assassino.

- Arrá!, então você está aí, assassino.

- EU NÃO SOU O ASSASSINO!

- Teje preso.

...
...
...

- Ei, Charles... ele era o assassino?

- Sei lá.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Álbum de Família

Sou o fotografo dessa reunião por um número tão incontável de vezes que me esqueci. Tenho que recorrer aos meus arquivos de metal para comprovar pelos negativos quantas vezes capturei a imagem daqueles que lá estão.

São anos tão antigos que ainda revelava minhas fotografias em uma câmara escura, com produtos químicos e um varal para secar as fotos. Duas delas foram feitas assim. Dois retratos que vejo, lado a lado, com o último que fiz.

A permanência de um mesmo cenário, cadeiras postas em um quadrado, decorando uma cena. Na parede um retrato de um horizonte, tão velho que deve estar morto. Na figura, como carimbos definidos, o mesmo grupo da família. A mesma sentença da primeira imagem, agora com mais rugas.

A solteira permanece no canto da foto, em todas elas sempre preferiu a direita. Talvez, sem querer, como símbolo de sua sentença, já se afasta dos retratos, indo encostar-se no canto. Os homens ficam ao centro, aqueles que se conhecem de longa data. E as pontas permanecem os fios que sempre são cortados. Relacionamentos das mulheres, casos dos maridos, pessoas que vão e vem. Mais fáceis de serem apagadas de uma fotografia estando nas encostas. Basta uma aproximação, um corte mais profundo e a foto parece nova sem aqueles elementos que, em breve, sabemos, serão suprimidos.

O que mais me incomoda em minha profissão, realizando retratos para famílias durante anos e anos é que tais imagens são espelhos da primeira. Tais personagens poderiam muito bem, se quisessem, tirar uma série de fotos em um mesmo dia, trocando apenas o figurino e os pentiados. E depois afirmando com vigor que cada uma delas correspondia a uma celebração diferente.

Os sorrisos trincados nos rostos, a mesma esperança doentia gravada naquelas retinas. Braços cruzados como alguém que não tem nada a perder. Mãos dadas abraçando espumas. A triste sentença de que o tempo nada transformou. Nada modificou. Nada amadureceu. Apenas trouxe rugas aos olhos e retalhos no coração.



Meus olhos são as lentes de vidro onde capturo imagens, nada mais. Lentes que nunca capturaram minha imagem. Quero morrer na ignorância do que deixar na eternidade a amargura de mais uma vida que não vive, apenas um reflexo de luz.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

quem roubou o broche de madrepérolas?

- Oh, meu Deus! Roubaram o broche de madrepérolas!

- Não é possível... como assim, o broche de madrepérolas?

- É. Ele estava aqui há um segundo, e agora sumiu. Filhosdaputa.

- E quem será que roubou esse broche de madrepérolas? Quem foi o sacofantas?

- Sacripanta.

- Como?

- Sacripanta, você quis dizer. "Quem foi o sacripanta?".

- Ah, não. Eu quis dizer, mesmo, "quem foi o sacofantas".

- Quis?

- Quis.

- Mas que porra. Olha aqui, como eu posso ser um detetive sério e resolver esses casos importantes se você vem me interromper com palavras como "sacofantas"?

- Cara, deixa de viadagem. O sacofantas roubou a porra do broche de madrepérolas e você fica aí, preocupadinho com palavras...

- Preocupadinho? Preocupa-dinho? Ah, filhodaputa... preocupadinho? Tu acha que é fácil, é, trabalhar com você aí, enchendo a porra do saco? Acha? Quer saber?, você que é um sacripanta.

- Eu?? EU!? Eu não sou nada disso aí. Quem roubou o broche foi outro sacofantas, isso sim.

- Diabos, dá pra me ajudar um pouco, só pra variar?
...
...
...
Hey! Foi você! Foi você, seu sacripanta, eu descobri, rá!, eu descobri. Passa esse broche de madrepérola pra cá, agora. Sacripanta filho de uma mãe.

- Diabos... tá, toma. Enfia essa porra no

- Hey, por que você ficou todo preocupado com o jeito que eu chamava o ladrão? Sacofantas, sacripanta...

- Bom... é que... sabe... sacripanta é muito ofensivo, né não?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Questão de Uma Idéia

uma anedota

A vida, bem comprida, olhou nos meus olhos e disse:
- Adivinhe o que tenho para você?
E passo os dias vendo o vento varrer as folhas de meu coração...



uma mentira

Que vida não diz nada.
Fica calada, em seu lugar.
Esperando a morte nos pegar.



uma espera

O sorriso banguela que dei,
quando pequeno, aguardando
um dente chegar.



uma aguardente

tão quente, que de repente,
quando a gente sente, ela se foi,
nos braços de outro rapaz.



uma paz

A pomba que voa disposta,
deixando cair sobre nós sua bosta.



uma bosta

A moça que diz feliz e contente,
que de tu não quer ser pretendente.



uma pretensão

Querer ser Rita Lee,
quando se é Mallu Magalhães.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

mais uma dose

Ele, mais pra frente, seria alcoólatra. Não agora. Agora apenas bebia, inquieto, a inquietação de um mundo todo.

Nem ele sentia, ali, que a cana que derramava no copo traria, mais pra frente, um bando de frustrações que já tinham ficado pra trás. "Um problema atrás do outro, e todos atrás de mim", enquanto deixava no chão a porção que ao santo cabia.

Sabia, sim, que misturar sentimentos e afazeres sempre sempre dava em merda. Sabia desde pequeno, sabia, que misturar destilado com fermentado era pior ainda, bem pior. "Fodido, fodido e meio", pensou.

E misturou. Aquela cachaça foi seguida de uma outra, depois de uma cerveja, whisky, gim tônica e um pouco de martini.

No dia seguinte, inquietação, saudades e a maior ressaca da semana.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Viver Por Ninguém

uma brevíssima reflexão

Tenho a impressão que estou prestes a realizar algo grandioso. A dor que explode minha cabeça só pode anteceder um grande parto criativo, um jorro de idéias que não vai parar.

Dormi demais e tive sonhos tão reais que acordei agitado. Sonhei que brigava com algumas pessoas e lembro-me de armar meus braços durante o sono, brigando com o ar. Tenho levado a sério demais os sonhos, compreendido pouco a vida.

Estou plantado no mesmo lugar feito uma árvore, matéria de solidão. Achei que tinha a mim mesmo mas parece que até meu corpo quer me trair. Mesmo com remédios a dor insiste em não passar.

Dias que não há pausas para melancolias, pausas dramáticas, momentos de reflexão. Só o dia que corre e a vontade que temos de que outro dia nasça logo e rapidamente.

Há dias que tenho vivido em vão.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

o homem que comia pãos

Partia ao meio, pão por pão, rancava miolo e passava um queijo cremoso feito em Minas. Pouco queijo cremoso, muito pão. Tinha dinheiro não, pra ser de outro jeito. Presunto, peito, salsicha que seja? Nada. Comia pãos um atrás do outro, minuto depois do antes, dia após dia, comia.

Casa de taipa. Taipão, assim, beira-rio. Tinha dinheiro não, meu fio, tinha não. Morava lá pra lá, sem escola em criança, sem serviço em adulto, sem livros nas estantes. Sem estantes. Não sabia que plural de pão são pães, sabia não

por isso comia pãos.

terça-feira, 23 de junho de 2009

No Silêncio Dessa Estação Em Que Te Espero

Dedicado a C. B.

No silêncio desta estação em que te espero, amassando seu bilhete em minha mão, com olhos atentos ao relógio de pulso, sei que não vem.

As estradas, repletas de neblina, continuam em silêncio por suas promessas vazias. Poucos carros fazem movimento e passam tão rápido que não consigo discernir quem são seus condutores.

Como uma criança, ou um tolo, se preferir, acreditei em suas primeiras palavras. As promessas quentes de destino, os planos de visita, a esperança que pousa na parede mas logo é massacrada pelo jornal de ontem.

Homem crente nas palavras de homens de bem, tive por mim que viria. Fiz uma lista de festejos, planejei onde te levar. Tudo para ouvir, mês a mês, mudar a data de sua chegada, atrasando o trem de minha esperança.

Parte de mim já se foi. Mas algo permanece, de pé, no frio da estação, alimentando o pequeno fio da ilusão de que descerá no próximo trem. Mas sei que seus cabelos louros, recém saídos da fumaça do trem freado, é uma imagem bela e inexistente.

De fato, reconheço perfeitamente a figura de lábios ressecados pelo frio pois aquele homem sou eu. Aquilo que esperou por você até jogar seu bilhete no lixo e, com uns trocados no bolso, comprando cigarros para se aquecer.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

e veio a chuva, e veio o sol

Na parede há marcas de umidade. Mais uma chuva interminável que terminou por se infiltrar. Nas marcas, há faces, a face de alguém conhecido conhecido, que já vi espalhada pelo meio da multidão. Quem diabos era a face, a marca, quem é a umidade, meu Deus?

Não sou eu. Espelhado na parede ensopada, no máximo meu estado de espírito. A face é mais que isso. Nem mesmo é u'a face, face. É mais como uma sombra, um ícone, uma imagem silhueta em aquarela. Mas quem diabos é ela, meu Deus?

Não é Virgem Maria, decididamente. É um perfil de homem, antigo, perfil de homem antigo desconhecido familiar. Quem será? Não posso saber quem é, não posso ver, está o vulto mas os traços não tão lá. O que será? O quem?

Sentado na escola, hoje cedo, vi um reflexo que deu medo porque lembrava a forma úmida da escadaria. A forma desconhecida. Um reflexo periférico, o mesmo mérito de não se definir quando o olhar fixa o ponto, fixa o teto. Os dias vão passando, a chuva pára, o verão volta

mas a marca não se solta da tinta escada acima, escada abaixo. A marca não se vai: seca e permanece honorável, vista a vista todo dia em que passo. Escada saída de casa, todo dia. Marca seca. Mas quem, porra, quem?

E um dia, súbito, bêbado, meia-luz de testamento, sento a olhar pra lá. A mancha ri. Define o riso quase nulo, sarcasmo puro, cabelos bicha-vitorianos. Segundo plano: é Oscar Wilde quem me olha, é Oscar. Reconheço o que pouco a pouco foi formando no meu peito, aquela dúvida e reconhecimento. Reconheço.

E pouco a pouco me desfaço em pó.

sábado, 13 de junho de 2009

dia dos demorados...

Um: em Recife choveu que só a porra. Dia dos namorados de madrugada, chuva chuva chuva. Meu colchão, que era de espuma, virou d'água. Mas tudo bem, tudo bem, quem não tem namorada não tem nada, então a água é o menor dos meus problemas. Acordemos sete da manhã pra secar o colchão a base de vento e de luz-negra.

Dois: dormir no piso frio gelado cheio de umidade, tudo bem, a gente tenta, vai, consegue. Acorda-se às duas da tarde com a porra do colchão ainda molhado, encostado num canto tomando vento no rosto, espuma de merda.

Três, ménage a trois, até que se vai uma boa tarde. Lá pelo fim, boquinha da noite, ex-seminamorada avisa de um show, uau, de um show ao qual todos vão, de bandas das que a gente vai, a gente faz, das quais... decido ir, a despeito da chuva, a despeito de tudo.

Quartamente, saí atrasado de casa, tudo bem, passa, a chuva não tinha passado mais cedo, mesmo. E pelo caminho chlap chlap na lama toda do caminho – tinha uma poça no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma porra de poça – e pelo caminho engarrafamento, alagamento, transbordamento. A-BOR-RE-CI-MENTO.

Cinco, sem cronologia, porque lembrei agora: festa junina existe pra dois tipos de gentes; crianças e nordestinos. Só pelo fim da noite fui perceber que os infinitos explode!, explode!, eram malditas bombinhas de São João. Só pelo fim, só por depois, percebi. Tudo bem. Tô na terra deles, que me foda.

Daí fui ao show, encontrei gentes na porta, demos voltas, cervejas, e cumprimenta aqui, e cumprimenta lá, e vai, e volta, “ei!, eu vou à entrada, comprar um ingresso ali, que inda não tenho”. Crash, no limite da porra toda uma garrafa quebrada de vinho e rasg no pé do neguinho, aqui. Me fodi.

Mas tudo bem, tudo bem, não sou dos de reclamar, segui à bilheteria e “um, por favor... Como assim, acabou? Acabou? Porra, acabou?”. Acabara. Tivesse eu ficado em casa... tivesse eu ficado... tivesse eu. Dia de corno, visse?

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Crianças Brincando de Amar


“O jovem tem todos os defeitos do adulto
e mais um: — o da imaturidade.”
Nelson Rodrigues

Fez a dobra do papel, ponta com ponta, quase perfeita. A tesoura foi precisa no tracejado feito anteriormente, devagar para não escorregar. Jogou as sobras no cesto do quarto e desdobrou. Coração vermelho escarlate em cartolina.

Na parte em branco pôs seu nome. Letra de menina, inclinada para o lado. Recortou uma ponta da fita adesiva e colou na caixa. Escolhera o papel na véspera, papel de presente para garotos, azul com desenhos esportivos. Pediu um laço para a caixa, laço dourado.

Afastou-se do embrulho como quem admira uma obra-prima. Era isso, pensou. Era hora, disse. Correu ao banho, fez o cabelo, vestiu cetim. Fez-se de presente cheirando a lavanda e sabonete.

Olhou-se no espelho como toque final. O semblante belo e perecível no reflexo vinte anos enrijecido pelo tempo. Olhos que mareavam dores. Olhar para si mesma apertou-lhe o coração. Foi como a primeira descida da montanha russa, o primeiro beijo, o susto do carro da mãe sendo roubado.

Sentiu pânico quando se lembrou das lágrimas que já chorara por ele. O dono de seu aconchego, de tanto carinho embrulhado em papel, laços, perfume. Sentiu primeiro a pressão no peito, antes de ver a vermelhidão no nariz. Balançou a cabeça em negação. Amores são sempre possíveis, pensava, enquanto existir a chama.

O presente ficara em cima da mesa do restaurante, desembrulhado, antes mesmo dos serviços chegarem. Ele de mãos vazias. Apenas gestos gentis e um sorriso que mais lhe intimidava do que lhe dava afeto.

As mãos dadas de antes não traziam o mesmo calor, parecia-lhe que somente a vela posta sobre a mesa sabia como aquecer. Ela sabia. As dores não iriam embora nas fitas douradas que seriam jogadas no lixo mais tarde.

Quando se beijaram, ela tocou-o no pescoço em gesto de afeto. Suas mãos sentiram uma marca que não era de nascença nem feita pelo ardor daquelas mãos que o seguravam.

Ele e ela. Ele: dentro de si achava-se moço demais para amar. Ela: se faria cega com medo da crueldade dos fatos. Crianças brincando de amar.

12 de junho de 2009