quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Barão de Lucena (só pra não passar em branco)

Hoje, bem pela manhã, quando o sol não subira nem mesmo onze horas, saí.

O hospital ao longe fundo do parque jardim frontal, ou o que seja aquele bando de mato com "Não pise na grama", o hospital ao longe ia ficando perto. Lá da calçada, entre carrinhos de DVDs-a-dois-reais, tecnobrega e feijão verde, o prédio distante parecia um monstro. Um monstro morto-vivo, caído aos pedaços, sinistro, pesado, escuro. Quando foi chegando perto, até que era ajeitadinho.

Por fora.

Pisado o corredor inicial, sem ter a quem perguntar, andei. Pra dentro, obviamente. Quando o primeiro corredor descascado, com pessoas indo e vindo, muitas pessoas indo e vindo, quando o primeiro corredor acabou, veio outro. E no outro encontrei, por fim, uma enfermeira. Tava salvo.

Nada.

Era um homem, ali. Mas não um homem enfermeiro - que teria ajudado do mesmo jeito, indicando o caminho pra onde andar -, era nada. Um homem vestido de mulher vestida de enfermeira. Uma nurse queen, ou o que o valha. E valha-me Deus, Nossa Senhora, que pra depois da drag ali tinha uma feira monstruosa. Uma feira, com barracas, gritos, compras, só não tinham cabritos mas empada de queijo de cabra com certeza tinha, ali. Tinha sim. E depois, além, depois da feira no correr do hospital, um algo feito confraternização de fim de ano de velhinhas amigas velhas, sabem? Com microfone e tudo, tava lá. No hospital.

E eu, de minha parte, passando mal.

Hoje, bem pela manhã, quando o sol não subira nem mesmo onze horas, saí. Antes não tivesse acordado.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

No Meio de Tudo, Você.

Carter não conseguia imaginar como alguém tão bela parecia tão diferente nas fotografias que tirava. Havia ângulos errados e obtusos, tirados as pressas, que mais revelavam as poucas saliências defeituosas daquele rosto do que sua beleza iluminada. “Tenho olhos com problemas ou fotos revelam demais”, pensou.

Virou-se na cama e, ao seu lado, deixou que a imaginação pregasse-lhe um truque. Seus olhos a refizeram ali. Recordando mentalmente a sua imagem, notou os vincos que os retratos revelavam. Após refletir, retirando-a de sua cama e da memória, feito fumaça, concluiu que não. Confirmando sua hipótese mais provável de que retratos eram um remendo mal feito agarrado pelo tempo.

Mas não fora esse o foco de seu incomodo real. Mas sim despertar e logo encontra-la em seus pensamentos, sem conseguir afugenta-la. Lembrou-se de um sonho, apenas pequenas partículas em lembrança, em que estava com um dos braços abertos esperando que ela chegasse de onde estava para que seu braço entrelaçasse sua cintura. Carter lembrava-se de que caminhavam junto alguns passos e ele dizia algo a ela, remetendo-se a um assunto recém comentado. Imaginou que a proximidade significava que talvez estivesse chovendo.

A razão desse devaneio e o que respondeu a ela, não lembrava. Tinha a sensação de ter sido algo importante e jocoso. Algo que a faria rir por alguns segundos e refletir em seguida.

Levantou-se da cama, imaginando que uma caneca de café clarearia suas idéias. A fumaça fumegante do líquido amargo sempre abria-lhe as idéias, antes mesmo de toma-lo. Tomar café sozinho em um ambiente silencioso sempre lembrava filmes em que personagens gastavam dispendiosas horas tomando suas bebidas e refletindo sobre a vida.

“Não vejo relevância em ficar tanto tempo destinado a permanecer em um só local, em uma só reflexão. É necessário caminhar com elas, para brotar conclusões”, pensou, enchendo outra caneca de café.

Mesmo que a reprimisse pelo resto do dia, matando-a um milhão de vezes em seus pensamentos, sabia que essa memória tácita voltaria a surgir. Fosse em fagulhas que ligavam-se ao cheiro dela em um corredor de supermercado onde Carter, de repente, caminharia mais lento para aspirar melhor suas lembranças. Ou em alguma palavra que ouviria em conversas alheias, possuindo a mesma cadência da maneira que ela tinha de pronunciar as palavras.

Cerrou os olhos com a intenção de afunilar, em vão, as memórias. Mas naquele dia não lutou contra si mesmo. Quis experimentar o que o próprio consciente poderia lhe trazer. Entregou-se. Fosse o que fosse, suas memórias não lhe deixariam em paz. Em goles suaves de café, entre a fumaça quente que saia da caneca, deixou que seus desejos o invadisse e, aos poucos, ela formou-se ao seu lado e ambos começaram a caminhar novamente.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

respeitável público...

O cara subiu no palco. Tava não vestido de mágico, tava não. Trajava um terno cortado de fraque, com aquele rabinho bacana de pinguim, pequenos óculos redondos e uma cara apatetada. Não parecia com um mágico, em nada.

Era fim de noite, de meios euros gastos e de meia embriaguez latente. A platéia tinha sono, marcas de batom no colarinho e os dedos prontos a discar pro serviço de táxi. Daí foi que o rapazinho subiu ao palco, pigarreou no microfone bem preso por fita isolante e fio de cobre e, sem cobrar mais nada além do couvert de praxe, estalou os dedos.

Estalou juntando as duas mãos entrelaçadas e virando ao contrário, clec, vocês sabem. A meia embriaguez de todo mundo foi-se embora. Ou ficou embriaguez inteira, ninguém sabe. Fato é que o estalo de uns dedos encharcados de suor foi bem mais alto que o mínimo esperado, e a platéia teve um sobressalto. As marcas de batom continuavam nos colarinhos, mas as bocas semi-abertas olhavam pro que o rapazinho ali no palco ia, pouco a pouco, apresentando.

Enfiou a mão direita na manga esquerda do fraque e puxou um canivete. Com um movimento rápido fez o canivete quintuplicar de tamanho, virando uma espada que ele, rapazinho, jogou pro alto, sem olhar. Depois, com a mão esquerda puxou do bolso in terno uma lagarta, que jogou pro alto rumo à faca. À espada. A lagarta virou borboleta no instante em que tocou a espada, e a espada se desfez em chuva ácida.

As bocas semi-abertas eram olhares espantados, agora, a gritar assombros e exclamações. O rapazinho no palco parecia injuriado, como quem não consegue o que tá tentando conseguir. Mas ninguém sabia, ali da platéia, ninguém queria saber. A chuva ácida caía, e o rapaz do palco cutucava pela sola do sapato com um ar compenetrado. Procurando algo.

Tirou um barbante que enrolou rápido no dedo médio da mão esquerda, depois jogando pro alto, sempre pro alto, com um peteleco. No ar, barbante vira corda, corda vira cobra, cobra vira um grande tapete de pele a receber toda a chuva nas costas. A chuva ácida. Depois, em vez de um tapete esburacado, plumas. Multicoloridas, mas com uma predominância de azul. As plumas caíam, e o rapaz começava a soltar o corpo sobre o chão.

A platéia, os funcionários, o dono do bar e até a polícia que vinha toda noite receber sua propina estavam conquistados. Não percebiam o estado de aborrecimento do rapaz. Não sabiam o que ele queria, mas ele sabia (ele sabia, inclusive, o que eles queriam, mas pouco se importava, e continuava a procurar o que procurava).

As plumas caíram formando um fofo travesseiro, quase ao mesmo tempo, mas um pouco antes, da queda do rapaz, de bunda, sobre o chão. O microfone regulou sua altura, ficando bem pertinho do menino, e de dentro do estojo de courino que trouxera dos bastidores - antevendo que seria útil - aquele mágico puxou um papelzinho.

- Ah!, minha poesia. Ainda bem que trouxe outra cópia. Senhoras e senhores, boa noite. Hoje vim aqui tão-somente para ler essa epopéia...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Nada Além

a reflexão quebrada no espelho

Hoje, no pôr do sol, o prédio que mora ao meu lado ficou avermelhado. Parecia um portal para o inferno se houvesse labaredas. Mas foi só a noite descer que tudo se escureceu como de costume.

Admirei o céu até ficar escuro, como minha alma e voltei a deitar. Ou estou com dor nas costas ou prestes a morrer a qualquer momento. Tenho apreço por esse sentimento espontâneo. Sentimento de que algo grandioso vai acontecer. O mundo vai desabar, as paredes dissolver e eu continuarei sozinho.

Tenho me olhado no espelho e não reconhecido quem sou. Não reconheço nem o mundo a minha volta. Tudo parece velho. O que vejo são apenas estilhaços de um mundo quebrado. Escuto cacofonias sem saber de onde vem tantas vozes. Estou ficando maluco.

Quando durmo, tenho a sensação que estou em casa. Mas logo percebo que não há cheiro de café vindo da cozinha e me lembro que estou em um lugar escuro que não quero estar. Estou só na terra de ninguém.

Hoje até a lua se escondeu no céu perene, meus olhos estão mais fracos que o habitual. Estou suando frio sem saber o que fazer.

Uma voz sussurra ao meu lado dizendo, deixa estar. E minha mente confirma que já deixei. Fui deixado.

Deixaram-me com nada além de mim.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

de laboratório

Foi assim: dente fodido, dente quebrado. Grão de arroz cru ou muito duro, não importa, fez as vezes de aríete pra boca. Comida vegetariana com esmalte dentífico, toma limonada e continua, já que quebrou mesmo, essa merda. Daí depois, um bem depois, corre pra atendimento de emergência da Odonto faculdade. Faculdade pública, estudantes públicos, serviço público de qualquercoisa, sabe como é...

Era fim de semestre. Finzinho, mesmo, tipo última semana. Semana de provas. Talvez até semana de exames, já, praqueles superlegais que tomaram pau na prova antes e iam a fazer prova agora. Mas como é de graça, não se joga fora. Porra de dente quebrado, "Esse é só um provisório, vá na Dentística, vá?, e tenta se encaixar". Fim de semestre, eu disse, mas bem que me encaixei. E não só fim de semestre, mas fim de expediente, horário letivo, a porra que seja. Prova, dupla latina - um paraguaio, uma chilena - "Vamos tirar radiografia. Duas", "Duas porra nenhuma, Rita, duas nenhuma, que estamos atrasados. Mira la face del demonio, aquela professora é um saco". E tirou só uma.

"O que é? Vocês têm pouco tempo, vão desligar o compressor, rápido, rápido. É esse que dói?, deixa ver. Ah!, é canal. Canal não faz aqui, não. Agora, esse de cima..."

Esse de cima? Nunca teve nada nesse de cima. Teve nada, ora, nada nada. Nem doía. "Nosotros vamos empastar tu diente. Rita, saca el equipo". E que porra foi, então, que empastaram mesmo. Buraco de dois dedos num dente que nem esse espaço todo tem... E o quebrado? Provisório? Ainda, ora, porque era canal, certo?, canal. "Marca pra daqui a dois meses, semestre que vem". Marquei.

"Então falaram que era canal? Ah, certo. Aqui mesmo, tu diz? Uma professora? Certo". É, cara, mas sei lá, me senti meio cobaia - "esse tá complicado demais e não tem tempo. Façam aquele outro ali de cima, que não tem nada e é o que falta pra vocês fecharem a nota" -, saca? Parecia que eu era um daqueles camundongos brancos de laboratório que são mortos judiosamente puxando cabeça de um lado, rabo de outro. Argh! "Bom, a gente vai ver. Tirar outra radiografia, então, Mário?", "É, tira uma periopetrial, e a gente vê". Certo, vamos lá, então, digo eu comigo mesmo.

E fomos.

Sala velha de radiografia, cadeira nazista de chumbo, placa de chumbo na porta, canhão de raio-x frouxo que precisava de uma mão pra ficar na posição certa... continuava me sentindo um ratinho de laboratório. "Veste isso, mestre". Colete de chumbo. Do peito aos joelhos. "E isso". Coleira de chumbo. Co-lei-ra.

Eles saem. Seguro o raio-x. Sinto ainda um rato de laboratório, ou mais. Uma cobaia. O raio-x faz barulho, esquenta, queima meus dedos, mas não solto. Queima meu antebraço, esquenta mais, acho estranho e olho. Porra, cadê todo mundo? Por que meu braço tá queimando até o ombro, e que gritaria é essa? Deus, por que tô ficando verde? Por que caralho eu ah grr uargh!, ESMAGA!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Rosas e Vinho Tinto

O ritmo estava devagar. A canção em um momento errado trazia sono do que prazer. Mais um gole daquele vinho, comprado especialmente para a ocasião, poderia fazer com que as pálpebras se fechassem. Quebraria toda a preparação e transformaria essa noite em potencial em um desastre completo.

Estavam juntos, sentados próximos no sofá, em frete a televisão. O filme parecia tedioso para ambos, mas nenhum dos dois, até os créditos finais, ousou dizer palavra alguma. Muito menos pausá-lo, tentando estabelecer algum diálogo que já nasce morto. Fora de questão.

Ele achava que seduziria-a no primeiro momento. Ela imaginava que ali, longe das mesas de reuniões, seria diferente. Mas o mesmo silêncio e respeito entre secretária e chefe era presente. Do trabalho ao seu apartamento do quinto andar.

Antes do tédio em frente a tevê, comeram uma massa caseira, preparada por ele. Nessa hora ela parecia diferente, mais solta. Conversou sobre suas preferências culinárias, os quitutes da mãe e pode reparar no olhar curioso do outro lado da mesa. Como um cientista que observa uma descoberta em seu microscópio.

A noite fora preparada com cuidado de ambas as partes. Tudo parecia tão preso e ensaiado que nada aconteceu. As roupas compradas e escolhidas para a ocasião não funcionaram. Os perfumes mais se trombaram do que trouxeram a sensação de desejo que esperavam.

Quando os letreiros da trama boba que assistiam subiu a tela, ficaram em silêncio e, quase sem perceber, um admirou o relógio do outro. Levantaram-se, como se ambos estivessem em um lugar desconhecido e precisassem partir.

Ele fez perguntas sobre o sabor do jantar, ela timidamente respondeu com elogios enquanto caminhava para a mesa do canto onde deixara bolsa e casado.

Foi isso. Despediram-se de um encontro morno, quase frio.

Enquanto trancava a porta do apartamento, via o que sobrou daquele encontro. Comida fria, vinho tinto, o cheiro de perfume emaranhado ao seu. Se renovou-se, não sabendo o porque. Deu dois passos rumo a mesa, dois goles do vinho e abriu a porta. Gritou o nome dela lá mesmo, ecoando pelos corredores.


Ela, em seu passo lento, estava perto e segui seu chamado prontamente. Quando se encontraram no meio do caminho, as luzes do corredor se apagaram. Um pequeno empurrão para um beijo ou para uma fuga as escuras. Sentiram-se a vontade na escuridão e deram vazão ao desejo esperado.

Quando um vizinho reacendeu as luzes do pátio, um observava o outro de perto. Ele disse boa noite e ela até amanhã.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

pirata do tietê

O chinês imaginário era um corsário, hoje. Atracou silenciosamente na margem do rio Tietê e fincou os pés em terra. Pouco depois, bem pouco, colocou pé frente do outro, sacudiu-se e foi andar. Andando andando andando, não se sabe lá bem como, chegou à avenida Paulista, aquele assombro. Chegou. Percorreu de ida-e-volta umas três vezes a avenida, porque sim, porque queria ver que maravilha escondida estava escondida ali. Tesouro, um algo, qualquer coisa do tipo rica. Achou foi muita coisa, porção de mulher bonita, e tabuletas de "Compro Ouro" e tabuletas do fim do mundo e tabuletas de shows escusos na rua Augusta. O que o chinês imaginário viu foi uma pusta lua encoberta por um pó fininho cinzento que partia do chão e ia até o alto céu, ou vinha do céu e caía no asfalto quente preto poluído, tanto faz.

Lembrou das Termópilas, desfiladeiro estreito e alto, garganta do diabo, quando viu o mar de prédios ambos lados na avenida do estado. Parecia mesmo que 300 bons guerreiros parariam um mundo inteiro de inimigos se parassem pra um café. O chinês imaginário, então, sentou numa mesinha na calçada e tomou um curto café preto acompanhado tão-somente de poluição, que devorava a bocadas. O ar dessa cidade não é como o ar da Ásia de onde veio, e com um pão de queijo dá até pra disfarçar o gosto de fuligem, medo e mal. Levantou sem pagar a conta e seguiu mais adiante, ensombrado pelos prédios gigantes que o cercavam.

Ao atravessar a rua, avenida, viu um jovem meio forte de cabeça bem raspada e rosto bravo. Vestia uma jaqueta dos Spartans, esse macho, e a metáfora toda fez sentido pro chinês. O desfiladeiro paulistano tinha uma multidão de muitíssimos mais que 300, tinha sim, para defendê-lo. Graças a deus, porque pro chinês é impossível parar ali. E não parou. Seguindo Augusta, uma velha velha puta que caminha sampa adentro, seguindo Augusta, viu parar em uma esquina um grandíssimo caminhão escrito Brahma. Parou num solavanco, e o chinês - pra acompanhar - solavancou também. De dentro dele, caminhão, pularam dois homens a abrir as portas e tirar cervejas, a fazer entregas. De dentro dele, chinês corsário de estrada e sangue, uma vontade de caminhar.

Passou pelo caminhão, armou-se de uma garrafa, tirou a tampa com o dente e seguiu quase que invisível, por certo que transparente, pelas veias da cidade que o expeliam num cuspe só.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

No Bar, estão um comediante e uma moça...

Pedi uma bebida, ela deixou um copo d´agua em cima da bancada. “Pela sua cara, você só pode pagar uma água”. Eu sorri pela ironia de suas palavras e repliquei, “mas você tem o poder de me dar um drinque de verdade”. Ela sorriu em resposta e me deu algo quente para beber, tomei de um gole.

“Novo na cidade?” perguntou. “Novo em qualquer lugar.”, respondi. “Quanto drama. Faz teatro?” e ergueu a mão direita imitando a cena do príncipe com a caveira. “Desde que nasci”, falei.

“Tem cara de quem faz tragédias, você não parece do tipo que ri”, e esboçou um sorriso falso. “A vida já é uma tragédia, querida. Não precisamos mais dela. Faço as pessoas rir, não rio de mim mesmo, tem cigarro?” e mostrei meu isqueiro. “Não fumo”, ela disse. “Nem eu, achei que uma nova cidade e um novo vício fariam-me bem”.

Ergueu-me o dedo contra a face, “Então é novo na cidade!”. De sorriso transpassado respondi, “novo, que seja, mas macaco velho. Não consegue perceber? Não consegue perceber a cara de um comediante?”.

Eles tem caras agora? Como máscaras de tragédia e comédia? Para mim são todos iguais.

Bobagem. Consigo ver o riso aonde os outros não conseguem, sou especial para alguma coisa”.

Ela encheu meu copo, fez uma regência com uma das mãos apontando ao bar e disse: “Valendo uma rodada, faça-me rir”. Gostei de seu desafio, “só se me acompanhar”. E encheu outro copo.

Escolhi o homem do canto. Quarentão, óculos quadrado, cara de perdedor. Soltei quatro piadas seguidas sobre ele. Ela riu, de leve. Apontei para três sujeitos e fiz mais algumas piadas. Uma delas a fez rir muito, perdendo o fôlego.

“Diabos”, arfando, “Você até que é bom, como se faz?”. Refleti por um momento e respondi com ironia, “basta ser desiludido com a vida. Pense em um presente perfeito de natal, quebre-o por completo. E veja aquilo que sobrou. Tirei daí a miséria do riso”.

“Insisto que você é bom para tragédia. Quanto drama. Já pensou em fazer monólogos clássicos?” perguntou-me, interessada em mim.

“Não. São belos, mas não tenho expressão facial para tanto. Meu rosto se comporta de duas maneiras. Triste e miseravelmente triste”. Ela riu. Mas eu falava sério aquela hora. Fechei minha cara.

“O que foi?” perguntou. “Eu falava sério”, disse. “Desculpe. Acho que não tenho tanto para entender comediantes.” Tentando consertar seu desarranjo.

“Sem problemas. Eles estão mortos mesmos”. E ela tornou a rir de minha desgraça. Minha sina de trazer o riso até em funerais. Pedi outra bebida. Ela encheu o copo sem perguntar se eu tinha dinheiro.

“Que horas sai?”, perguntei. “Logo, por quê?”, respondeu.

“Ainda tenho algumas piadas na manga. Que tal ouvi-las após sair dessa pocilga?”, disse tomando a bebida.

Ela sorriu, sem que eu imaginasse o porque do riso. "Certo, comediante. Saio em meia hora.”

E eu me preparava para, mais uma vez, encontrar um motivo qualquer para levar uma qualquer para a cama. Foi então que ri da estupidez da minha vida. Eu era um comediante, afinal.