terça-feira, 29 de setembro de 2009

À Sombra de Iago

Lambo Iago com a ponta de meus dedos, viro as páginas da tragédia do Mouro de Veneza, torcendo para que a tenacidade do vilão vença e o troféu – triunfal prêmio chamado Desdêmona – caia em sua mão.

A vileza está nos olhos de quem vê, a moral é uma arma pagã para que marionetes não fujam de seu controle. Quero ser o homem que derruba os pinos do boliche. Capaz de destruir estruturas aparentemente estáticas e ilusoriamente sólidas.

Ela esqueceu seu lenço quando passava por mim. Distraiu-se entre um gracejo e outro e, ao cair no chão, eu o recolhi e o pus no bolso. Pouco me importa se seu mouro foi o homem que lhe deu o presente. O lenço me pertence como quero pertencer a ela. Entrar nos poros de sua pele e sugar seu cheiro.

Estou enlouquecendo ou ontem seu olhar dizia algo para mim. Algo mais do que a simples constatação do ver. Era um pedido, a lava do desejo, mais nada. Aqueles olhos ou dissimulam ou chamavam este Iago, Chama-me, chama-me com seus lábios, seus olhares, seu corpo, que deixou seu lenço para trás e me cubro de teu corpo nu. É nele que quero morar.

Um maestro em cima do palco rege uma orquestra. Teu corpo é minha sinfonia. A sua melodia curvilínea Desdemona transformada em deusa do amor. Te chamo de Vênus, enquanto sussurra em meus ouvidos Vamos, esperando que eu a possua.

Oh, volúpia, ardor e desejo que desperta. Quero a paixão viva que escorre dos seus lábios. E que seus lábios provem do gosto do veneno de Iago. Nem que te tenha por caminhos vis, justificando os meios de minhas ação. Nem que o mouro pereça. Meu corpo será seu abrigo.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Desenfreado

Era o segundo dia que tomava lanche em seu escritório. Dois dias sem almoço nem janta em casa. Chegava muito tarde da noite, entre 22h ou 22h30, e degustar alguma janta estaria fora de questão. No máximo um aperitivo, metade de um pão, que nunca seria considerado uma janta de verdade.

Olhou o relógio e encontrou os ponteiros em 1 hora e 11 minutos. Teria uma reunião em menos de meia hora. Voltou a comer os últimos pedaços de sanduiche e deu o gole final em sua Coca Cola de latinha, que por sinal, ele odiava. "A lata a deixa com um gosto ruim!".

Terminado seu almoço, se reclinou na cadeira para descançar alguns minutos. Queria que o tempo parasse e pudesse dormir algumas horas. Na noite anterior tivera insônia e já tinha acordado atrasado por isso. Após cinco minutos, abriu os olhos, aproximou-se da mesa, com a caneta na mão anotou na folha em sua frente: "Tempo, tempo, mano velho". Foi para a reunião.

Saiu com o carro em cima da hora, esquecera seus óculos de sol, foi presenteado com uma dor de cabeça que prosseguiria até o final da noite. As 18 horas, sentiu fome, foi na lanchonete ao lado do trabalho, comeu uma esfiha de frango, saborosa, mas que o aborreceu por ser sua janta. Tomou de novo uma latinha de Coca, reclamou novamente: "Porque não vendem as garrafinhas aqui?"

Voltou ao trabalho meia hora depois. Sentou em seu computador, conferiu dados, massageou a cabeça esperando uma melhora, se distraiu por alguns minutos e prosseguiu.

As 21h30 terminou seu trabalho, estava quase sozinho por lá. Deu adeus aos colegas, um "até amanhã" para o segurança e rumou para sua casa.

Deitado em sua cama duas horas depois, lembrou-se de suas resoluções de ano novo. Uma delas era não ser mais escravo do tempo. Agradeceu que o ano finalmente estava no final, talvez seria por isso que agora teria de correr contra o tempo.

Acordou no horario no dia seguinte. Antes de sair de casa avisou a esposa, dessa vez, depois de dois dias, almoçaria em casa, impreterivelmente.

Saiu de sua casa sonhando com o sabor das batatas e do bife que estaria deliciosamente pronto para o almoço.

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Comentário do autor: Este texto é antigo, de anos atrás, mas veio a tona em minha mente esses dias quando notei quantos amigos tenho a margem do tempo. Correndo sempre como se tivessem em uma maratona e não soubessem quando ela vai terminar. Diante dessa reflexão sobre o tempo e sua dilatação, pensei em republicar esse texto.
Normalmente minha composição textual se dá por momentos que vejo e, em reflexão, escrevo a respeito. Mas, por fim, acabei refletindo novamente nesse texto, por isso a sua apresentação tardia. Não interpretem isso como uma ausência de algo novo e sim de uma releitura mental de um texto.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Vida Como Objeto Pontiagudo

De um lado a aspereza do asfalto contraí a pele de seu rosto, do outro a sola grossa que o deixou no chão produz uma marca além da violência. A sensação de ter as mãos atadas, sem nada fazer. Apenas erguer os braços, gritar inocência e que levem logo a carteira.

Sentimentos como esse vem à tona vez ou outra na escuridão da noite. Em uma noite que parecia ser boa, com lençóis recém postos, um clima agradável para um sono que não vem. Assim os pensamentos flutuam longe.

Se transmutam em uma borboleta horrenda que pousa em seus abismos. Cada retorcida na cama, cada troca de lado, cada amassada no travesseiro é uma manifestação para evitar os pensamentos ruins.

A vida como arma adentrando seu peito parece inevitável. Ontem descobriu a tristeza de uma amiga pelo luto, em menos de um mês perdeu duas pessoas. Ficou sem palavras para lhe dar conforto.

Na rua, dos poucos amigos que vê, não reconhece mais a partícula de si próprio que deixou neles. Seus planos fogem dos planos deles. Planejam juntar trapos, morar em outras cidades – tem a sensação que mais por fuga do que por desejo, velarem seus mortos enquanto outros aguardam a chegada de uma menina. Tempos modernos, dizem alguns. Tempos mudados, ele afirma.

Com as luzes da casa apagadas se torna difícil observar a inutilidade da mobília. Com a claridade tudo parece pálido, como um cadáver. Cada qual em seu lugar. Falta caos, desarranjo nessa harmonia. Tem a sensação que o próximo passo natural é ser um jovem suburbano comum. Uma denominação que não gostaria de se encaixar.

O despertador toca as seis e vinte da manhã. Quando percebe, da porta aberta do quarto, o dia dá sinais de vida, não parecia tão cedo. Dormiu pouco, refletiu demais, dormiu nada.

Um café duplo para reanimar e fazer nascer seu dia, anestesiando os pensamentos. Sanduíche de queijo e presunto, duas fatias de bolo. O caminho para o metrô. Pelo horário de seu relógio de pulso, chegará atrasado ao seu turno.

Seu plantão começa as sete de hoje e termina as treze de amanhã. Seu desejo é que seja fácil, mas sabe que será dificil.

Na porta do hospital, o que o faz prosseguir é saber que nas próximas trinta horas, ele fará o possível para fazer a diferença. Salvar, pensa, quem conseguir com sua aptidão e habilidade.

Passos antes de entrar nas portas largas da emergência ele para, observando a placa de Pronto Atendimento em cima dela. Após um suspiro pergunta-se quando conseguirá salvar a si mesmo.

Fecha os olhos com força, abre-os, coloca o estetoscópio no pescoço e entra na sala iluminada, sorrindo, e dando bom dia a todos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

nostragamus

O último alimento do mundo tinha acabado. Ali, agora, naquele momento mesmo. Houve pânico e horror. Depois, com calma, fúria. O último alimento do mundo tinha sido devorado por um deles, quase na surdina. Rápido como o agudo ruflar de asas. Os outros, pouco a pouco, formaram um círculo em torno dele, do que comera. Dela, na verdade. Uma fêmea.

Era previsto, eles sabiam, era profecia: um dia o mundo não ia mais ter horizontes pra criar outras comidas, outras fontes de nada disso. Ela sabia, em especial: era profecia. Comida a última porção, o comedor seria, ritualmente, posto de lado.

Porque, vejam, não era possível aceitar Aquele-que-devora-sozinho-o-que-é-de-todos. O círculo se fechava em torno da fêmea acuada, tremida, manchada com os restos da Última Refeição.
“Não há mais para onde ir no mundo”, pensavam, “Os horizontes estão fechados e o solo que nutria acabou de acabar. A última gota foi sorvida”.

Ela esperava ser banida, mas não estava pronta praquilo que vinha, pro que ocorreu. Com o alimento ainda no bucho, no centro da roda, a fêmea foi despedaçada pela horda. Tripas, asas, pernas finas foram arremessadas. A gota de sangue que sorvera era, agora, repartida pelos que restavam.

No quarto, morto, um corpo seminu. Em torno, paredes, janelas fechadas e, infelizmente pra eles, nenhuma frestinha por onde pudessem voar.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Natureza Sangue

“…o escorpião, precisando atravessar um curso d'água, pergunta ao sapo se ele pode ajudá-lo, ficando nas suas costas enquanto o anfíbio nada até o outro lado. O sapo alega que será ferroado, mas o escorpião lhe garante que não fará isso, pois senão os dois morrerão afogados. O sapo então carrega o escorpião em suas costas, mas enquanto estão ainda no meio da água, o outro lhe dá uma ferroada. Antes de morrer, o sapo pergunta o porquê para o escorpião. Este responde: "Eu não pude evitar, é a minha natureza"”
A fabula do Escorpião e do Sapo


A astrologia para mim sempre foi uma bobagem, uma pseudociência mal formatada para que mocinhas com resquícios de inocência tracem um paralelo dos problemas de sua vida com as poucas linhas proféticas do horóscopo. Eu não era o tipo de homem que abria o jornal nessa página, mas lá estava a folha estendida sobre minha frente: as casas do zodíaco lado a lado.

Olhei de relance meu signo, e fui interrompido pela secretária, “adoro horóscopo, leia o meu para mim?”. Com uns olhos daquele, ela podia pedir o que quisesse, mas só queria uma breve leitura. Perguntei o signo, “virgem”, respondeu. Com um par de seios daquele, só podia ser de signo.

Ela me interrompeu três vezes para fazer paralelos com sua vida. A cereja do bolo era a última frase, “Para viver bem no amor, é preciso conter seu jeito crítico”. Seus olhos foram para baixo, a boca se inclinou, e ela debruçou sobre a mesa que nos separava. “Me diga, João, eu sou muito crítica para você?”. Camila era minha secretária, diabos. Eu lá prestava atenção em algo mais do que o trabalho razoável que ela realizava e o brilho que ela trazia ao ambiente com seu corpo? Resolvi responder retoricamente, frase de psicólogo. “Você se acha crítica?”.

Camila rodopiou e sentou-se na cadeira, cruzando as pernas, a abertura da saia salientou seu corpo. Falamos sobre horóscopo, eu acho. Retruquei algumas palavras enquanto ela analisava sua vida e voltei ao jornal. A página ridícula da minha frente.

Meu nome me fez voltar a história de Camila, “... é a terceira vez que pergunto, João, o que houve com o seu braço?”. Não pude esconder minha decepção comigo. A manga da camisa erguida demais revelava a mordida. Animal, mamífero, gênero feminino, um metro e sessenta e dois de desejo e selvageria, uma marca ainda roxa no meu braço. “Nada”, tentei esconder e fazer com que Camila voltasse a contar sua história. Vinte minutos depois ela estava sentada em sua mesa e eu com dor de cabeça.

Memórias eram desnecessárias para me lembrar, a marca que meu corpo preservava era profunda o suficiente para doer e avisar aonde me meti nos últimos meses. Mesmo assim fechei os olhos. Lembrando o êxtase de prazer que ela teve ao morder-me. Posei a cabeça nas mãos e pensei novamente, o que diabos você fez nos últimos meses?

Era como uma missão suicida de um policial que se infiltra em uma quadrilha perigosa. Ela não era meu lugar, mas era aonde eu queria estar. Eu poderia dizer que as coisas simplesmente aconteceram repetidamente, mas eu calculei meus passos, calculei até me irritar e decidir que iria vencer a garota.

Ela é do tipo que parece dócil até ganhar o primeiro naco de comida. Depois rosna mais alto que uma cadelinha e mostra-se selvagem. Esperneia, faz escândalos, cada um de seus atos requer uma reação à altura. Uma resposta as suas maneiras desesperadas de obter atenção, de demonstrar que você não valia nada. Eu estava farto. Estava liquidado.

Há histórias em nossa vida em que podemos apenas continuar seguindo-as. Um caminho que, de um lado, está com água até os dentes e a única opção é o outro lado do mapa. Foi assim. Era como caminhar para a prancha em um barco pirata.

Não fui inocente, confesso. Tive cartas na manga e usei uma a uma, até acabar todo o baralho. Apelei para minhas palavras até ela me calar com seus beijos. Usei meu instinto até ela come-lo por completo. Faltou-me emaranhar-me e cortar minha cabeça. Cada ato sádico lhe dava prazer.
Eu era um homem perdido. Apaixonado por uma mulher que tinha doce nos lábios e veneno nas mãos. Meu extermínio era questão de meses, horas. Era esperar e ver. Eu via, de olhos abertos, poderia ver tudo.

Meu olhar disperso, a garrafa de bebida, o cigarro aceso, e a foto que eu faria questão de deixar ao meu lado enquanto a chamasse de cabra vadia. Admirando meu braço. Observando a cicatriz daquela mordida que nunca fecharia por completo.

Camila estava ao meu lado e nem percebi. “Ainda nessa página? Tentado decorar todos para virar um astrólogo?”. Sorri com a piada imbecil e respondi, “rindo de uma ironia, algo engraçado em que não acredito mas que faz sentido”. Seus olhos mudaram de expressão, de súbito, novamente, o rodopio sentando e a cruzada de pernas. Aproximou-se a cadeira da mesa e curvou seu corpo nela. Conjunto completo só para me perguntar: “Posso saber o por quê?”.

Eu ri. E apontei a ela, nascidos entre final de outubro a novembro, escorpiões. “O que tem?”, perguntou novamente. E retirei da gaveta um bilhete de agradecimento, datado de 29 de outubro, escrito por aquela que me mordera: “Obrigado por lembrar de meu aniversário ontem”.

Ela olhou-me com olhar estranho, sem saber correlacionar os fatos. Eu ri novamente, dessa vez de sua estupidez. “Não entende, Camila?” e estendi o braço ferido, “faz parte de sua natureza, o que mais eu posso fazer?”. E escondi novamente a marca com a camiseta. “Agora, se me permite, vou ao almoço.”. E refleti, enquanto vestia o casaco, que era impossível retirar a natureza de certas mulheres, por mais que tentássemos. Assim, suspirei e desejei que minha morte fosse rápida e não tanto dolorosa. Ela sabia que eu já estava em suas garras.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

You Saw Me Standing Alone

A blue moon Billy Holliday.

As fases de sua lua. Nova e perfumada ao descobrir aquilo que não viu. Crescente quando invade um novo lugar para observar, Cheia de mistério de olhos fechados e Minguante quando entra em sua escuridão.

De longe encobre-se. Astrônomos sem talento perdem a minúcia de seus reflexos. Desorientam-se na rotação, na mudança de suas fases. Outros permanecem nos quintais de suas casas, sentados no abismo, observando a luz azulada que sai de seus blues. Sua voz doce e rasgada.

Poetas fazem da lua sua amante bailarina. São dançarinos enquanto ela muda suas faces. Se espantam, se alegram, se embriagam. Mesmo a milhas de distância.

Lua, satélite, luz, loucura, esfera. Além das fases, é ela. Lua em forma de dúvida, canção vestida de poesia noturna. Êxtase que cala todas as palavras na escuridão.