sexta-feira, 28 de setembro de 2012

História Romântica


No primeiro golpe de vista eu soube que estava perdida novamente. O mergulho seria súbito e eu estaria em outra vida, em outro mundo. Há mundos perdidos, saiba desde já. Nada à lá Conan Doyle; mundos inteiros, quase infinitos, perdidos e esquecidos pelo tempo. É engraçado pensar em algo que seja quase infinito. Exatamente como o Universo. Sabemos que a exploração de boa parte de nosso bairro galático nunca ocorrerá, a escala de distância e tempo tornam impossível a tentativa séria e que esse monstro ainda está em expansão, mas ele não é infinito, está comprovado que existe uma barreira onde o Universo... simplesmente acaba. O que mais gosto de pensar não é no que existe além da barreira, não. Mas exatamente no tamanho do Universo. Ele é, portanto, quase infinito. Quase. E isso faz meu cérebro explodir. Mas estou divagando.
Eu posso entrar nos mundos perdidos e é por isso que estou escrevendo essas páginas que agora você tem em mãos: para poder saber que eu existi. Eu consigo entrar e sair dos mundos esquecidos pelos homens, eu tenho a chave e sempre que posso a uso, deixando a porta atrás de mim aberta. Eu entro e saio. Sou uma mochileira de mentes.
Quando olhei para a aquelas letras, sentindo o papel velho na ponta dos meus dedos, a textura porosa e empoeirada do texto ancestral, não entendi muita coisa. As letras estavam embaralhadas, trêmulas, intrincadas e eram meramente legíveis. Por algumas horas eu fiquei encarando as palavras, aprendendo aquela nova caligrafia. Grafologia é uma ciência interessante. Através da análise de pontos de pressão, dos cortes nas letras e na inclinação da escrita, você pode traçar um quadro do estado do escritor naquele momento. Infelizmente deixaremos para as futuras gerações apenas textos virtuais e a grafologia será uma arte esquecida, talvez com uma aura de arte proibída e isso seria legal, legal pra caramba. Mas estou divagando novamente. Grafologia, vamos lá. O texto era estranhamente sereno e claro, falando sobre a luz e sobre a bondade divina e, principalmente sobre a esperança de novamente ver o nascer do sol. As letras, no entanto, eram a demonstração pura do medo. As pressões apresentaram uma mudança brusca entre um fólio e outro, como um grito desesperado por ajuda, o agarro teimoso à vida.
Eu comecei a ler, palavra por palavra. E de repente eu estava em outro lugar. Era outra pessoa. Fechei os olhos e deixei esse mundo. A cadeira em que estava sentada começou a balançar, para cima e para baixo de forma constante, ritmada. Um barulho alto me cercava.
Dois odores atingiram minhas narinas como um punho fechado. Era uma mistura nauseante, quase tóxica. O primeiro dos cheiros era acre e pesado, impregnado na paredes de madeira que me cercavam. Aos poucos percebi que sentia, com asco, o cheiro do meu próprio corpo. Eu vestia um manto de algodão grosso, algo entre um desbotado marrom e o bege. Longos, os pelos da minha barba grisalha tomavam conta do hemisfério sul do meu corpo e de meu peito. Eu suava, transpirava em litros e sentia o cheiro doce de fruta que saía de meus poros. Simplesmente não havia forma de saber porque meu corpo cheira daquela forma adocicada e doentia ao mesmo tempo, mas estava com um severo caso de diabetes e logo estaria morto de qualquer forma; não queria apressar as coisas, no entanto. Às vezes, essa seria uma justificativa plausível para a aparente calma: todos morremos eventualmente. Não fossem as letras a me denunciar, poderia passar calma para meus companheiros. Meu suor grudava com ímpeto em minhas roupas e camada após camada de transpiração formavam aquele cheiro desagradável, um extrato concentrado de meu corpo que estava somado aos tantos outros nas mesmas condições.
Salgado, o segundo atingia o lugar em que estava com violência. O ar era abafado e o sal parecia grudar em minha pele ressecada e quebradiça, como uma capa que rodeava a todos. Trovões explodiam lá fora e o barulho da água doce da chuva era, de alguma forma, mais alto que os choro dos homens com quem dividia espaço, impotentes diante da força dos ventos e das ondas. Desta forma eu pude me situar. Estava em um dos cômodos de um navio velho, castigado pela ação do tempo e dos elementos. Cada madeira, cada laço, gemia ao quebrar da maré e a embarcação, provavelmente um grande caixão para todos nós, estava em seu limite. No próximo segundo poderíamos estar espalhados nas águas geladas de qualquer oceano que porventura eu me encontrava. Uma fina placa de madeira separava-nos da morte molhada e congelante do oceano escuro; tal era a diferença banal entre vida e morte, entre o seco e o enxarcado: alguns centímetros de madeira. Madeira que estava podre em grande parte de seu total, privada de cuidados e manutenção.
Olhei para minhas mãos e vi uma pote de tinta equilibrado pelos dedos velhos, dobrados pela artrite até o ponto em que pareciam mais garras do que membros humanos. A tinta poderia cair nas folhas parcialmente preenchidas e o custo de tal desperdício estava além de qualquer tesouro perdido no mesmo mar que agora ameaçava me engolir. O papel era caro e raro, a tinta preciosa. Mas talvez fosse essa a minha última carta, um testamento de meus últimos momentos e pensamentos finais. As folhas eram instrumentos do meu registro definitivo, anunciando minha vida e morte para meus irmãos espalhados por todo o mundo cristão. Derramar tinta seria o mesmo que calar a trombeta de meu anjo anunciador. Não, eu tinha de escrever mesmo no balanço violento das ondas. Olhei com pesar para os outros homens doentes ao meu redor e senti um peso enorme por não estar oferencendo alívio espiritual para aquelas pobres existências atormentadas. A carta era o que importava naquele momento. Que queimem no inferno.
...dos brauos homens que nauegam nesta grande barcaça que avança na direção dos gentios, escrevi com letras minimamente legíveis. A força da natureza se mostra certeira e agora a incerteza me atinge como quando era um mancebo ainda sem qualquer qualidade de bem e vivia próximo da natureza baixa daqueles que vivem uma vida sem sentido e longe da luz. A luz. A luz agora entra pelas frestas da madeira quase podre e rezo para Noffo fenhor para que sua mao misericordiosa poffa guiar o mastro principale para águas calmas até Goa. Tudo que quero é chegar ao meu destino e fazer como o Bispo ordenou e terminar meus dias na santa tarefa de pregar aos gentios contra os santos falsos e fotoques de camisama que tanto prejudicam a vida deffa gente boa e trabalhadora. Saiba aquele que encotrar minhas últimas letras que eu vivi e morri como um homem de Deus, que meus últimos segundos foram calmos e todos aqueles ao meu redor foram iluminados pelo calor divino em um suspiro calmo. Vamos juntos para o lado de Noffo Senhor e viveremos em santa paz. A mentira escapou fácil de minha mão. Reli o que escrevi e pensei no meu caminho até ali. O Bispo de Roma me enviara até a terra quase desconhecida para pregar e salvar almas condenadas, usaria da melhor forma possível o que me restava de tempo. Meu corpo dava sinais de expiração, meus pés estavam doloridos, roxos; os olhos, embaçados por uma substância leitosa. Embarquei então para morrer longe de minha nação, dos homens que aprendi a amar, ia para longe, para além da borda do mundo;    Goa era agora uma Jerusalém, perdida entre uma neblima de esperança por trás das sombras traiçoeiras do oceano escuro. Sou agora parte de uma tripulação sem Deus. Os homens gritam não por Deus, mas pelo sonho de poder nouamente entrar em uma prostituta européia, escrevi com sinceridade. Pela primeira usava tais palavras sem qualquer pudor. Ao inferno com todos! Que morram em dor e medo e desespero e sem perdão. Malditos gentios de pele amarela. Eu deueria estar no conforto de meus irmãos, rezando calmamente nos meus horários estabelecidos. Que sejam engolidos nas chamas eternas, é o que merecem!
O navio então parou de dançar loucamente sobre o oceano. Os gritos dos marinheiros cessaram ao mesmo tempo e um segundo de silêncio tomou conta de todo o barco. De repente, todos estouraram em manifestações de alegria. A tempestade deu lugar a uma brisa marinha, forte o suficiente para no impulsionar, mas gentil como um beijo de mãe. Viveríamos para morrer um outro dia. Um homem com três dentes, uma doninha perigosa e furtiva, agarrou meu rosto e beijou meus lábios, sorrindo e falando algo sobre pagar uma meretriz para mim. Todos gargalharam com a idéia.
O que poderia fazer? Risquei as últimas linhas em arrependimento e pedi por perdão. Durante a manhã todos se reuniriam no deque principal e eu teria de arrastar minhas pernas febris pela madeira molhada da escada e faria um sermão. Em pouco tempo estaríamos longe do Cabo das Tormentas – sempre será o nome deste lugar amaldiçoado – e pelo Índico nós iremos, vivendo no das rações que temos e conservando o melhor possível nosso vinho e nossas galinhas.
Fechei os olhos e voltei para minha vida ao final do relato. Novamente eu vestia meu próprio corpo. Isso explicava as linhas riscadas. No próximo fólio, outra caligrafia anunciava a morte do velho jesuíta, dois dias antes de chegarem ao destino. Goa fora, afinal, o seu descanso último. A realidade para aquele pobre velho com medo do mar era agora um mundo esquecido, uma forma única de interpretar o mundo em que estava inserido, a não ser por aqueles que liam as últimas palavras grafadas naquelas folhas amareladas.
Esta é a minha habilidade: entrar em mundos esquecidos pelos vivos. Acho que Neil Gaiman escreveu uma vez que cada cabeça é um mundo inteiro. Ele tem razão... Neil Gaiman sempre tem razão, eu descobri quando ganhei juízo. Sempre que leio uma carta ou um relato, minha mente cira uma conexão com a cabeça de quem estou lendo e sou aquela pessoa por alguns momentos, em outro lugar, em outro tempo. Eu recupero os mundos perdidos, viajo pela Roma antiga, antes mesmo da ascenção de Bizâncio, despeço-me de minha noiva enquanto me preparo para vagar nas trincheiras da Primeira Guerra, construindo um cruel desapego pela vida. Vivi e morri na proa de barcos esquecidos pelos ventos, comendo bolachas estragadas, tomadas pelo mofo e por insetos, bebi o vinho azedo e a água fétida para resisitir ao menos mais um dia em vão. Já vesti a pele de um camponês no sul da França, buscando por cura através das moedas do rei taumaturgo, andei com os Andarilhos do Bem, fui queimada como uma bruxa, enterrei o aço de minha espada em um estômago inglês, senti uma flecha francesa perfurar meu joelho e fui enforcado como rebelde inúmeras vezes. Com o nariz enterrado nos manuscritos, vivi mais vidas que a maioria das pessoas. Eu conheço melhor o passado do que o mundo em que estou. Os historiadores dizem que os homens são produtos de seu tempo: eu sou o produto de todos os tempos, eu tenho a chave e sei os caminhos.
Eu sou muitos. E já não sei quem sou.
Por isso escrevo essas linhas. Rasguei uma página de meu caderno de pesquisa e o escondi neste antigo tomo. Anos, décadas, séculos se passarão antes de você encontrar as páginas deslocadas deste documento esquecido até mesmo pela biblioteca. Você não me conhece, não sabe meu nome ou como é meu nariz, as cores dos meus olhos heterocromáticos. Mas está ciente de minha existência. Eu andei pela terra em vários mundos, em vários tempo e em incontáveis vidas. As palavras que agora escrevo irão chegar ao seu tempo e eu estarei há muito morta e enterrada, mas viverei em sua mente. Você está conectado comigo, pode ver a mulher magra debruçada sobre velhos livros iluminados por uma lâmpada demasiadamente fraca. Eu vivi. E vivo agora.
Nossas mentes estão conectadas.
Eu existo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

entre a cruz e a espada

- Saí antes do fim da aula, já lá ia minha paciência, não dava pra aguentar mais. Na estação do metrô coloquei uma moeda na máquina: precisava de água. Um euro, a moeda, um euro a água. O metrô já vinha vindo, a moeda foi diretinho pra goela metalante. Nada de água, metrô já chegado, moeda travada. Roubaram um euro numa moeda inteira, e o trem ia dar partida, e eu fiquei entre ele e a máquina maldita. Apertei dois botões: mais não ia adiantar. Dei a moeda como perdida, pulei dentro do trem na hora exata e as portas se fecharam no meu pé. Moeda perdida, mas não perdi o trem. Que bem ia fazer continuar ali, batendo na máquina e gritando pra barra de chocolates guardada lá dentro, "a máquina filhadumaputa roubou minha moeda, merda, merda, quero minha moeda, água, quero meu trem. Nããão!, trem, volte aqui.". Perderia o trem. E a moeda. Que bem faz, então, não conseguir abrir mão de uma pataca?

Joana continuava olhando, calma, pacientemente. Ele percebeu.

- Desculpe... quero mais uma cerveja, se faz favor.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Desempate


O restaurante era confortável. Havia uma certa atmosfera caseira por todo ambiente, talvez fosse por causa da iluminação fraca, que certamente ajudava na hora de esconder as imperfeições incontornáveis da arquitetura antiga, ou fosse possivelmente a simpatia natural dos garçons. Era um lugar pequeno, afastado da cidade e jazz tocava, mais baixo que o barulho das dezenas de boca mastigando e falando em simultâneo, suave, incorpóreo.
Na mesa, dois casais conversavam animados. Garrafas de bebidas, acumulavam entre os pratos. Mãos apressadas surgiam do nada, de tempos em tempos, para repôr as bebidas alcoólicas. “Então, você está trabalhando em algum livro novo?”, ele perguntou para o escritor. Estavam todos um pouco bêbados, resultado da demora dos pratos com a disponibilidade de vinho e cerveja. Era estranho como passavam os dias planejando como economizar dinheiro apenas para mergulhar o orçamento nas bebidas inebriantes.
“Ele nao usa o termo ‘trabalho’”, respondeu Beti em seu lugar, “ama escrever, então não é trabalho...”
“O cacete que não”, interrompeu Harry, o escritor, “é um trabalho, Beti, e é foda... foda pra cacete. Cansativo, repetitivo e lento. Apaixonante, é verdade, mas deixo meu rabo grudado naquela cadeira quente quase doze horas por dia. Minha lombar está me mantado e o ciático já está aposentado. Fora a confusão da minha mesa, com anotações, gráficos e linha do tempo para cada personagem. Foda.”
“Você precisa melhorar o vocabulário, cara”, zombou Carlos.
Harry levantou o dedo do meio para o amigo e sorriu: “Que tal isso como vocabulário?”
No mesmo instante um garçom apareceu, quatro pratos de salada equilibrados em uma bandeja e ignorou o gesto chulo enquanto servia as entradas. Folhas de alface se misturavam entre pedaços gordos de tomate, palmito e cogumelos variados, todos banhados com um molho amarelado.
“Deus, quase meia-hora de atraso e eles me dão uma salada? Porra”, reclamou a outra mulher diante do prato servido.
“Podemos para com os palavrões, estou ficando incomodada”, pediu Beti.
“Claro que podemos, apenas escolhemos não fazê-lo”, Harry piscou para ela e passou a mão em sua coxa, exposta pelo vestido curto. Seus olhos caíram sobre um casal atrás de Beti, com quem estivera casado nos últimos quinze anos. Eram jovens, um rapaz com não mais de vinte e cinco anos e uma garota, ainda mais nova, com cabelos ruivos, caídos em cacho macios sobre os ombros. Ela era linda, a pele morena, macia, em contraste com o vestido vermelho, recortado em uma das pernas torneadas. Harry podia vê-la perfeitamente naquele instante, sensual e engmática, uma sereia naquele oceano do quotidiano. E, Deus, como ele se deixava seduzir pelo canto!
Desviou rapidamente a cabeça, mas a garota continuou em sua mente. Agora ele a via em casa, debruçada sobre um Murakami ou um Bukowski, virando as páginas lentamente, bebendo de um vinho branco, diretamente da garrafa. Vestia uma camisola curta e deixava o vento refrescar seu corpo, os cabelos como chamas ao sabor da corrente de ar. Seu velho nojento, você poderia ser mais óbvio? Jesus, às vezes acho que não estou na profissão certa, reprimiu-se. ‘Como labaredas de fogo ao vento’, pareço um romance adolescente e mal escrito sobre vampiros. Você é melhor que isso!
Usou a visão periférica para estudar Beti. Ela parecia o contrário da Ruiva. Bela, era verdade, mas... de algum modo eram como yin e yang. Beti ele conhecia, sabia de seus defeitos e de suas qualidades, conhecia o corpo da mulher, cada curva, cada estria. No escuro, poderia apontar as pintas e marcas de nascença de Beti, reconheceria o grau de curvatura de seus mamilos em uma fila de peitos, tinha certeza. Mas ela era uma terra conquistada, a grama verde de seu quintal, a felicidade de seus dias, algo que estava acostumado e pior, havia decorado os defeitos do terreno e aprendido a contorná-los, mas sempre que baixava a guarda, lá estavam todos aqueles buracos, prontos para torcer seu tornozelo. Amava os cabelos dourados de Beti, lisos e finos, diferentes dos pêlos púbicos; gostava do toque carinhoso da esposa, do gosto do seu café e do omelete que preparava quase todas as manhãs. Quando ela estava pintando ou tocando piano, Harry sentia-se em casa. Era como se a definição de lar envolvesse o cheiro dela misturado com o odor tóxico das tintas ou do Chopin saindo de seus dedos. Mesmo assim, sentia o impulso de pular daquela mesa, agarrar a Ruiva e fugir, dirigir até despistar o resto do mundo e fazer amor fervorosamente, mergulhando nos cabelos vermelhos da morena, no sabor de seu corpo, na pele trêmula de medo e excitação.
Um policial nos pegaria, contiuou a fantasiar, e pensaria nela como uma prostituta, a puta mais linda desse mundo...
“O que você acha, meu bem?” A voz de Beti chegou como um martelo arremessado contra a tela onde se desenvolvia sua fantasia, estilhaços voaram em todos os cantos e ele trocou olhares com as outras três pessoas sentadas na mesa.
 “Prostituta!”, quase gritou, ainda recolhendo os cacos de seus sonhos. Algumas pessoas ao redor olharam, soltando risinhos semi-contidos. “Quero dizer... pode repetir?”
“Eu disse”, a voz de Beti estava levemente impaciente, “que esse restaurante é bonito e tudo mais, mas a comida demora muito!”
“Vocês são exigentes!”, prostestou Carlos, “Nada está bom para vocês, nunca.”
“Não é isso. Se estou pagando, quero o pacote completo, quero todos os detalhes perfeitos, ou vou procurar um lugar que os tenha.” Beti ergueu a mão e pediu um drink de sakê com kiwi.
“Como uma prostituta, foi o que eu disse aquela hora”, improvisou o escritor. Beti o incinerou com o olhar. “Não estou dizendo que você é uma prostituta, amor, mas essa situação se compara com uma, ao menos poderia envolver uma. Pense deste modo: se você... melhor, se eu ou o Carlos pegarmos uma prostituta, estaremos pagando pelo seu...”
“Seviço”, Carlos completou.
“Isso, serviço. Mesmo que tenha algo errado, o trabalho da freelancer, vamos chamá-la de algo mais simpático, será proveitoso e satisfatório, por mais que não seja perfeito. Aliás, se fosse perfeito, estragaria”, olhou novamente para a ruiva, estudando a cintura fina destacada pelo vestido. “É uma prostituta, afinal. Como poderia ser perfeita?”
“Agora, se ela utilizasse os dentes... aí seria um problema”, completou Carlos e brindaram.
“Viu, vocês reclamam de tudo.”
“Bestas”, disse a namorada de Carlos. Eles nunca se lembravam do nome dela, Carlos, agente de Harry, tinha o problema crônico de trocar as mulheres de sua vida. “O que ela quis dizer é que se há concorrência, você escolhe pelos detalhes. É mercado puro, gente. Adam Smith e essas coisas todas, o melhor serviço entre dois preços parecidos, ganha o cliente.”
“Não deixe essa aí escapar”, Beti bebia a sakê com uma mão e apontava com a outra. “Ela sabe Smith e Ricardo e essas merdas todas, Carlos. Não apareça com alguém diferente. Viu, Harry? No empate, são os detalhes que definem onde você vai beber seu dinheiro.”
As palavras de Beti ecoaram na mente de Harry. E antes que pudesse parar seu cérebro extremamente misógeno, estava construindo uma lista entre Beti e a Ruiva. Sabia que Beti era tinha um bom coração, mas uma moça linda como aquela tinha de ser boa pessoa. Empate.
Beti, no entanto, era extremamente vingativa e rancorosa, além de insegura e indecisa. A Ruiva ria com convicção e passava segurança, ao menos com o próprio corpo. Ponto para a Ruiva.
“Agora se você tiver duas prostitutas iguais... digamos que são gêmeas...”
“Eu escolho as duas”, Carlos cortou Beti e todos riram. Harry, absorto, perdeu a piada.
“Deixe-me terminar, caramba. São idênticas, mas uma usa fio dental e a outra uma calcinha velha, provavelmente roubada da casa da própria avó...”
“São cheirosas?”
“Você é um porco sabia? São, são cheirosas...”
“Então qualquer uma!”
“Mentira!”
As vozes foram se misturando ao ambiente. Harry estudou novamente a jovem, ela era linda. Pensou em Beti e em toda a história que tinham juntos. Ela o machucara algumas vezes; ele também carregava sua parcela de burradas. Mas com a Ruiva, tudo seria uma página em branco. As possibilidades... as possibilidades. A estabilidade emocional contra a loucura da novidade. A luzúria do desconhecido e o conforto da segurança. Era um empate.
Beti era bem sucedida, vendia os quadros com rapidez e grande lucro, amava o que fazia, era apaixonada pela vida. O casal na mesa ao lado era jovem, estavam provavelmente em um primeiro encontro e ainda cheiravam ao dinheiro dos pais. Ponto para Beti.
Um empate, senhoras e senhores!
“E você”, perguntou a mulher de Carlos, “qual escolheria, Harry?”
“A que fosse livre de sífilis”, respondeu prontamente. Era bom em piadas rápidas.
Gostaria de largar Beti? Voltaria para casa, faria uma mala e viveria, o resto do seus dias, com a Ruiva do restaurante. Sem mais das besteiras da mulher, esqueceria rapidamente o cheira da tinta, o som do piano e o gosto de seu suor. Talvez o café da Ruiva fosse pior, às vezes ela não faria omeletes pela manhã, mas com certeza iria embarcar em uma aventura, um novo romance, a emoção de descobrir um novo corpo, algo que fazia falta em sua vida amorosa. Ela, afinal, tinha cara de quem pintava quadros. Com um cabelo daqueles? Com certeza pincelava. Seria uma grande virada, sabia disso. Mas o empate, o empate entre as duas mulheres pressionava seus nervos. Iria ceder, sentia a urgência aproximando-se como um trem. Tchu, tchu, seu filho-da-puta!
Era o empate, que horrível! Eles ainda falavam sobre prostitutas, dentes, calcinhas e restaurantes, falavam sobre mercado, sobre o novo livro de Harry, talvez inacabado para toda eternidade; eles falavam de sua vida, da segurança do conhecido, da rotina macia que eles tinham. Trocaria sua rede de segurança por um salto de fé?
Quando o pedido do jovem casal chegou à mesa, a Ruiva deu o sorriso mais lindo que ele já vira e a bolha do empate estourou alto em sua mente. Ela havia petido omelete e filé, cercados por batatas e cenouras. O prato era lindo e uma das comidas prediletas do autor. O coração acelerou. Enquanto ela abria a bolsa e retirava um telefone...
Harry disse: “Beti, preciso dizer que eu estou te...”
... apenas para bater uma fotografia da comida e, com dedos treinados, compartilhar em uma rede social qualquer a foto de gosto dúbio e qualidade ainda pior. O jovem encarou Harry com um olhar pesaroso, decepcionado. Isso tirava dois pontos da Ruiva, pelo menos dois pontos.
“... te lembrando o quanto te amo!”, reagiu, novamente com sagaz velocidade.
Beti sorriu e passou a mão por sua perna. Conversaram sobre prostitutas, ladrões, traficantes e cafetões; livros, filmes, músicas e teorias econômicas. Harry inventou desculpas para o agente, as mulheres comeram e beberam antes de irem, juntas, para o banheiro. A Ruiva tirou fotos de todos os pratos do curso e Harry não desperdiçou outro segundo nela.
Era uma vitória de Beti.
Ela, afinal, não usava celular. Ah sim, ele a amava. Isso devia contar algum ponto, certo?
Certo?

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Santa Música

Há alguns anos atrás, em uma feira de Bauru, encontrei dois discos de Chico Buarque no formato vinil, riscados e maltratados pelo tempo. Deixei quatro reais com o dono da banquinha e os levei para casa. Minha mãe que me acompanhava na ocasião entortou o nariz, nem vitrola temos mais, me disse. Mas eu não poderia deixar esses dois grandes álbuns ali, expostos, sem ninguém para guarda-los com o carinho necessário.

Durante muito tempo tive a curiosidade de voltar ao vinil para compreender se era nostalgia de uma tribo de velhos que não aceitavam o novo ou uma afirmação real o fato de sua sonoridade ser mais completa que a mídia digital. Como todas a fábricas de reprodução de vinil foram fechadas no país, pensava erroneamente que o vinil tinha sido erradicado da face da terra.

Aos poucos, os mesmos velhos recursos começaram a surgir atrelados aos novos; vitrolas com a tecnologia atual e entrada direta para computadores, reacendendo minha vontade. Então, há duas semanas atrás ganhei de um tio uma vitrola antiga, herdada de de um grande amigo. Sem ter onde coloca-la inicialmente, configurei caixa, vitrola, caixa no chão. E cacei os discos de Chico dentro de meu quarto, dando preferência inicial para aquele conhecido como a capa com a samambaia de fundo e coloquei para tocar.

Em um impulso infantil deite-me no chão. O samba de Feijoada Completa invadiu meus ouvidos e provocou algo dentro de mim. A constatação de que há anos eu não ouvia música apenas por contemplação. Mas a massacrava em meu cotidiano de afazeres, inda e vindas no ônibus, como uma fuga, não como o saborear de uma arte.

Mais que um elemento nostálgico foi o contato que me trouxe de volta dessa letargia. O vinil permitia uma relação mais profunda que um compact disc ou um player digital. Era necessário cuidado para retira-lo da capa, redobro para inseri-lo na vitrola e delicadeza extrema para suspender a agulha e, lentamente, abaixá-la deixando que os primeiros sulcos do vinil se transformasse em música.

O comprometimento era maior, parecia responsabilidade. Não era um arquivo digital baixado pelo computador apenas para preencher espaço, não era um mídia retirada de sua caixa colocada de ponta cabeça para não riscar e deixada por meses empoeirando-se sem me importar. Era além de um mero inserir de disco. Era necessário trabalhar com a vitrola, girar suas molas internas e fazê-la tocar, virar o disco, fazer o som invadir o ambiente. Subitamente a pulsão musical me invadiu.

A inexplicável sensação de ouvir uma canção, cantar junto desafinando o coro, parecia uma novidade recém nascida. Quebrou o receptáculo da música de elevador, na qual tinha envolvido boa parte de minhas audições nos últimos anos, para se tornar novamente purificada. Elevando-se ao seu canônico papel.

Talvez eu esteja ficando velho. Talvez seja uma maneira de honrar um elemento de meu passado, promover uma conexão com o futuro. Não retiro tais possibilidades. Mas a vitrola está lá, adormecida, esperando que eu a desperte e a faça rodar.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

quadriálogo

- Como assim, parada?

- É, cara, uma parada. A gente chegou à conclusão de que não dá pra não fazer nada, e resolvemos mobilizar.

- Mas... parada?

- É, bicho, é! Uma parada dessas não vai deixar ninguém ignorar nossos direitos, ninguém vai des-saber o que fazemos.

- Vai des-o-quê?

- Des-saber. Tipo quando o cara faz aquela parada lá e fala "mas eu não sabia!".

- Faz aquela parada? Ma' que parada?

- Ah, aquela cena da ignorância absoluta. "Não sei de nada, não sei de nada".

- Sei. Puta parada dura, essa.

- Que parada?

- A do não-sei-de-nada.

- Ah!

- Mas, me diz aqui, quando vai ser essa parada?

- Oi?

- Essa parada, cara.

- Ah, é... ahn... peraí um momentinho.

O homem acenou. A garçonete nova, jovem e nova, demorou para perceber. Joana percebeu, do outro lado do Clube, e ordenou à colega:

- Vamos, vá logo, o moço está esperando.

- Esperando o quê?

- Que tu não fique aí parada!

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Isso não é um conto.


Zack destrancou a porta. Queria ter um dia comum, como as pessoas normais os têm... normal. Tudo o que desejava era servir bebidas para estranhos, provavelmente estragando alguns meses de sobriedade, arruinando vidas aleatórias um copo por vez. Tirou da tomada a Jukebox, que protestou com um inaudível som mecânico e colocou a placa de fora de serviço, a maior mentira da semana; quardou os tacos da mesa de bilhar no depósito e trancou a pequena gaveta com a bolas, deixando para fora apenas a bola branca. A branca nunca coubera na gaveta e aquela não seria a primeira vez que conseguiria, não queria que fosse. Tudo seria normal naquele dia. “Estou me fodendo para o que você pensa”, ele disse para o móvel e deu as costas para o tecido verde e os pedaços azuis de giz.
Uma hora e meia depois o lugar contava com dezoito clientes. Os dois garçons que trabalhavam para ele corriam de mesa em mesa, suando como dois porcos ao sol. No balcão, três senhoras tricotavam e, apesar do barulho grotesco que faziam quando limpavam a garganta, Zack as ignorava: nada de louco para ele. Sentados no centro exato do balcão, de frente para as prateleiras com as melhores bebidas da casa, uma mulher loira, vestida com um sobretudo cinza, era assediada por um homem alto, queixo quadrado e cabelos caindo sobre os olhos. Ela era linda e ele, charmoso. Formavam um belo casal. A loira sorria por causa dos sussurros em seu ouvido e enrubescia com as mãos que acariciava suavemente suas costas e coxas. Zack notou então que ela tinha uma aliança na mão esquerda e o homem narrava alguma história barata, retirada provavelmente da biografia de algum dos Keiths, o Richard ou o Moon, enquanto mostrava uma sucessão de marcadores de página.
O bartender andou até eles, afastou-o violentamente do banco alto e quase o derrubou, não fosse a prontidão que o salvou. “Ei, cuidado meu chapa!”, ele protestou. Zack puxou o bloco dos marcadores da mão dele e os bateu na testa repleta de cabelos.
“Hoje não”, ele disse e se virou para a mulher. “Lorota, moça. São histórias inventadas ou retiradas de algum livro ruim que só ele leu. Esses marcadores são da livraria na esquina, veja só os lançamentos anunciados.” A mulher dirigiu um olhar congelante para os dois e se retirou, deixando duas notas dentro do copo cheio de cerveja. O homem a seguiu, parando na porta apenas para mostrar o dedo do meio para Zack. Os marcadores caíram sonoramente no lixo. Ótimo, pensou satisfeito, história evitada.
Costumeiramente cheio de conversa e curiosidade, Zack passou a maior parte do início daquela noite se esquivando dos clientes que tinham escrito no rosto o quanto queriam bater papo e contar algo extraordinário que havia acontecido naquela manhã ou chorar suas dores, quem sabe. Bêbados tinham a mania de pensar que os bartenders espalhados pelo mundo não têm problemas pessoais, aliás, eles provavelmente não têm vida: desaparecem assim que você pisa fora do estabelecimento. Alguns utilizavam o pobre Zack como psicólogo, a maioria como padre. As histórias que ouviu, as confissões banais e os crimes sussurrados sobre a madeira do balcão... ele não queria saber, não iria escutá-los. As três velhas que tricotavam alternaram os óculos e torceram a boca.
“Oi! A Jukebox está quebrada?”, perguntou uma voz no fundo. Não respondeu, andou até um homem sentado em um canto esquero e perguntou o que ele gostaria de beber ou comer. O homem vestia um largo chapéu, muito maior do que sua cabeça e a peça, que deveria ficar comicamente caída sobre as orelhas estava encaixada quase perfeitamente. Ele pediu um whiskey e o bartender viu um pequeno tentáculo verde passando sorrateiramente diante dos olhos do homem, retornando em seguida para dentro do chapéu.
“Ah não, não hoje”, disse Zack e começou a andar até o outro lado do balcão, quando uma mulher apontou para o relógio e disse que havia algo estranho. O ponteiro vermelho andava para trás, completando um ciclo anti-horário. Sem pensar duas vezes, ele alcançou o bastão de baseball que guardava para defesa e esmagou o velho relógio na parede. Cacos de vidro caíram por cima dele e sobre o chão sujo. Duas molas caíram em seu pé e rolaram para baixo do balcão.
Entregou para um dos empregados suados o bastão e a chave do clube e saiu pela porta, sem dizer nada. Andou pelas ruas da cidade, uma fina garoa caía do céu escuro e rajadas de vento dificultaram suas tentativas de acender um cigarro. Parecia uma cidade fantasma, sem barulhos de carro freiando bruscamente, buzinas e xingamentos gritados; nada de gatos cruzando em telhas quebradas; sem prostitutas iluminadas pela luz triste dos postes; sem uma lua prateada percorrendo a noite. Aquele era um lugar estranh/amente vazio. Zack errou pelas ruas desconhecidas, o cigarro encharcado apagado na boca, a roupa molhada, o cabelo rebelde grudado no rosto e os pés gelados. Andou até os dedos dos pés gritarem de dor, perdeu-se no labirinto da grande cidade e ficou contente. Um lugar estranho, novo, fresco. A ar gelado, purificado pela chuva, entrava nos pulmões cansados e dava-lhe uma estranha energia. Parecia que estava em outro estado, em outro país. Talvez em outra realidade, brincou sua mente. Não, nada fora do comum: apenas um bairro que não conheço.
Zack procurou por abrigo em um bar. Uma música animada tocava e ele recebeu, com felicidade, o calor abafado e carregado com o odor de suor e cerveja. Sentiu os músculos relaxarem aos poucos. Sentou em uma mesa e, momentos depois, uma mulher o abordou, caderneta na mão. Ela era quase linda, difícil de descrever, havia algo de metafísico em sua própria existência, como se os olhos enxergassem cores nunca antes detectadas. “Meu nome é Zack”, disse sem pensar, “e quero uma cerveja. Qualquer uma.”
“Meu nome é Joana, meu bem, e eu nunca perguntei pelo seu.”
Naquele instante ele soube que teria o que desejava. Estava fora de seu território, percebeu, longe das coisas que poderiam tornar uma noite tranquila em acontecimentos em uma cadeia desconexa e fantasiosa. Qualquer anomalia era por conta da mulher. Ela era encarregada de matar os dragões da região, por assim dizer.
“O que está tocando?”, Zack perguntou, olhando para a Jukebox estranhamente familiar.
“É bossa”, ela respondeu e se retirou para pegar a cerveja.
Encostou a costa molhada na cadeira e sorriu como um bobo até a mulher chegar com a bebida. “Quer um cigarro? O seu está mais molhado que uma ninfomaníaca durante um filme do Lars von Trier.”
“Lars von Trier é um merda”, ele respondeu. Mordeu o filtro do cigarro molhado e sentiu o gosto quase nulo da água se misturar à cerveja e ao tabaco. “Estou bem assim, obrigado.”
Não houve história para Zack. Naquela noite ele bebeu cerveja e se imaginou apalpando os seios de Joana. Era apenas mais um cliente em uma noite comum.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Coração

Até o momento, meus superiores não tinham conhecimento. Ou talvez não estavam sensíveis para entrelaçar os fatos. De modo que fui o encarregado daquela avaliação. Cinquenta minutos atrás, meu celular vibrara em cima da mesa com o nome de minha mãe pulsando na tela. Ela não sabia que eu já tinha conhecimento de tudo.

Evito comentários dos policiais antes de entrar na sala. Não é positivo para meu trabalho, nem mesmo de minha índole. A ficha criminal, com autorização para realizar o procedimento, me bastava.

Nunca perdi a parcela da sensação de parecer infimamente importante. Sempre que entro em uma sala de interrogatório, me lembro das películas que assisti. Talvez por saber que aquele a minha frente necessite de minha avaliação para ser sentenciado.

Não posso ser agressivo. Sou a ponte de contato sensível. Cabe a mim compreender porque este homem, caucasiano, trinta e cinco anos, solteiro, trajando roupas sociais, entrou em uma propriedade pública com um artefato caseiro ameaçando atear foto em todo o local.

É minha profissão ser capaz de observar os reflexos. Entender a motivação de atos desesperados. Ver além da profusão passível do populacho que deseja acabar com o homem que colocou em risco a vida de cinquenta pessoas.

O relatório me diz que a marca em seu rosto foi feita por um dos transeuntes locais. Motivo que me faz sair da sala e perguntar ao delegado se a constatação é verídica. Quase todos os dias há na delegacia indivíduos que chegam com leves marcas de escoriações. A resposta é sempre a mesma: realizada por alguém do local que, em um ato incontido, expressou sua raiva contra o meliante. Era necessário saber se até aquele momento ele tinha raiva também da polícia que defendia o sistema que ele tentou prejudicar.

Não estou nem do lado do bem. Nem do mal. Se há esse maniqueísmo. Tenho de ouvi-lo para constatar sua motivação. Se o ato foi premeditado, impulsivo, realizado por vozes invisíveis, outros jargões. Compreender motivos além dos olhos que talvez nem para ele seja perceptível.

Minha mãe assistiu a tudo. Sua voz em pânico invadira meu ouvido uma hora antes. Cerrando a raiva em uma das mãos eu tentava compreender. Histórico de remédios controlados, transtorno misto de paranoia e depressão. Seria fácil derrubar a mesa, quebra-lhe a cara, furioso por justiça. Mas não sou assim.

Se um homem entra em um prédio com uma bomba caseira composta de gasolina, devo afirmar que o ato foi premeditado. Quando, depois de subjulgado, ao vistoriarem sua mochila, descobrem mais sete dessas mesmas bombas, devo considerar o trabalho por trás desde esforço. Mas o histórico, maldito histórico de certa maneira, me obriga a declara-lo insano. A recomendar uma instituição, pois, seu encarceramento seria correto com meu desejo íntimo. Errado com a postura que acredito.

Não cabe a mim a terapia da cura. Apenas reconheço a loucura. Presto meu serviço para leva-lo adiante na esperança que um profissional se apiede de seu problema e tente introduzi-lo a condição fundamentada há tempos como normal. Clinicamente são, quero dizer.

Me repreenderam depois. Após a euforia da ocorrência, lembraram que minha mãe trabalhava no local. Mas a condição não invalidava meu processo. O delegado confirmou minha índole correta perante meu trabalho. Ele não gostava de mim. Mas não duvidava das minhas credenciais.


-

Atravessei a cidade a procura da padaria que, ocasionalmente, minha mãe e eu costumávamos ir. Esperei que fogazzas saíssem do fogo. Escolhi a mais apetitosa. Era um componente infantil mas necessário.

Ao me ver, ela me abraçou. Retirou o pacote de minhas mãos com lágrimas nos olhos. O gesto tinha sido apreciado. A sensação de não se sentir vazia neste mundo.

Como há duas horas atrás, eu estava frente a uma pessoa combalida. Agredida pela invasão de um espaço até então sagrado. Tentei acalmá-la de maneira branda. Minha mãe, olhando nos meus olhos, disse que não sentia medo.

Retirei a fogazza da embalagem. Cortei um pedaço e entreguei a ela como se o conforto de sua vida dependesse de retirar nacos daquele alimento. Ela mentia de maneira doce para mim.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

molecagem

Malandrílson estava escondido atrás de uma pilha de caixas de cerveja. Até isso era excitante: escondido atrás de uma pilha de CERVEJAS! Meu deus, pensava Malandrílson, consegui entrar no bar, consegui entrar no Clube!

Lá fora, no beco escuro e úmido da quebrada da cidade, ouvidos colados na porta, os outros meninos ouviam a ofegância de Malandrílson. Ele precisara correr para entrar sem que ninguém visse, e ele entrou, quando o moleque-assistente-de-lixo estava lá fora com os sacos de restos de bar.

O menino, pé sujo e descalço, andou passo a passo através do estoque, e esticou o pescoço para ver pelo vidro da porta que dava na cozinha. Lá estava ela, a maravilhosa Aninha, loucura das noites mal dormidas de pré-adolescentes. Francamente, pensava o menino, ninguém vai acreditar quando eu disser que vi os peitos dela, um pedaço pelo menos, agora, quando ela abaixou - olha lá! - para pegar o pano de prato do chão. Ninguém vai acreditar não. Mas ah, esses peitos, que eu vi com esses olhos que a terra há de comer, mas há, ah!

Tateando a porta lentamente, abriu uma fresta por onde se enfiou. Lá ia Malandrílson, rápido feito um siri de lado, enquanto Aninha - ainda com o peito amostrado - sacudia a poeira do guardanapo.

É. Malandrílson tinha um amigo que chamava pano de prato de guardanapo, vai entender.

Mas Joshua pegou o moleque no pulo, e num átimo lá ia o malandro caindo na rua, caindo no beco, por cima dos amigos pegos de surpresa. No susto, na porta abrindo rápido, todo mundo se estabacou junto, e Joshua só deu um sorriso um pouco nostálgico, um pouco sarcástico:

- Moleques...

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A Ampulheta de Caronte


Charles Grunn entrou no quarto abafado. Estava terrivelmente quente naquele cômodo e o cheiro do idoso se acumulava em várias camadas: suor, urina e fezes. Mas havia outra essência, sutil, escondida pelos odores corporais, um cheiro que apenas Charles podia sentir. Andou em linha reta até a grande janela e puxou, violentamente, as cortinas laterais, deixando o sol entrar; em seguida, abriu o vidro e respirou aliviado a brisa verpertina. A luz invadiu o quarto, mostrando a grande cama central, envolta por bacias cheias de fluídos do pobre homem. Do velho, podia-se ver apenas a cabeça, os cabelos ralos, brancos e quebradiços, caidos sobre os olhos fechados. A barba crescia selvagem por toda a bochecha e pescoço e duas covas profundas marcavam as laterais. Ele estava coberto por uma colcha pesada causando ondas de suor. Charles foi até o velho e o descobriu. “Assim vocês irão matá-lo”, disse sem paciência, notando os ossos protuberantes no corpo fino. “Saiam”, disse imperativamente, sem olhar para trás. Sabia que suas ordens seriam prontamente obedecidas, principalmente pelo que estava prestes a realizar.
Era um homem de estatura média e um rosto comum, olhos um pouco baixos, talvez. Usava roupas que poderiam ter saído de um armário em 1930, com ternos riscados, uma rosa vermelha saltando por um dos bolsos e um colete marfim por baixo da primeira camada que vestia. Grunn não era um homem que parecia estar deslocado em 2012, não: o tempo parecia deslocado ao seu redor, como se o mundo inteiro fosse anacrônico por causa da existência de um homem de feições simples e olhos caídos. Charles Grunn possuía uma habilidade extraordinário o suficiente para ser uma peça peculiar no Grande Plano do Universo, gostava de pensar. Uma realidade anacrônica era um preço relativamente baixo pelo que era capaz de fazer. Algumas pessoas nascem para escrever histórias apaixonadas e ricas em ideologias, pontuadas em analogias sociais e políticas aqui e ali; são pessoas que mudam o modo de pensar dos homens e causam revoluções no sentido de um mundo mais justo; outros vêm a este mundo para liderar seus iguais até batalhas sanguinolentas e realizar massacres em nome de um ideal; outros apenas podem encostar os dedos na costas das mãos. Charles, único dentro de suas capacidade, estava naquela sala abafada para continuar seu papel, acreditava piamente.
O quarto, mobiliado em estilo vitoriano, estava lindamente iluminado pelo sol. Ele andou até uma cadeira pesada e a arrastou próxima a cabeça do velho. Depois de descansar o peso de seu corpo no móvel, Grunn retirou um pequeno lenço de pano e enxugou a testa suada. Olhou ao redor para certificar de que estavam sozinhos e estudou o quarto quase vazio. Quadros completavam o cenário de opulência, encaixados perfeitamente na parede trabalhada em detalhes de ouro; uma mesa de mogno permanecia esquecida no canto do cômodo, sustentando um volume coberto por um lençol, provavelmente egípcio, constatou.
Na vida de Charles Grunn não havia espaço para moralidade ou reflexão. Ele chegava em seu destino, puxava o lençol, colocava a mão direita em algum moribundo e a esquerda na pele macia, livre de rugas, e se concentrava sem pensar, sem hesitar. Deixava as energias fluírem em um ritmo constante, servindo apenas como intermediário para as energias que corriam livremente. Depois de manipular a ordem natural do ciclo da vida, afrouxava a gravata borboleta, recebia a maleta com o valor combinado e desaparecia por meses, até mesmo anos. Até chegar a hora de trabalhar novamente.
O cheiro do velho era nauseante. “Abra os olhos”, disse. Depois de alguns segundos, lançou um violento tapa contra o rosto enrugado e se deliciou com o baque produzido no choque. Os olhos cansados do velho se abriram com surpresa e dor, os lábios finos contorceram em uma expressão de choro, mas o orgulho ferido era ainda forte naquele corpo quase sem tempo. Quatro dedos marcavam o rosto magro. O olhar que ele dirigiu para o homem sentado causaria medo em qualquer outra pessoa. “General”, comprimentou Charles, deliciando-se novamente com medo estampado no velho. “Eu sei quem você é, General. Eu resolvi quebrar uma das regras e pesquisei o único nome de minha lista e para minha surpresa, bem, você sabe, não sabe?”, um sorriso malicioso crescia no rosto de Grunn. “Ah, as coisas que descobri. Meu preço é justo, gosto de pensar. Em troca de alguns milhões eu entrego para homens como você uma dádiva quase divina. O medo da morte deixa de atormentar suas noites pelo quê? Cinco, seis décadas? Os homens, General, são mesquinhos a ponto de achar que suas vidas importam mais do que a de outros, que o tempo que têm se torna mais valioso do que a própria vida, como se a existência de vícios e pecados que levaram tivesse o direito de ser esticada ao máximo. Quantas pessoas você esmagou sem piedade em suas garras, General? Quantos foram passados para trás, enganados em conspirações complexas apenas para engordar seu poder político e os dígitos em seu patrimônio?”, o velho general encarava o homem sentado em uma de suas cadeiras, ele tentava falar, mas estava demasiado fraco para prounciar qualquer palavra.
Grunn se levantou e andou até a janela. Uma brisa fresca aliviou o calor que sentia. “Quando se faz o que faço, pensar se torna em um luxo perigoso”, continuou, “então eu criei quatro simples regras que me trouxeram até aqui, General. A primeira regra é nunca, nunca, pensar no que estou fazendo. Eu devo entender meus clientes como objetos e nos sacrifícios como... bem, como um sacrifício, entende? Às vezes gosto de me imaginar como um xamã na beira de um vulcão, sacrificando virgem após virgem para saciar a gula de nosso deus pagão. Por algum motivo eu tenho essa... habilidade? Podemos assim classificá-la? Acho que sim. E não colocá-la em prática... seria um desperdício, certo? Como se o homem com o maior pinto de todos decidisse se tornar num padre. Pense nos pobres meninos da paróquia, seria terrível.” Grunn alcançou um cigarro do estojo dourado e riscou um fósforo, deixando a fumaça criar um halo ao seu redor. O general lutava para tentar dizer uma palavra sequer, sentindo o perigo que se aproximava; sempre tivera um ótimo instinto, quase um assassino natural.
“A segunda regra me força a desaparecer por certo tempo.” Tragou longamente e soltou a fumaça pelas narinas. “Nunca realizar o mesmo trabalho duas vezes. Eu vou desaparecer e você nunca mais irá deitar os olhos em meu rosto, tenha certeza. Tenho feito isso por tempo o suficiente, sou a melhor pessoa para sumir sem deixar rastros. Deixo a poeira baixar, por assim dizer. Tempo é o que tenho. A terceira regra é mais complicada. É quase uma tentação, General. Sabe quantos homens como você eu encontrei em minha vida? Deixe-me contar um história. Durante a década de 1960 jovens americanos eram mandados para a Ásia com a missão de barbarizar vidas inocentes, destruir a vida de milhares e milhares de camponeses, de vilarejos e de crianças que ainda não podiam entender o intrincado cenário político que se desenvolvia diante de seus olhos. Esses joves não sabiam se voltariam para suas famílias e qualquer racionalismo moral que existia em suas personalidades era adormecido pelas balas que voavam noite adentro ou pela heroína que corria em suas veias. A cada pente disparado pelas M-16s algo mudava um pouco mais dentro deles. Um jovem, apenas mais um nome em um colar de metal, chegou no Vietnã como um católico fervoroso, cheio de fé e certeza de estar lutando contra o mal que havia no mundo; um perfeito soldado de Cristo. Bang, bang, bang, ‘veja como eu faço do mundo um lugar melhor!’. Nietzsche disse que quando você olha para o abismo, ele te encava de volta. E foi o que aconteceu. O jovem mergulhou em sua ideologia e se tornou na própria imagem que condenava e a ironia é que ele nunca percebeu. Ele apenas seguiu a correnteza. Aos poucos sua atuação chamou atenção dos estrategistas de patente maior e ele melhorou enquanto máquina de guerra, sem demonstrar qualquer arrependimento ele subiu até o posto de general. Depois de adquirir poder, nada poderia pará-lo, certo? Apenas mais uma vila queimada, mais uma mulher estuprada, mais uma criança rasgada ao meio pela minha munição... nada pesava em sua consciência. Alguns acreditavam que ele gostava da carnificina, outras que a nuvem química que envolvia sua mente era a responsável pelos atos bárbaros que ficavam encobertos pela Inteligêngia de guerra. Mas eu não, General, não acredito nessas coisas.” Grunn apagou o cigarro no carpete persa e puxou o lençol egípcio, revelando uma cesta de vime. Pequenas mãos e pés balançavam para fora da cesta e um riso da criança encheu a sala. Grunn sorriu e fez cócegas na barriga branca. Ele pegou o bebê no colo e deixou-o brincar, curioso, com a rosa pendurada em seu terno. “Acho que o jovem se deixou levar, apenas isso”, continuou enquanto balançava suavemente a criança. “Depois de um ponto, General, uma morte é mais uma morte, nada além. Um estupro é um orgasmo, um ato antes de acabar com o sofrimento de uma mulher.” Charles arreganhou os dentes para o velho. “O que você sentiu com o sangue pingando de sua faca enquanto seu pau ainda estava duro e molhado, seu filho da puta? Eu posso imaginar a impassividade gelada em seu rosto enquanto crianças eram estripadas.” O bebê ameaçou chorar quando as palavras cortantes de Grunn saíram em um tom agressivo. “Não, não, não. Está tudo bem, tudo bem”, ele disse por fim, com o som mais doce que poderia sair da boca de alguém.
“Eu também me imagino como o Caronte. Sem as moedas, é claro... isso seria clichê demais. Eu sou um Caronte invertido, eu cruzo o rio entre a vida e a morte no outro sentido.” Grunn levou o bebê até a cama do general e o deitou suavemente. “A quarta regra é na verdade um segredo. Além do dinheiro eu pego dez por cento do trabalho. General, você nunca acreditaria nas coisas que vi! As torres caírem naquele dia em setembro, o muro em Berlim, a festa em maio de 1945, as pessoas pulando dos prédios em 29, o fim da guerra em 18... porra, eu vi Napoleão voltando da Rússia, olhei para os olhos devastados daquele que já fora o homem mais poderoso da Terra. Eu dei os anos que ele teve depois desse dia, sabia? Ele teria vivido mais, os acontecimentos fossem outros. Mas o que aconteceu, aconteceu e não podemos fazer nada para mudar. Eu nasci em 1690, General. A margem de lucro que eu tomo me trouxe até aqui.” Colocou uma ampulheta na cama e pousou a mão direita na testa do velho, que soltou um suspiro aliviado, e a outra na barriga infantil, quente e cheia de vida. “Eu ganho minha vida assim, literalmente.”
“Desta vez eu quebrei algumas regras. Descobri quem você era, por exemplo. Li relatórios ao seu respeito. Sei quantas mulheres choraram enquanto você as rasgava, quantos homens viram a família fuzilada com um puxão de seu dedo no gatilho de uma metralhadora. Sei quantas mortes você encomendou na construção de seu império, General. Uma regra quebrada, eu pensei comigo mesmo, por que não quebrar as outras? Então eu me dei o luxo de pensar e decidir. O que faço é simples, General: eu manipulo a morte, sou o Caronte moderno. Eu retiro a vida de recém-nascido e transfiro os anos de uma vida toda para homens deitados em seu leito de morte, homens que acreditam na superioridade de sua existência, que aceitam privar uma vida inteira para ter mais tempo.” Grunn inverteu as mãos, cruzando os braços. Uma lágrima solitária percorreu o rosto do velho monstro. “Eu pensei e decidi. Eu sinto o cheiro da morte, essa é outra de minhas habilidade. E com o passar dos séculos, aprendi a estimar o tempo de vida. Acontece que você ainda teria oito, dez anos de vida. Acho que esse carinha vai aproveitar bem, não vai?” Grunn sorriu novamente e olhou nos olhos do velho enquanto sentia a energia do general passar para o bebê. A ampulheta invertida tomou seu tempo, um grão por vez enquanto Charles Grunn roubava do velho um dia por vez, deixando-o sentir o tempo se esvair de qualquer lugar que sua vida ficasse estocada. O trabalho poderia ser rápido, com um estalar de dedo, mas Grunn queria se divertir daquela vez, ele estava quebrando quase todas as regras. Não iria tomar seus anos desta vez, ele tinha algumas décadas ainda e logo outro rico desesperado cairia em seu radar. A criança exalava energia e saúde.
O último grão caiu. Um último suspiro deixou o hálito fétido do velho general. “Apodreça no inferno”, cuspiu antes de sair, a ampulheta esquecida sobre o corpo sem vida do General.
A casa era gigantesca e ele se perdeu algumas vezes. Em seu braço direito ele segurava a criança e a cada empregado que encontrava e que ousava questionar o que tinha feito, seus dedos da mão esquerda roubavam mais tempo para o menino que dormia pacificamente.
Estava mais fresco fora da casa. Charles Grunn sorriu e segurou firmemente a criança. Ele tinha que comprar fraldas, leite, roupas, brinquedos...
Não iria se preocupar com tudo aquilo agora: ele tinha tempo.
Charles Grunn obeceu a única regra intacta e andou calmamente sob o sol quente, até sumir da vista de crianças que jogavam futebol na rua, observando o homem de roupas restranhas com um bebê dormindo em um dos braços.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

nascimento

Sentado, com o copo nas mãos - porque nosso herói sempre está sentado com o copo nas mãos -, ele sorria levemente ao gelo que derretia dentro do uísque. Na verdade preferia cerveja, mas um uísque pareceu mais apropriado. E um charuto. Um charuto também. Nosso herói hoje era pai, e aquilo merecia - diziam que merecia - comemoração.

Ele comemorava.

Sentado, ignorando o som ambiente, ignorando o ambiente, ignorando os amigos todos, ignorando até o próprio pé, nosso herói pouco a pouco derretia o gelo do uísque com o olhar belo de um novo pai. Era o que ele era, afinal! Ele era pai. Meu deus, pensou, meu deus do céu, que meu pai pensaria nesse dia? Que ele seria avô! Puta merda, deus pai, deus vô, sei lá. Legal, não?

O velho não estava mais nesse plano aqui, ele era etéreo, mas o moleque que nascera tinha algo do vô no formato da cabeça, algo da vó no sorriso largo, e provavelmente mais algos de outros avós que ele particularmente não conseguia reconhecer.

Mas reconheceria. A partir de agora, tinha toda a vida para observar essa vida. Essa vida nova.

O gelo derretia.