sexta-feira, 19 de julho de 2013

Segunda Morte

A vida na prisão sufocava seus sonhos com o mesmo travesseiro em que apoiava a cabeça. Era um travesseiro fétido, com manchas de saliva feita pelos criminosos - auto-declarados inocentes - que dormiram no mesmo catre antes dele, manchas circulares e amareladas pelo suco gástrico daqueles colegas do destino. Estava deitado com os braços cruzados por trás da cabeça, olhos fixos nas fotos coladas no teto. Miss Playboy junho/87 e ensaio nº3 de novembro/99 retornavam seu olhar compenetrado, convidando-o para prazeres pelos quais não ousava flertar, salvando um pouco da sanidade que ainda tinha. Não por muito tempo, ele sabia. Não que isso importava, ele também sabia.
Seu limite, caro leitor, estava há quilômetros e quilômetros atrás, longe demais para ser visto pelo retrovisor. E olhando para frente, tudo que se vê é uma pista esburacada e o céu escuro por nuvens carregadas.
Não havia esperanças, seu caso era um exemplo do governo para acalmar a sociedade saturada pela violência que fazia sangrar o jornal das dez. Ele era o bode expiatório e teria de viver com isso, suportar os olhares cheios de desprezo - inclusive de sua própria mama - e pedras arremessadas, pedras que machucavam sua pele e rachavam seus ossos, mas molestavam ainda mais seu espírito. Era o bode expiatório e teria de ser queimado e sua cabeça exposta em praça pública. Um exemplo. O pão e a porra de todo o circo em uma só pessoa. Limpo, barato e certo.
Seu rosto estampava todos os jornais nacionais e internacionais. Mesmo meses após a condenação, era odiado como o novo Hitler. O que fizera? Matara Selena. A futuro ex-esposa. O que ninguém mais sabia era que sua morte foi um acidente. Infeliz acidente. O juiz não sabia, a família da mulher não sabia… a própria Selena não sabia e isso era, de alguma forma, pior do que a própria injustiça que transcorria. Ele arrumava suas malas, um silêncio pesado pela casa, apenas o tic-tac-tic-tac do relógio na parede. Roupas, livros, material de desenho, portfólio… tudo embalado, todos seus pertences dentro de caixas de papelão ou em malas improvisadas. Estava saindo de casa depois de uma briga boba que escapou da devida proporção, a rainha das brigas exageradas. Ele fechou um punho, ela enegreceu um olho; ele foi para a delegacia e os dois tiveram o rosto na mídia. O assunto do momento, a distração para a massa: o homem que representava todo o abuso sofrido pelas mulheres trabalhadoras que lutavam por seus direitos, conquistados pouco à pouco, apenas para apanharem de homens como ele, animais irracionais e violentos, que mereciam apodrecer na prisão. Longe de tudo e todos. Apodrecendo um dia por vez, até seu coração negro parar de bater e os olhos maléficos se fecharem pela última vez.
Uma multa, duas noites em uma cela cheirando urina e a separação. Foi o que ele pagou por ter perdido a cabeça. Um preço justo, sabia.
De novo em casa, ele fez as malas. Estava tudo pronto e só faltava o adeus, até o dia em que assinaram o papel na frente do juíz. Au revoir, minha cara. Mas ele tropeçou e tentou se agarrar em uma cadeira, que caiu e bateu contra o cabideiro que no canto da sala. Foi então que Selena morreu, de forma tão estúpida. Com os braços cruzados e o olhar fixo nos seios de novembro/99, a cena se repetiu dentro da cabeça. De novo. E de novo. E então uma vez mais. Em câmera lenta, via pela vigésima vez naquele dia o cabideiro, de metal, pesado, bater contra Selena, que olhava a cidade apoiada no parapeito do apartamento, no décimo andar. O metal bateu contra ela e um grito de dor explodiu de suas cordas vocais. O homem esticou uma das mãos, mas não conseguiu alcançá-la, Selena se virou e suas pernas se levantaram em um movimento inesperado, quase uma dança. Ela caiu, gritando durante cada centímetro até se espatifar no concreto da calçada.
Não teve forças para contar a história para as outras pessoas e nunca desmentiu a primeira suposição, feita pelo porteiro do prédio. Também faltara-lhe explicação para os jornalistas, para a família da mulher morta e, pior, para os jurados. Agora estava apodrecendo em uma cela, contando os dias para que seu coração cessasse de bater. Uma apatia que chegou e nunca foi embora.
Uma única lágrima correu por seu olho direito e ele virou a cabeça, estudando a corda levada para dentro de sua cela pela mula mais conhecida do presídio, material que lhe custou 58 cigarros, uma surra e a virgindade anal. Levantou-se e pulou para o chão. Subiu no monte de livros e colocou a corda no pescoço. Pensou, pela última vez, na sua primeira morte.
Fora uma criança feliz, rodeado por amigos e futebol, colecionava figurinhas de jogadores e matava aula para fumar bitucas de cigarro mentolado atrás da quadra de basquete. Uma infância interrompida por uma carro que fugia da polícia, um monstro de metal que pesava algumas toneladas e que voou pelas ruas, acertando o garoto com o pára-choque duro.
Não tinha lembranças do acidente: quando recobrou a consciência, estava no hospital e duas semanas haviam passado. Enquanto estivera em coma, morto para o mundo que seguia adiante, estivera com o Ceifeiro. Era um homem magro e alto, um rosto de traços fortes, sem expressões temporais. Tinha os olhos vagos e a boca seca, um monóculo no rosto e a mais bela ampulheta em uma das mãos. Apresentou-se como Caronte, mas ele para o garoto, seu nome era Ceifeiro. O homem alto agarrou sua mão com suavidade e o levou para o outro lado. Lá, ele brincou com crianças felizes, andou de bicicleta e jogou futebol. Sempre havia uma partida de futebol daquele lado e mesmo que caísse ou ralasse os joelhos, não podia sentir dor. A comida era saborosa e o vento fresco; as flores cheirosas e ninguém dizia maldades dos outros: eram todos sinceros e simples, amigos uns dos outros, uma amizade que valia o mundo todo.
Então os médicos conseguiram trazê-lo de volta, mas deixaram para trás uma parte dele, a parte que queria seguir vivendo e vencer a vida. Nunca mais foi o mesmo, pois sabia que nada naquela vida tinha valor verdadeiro. Pendurou as chuteiras e parou de cheirar as flores. Elas estavam erradas, como se fossem todas de plástico. Cresceu e foi parar naquela cela imunda.
A vida de um prisioneiro. Sem saídas, sem alívios.
Sentiu o toque áspero da corda contra seu pescoço e chutou para longe os livros, derrubando a coluna que o sustentava. Selena, pensou uma última vez. Balançou, arfou inutilmente e balançou um pouco mais. Morreu sorrindo, por tinha a liberdade novamente.
A primeira coisa que faria? Jogaria futebol.
Enforcado, balançou como um pêndulo desajeitado.
O ar mudou. Não sabia como sabia, mas o ar estava diferente, como da vez em que o carro o atingira em cheio, quebrando mais dedos do que poderia contar com seus dedos. O Ceifeiro apareceu e parou quase tocando seu nariz. Ele era mais alto do que se lembrava. “Eu já te encontrei uma vez, humano”, disse Caronte. “Seu tempo acabou.” Simples, direto.
Faça logo sua mágica e vamos deixar esse lugar horrível para trás, por favor. Por favor!, ele pensou com um corpo já sem vida.
O Ceifeiro tirou uma navalha de um dos bolso e segurou a corda com os dedos finos. O homem sentiu a corda sendo serrada, mas nada aconteceu. Caronte tinha um ar de dúvida, um brilho estranho nos olhos outrora sem expressão. Ele pulava e quicava enquanto Caronte tentava romper a corda, mas nada acontecia. Até que um baque surdo derrubou a navalha quebrada no chão e o Ceifeiro soltou um grito em uma língua desconhecida.
Caronte o olhou novamente e levantou as mãos, erguendo os ombros em seguida. Desculpe, foi mal, ele parecia dizer. Virou-se e desapareceu para sempre.
O homem balançou na corda, balançou e balançou, preso para sempre. Enforcado pelas próprias mãos.

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