quarta-feira, 31 de julho de 2013

Don´t Rain On My Parade

O abafador de som que ele colocava nos ouvidos para realizar suas leituras não o fez ouvir o pedido de socorro da vizinha. Desesperada por ter derrubado uma forma de vidro em seu pé que sangrava, produzindo um contraste que ele considerou interessante, vinte minutos depois de ficar ciente da cena.

Foi o som do estéreo de outro vizinho que o fez sair de casa quando notou, na janela ao seu lado, a mulher com certa palidez, sentada no chão da cozinha sem saber como lidar com acidentes domésticos.

Se encontraram poucas vezes no hall do prédio e cumprimentaram-se como fazem os estranhos que dividem a intimidade ouvindo seus sons cotidianos. Perguntou-lhe se podia entrar, já com a mão na maçaneta da porta, verificou a cena em sua totalidade e, mesmo sem nenhuma liberdade, caminhou até o banheiro onde ela ouviu, após alguns segundos, um barulho contínuo e suave que só poderia significar o chuveiro ligado.

Ao retornar à cozinha, ele a ajudou a se levantar, colocando um dos braços dela em apoio ao seu ombro e, enquanto a levava ao banheiro, mencionou que ninguém se sente confortável com um corte desses e sempre há muito mais sangue do que parece.

A banqueta que ela utilizava para colocar revistas semanais para leituras breves foi colocada ao lado do chuveiro e ele pedia para que ela se sentasse. A garota achou terno o fato de que o rapaz tocou seus pés para ajudar que o sangue escorresse e lhe prometeu que doeria pouco se ele passasse sabonete no local, alegando que assim evitariam problemas. Ela apenas assentiu e continuou a tentar ao máximo não se entregar àquela dor.

O fluxo de água corrente limpou o sangue revelando três cortes no peito do pé. Ela achou estranho quando ele enxugou seus pés com cuidado, tentando evitar tocar nas marcas e, levantando-se, perguntou sobre as bandagens. Sem graça, ela disse que não tinha. Volto logo, falou.

Enquanto esperava com os pés ainda úmidos, sob a tolha laranja do conjunto, tentava alinhar as ideias para se lembrar como derrubou a travessa no chão e de como, de repente, o vizinho cordial tornou-se um perito em atendimentos de socorros. Um pouco diferente dos tradicionais, reconhecia, mas que ainda assim lhe confortava.

Os pensamentos foram sustados com o retorno do rapaz e uma pequena maleta que continha um arsenal de ponta de remédios. Bandagem, mertiolate, anti-gases, anti-refluxo, anti-histamínicos, contra dores de cabeça, prisão de ventre, dores em geral e uma caixinha com balinhas de menta, sem açúcar.

O rosto da garota afogueou-se quando ele sentou no chão, pegou em seus pés com cuidado para repousá-lo sobre sua perna. Precisava de uma boa visão para aplicar o mertiolate e os três band-aid que cobriram os ferimentos, sendo que uma das bandagens, maior e retangular, fez ela rir, refletindo que, sem dúvida, ele estava bem preparado para qualquer acidente.

Foi neste momento que eles se olharam de fato. Ela, sentada no vaso sanitário, e ele, à sua frente, no chão. Houve um primeiro momento de estranheza que passou rapidamente quando ele perguntou se ela estava bem. Ainda sem muitas palavras, agradeceu pela atenção redobrada e não pode deixar de informá-lo que este foi o momento em que mais tinham interagido, ainda que morassem um ao lado do outro há dois anos.

Ele disse que tinha problemas com as cordialidades dos vizinhos, já que ninguém atendia às suas reclamações para baixar o som alto vindo dos outros apartamentos. Eu achei que era o seu som, ele disse. Foi bom que não foi, respondeu e depois arregalou os olhos como quem diz algo sem pensar. Ele ficou desconcertado, mas disse que sim, pôde ajudá-la.

No banheiro, deixou suas bandagens para ela para que usasse nos próximos dias. Ela tentou caminhar para acompanhá-lo até a porta, mesmo ele negando. Não estou aleijada. Foi quando se lembrou de que nem seu nome conhecia. Ricardo, ele disse, e o seu é Marina. Ouço suas amigas lhe chamando, às vezes. Não que eu esteja atento, ruborizou.

Bom, Ricardo, você não quer ficar para o jantar?... E ele voltou a olhar para a cozinha. O forno, ainda aceso, a travessa grossa de vidro quebrada em seis ou sete partes e uma trilha de sangue que começava a caminhar pelos ladrilhos. E ela riu, percebendo que não era uma boa ideia.

Ele agradeceu e começou a caminhar para seu apartamento, já retirando as chaves do bolso. O metal tocou a fechadura de leve. No clique de uma volta, voltou até o apartamento de Marina. Bateu na janela de metal da cozinha e ela ainda estava lá, de costas, observando o chão, como quem produz sua estratégia de como ou por onde começar a limpar a bagunça que deixou.

Olha, eu sei que não é nada, mas tenho um congelado em casa. Que tal você me deixar responsável pela comida e você pela... Música, ela lhe interrompeu. Ele sorriu, perguntando depois: vai ser melhor que a deles? Apontando para o outro vizinho que, neste momento, ouvia uma canção sertaneja sobre os prazeres de ir para as festas, beijar todas as mulheres e se sentir bem por tudo isso.

Ela gargalhou e ele achou atraente a maneira como ela projetava a cabeça para trás, revelando um pequeno furo no queixo que ele não tinha observado. Pode confiar em mim, disse. Tenho um repertório musical melhor do que meus cuidados na cozinha. E combinaram de jantar em quinze minutos. O tempo em que o congelado ficaria ótimo para ser degustado.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

fields forever

- Nem pintada de ouro, sinceramente, eu quero ver essa filhadaputa na minha frente. Olha só, nem é por mal. Juro procê, bicho, eu te juro mesmo, por essa luz que tá me iluminando e já cegou Pedrinho, sério mesmo, nem é por mal que eu te falo, que eu digo isso. Pelo contrário, pelo contrário, e te digo mais, justamente pelo vice-versa é que não quero mais ter papel nessa peça, dar créu nessa moça, nada disso, nem que ela me peça com pressa pra atravessar correndo a avenida Pedro Lessa. Ela não merece, sabe? Não merece. Mas nem é por mal que eu digo, cara, nem é por mal que eu digo - e tô dizendo só porque tu quis saber e agora pronto, tô aqui dizendo tudo pra você. Não é por mal: só não quero mais nada com essa mulé porque não é do meu feitio ficar arrastado de joelho no pé das moça que me desmazelam, não é. Tô te dizendo, não é por mal. Só não quero ver essa filhadaputa nem pintada de ouro porque, escuta, ela é a única coisa que eu amo nessa porra. E, Joana, traz mais duas faz favor.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Voto

Para Paula. Agora e sempre.

Eu bebo muito café. Essa é uma frase muito comum dentre os historiadores, até mesmo entre aqueles que gostam de ler até a lua estar alta. Por isso, grande parte das memórias das quais tenho carinho envolvem o café. As conversas na universidade, discutindo este ou aquele livro, um ou dois autores, qual professor estava ficando mais barrigudo e quem ficou bêbado na festa passada. Eram conversas leves, descontraídas, entre amigos que dividiam a mesma paixão. Depois, bebi café com pessoas de outro continente. Algumas xícaras em Londres, outras em Lisboa. Cada uma delas com alguém para conversar, alguém com que dividi meu tempo e minhas palavras.
O gosto, quase sempre amargo, ainda está na minha língua e as palavras destas pessoas estão acesas em minha mente, agora e sempre.
Eu bebo muito café. Você pode facilmente montar minha rotina contando as xícaras. Por isso, não direi as promessas tão comuns em noites como essa, promessas tão batidas, ainda que verdadeiras; tão clichês, ainda que precisas.
Eu bebo muito café e é assim que faço meus votos: quero, ao seu lado, as minhas melhores xícaras, os melhores momentos, as melhores conversas. Sentados na mesa de um hotel, ou na mesa de nossa sala, com o rosto ainda inchado pelo sono; assistindo as ondas quebrarem na areia em alguma praia que, até se tornar real, só existe em nossa mente. Quero beber as xícaras apressadas, para não chegar atrasado em mais uma reunião; beber o café tranqüilo dos domingos de manhã, café preguiçoso, enrolado em seus braços, um filme na TV.
Assim saberei que serei feliz, assim levantarei cada manhã, ansioso para começar mais um dia ao seu lado, dividindo com você, minha esposa, os melhores momentos de minha vida.
Eis a minha promessa - promessa feita diante das pessoas que nos são mais queridas: a cada gole, prometo estar mais feliz; no espaço de tempo entre uma xícara e outra, meu sorriso estará mais e mais aberto, sincero… feliz. Eis a minha promessa, que espero ser também a sua. A promessa de que nossas melhores xícaras ainda estão por vir.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

onde road

- Acorda! Acorda, vagabundo. Vâm bora daqui.

A voz esganiçada chamava Paulo para fora do bar. Fechara o Clube, dormira Joana, Joshua estava puto por clientes vagabundos até tarde e era isso.

A noite mal dormida, adiante, era como um precipício.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Segunda Morte

A vida na prisão sufocava seus sonhos com o mesmo travesseiro em que apoiava a cabeça. Era um travesseiro fétido, com manchas de saliva feita pelos criminosos - auto-declarados inocentes - que dormiram no mesmo catre antes dele, manchas circulares e amareladas pelo suco gástrico daqueles colegas do destino. Estava deitado com os braços cruzados por trás da cabeça, olhos fixos nas fotos coladas no teto. Miss Playboy junho/87 e ensaio nº3 de novembro/99 retornavam seu olhar compenetrado, convidando-o para prazeres pelos quais não ousava flertar, salvando um pouco da sanidade que ainda tinha. Não por muito tempo, ele sabia. Não que isso importava, ele também sabia.
Seu limite, caro leitor, estava há quilômetros e quilômetros atrás, longe demais para ser visto pelo retrovisor. E olhando para frente, tudo que se vê é uma pista esburacada e o céu escuro por nuvens carregadas.
Não havia esperanças, seu caso era um exemplo do governo para acalmar a sociedade saturada pela violência que fazia sangrar o jornal das dez. Ele era o bode expiatório e teria de viver com isso, suportar os olhares cheios de desprezo - inclusive de sua própria mama - e pedras arremessadas, pedras que machucavam sua pele e rachavam seus ossos, mas molestavam ainda mais seu espírito. Era o bode expiatório e teria de ser queimado e sua cabeça exposta em praça pública. Um exemplo. O pão e a porra de todo o circo em uma só pessoa. Limpo, barato e certo.
Seu rosto estampava todos os jornais nacionais e internacionais. Mesmo meses após a condenação, era odiado como o novo Hitler. O que fizera? Matara Selena. A futuro ex-esposa. O que ninguém mais sabia era que sua morte foi um acidente. Infeliz acidente. O juiz não sabia, a família da mulher não sabia… a própria Selena não sabia e isso era, de alguma forma, pior do que a própria injustiça que transcorria. Ele arrumava suas malas, um silêncio pesado pela casa, apenas o tic-tac-tic-tac do relógio na parede. Roupas, livros, material de desenho, portfólio… tudo embalado, todos seus pertences dentro de caixas de papelão ou em malas improvisadas. Estava saindo de casa depois de uma briga boba que escapou da devida proporção, a rainha das brigas exageradas. Ele fechou um punho, ela enegreceu um olho; ele foi para a delegacia e os dois tiveram o rosto na mídia. O assunto do momento, a distração para a massa: o homem que representava todo o abuso sofrido pelas mulheres trabalhadoras que lutavam por seus direitos, conquistados pouco à pouco, apenas para apanharem de homens como ele, animais irracionais e violentos, que mereciam apodrecer na prisão. Longe de tudo e todos. Apodrecendo um dia por vez, até seu coração negro parar de bater e os olhos maléficos se fecharem pela última vez.
Uma multa, duas noites em uma cela cheirando urina e a separação. Foi o que ele pagou por ter perdido a cabeça. Um preço justo, sabia.
De novo em casa, ele fez as malas. Estava tudo pronto e só faltava o adeus, até o dia em que assinaram o papel na frente do juíz. Au revoir, minha cara. Mas ele tropeçou e tentou se agarrar em uma cadeira, que caiu e bateu contra o cabideiro que no canto da sala. Foi então que Selena morreu, de forma tão estúpida. Com os braços cruzados e o olhar fixo nos seios de novembro/99, a cena se repetiu dentro da cabeça. De novo. E de novo. E então uma vez mais. Em câmera lenta, via pela vigésima vez naquele dia o cabideiro, de metal, pesado, bater contra Selena, que olhava a cidade apoiada no parapeito do apartamento, no décimo andar. O metal bateu contra ela e um grito de dor explodiu de suas cordas vocais. O homem esticou uma das mãos, mas não conseguiu alcançá-la, Selena se virou e suas pernas se levantaram em um movimento inesperado, quase uma dança. Ela caiu, gritando durante cada centímetro até se espatifar no concreto da calçada.
Não teve forças para contar a história para as outras pessoas e nunca desmentiu a primeira suposição, feita pelo porteiro do prédio. Também faltara-lhe explicação para os jornalistas, para a família da mulher morta e, pior, para os jurados. Agora estava apodrecendo em uma cela, contando os dias para que seu coração cessasse de bater. Uma apatia que chegou e nunca foi embora.
Uma única lágrima correu por seu olho direito e ele virou a cabeça, estudando a corda levada para dentro de sua cela pela mula mais conhecida do presídio, material que lhe custou 58 cigarros, uma surra e a virgindade anal. Levantou-se e pulou para o chão. Subiu no monte de livros e colocou a corda no pescoço. Pensou, pela última vez, na sua primeira morte.
Fora uma criança feliz, rodeado por amigos e futebol, colecionava figurinhas de jogadores e matava aula para fumar bitucas de cigarro mentolado atrás da quadra de basquete. Uma infância interrompida por uma carro que fugia da polícia, um monstro de metal que pesava algumas toneladas e que voou pelas ruas, acertando o garoto com o pára-choque duro.
Não tinha lembranças do acidente: quando recobrou a consciência, estava no hospital e duas semanas haviam passado. Enquanto estivera em coma, morto para o mundo que seguia adiante, estivera com o Ceifeiro. Era um homem magro e alto, um rosto de traços fortes, sem expressões temporais. Tinha os olhos vagos e a boca seca, um monóculo no rosto e a mais bela ampulheta em uma das mãos. Apresentou-se como Caronte, mas ele para o garoto, seu nome era Ceifeiro. O homem alto agarrou sua mão com suavidade e o levou para o outro lado. Lá, ele brincou com crianças felizes, andou de bicicleta e jogou futebol. Sempre havia uma partida de futebol daquele lado e mesmo que caísse ou ralasse os joelhos, não podia sentir dor. A comida era saborosa e o vento fresco; as flores cheirosas e ninguém dizia maldades dos outros: eram todos sinceros e simples, amigos uns dos outros, uma amizade que valia o mundo todo.
Então os médicos conseguiram trazê-lo de volta, mas deixaram para trás uma parte dele, a parte que queria seguir vivendo e vencer a vida. Nunca mais foi o mesmo, pois sabia que nada naquela vida tinha valor verdadeiro. Pendurou as chuteiras e parou de cheirar as flores. Elas estavam erradas, como se fossem todas de plástico. Cresceu e foi parar naquela cela imunda.
A vida de um prisioneiro. Sem saídas, sem alívios.
Sentiu o toque áspero da corda contra seu pescoço e chutou para longe os livros, derrubando a coluna que o sustentava. Selena, pensou uma última vez. Balançou, arfou inutilmente e balançou um pouco mais. Morreu sorrindo, por tinha a liberdade novamente.
A primeira coisa que faria? Jogaria futebol.
Enforcado, balançou como um pêndulo desajeitado.
O ar mudou. Não sabia como sabia, mas o ar estava diferente, como da vez em que o carro o atingira em cheio, quebrando mais dedos do que poderia contar com seus dedos. O Ceifeiro apareceu e parou quase tocando seu nariz. Ele era mais alto do que se lembrava. “Eu já te encontrei uma vez, humano”, disse Caronte. “Seu tempo acabou.” Simples, direto.
Faça logo sua mágica e vamos deixar esse lugar horrível para trás, por favor. Por favor!, ele pensou com um corpo já sem vida.
O Ceifeiro tirou uma navalha de um dos bolso e segurou a corda com os dedos finos. O homem sentiu a corda sendo serrada, mas nada aconteceu. Caronte tinha um ar de dúvida, um brilho estranho nos olhos outrora sem expressão. Ele pulava e quicava enquanto Caronte tentava romper a corda, mas nada acontecia. Até que um baque surdo derrubou a navalha quebrada no chão e o Ceifeiro soltou um grito em uma língua desconhecida.
Caronte o olhou novamente e levantou as mãos, erguendo os ombros em seguida. Desculpe, foi mal, ele parecia dizer. Virou-se e desapareceu para sempre.
O homem balançou na corda, balançou e balançou, preso para sempre. Enforcado pelas próprias mãos.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

e do espírito santo

o passado dá a corda pouco a pouco para que o destino frouxo se enforque numa viela.  o passado dá, ele concede, acende com pederneira o pavio de um cogumelo atômico radioativo e mortal. ele quase sempre faz meio mal, por dentro, o passado e as sementes plantadas ao vento com descuido e descaso. com desrespeito. a gente não sabe - quem planta não sabe - o que vai brotar por ali. nunca sabe. é triste, você vê?, é triste que seja lá qual for a planta, no fim é sob um galho dela que os pés balançam.

No Clube, hoje, o calor é frio. Não há música. Nenhuma tristeza, não há, mas só um silêncio que sempre falta. Desentendimento, Hosana nas alturas e oração. Amem.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Double Twist

“Que saudades, amor!”
“Também estou com saudades, mas só de te ver assim eu já melhoro um pouco. Você é linda, sabia?” Ele piscou para ela e sorriu, um sorriso aberto, mostrando todos os dentes.
A mulher vestia uma blusa com estampa em padrões coloridos, ali uma flor, aqui um pássaro, acolá um sonho lisérgico. Ela levantou o garfo e experimentou o pedaço de frango, mastigando sem pressa, sentindo o sabor acentuado da carne branca. “Então, como foi sua semana?”
O homem estava fora da mesa, com metade do corpo para dentro da geladeira, tentando escolher qual vinho abrir. Era uma escolha difícil, muito, muito meticulosa. Pegou uma das garrafas e leu o rótulo em voz alta, antes de lembrar que, de fato, desconhecia o universo dos enófilos. Enofilia, pensou e suprimiu o riso pueril. “Foi boa!” Respondeu afinal, falando um pouco mais alto para que ela pudesse escutar com clareza. “Tirando o pneu furado, é claro. Eu te contei sobre meu pneu furado, afinal?”
Ela estava ajeitando a roupa quando ele voltou. “Não, não contou. Quando foi isso?”
“Terça? Quarta? Não me lembro. Eu deveria me lembrar, certo? Acho que qualquer um se lembraria de um pneu furado, quero dizer, é um porre. Você tem de usar o macaco, depois ficar no meio da rua, ou da estrada, com os carros passando à toda do seu lado… E seu cofrinho sempre aparece”, ela deu uma risada aguda, cobrindo a boca com uma das mãos, “deve ser uma lei universal. A primeira pessoa que trocar um pneu furado no meio da rua sem mostrar o cofrinho causará a implosão do Universo.”
“É sobre isso a sua pesquisa na universidade?”
Passou um dos braços sobre o encosto da cadeira e formou uma arma com os dedos indicador e polegar, disparando um projétil fantasioso na direção da mulher. “Exatamente. E desconfio, como já disse Douglas Adams, que isso já aconteceu antes, baby.” Pegou um pedaço do pão de alho e levou para boca, mastigando sonoramente.
“E foi só isso?”
“Hum”, ele respondeu ainda com metade do pão na boca, “eu fiquei uns quarenta minutos para trocar aquela porcaria. Sabe quanto tempo fazia desde que troquei meu último pneu? Não? Pois é, nem eu! Agora eu preciso arrumar um step novo, para não ficar na mão, certo?”
Ela assistiu enquanto ele pegava o saca-rolhas de um dos cantos da mesa e brigava com a rolha do vinho. “E faz quando tempo desde que você abriu a última garrafa de vinho?” Ela se divertiu com o olhar incrédulo no rosto dele. Impagável. “Esse vinho é bom?”
“Deve ser”, a última palavra saiu quase como um gemido, junto com a rolha. “Eu demorei para escolher essa garrafa que estava na geladeira. Espero que tenha acertado o ‘menos pior’ dentre meus vinhos.”
Ela gargalhou. “Seu besta. Menos pior não existe.”
Experimentou o vinho tinto e fez uma careta. “Realmente não existe, acho que todos esses vinhos são péssimos. Preciso de ajuda para comprar vinhos.”
“Traga a garrafa mais para cá”, ela pediu, “não consigo ver tão bem nesse escuro todo. Você não quer acender a luz?”
O homem largou a garrafa onde estava e apertou o interruptor. Alguns segundos e nada aconteceu. Acionou novamente e forçou com o dedão, a luz piscou algumas vezes, estabelecendo-se com um intenso clarão. Cerrou os olhos por uns instante e assoprou as velas, sorrindo novamente enquanto as chamas queimavam, apesar do sopro da mulher. Ele se aproximou e apagou as duas chamas com as pontas dos dedos.
“Sempre quis fazer isso”, ela disse com a cabeça apoiada nas duas palmas, “é tão macho, apagar velas com as pontas dos dedos.”
“Eu sou inteiro macho, querida”, respondeu com uma piscadela. “Como está o seu frango?”
“Ótimo. O seu peixe?”
“Poderia estar melhor, mas não vou reclamar.”
Comeram algumas garfadas enquanto se olhavam, olhares apaixonados, sinceros e ternos. No fundo, Eric Clapton cantava sua paixão por Layla, a moça que o deixara de joelhos, implorando, querida por favor, Layla.
“Amanhã eu tenho de ir até a universidade”, ela mudou a expressão de repente e sua testa mostrava algumas rugas por antecipação.
Quase engasgou com o peixe. Socou o próprio tórax duas vezes e tossiu, engoliu o que restava de vinha no copo - um copo de requeijão, pintado com uma figura que tentava parecer o Bob Esponja. Dois fios de vinho desciam pelos cantos da boca e manchavam o colarinho branco. Pareciam duas poças de sangue. “No sábado? Só você?”, tentou suprimir o tom ácido na voz, mas não foi possível: o vinho era ácido e ele sentia o álcool de baixa qualidade acionando a fúria repentina.
Hesitou por quase um minuto, jogando um pedaço de frango de um lado para o outro, raspando o garfo no prato. “Não… o Edward tem que ir também-”
“Puta merda, viu?” Ela não conseguiu terminar a frase. O rosto do homem parecia prestes a explodir.
“Amor, eu não posso fazer nada! Cada um tem um papel específico dentro do laboratório e as culturas já estão…”
Ele reclamou novamente, resmungando alguma coisa sobre as culturas que ele poderia cultivar na própria cavidade anal.
“… ficarem mais tempo, vamos perder o trabalho de duas semanas e minha orientadora não vai gostar”, continuou, ignorando o comportamento infantil daquela mesa. “O fato é que tenho de ir e fazer meu trabalho, o resto é por conta da sua imaginação.”
“Minha imaginação?” Bateu os talheres na mesa e tirou o cabelo do rosto. “Foi minha imaginação ele passando a mão na sua perna? É isso? Quando saímos, foi minha imaginação também, como ele ficava te olhando e suas risadas para tudo que o imbecil falava? ELE NEM ERA ENGRAÇADO!”
“Calma, amor, não precisa gritar! Olha os vizinhos…”
“Os vizinhos que se fodam.” Cruzou os braços e soltou o corpo na cadeira. “Quer saber, a próxima vez que eu pegar um vôo para te visitar, vou socar esse palhaço. E você está de castigo.” Ele moveu o cursor do mouse e aumentou a música. Agora, era o Metallica que tocava algo sobre guerras. Virou o computador para a parede e a deixou olhando o canto da cozinha através da pequena câmera no topo da tela.
Mesmo em outro continente, ela podia sentir o cheiro daquela casa, o barulho constante de música ou do video-game na televisão da sala; podia se lembrar das vezes que ferveu água para fazer chá, segurando um livro aberto nas mãos e deixando o sol banhar seu corpo. Uma pontada de saudades atravessou seu coração e ela sangrou por dentro. Estava cansada das brigas, da saudade e do ciúmes. Abaixou a tampa do notebooke e soltou o ar pesado que invadira o seu peito. Eram duas da manhã e jantar com ele nem sempre era fácil, principalmente quando o skype resolvia travar ou nos dias em que ele ficava bravo. Deixou o prato na pia, apagou a luz e escovou os dentes. Entrou no quarto, devagar, tirou toda a roupa e deitou, sentindo o calor aconchegante de Denise. O cheiro do shampoo, misto de flores e da pele morena de Denise, trazia uma enorme paz. Ela inalou profundamente.
“Como foi?”, a outra mulher perguntou, o inglês carregada de sono.
“Ainda com ciúmes do Ed.” Abraçou a mulher e apertou os seios fartos contra os dela. Trocaram um rápido beijo.
“Mas ele nem é engraçado…”
“É… eu sei.”

quarta-feira, 10 de julho de 2013

O Reverso

O encontro aconteceu durante a vida. No período entre mil novecentos e noventa e oito até dois mil e nove, em dezembro. Fazia uma das primeiras compras do Natal quando se deu conta.

Se o tempo entre nascimento e morte fora a medida escolhida como parâmetro, talvez o encontro pareça longo. Mas dando passos para trás, afastando-se do objeto, da vida, do encontro, do sintoma dos anos, compreendemos que o encontro aconteceu em ínfimo tempo.

A foto está em uma velha moldura empoeirada. E, neste momento, Jerônimo retira-a da proteção feita de madeira com a esperança de encontrar o local escrito com esferográfica no verso. Há somente mês e ano. Não sabe precisar quando estiveram naquele rio.

Observa a foto e se dá conta de que parecem deslocados vestindo o capacete e a roupa laranja de proteção. Sabe o destino que tomarão, não registrado por essa foto. Entrarão no rio, ela, ele, mais um casal e o instrutor, após uma sessão breve mas intensa de treinamento de como remar para esquerda e direita, sem perder o equilíbrio.

Tem esta imagem na cabeça há algumas semanas. Descendo infinitamente aquele rio de curvas violentas. O aviso do instrutor de que é necessária força, sua destreza em segurar o remo e ir de um lado para o outro, durante as respirações. E o momento em que, sem perceber, o pequeno bote virou. Fazendo-o ingerir uma quantidade incômoda de água, espelida em seguida pelo nariz, que ardeu suas narinas. Agarrou-se nas pedras em seguida e logo saíram do rio. Mas a imagem permanece dentro si.

A queda, a mudança de orientação. A ação é lenta ao rever as imagens. Sente a última passada do remo mais forte do que as outras. Um impacto abrupto do lado esquerdo e as águas chocando-se com o bote. A batalha entre líquido e sólido. O objeto contorcendo-se como um animal que ergue as patas dianteiras em agonia. Até cair.

A maneira com que o barco vira, lhe produzindo desespero, é como Jerônimo luta para compreender a mudança em sua vida. Repetindo a cena diversas vezes. Acreditando que, se for capaz de modificá-la, transformaria também o momento em que ela deixou de ser aquela. A pessoa que lhe era amada e hoje lhe partia em dois.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

quero ser john malkovich

Mas ele não queria. Entrou no elevador, apertou direto no botão número oito e subiu lá. E ficou lá.

Ele sempre quis ser foi Brad Pitt.