segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

dizzie

Certa vez chegou ao Clube a história de um trompetista, ali das vizinhanças. Era Bob Cat, o nome dele, nome que trouxera do estrangeiro. Bob Cat era Robinho, antes de ir, e na hora de voltar foi uma piada:

- Como é que é, Robinho? Boquete?

- Não, porra! Bob Cat, eu já falei.

Mas o Bob levava no bico qualquer xingamento, porque quando ele tocava ninguém mais sabia de nada. A música fluía por dentro de cada ouvinte, dava meia-volta e acertava novamente cada um deles, na cabeça, como um porrete. Bob Cat era bom demais, até no estrangeiro eles falavam. Voltou lá de Saint Louis com uma nova forma de tocar, e diziam que havia deixado em Saint Louis uma mulher.

Por isso no barraco de Bob, no fim da favela, o trompete tocava triste fazia um tempo. Até que parou. Foi isso que chegou no Clube, essa história. Um dia o moleque vizinho viu o Bob tocando trompete alto, com a bochecha inflada feito os balões do Gillespie, aquele absurdo. O que parecia estranho, o moleque logo notou, era que Bob tocava no carro, trancado, janelas fechadas e motor ligado. Os faróis, entretanto, não iluminavam.

A favela de Bob Cat ficava ao pé de um cemitério, que começava no barranco logo depois da casa dele. Ali nasceu o jaz, é o que dizem, e ali Bob morreu.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Como se fosse o final de um livro beatnik

A Fante, Rodrigues, Bandini, Pieroni e Durazzo


Se eu não estivesse envolvido nessa história, diria que faz parte de uma história romântica, dessas que eram publicadas em folhetins há muito tempo atrás. O fato é que Marta me chamou na porta lateral da igreja, dizendo que Cláudia falaria comigo e apenas.

Quando me anunciei frente a porta trancada, ouvi o clique que dava-me a entrada e a vi. Envergonhada no vestido branco como se tivesse nua. Aproximou-se de mim, tocando-me em um abraço e tentou um beijo. “Não. Não hoje. Não agora”, eu disse. E foi, provavelmente, a décima quinta vez que ela franzia o cenho só naquela manhã.

Conversamos por alguns momentos antes que eu sentasse na poltrona confortável perto a janela. Devo ter apagado por quase um minuto pois a ouvi me chamando. “É muito mais que você, Claudia. Há uma festa lá fora e todos te esperam”, falei. “É minha vida, Carlos, não uma festa”, me respondeu. “É seu pai, sua irmã, e aquele cara vestido de terno com uma gravata que não combina muito com a ocasião”, respondi, “eu não posso te tirar daqui quando você acredita que o melhor passo é fugir”.

Mas, afinal, há quem eu devia fidelidade? Era isso que eu pensava enquanto recostava minha cabeça na poltrona e imaginava o quanto essa cena que parecia cômica tinha um viés romântico. Mas não era um homem íntegro que salvava a mocinha. Há quinze minutos apertei a mão do noivo sem que ele soubesse que eu conhecia Cláudia mais do que ele poderia imaginar. Mas eu não conseguia ter empatia por ele. Nunca tive, ainda mais com aquela verruga.

Seria uma bobagem. Uma fuga idílica mas, pesei os prós e contras. Lá fora, todos me odiariam. Cinematograficamente falando poderia ser interessante. Suportar as conseqüências não. Me fariam um monte de perguntas que eu não gostaria de responder. Se juntassem A com B, poderíamos ter problemas. Mas sempre penso “aos diabos nessas horas”.

Confesso. Fui invadido por uma excitação que quase não pude conter. Me parecia estranho demais que eu repetisse um espetáculo que sempre via em comédias. Observei que o clichê da vida era semelhantes das películas. E que janelas amplas facilitam fugas.

Ao sair do quarto, Marta me perguntou o que Claudia queria. Disse que precisava de um detalhe que combinei que traria e esqueci no carro. A justificativa foi fraca mas, no desespero, aceitam qualquer bobagem.

Em dois minutos estávamos fora da igreja. Parei o carro quatro quadras após e perguntei se ela tinha certeza. Não se enganem, ela não fugia comigo. Eu era apenas o meio, não a causa. Mas, mesmo assim, decidi beija-la. Me senti um homem blasfemo beijando uma noiva que não era minha. “Sim, eu tenho”, afirmou.

O telefone de Martha deve ter vibrado em suas mãos e tremido quando ela notou meu número. Lá estava eu, no caminho de um enforcamento por um crime onde eu não era o culpado. Ou quase. Optei por limitar minhas palavras. “Marta, a porta do quarto está aberta. Assim você terá a ingrata missão de avisar que não haverá nenhuma cerimônia hoje. Ela me disse para não dar mais nenhuma informação e nem avisar nosso paradeiro”, desliguei. Talvez tenha exagerado, principalmente na parte de fugir sem nenhum paradeiro. Onde eu estava com a cabeça, afinal? Me sentindo como Bonnie e Clyde?

Tudo que eu pensava no momento era na cara que o rapaz faria no altar. Eu esperava que alguém, por curiosidade, estivesse filmando. Eu imprimiria a imagem e deixaria em cima de algum lugar onde eu pudesse sempre rir.

Eu era um homem fugindo com uma noiva que não era minha mas estava mais em minha vida no que na dele. E não podia deixar de perder a sensação de que a qualquer momento uma trilha sonora patética tocaria no além.

Mas lá estava ela, do meu lado, segurando uma de minhas pernas, enquanto eu iria para qualquer lugar tentando convencê-la a esquecer os velhos hábitos. Talvez eu amasse essa mulher. Provavelmente, não. Mas naquele momento era onde eu queria estar. E ela ainda continuava linda naquela roupa prisão.

Amanha eu a convenceria de seu erro. E da burrice de evitar um casamento inevitável. Tinhamos vinte e quatro horas. Tirei uma das mãos do volante e toquei uma de suas coxas. De repente, achei que elas se encaixavam tão bem. Costumo ser um homem de princípios. Mas velhos hábitos são difíceis de perder.

“É bom ter você por mais alguma horas”, e sorrimos e nos beijamos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

galiléia

- E aí ela disse: "Cara, o que você tá fazendo?" Mas eu não sabia...

O som no bar é country. A noite hoje está cheia, lá fora choveu um pouco e o ar esfriou. O bar está cheio e a cabeça de Pedro também.

- ... que ela queria dizer "o que você está fazendo com esse machado na mão". Pensei que se referisse à irmã dela, a gêmea - a bonita, não a feia das três -, que me olhava trabalhar enquanto o galo cantava longe.

Joana, sempre Joana, traz mais uma garrafa à mesa. João, ouvindo Pedro, serve mais cerveja aos copos dos três. Tiago está quieto.

- E o que você estava fazendo?, perguntou Joana, se intrometendo.

- Trabalho ativo, meu bem trabalho ativo. Eis a coisa mais contemplativa que sei fazer.

- E a trigêmea, a bonita?

- Só contemplava.

Tiago observa a janela da rua, molhada de chuva, e bebe mais uma. É o trabalho mais ativo que sabe fazer.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Rotina

Alarme toca. Desperta da soneca vespertina. Banho com sabonete líquido. Roupa escolhida desde cedo quando voltou. Top preto para os seios. Short mais justo que o criador. Pensa, “se sair de casa e o moço da farmácia me olhar estou bem vestida”.

Cinco horas da tarde. Na frente da faculdade de odontologia. Lutou a tapas pelo local. Um moço caminha na praça a frente. Finge que não a ve. Ela sabe porque. Está acostumada a viver entre a ignorancia e a louvação.

Meia hora depois, um homem para com o carro. Olha de cima a baixo. "Gostosa", sussurra. Ela entra no carro. Quando chega em casa, ao tomar banho, nota uma marca que não tinha antes. Uma mulher como ela não deve ter marcas.

Antes de dormir come um sanduíche. Agradece a Deus pelo dinheiro. Ela tem de viver, afinal. O pau nosso de cada dia.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

a personagem de ficção

Aroldo estava sentado havia tempo. Era o quarto chopp que recebia das mãos suadas de Joana. Calor demais, naquele dia.

Rabiscava sobre papéis qualquer coisa que pareciam poemas, qualquer coisa falando tristeza. Joshua só observava. Era um papel atrás do outro, a maior parte no lixo, dois dobrados e enfiados no bolso e...

- Pronto! Eis o poema final pronto e acabado - gritou Aroldo.

- Que poema, mané? - perguntou Joshua, detrás do balcão.

Era um poema que começava triste, como a tristeza que Aroldo sentia naquele momento, desde dois dias atrás. O motivo da tristeza era algo etéreo e não determinado, era bem blues - ele pensava -, dizia respeito a uma mulher que o havia deixado.

Não, não o havia deixado, exatamente. Ele simplesmente falara a ela o que sentira naquela noite, primeira noite, mas não falara esperando futuros nem nada demais. Só achou que devia dizer, foi lá e disse. Agora estava triste. Porque a resposta dela foi um menear de cabeça e qualquer grunhido dizendo "aham".

A resposta da moça o decepcionou. Decepcionado consigo próprio, "idiota, idiota, não devia ter dito nada, agora ela está lá e não vai querer mais nada. Você espantou a mulher!".

Lendo o poema, Joshua falou:

- Não era um poema triste?

- E era. Mas o som dessa jukebox me mexe os miolos. Enfim, cadê o mural pra eu pregar esse lixo?

- A traça comeu. Não tenho mural faz um mês.

- Ô diabos! Que eu faço agora? Não tem uma mísera mesa em que eu possa jogar o poema?

Joshua tinha. A mesa de poesias na entrada do bar do Clube. Uma mísera mesa, de fato, com meia dúzia de poesia escritas em guardanapo. E lá ficou a tristeza de Aroldo.

Mal sabia ele que o "aham" fôra apenas vergonha, e que por dentro ela estava mais samba que ele era blues, no momento.