quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Como Durazzo Recomendou

"nesta semana
não escreverei
vivais vós as vidas
de vocês"

Leandro Durazzo, sem título, in Mísera Mesa


nesta semana
não escrevi
porque estava
fazendo sexo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

julio

- É por isso que meus pés estão sujos de lama. Estou te dizendo, andei duas horas naquela floresta, com a cara no sol e a sola da bota batendo no barro, estou te dizendo. Não sei quê me deu, só sei que fui - como sempre.

O interlocutor bebia calmamente, fumava um cigarro sob o aviso de "é proibido" e olhava o amigo. Além das lamas nas botas, o amigo tinha a alma na lama, isso era fato. Ao menos ontem, pensava o interlocutor, ao menos ontem ele estava na lama. Mas agora...

- Desci do ônibus e vi uma trilha por entre as árvores, pra lá da cidade. Era outro caminho, não sei bem pra onde, era um caminho sem estrada asfalto fumaça sem gente e com mais sol que o normal na cidade. Sei lá. Só sei que fui.

O narrador sorria. O outro pensava, entre um gole e outro, que ele talvez não estivesse mais com a alma enlameada. Fumava.

- E por duas horas andei ali, seguindo a trilha, às vezes direita, às vezes esquerda, pisando nas poças e, volta e meia, parando um pouco pra olhar o lugar. Era engraçado, sabe? Aquela floresta cheirava a igreja. O cheiro bom de igreja, cheiro de incenso de igreja, mas tinha mais sol e brisa, e os pássaros cantavam. Andei lá por horas. Duas, acho.

O interlocutor era silêncio. A floresta também.

- Só sei que, quando vi, estava ao pé de uma igreja enorme, já fora da mata. Não sei. Uma igreja enorme. Durante o caminho minha cabeça parou de girar e pensar em mil coisas, lembrei a cada passo de apenas pensar em andar, durante a floresta eu não estava preocupado com nada e a mata cheirava a incenso. Chegado na igreja, não sei... as coisas mudaram. Lá não havia silêncio, tinham pessoas demais e o padre falava pelos cotovelos.

Ambos se olharam.

- Quando olhei pros meus pés achei que não havia lama suficiente. A trilha continuava chamando, em silêncio. Eu gosto de conversar assim.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De Frente Pro Crime

As duas iniciais do nome estamparam jornais. No caderno Cotidiano, em reportagem mirrada, o texto narrava desde a abordagem, passando pelo breve cárcere enquanto as ligações para a família aumentavam. Um dia inteiro em pânico que tivera sorte, com um final feliz para a moça.

Ao lado dessa notícia, mais três estavam sobre a mesa da sala. Dispostas lado a lado e recortadas com esmero, dignas de um caderno de recortes. Como ele pediu, a identidade da esposa fora preservada. Uma notícia errou a idade, outra informou uma agressão física que não existiu. Ele pensava que a violência psicológica já era o bastante.

Era tarde da noite. Caminhou até o quarto do casal e observou a esposa. Sentou ao seu lado na cama, vendo a respiração subir e descer. O copo d´agua estava pela metade. Fora ele que, três horas atrás, lhe trouxera para que tomasse os sedativos. Recomendação médica para o ataque que ocorrera há dois dias.

Sua jaqueta brilhou no bolso localizado do lado esquerdo. Era possível ouvir um leve zumbido. Caminhou para fora do quarto, fechou a porta silenciosamente com cuidado e clicou o botão atender do celular.

Poucas frases foram ditas. Cessou a ligação, foi até a sala, pegou as chaves e desligou a tevê que, até então, estava emudecida. Saiu de casa com medo de confrontar o porteiro a uma hora dessas. Desceu pelas escadas para evitar o velho elevador barulhento. No térreo, pela janela de vidro, observou se Jeremias estava na portaria. O velho, as vezes, tirava uma soneca no quarto ao lado. Mas o sono era leve, não era ruim no trabalho.

Intensificou sua própria expressão de cansado, preferindo exagerar os fatos como uma desculpa. Abriu a porta da escadaria sentindo-se estúpido por ter evitado o elevador. Se conversaria com o porteiro de qualquer maneira, porque pegou outro caminho, como um espião que não era. Assistia televisão demais, pensou.

Jeremias perguntou de sua esposa. Respondeu mentindo sobre o horário que lhe deu os sedativos. Bem como mentiria sobre aquela saída. Insone, procuraria algo para comer. No bairro que estava havia alguns locais com atendimento vinte e quatro horas. Era apenas uma desculpa, mas fez questão de soar verdadeiro.

Saiu do prédio atravessando imediatamente a rua. Dobrou a esquerda e encontrou o sedam azul escuro no local combinado anteriormente. Achou engraçado a seqüência de idéias. Rua escura, carro escuro. Parecia tão óbvio. Sentou no banco traseiro. O homem que estava ao volante se inclinou para fitá-lo nos olhos.

Eu tenho cara de motorista, Fábio?

E assim, foi para a parte da frente. Perguntou sobre o amigo do homem do volante, aguardando a resposta que ansiava. Estava no outro ponto de encontro, como desejado.

O tráfego estava calmo a essa hora. Ruas desertas. Pensou que a cidade poderia ser dessa maneira também às quatro da tarde. Um ninho vazio. Conforme reconheceu a proximidade do local de chegada, seu estômago embrulhou. Não recordou quando fora a última vez que tinha colocado algo na boca. Talvez na conversa com a polícia anti-sequestro tenha tomado um café. Sim, tinha. Lembrou-se das bolachas duras e adocicadas.

Que foi, Fábio?”, perguntou o homem do volante.

Azia”, respondeu.

O homem abriu o porta luvas e lhe deu uma barra de cereal. “Coma, meu filho deixou aí mais cedo. Tenho milhares dessas em casa, o garoto viciou”. Fábio comeu para não sentir-se mal. Não tinha fome.

O carro prosseguiu em linha reta por mais dois quarteirões e, subitamente, virou a esquerda. Uma rua escura seguida de outra rua escura. Lembrou-se da obviedade do sedam lhe esperando na penumbra.

No final da segunda rua, havia um carro parado em transversal. Era um automóvel velho, enferrujado, que se não tivesse com um dos faróis acesos, lhe daria a impressão de ser inútil como veículo.

Ao pararem o carro, o homem do volante saiu de súbito. Fábio permaneceu no carro, compondo a coragem pela respiração. Ainda sentia o sabor dos cereais nos lábios. Saiu.

Pelo colarinho, Jorge segurava um homem. Utilizando o encosto do banco da frente como proteção entre ele e o meliante. Fabio lhe deu um aceno respondido com um meneio de cabeça.

O homem do volante se aproximou. “Fábio, você tem certeza?”. E no escuro, parecia que seu rosto apresentava alguma dúvida.

Tenho sim”, respondeu e ficou em silêncio.

Olha, te direi. Isso muda a gente. A primeira vez que numa diligencia observei um homem sangrar... Confesso, fiquei algumas noites sem dormir, exagerando no café para evitar o sono... Acostuma-se, claro. Mas você não parece homem disso. Se quiser desistir, há duas quadras daqui tem um boteco. Nos espere lá que, em vinte minutos, terminamos o serviço”.

A polícia anti-sequestro conseguiu resgatar Marina, sua esposa, as 20 horas de uma terça feira. A descrição que fez de um dos sequestradores não era precisa. Mas evidenciava uma cicatriz na sobrancelha e outra no queixo que parecia mais um estilo do que um símbolo de violência. A imagem pictórica trouxe aos históricos policiais um homem procurado em mais dois sequestros e um latrocínio. Conhecida figura carimbada, cujo nome popular era Mágico.

Era um apelido sem graça. Porém, como os registros de seus crimes tinham um espaçamento de dois anos cada entre eles, a polícia supôs que, a cada quebra da lei, o homem desaparecesse, como mágico. E, atraído pela podridão da metrópole, voltava talvez tentando uma boa vida mas caindo naquilo que sabia fazer bem.

Era quarta-feira. Portanto, dia seguinte ao resgate de Marina quando Fábio prestava seu depoimento final ao delegado. A notícia da prisão do meliante chegou ao seu conhecimento na hora, por um policial indiscreto em relatar o acontecido. Esse policial era Jorge. Imediatamente seus olhos tornaram-se revoltosos. Queria matá-lo. Fazê-lo sofrer como a esposa sofreu durante o sequestro.

Não foi preciso muito para convencer os três envolvidos na prisão do meliante de que o melhor a se fazer seria acabar com aquele sequestrador. A polícia, palavra de um deles, poderia fazer isso, sem problemas. Mas com o salário baixo, um incentivo sempre é visto como positivo.

Fabio não hesitou em suas economias. Retirou o que pode do banco e, um dia depois, ofereceu a policial que, na ocasião, também estava ao volante. “De bom tamanho”, respondeu. “Bem simbólico. Normalmente fazemos por mais. Mas estamos ao seu lado. E, assim, tem a garantia de que prestaremos um bom serviço ao senhor”.

Fora essa história que relembrou naquela escuridão. Olhou para o bandido e sua raiva explodiu. Aproximou-se do meliante. Um de seus olhos estava inchado e outro parecia ora disperso, ora com medo. Desejava uma resposta dele.

Me diga, por favor, porquê?”. Tentou ser firme, mas parecia suplicar ao bandido.

Fábio buscava uma razão superior, diferente daquela que sabia que seria a resposta. Facilidade, dinheiro, drogas, o que fosse. Não importava. A resposta que procurava não estaria lá. Pela inércia da resposta do homem, Fábio ergueu a mão esquerda e lhe bateu. Um estampido forte em uma das faces do homem. Não sangrou, mas deixou o bandido assustado, centrado naquela situação que deveria saber que seria definitiva.

Fábio, Fábio, o que é isso? Nós prometemos outra coisa. Conseguimos até o carro para parecer outra coisa”. Pela primeira vez, Jorge falava desde o outro encontro. Era o mesmo que tinha colocado o pés pelas mãos e avisado, sem querer, o marido da vítima que o sequestrador estava preso. Seu silêncio até então parecia uma espécie de punição própria por falar demais.

Fábio se recompôs e foi para o espaço combinado, atrás da cena. Desejava ser apenas um expectador. Encomendar a morte do bandido seria funcional, mas não lhe daria uma realização completa. Precisava ver. De longe, acenou com a cabeça para o policial falastrão, era o sinal de que tudo poderia ser realizado.

O homem do volante aproximou-se de Fábio estendendo uma das mãos, um contrato entre homens. “Espero que com isso fique em paz”, lhe disse.

O reencontro de Fábio com a esposa, ainda na divisão anti-sequestro, fez seus olhos se encherem de lágrimas. Enquanto o peito, ainda aprisionado pela dor, precisava se libertar de algum sentimento até então desconhecido. Observar a esposa em agonia, sem dormir até o nascer da madrugada, o transformou em um homem infeliz, decidido a ir a um ponto extremo. A gota d água fora quando, no dia seguinte, viu o bandido sendo preso, gritando que nada fez.

Fábio?”, chamou novamente o policial.

Sim, ficarei”. E continuou a fitar o meliante, ainda que de longe. Tirou os óculos do rosto, limpou-o na camiseta e novamente pôs seus olhos nele. Queria gravar todos os detalhes da cena. Pensou que o seqüestrador deveria ter ido embora. Mas, provavelmente, ficara na cidade para comer alguma vagabunda antes da fuga.

O policial poderia discursar. Dizer que não reconhecia a diferença entre polícia e bandido, bom e mal, mas afirmou apenas que gostava daquele momento. Da pequena vantagem de destruir a escória. Utilizaram uma arma recolhida em uma invasão de um morro. Arma que não está nas fotos iniciais nem no relatório. Era velha, pesada, mas funcional.

Clemente, Jorge lhe perguntou se haveria algumas últimas palavras. Ouviu Fábio gritando de longe.

Espero que você vá para o inferno e pague tanto aqui quanto lá pelo que fez, filho da puta”. Depois se arrependeu de ter gritado. Alguém da redondeza teria ouvido? Provalmente, não. Local ermo demais.

Foram três disparos rápidos em direção ao meliante. Em um deles a arma vacilou, mas dois o acertaram em cheio fazendo sua cabeça explodir e pintar um dos vidros do carro. Aquela morte, dentro do carro velho, pareceria acerto de contas de um traficante da redondeza. Uma estratégia fácil.

Fábio prendeu a respiração, deu um rodopio e ficou de cócoras. Agredido pela alta dose de adrenalina e medo. Vira um homem morrer e, pior, fora graças ao seu comando que perdeu a vida. Levantou-se novamente e caminhou até o morto. Mesmo ensanguentado conseguiu distinguir um fio de expressão nos olhos, imagem que seria gravada em suas próprias retinas.

Sua esposa está melhor?”, perguntou Jorge.

Sim”, respondeu Fábio.

Tome cuidado da próxima vez. Não é sempre que damos a sorte de flagar o imbecil quase cometendo outro crime e ainda topar com a vítima do anterior”, e fora a vez do segundo policial lhe dar uma das mãos como firmamento.

A viagem pareceu demasiadamente demorada. Sentia fome novamente. Nova fome renovada. Pediu para que o homem do volante parasse o carro a cinco quadras de sua casa. Comeria um lanche em um carrinho e de lá voltaria a pé.

Encomendou para viagem, assim estaria em casa com mais rapidez. No prédio abriu a porta com a própria chave. Jerônimo cochilava e assim era melhor, evitava perguntar. Foi de elevador para seu andar.

A luz da sala estava acesa. Não lembrava se apagara ou não. No quarto, a esposa dormia na mesma pose, com o mesmo respirar, o copo d´agua sem nenhum outro gole.

Pôs o lanche sobre as notícias recortadas e mastigou-o em longas mordidas. Aos poucos, o alimento foi engordurando as notícias. Mas não se importava. Daquele momento em diante elas não serviriam mais para nada. Contavam apenas um fato que tentariam esquecer que aconteceu.

A vítima M.A. foi assaltada e sequestrada na saída de um conhecido mercado da cidade. Leu em um parágrafo aleatório. “Não mais”, disse a si mesmo. Fizera questão de tirar esse homem de circulação, dessa para a melhor, pensou. Não se sentia infeliz ou ruim por isso. Demoraria um longo tempo para que sua esposa voltasse ao normal. Achou necessário que o meliante pagasse um preço por isso.

O sanduíche gordo de carne, bacon e queijo desceu macio. Ligou a televisão e com os pés derrubou a notícia e a embalagem da comida no chão. Amanhã tudo estaria em paz.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

a zia

Ressaca. O salto da garçonete parece batucar no assoalho de sua mente. Madeira. Ponta de ferro. Ponta de ferro? Ponta de ferro. Um novo modelo, supõe. Algum desses saltos da moda, da estação. Que estação, a propósito?

Primavera quase verão? Outono quase inverno? Não sabe, de fato. Só ouve o sapato. O toc toc se aproximando, pelo menos, é sinal de que a bebida vem. Foda-se a batucada.

Quarta-feira de cinzas sem carnaval. E numa segunda. Pior que nem é a primeira vez. Qual será?

Sabe não. A cachaça chegou e os saltos batucam pra longe. No fundo da mente um demônio espera o banho de álcool. Marcílio bebe de um gole e, com o fósforo aceso, incendeia a si mesmo. Por dentro. Que o demônio vá pro diabo que o carregue.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011


Marry me


Sim, amar é a coisa mais doce que existe.

Mas há ocasiões em que é imperativo saber abrir mão do amor, por maior que ele seja.

Quem já fez, como eu já fiz, algo equivalente a pintar uma bicicleta com canetinha vai entender o que estou querendo dizer.




Em tempo: o curta é velhinho, de 2008. Hoje o menino nem deve mais ter aquele mullet estilosão. Direção de Michelle Lehman.


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Desejo

Desejei com todos os motivos que me destes pra desejar.
Nada se consumou.
Morreu.
Chorei.
Com todas as magoas do meu pobre coração motivado por ti.
Não evaporaram-se minhas lágrimas.
Molhado vaguei por aí.
Destruído por desejar.
Desfaleci.
Algum tempo depois me vi internado.
Me tranquei por muito tempo.
Tanto tempo para te apagar.
E retorna agora para me atormentar ?
Me dá mais motivos para não se confirmar.
Não considera a possibilidade de sumir e nunca mais retornar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Encontro Amoroso

Quando se encontraram a atração fora quase imediata. Não eram tímidos e sabiam aquilo que queriam. Estavam dispostos na mesma equação e na mesma sintonia. Conversaram, inicialmente tentando parecer por acaso. Depois desenvolveram uma espécie de elo, buscando consensos em comum, maneira de dizer “sim, temos uma conexão”. E, duas horas depois de tal diálogo, beijavam-se pela primeira vez.

Eram dez horas da noite quando ele derrubou os livros de cima da cama, para dar um espaço para eles. Talvez tenha dito que nunca se sentira assim antes. Era bobagem, ele sabia e ela, se não soubesse, enganava-se.

Enquanto ele a despia, ela temerosa tentava lhe dizer: tenho algo a lhe falar, é importante. Dane-se, pensava. Qualquer coisa que poderia ser dita, poderia ser dita mais tarde. No início, imaginou que seria algo bobo. Poderia ela ser virgem? Não. Impossível. Ele reconhecia aqueles olhos de caçador que observa a caça, como ele a tinha olhado também.

Ela tentava, mas ele irrompia em beijos. Não queria obstruir a ação com um comentário sobre sexualidade, algum problema psicológico ou nada no estilo.

Meia noite, já vestidos, trancou a porta da casa e a levou, a pé, para a casa dela. Ainda era romântico. No fundo, bem no fundo.

No dia seguinte, ele acordou feliz. Tivera uma noite excelente. O telefone tocou, era ela. Após se identificar, as frases se coincidiram. Ambos tinham o que dizer. “Diz você primeiro”, ela pediu.

- Tenho algo para você, comprei hoje, e você?

- Eu não.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

o homem da gravata florida

Doutor Oséas sentado no canto do palco, ao pé do piano, tomando uísque. Oséas feliz arrogante e triste, embora a tristeza não desponte de todo. Oséas tomando outro uísque, o terceiro, passando a mão no traseiro de Ana. Garçonete.

Joshua enxuga seus copos e olha de rabo de olho a Oséas. Filho da puta, merda, pensa ao balcão. Queria expulsar esse Oséas daqui, maldita hora em que precisei de ajuda, maldito dinheiro, filho da puta, Osé arrogante Osé arrogante Osé arrogante.

O doutor coloca os pés sobre o palco, que é baixo o suficiente para não distender nenhum nervo, nenhum nada. Oséas é velho e orgulhoso, com seu dinheiro no bolso e os pés balançando no palco, na cara do Otávio, pianista da banda de hoje. Macacos Molóides cover, o nome da banda, e tocam demais. Otávio é negro e bom que nem o Ray Charles, mas não é cego. Só de um olho, verdade, um olho é de vidro.

Joshua quebra uma taça enquanto a enxuga com raiva nos olhos olhando Oséas. Corta o dedo, Merda!, Diabos!. Ele aparece, então, e Joshua vê entrar pela porta um engravatado, mais velho que Otávio mas menos que Osé. Joshua não sabe quem é, mas desconfia. Já o vira outras noites ali, a beber. Pagava bem e não molestava ninguém, então era um bom cliente, isso era.

O da gravata vai direto à mesa do palco, onde Oséas está, puxa um cadeira, acende um cigarro, senta com ele e sorri para Otávio. Bate no pé gordo Oséas e faz com que caia de cima do palco, sapato de couro caro caindo no chão com estrondo. Maldito, pensa Oséas, já não mais sorrindo.

Maldito momento em que precisei de dinheiro, Joshua continua a pensar. Ana sabe que se não fosse por isso, por esse momento, o gordo doutor já seria há muito expulso do bar. O Clube não é um lugar para gente arrogância.

- Que pensa que está fazendo, moleque? - pergunta o doutor.

O homem da gravata sorri. Agora Osé pode ver que a gravata é florida, numa combinação de cores que ofusca as vistas. Maldita gravata, maldita gravata.

Hoje é o dia das maldições.

- Estou sentado, meu amigo, senhor, estou sentado ouvindo o bom som. Ouves? Esse menino aqui do piano parece um amigo que tive há um tempo, um preto velho que via pouco e tocava muito.

O doutor Oséas não estava ali para conversar, decididamente. Quando saía de casa, à noite, queria apenas beber e botar suas botas na cara de alguém, rir com desdém e se impor sobre o mundo. O homem da gravata, Meu Deus, mas como é bonita esta gravata!, estava estragando sua noite, e o nobre doutor já não tinha mais paciência.

Depois de beber seu gim o homem da gravata sorriu e levantou da mesa. Vou ao banheiro, senhor, logo volto. Cá estarás?

- Ora...

Foi o que Oséas pôde dizer. O homem foi e, estando ausente, deixou o doutor a pensar nas poucas e boas que ia falar assim que voltasse, o homem daquela magnífica gravata. Ainda sozinho na mesa, fechou os olhos e acendeu vagarosamente seu charuto, colocando de novo os pés sobre o palco, aos pés de Otávio.

Sentiu seu pé queimar, por dentro das botas, por dentro do couro. Não sabia se o que queimava era o couro sapato ou o coro do próprio pé. Na dúvida, seus reflexos fizeram o que qualquer reflexo faria e puxaram os pés de volta para baixo da mesa. Quando abriu os olhos estava ali, à sua frente, o homem engravatado. Sorrindo.

Otávio parecia num transe louco, tocando feito um demônio.

Doutor Oséas tinha pensado, mesmo que pouco, nas poucas e boas que ia dizer ao recém-chegado. Petulante, debruçou-se sobre a mesa e começou:

- Olha aqui, rapaz, com quem você pensa que está falando?

O homem sorriu, as cores da gravata tremularam e, cobrindo a mão de Oséas com a sua própria, em cima da mesa, o engravatado piscou para Joshua.

- Não penso. E com o quê você pensa que está falando, meu bom homem?

As mãos sobrepostas amassavam a brasa do charuto, que queimava lentamente a carne do gordo e soltava no Clube um cheiro fraco de enxofre. A atenção do lugar estava em Otávio, desvairado, tocando como num concerto internacional.

Outro copo quebrado, outro corte na mão, Joshua percebeu então que seu Osé não estava sentado. Não estava, na verdade, em canto nenhum do bar. Talvez lá fora, pensou. Mas lá fora não é problema meu. Depois de apanhar a gorjeta da gravata, Ana teve uma noite tranquila e leve como não tinha há muito tempo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Lúcifer

A vermelhidão do céu
(são) resquícios do caído
sinal de morte recente
marcando a verdade nua.

Lúcifer caído está
sofrendo e perdido está
em um labirinto imenso
preso e derrotado está.

O ser de luz é de trevas!

Ele, que um dia já fora
na hierarquia divina
somente abaixo de Deus,
Agora contenta-se
com a baixeza do Inferno?
Jamais!
           Ele almeja o Céu!
E como não pode tê-lo,
Reina, no inferno mas Reina.

Deus, sentado no imenso trono,
ri com um sorriso cruel,
misto de benevolência
e soberba, como tendem
a ser os seres maiores.

E o anjo da luz, tristemente,
desafiadoramente,
do alto de sua soberba
de primeiro dos caídos,
olha para o alto e diz:

"É melhor reinar no Inferno,
que ser escravo no céu!" *






* Better to reign in Hell, than serve in Heav'n. Paraíso Perdido de John Milton, livro I, verso 263, tradução própria feita em cima da edição The Complete Poems da editora Penguin.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Lixeratura

ou nanocontos sobre a arte.

I
Um homem sentado em uma praça tinha a sua frente uma placa que anunciava: troco poemas por alimento. Morreu de fome.

II
Em São Paulo, no shopping mais caro da cidade, há uma livraria. As pessoas passam, olham suas capas procurando objetos de decoração. Figuras que deixem a casa mais bonita.

III
Escrevi para ela um poema de amor. Ela me largou antes que dissesse "eu te amo".

IV
Terminou a última frase da estrofe, finalizando a declamação do soneto. A garota, extasiada, lhe disse: "Adorei. Mas não entendi".

V
- E, o que você faz?
- Sou escritor...
- Só isso?

VI
Neruda, Dickens, Wilde, Poe, Nabokov. Poemas em decassílabos, solilóquios em quatro atos. E, eu? O que faço com essas palavras?

VII
O menino chegou da escola, dizendo para a mãe que a professora disse que faz bem ler. Ela pediu silêncio, pois a novela tinha recomeçado.

VIII
Atualmente, a única maneira das pessoas sorverem palavras é tomando uma sopa de letrinhas.

IX
Marcaram um encontro na livraria. Ele, para impressiona-la dizendo que era um leitor. Ela, pelo café descafeinado e o pão de queijo quentinho.

X
Se não fosse pela literatura, estaria sempre no mesmo lugar.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Business Class

Pouco depois de o piloto anunciar aquela ladainha toda sobre apertar os cintos, máscaras de oxigênio e aparelhos celulares, a rotação das turbinas aumentou e o vôo finalmente partiu, uma hora de atraso. Pelo menos a companhia tem um serviço de bordo decente e, assim que os desfavorecidos da classe veterinária passaram e foram para suas cadeiras, já que chamar aquilo de poltronas é muita boa vontade, a aeromoça, ou comissária de bordo, ou enfim a belíssima dona daquele sorriso industrializado veio solícita me oferecer um drink. Vinho, por favor, branco e gelado de preferência. Não, nada para comer ainda, obrigado. As pernas da aerocomissária que se afastava, por outro lado, não pareciam industrializadas, mas hoje em dia é difícil dizer com certeza. Um vinho seco de sabor argentino e agradável, mais um sorriso com número de série e lá se vão as pernas, me deixando com cinco horas de viagem e nenhuma disposição para ler, escrever ou assistir qualquer coisa.

Três taças de vinho argentino já se foram, deixando-me com essa sensação crescente de que puedo hablar castellano. Uma pena, ou quem sabe uma bênção, não haver nenhum Hermano do meu lado, poderia ser divertido, ou talvez nem tanto. Quando considero erguer a mão para que as aeropernas venham me trazer mais vinho, meus ouvidos são fisgados por uma conversa empolgada e em tom de voz discreto, de cujas palavras não pude entender nenhuma. Árabe? Caramba, porque é que sempre que ouço um idioma estranho em um avião penso em um árabe? Não, não é árabe, é algo mais rude, mais agressivo. Russo, talvez? Sim, russo, é bem provável que sejam russos, ou ucranianos, ou eslavos, enfim.

Agentes secretos desfarçados? Não, estamos justamente evitando clichês, droga. Analistas de software, ucranianos. Tinha um antivírus com nome eslavo, mas não lembro qual. São gays, se conheceram na faculdade de computação, em São Petersburgo, o de voz mais grossa já devia namorar garotos desde a escola, mas o de voz mais fina provavelmente só se encontrou quando conheceu o Yuri. Yuri Gredenko?

Ok, parece um nome melhor que "russo da voz grossa". Yuri e Ivan começaram a namorar no último ano da graduação, e entraram juntos para a empresa de antivírus lá, caramba, não lembro mesmo a porra do nome.

Não importa. Começo a me divertir tentando imaginar o que falam, mas em poucos segundos minha brincadeira é interrompida pelo deplorável choro de uma menininha, cinco anos talvez, que protesta desconsolada para uma avó com paciência homeopática. Pelo menos falavam em português. A matriarca, dançando entre o aborrecimento e a vergonha, tenta subornar a criança por silêncio uma, duas, três vezes. Mas aparentemente meninas de cinco anos têm muito pouco interesse por revistas de turismo, filmes legendados ou miniaturas plásticas do Cristo Redentor. Buscando forças na pequena miniatura, a senhora tenta explicar à menina que normalmente crianças não voam de avião, e é por isso que a telinha tem filme, mas não tem vídeo-game. Por um momento, com três taças de vinho a me dar apoio moral, quase me levanto e declaro meu apoio à menininha. Deus sabe que não faria mal a ninguém se instalassem um Playstation em cada poltrona. Mantenho-me quieto, a menininha reclama com demasiada convicção para ganhar minha simpatia.

Os pais, provavelmente, são empresários, ou executivos, quem sabe diplomatas brasileiros morando na Europa. A menina foi passar as férias com a avó no Brasil, para fugir do Inverno, ou melhor ainda, deve morar com a avó. Sim, os pais se mudam constantemente, vivem mais em hotéis que em residências, trabalham muito e em horários irregulares, e não queriam a filha crescendo nessa loucura. Foi morar com a avó materna, claro, porque os avós paternos não queriam nem saber da pequena encrenca. Como não podem criar, tentam compensar nas férias, e dinheiro para tanto não deve faltar, afinal de contas só o preço da passagem aérea aqui da First Class já é um assalto seguido de estupro e homicídio. Com essa voz, e esse histórico, a netinha da dona ... dona ... Nídia, isso, dona Nídia está bom. Enfim, mimada e irritante como é, a netinha de dona Nídia só pode se chamar Victoria, com c ainda para coroar a prepotência. Se eu fosse dona Nídia, chamava as aeropernas e pedia logo dois duplos de Bourbon sem gelo, uma pra mim e outra pra Victoria, que só ia acordar quando a despachassem pelo setor de cargas.

Levanto-me para ir até o banheiro. No caminho, dou uma olhadela para a menininha. Pele clara, cabelos ruivos em corte Chanel e pequenas sardas enferrujadas nas bochechas. Se não se chamar Victoria, pulo esse avião agora mesmo. O banheiro é apertado, que é para nenhum fundamentalista árabe poder usar como laboratório de explosivos. Toda vez que uso o banheiro, toda santa vez, dou descarga e não consigo deixar de imaginar o avião desovando o embrulho em pleno vôo, que nem uma pomba metálica de centenas de toneladas. Seria divertido, pelo menos para quem está aqui em cima. Lavo as mãos, fecho a porta do banheiro e só então percebo o casal sentado em uma das primeiras fileiras. Ela, quarenta e poucos anos, tão alemã que poderia dizer-se descendente de Otto Von Bismarck. Pálida demais para mim, mas com olhos de um azul cinzento e profundo como os céus de Berlim. Ele, não mais do que 30, mulato retinto, trigueiro, de queixo quadrado, nariz largo e olhar manso como a brisa matinal de Ipanema. Mãos dadas, dedos entrelaçados, e um olhar afetivo da senhora germânica para com o "Menino do Rio" que de maternal, não tinha sequer a perninha do M.

Pois é, eu tentando evitar clichês narrativos, mas as pessoas no mundo real também não ajudam em nada. Quando jovem, a senhora se chamava apenas Karen, e em uma Alemanha falida com o fim da Segunda Guerra, não pôde desperdiçar a chance quando um velho banqueiro declarou a seus pais o interesse em desposá-la. Foi, aliás, o que salvou a família da fome, razão pela qual Karen permaneceu casada, fiel e infeliz com o velho judeu mau humorado e suas repetitivas histórias da guerra até o fim. O fim dele, bem entendido, que morreu de enfarto aos 60 anos, deixando para trás uma mulher de 40 com alguns milhões de dólares e uma vida inteira para recuperar. Nem é difícil imaginar atrás de que veio ao Brasil, e as alianças douradas me confirmam uma velha hipótese de que, com a quantia, o contexto e a abordagem corretas, nem mesmo o coitado do amor verdadeiro escapa às garras do vil metal nesses tempos de globalização. O rapaz, de nome Wéber, é conhecido em Botafogo como Araketu, filho de Mestre Mingo, grande sambista e capoeirista querido por todos. Wéber tinha três irmãos, um cachorro vira-lata e músculos amplos e bem definidos, mas nem o mais vago conhecimento da Segunda Guerra Mundial ou de quem pudesse ser Max Weber, razões todas pelas quais Karen Schneider apaixonou-se perdida e irreversivelmente, tornando-se em poucos meses a senhora Karen Baden-Meyers assinava os documentos brasileiros que, além de garantirem a cidadania alemã de Wéber-Araketu, tornavam-na a senhora Karen Baden-Meyers Dias da Silva. Imagino o que o senhor Jakob, no céu dos judeus, pensaria disso, e deixo o casal para trás, caminhando de volta em direção ao tédio da poltrona.

É quando uma turbulência atinge o avião. Não uma pequena turbulência, pois para quem está no lado dos passageiros, preso numa caixa de metal cheia de gasolina e sem nenhuma informação sobre o que está acontecendo, não existem turbulências leves. A idéia de correr para a poltrona e apertar o cinto me vem à mente, mas francamente, aqui em cima o pior que pode me acontecer é cair no chão do avião, e se o avião por sua vez também decidir cair, não vejo como uma poltrona e um cinto poderiam me ajudar. Quando o característico e inconfundível aroma de pânico começou a ser sentido, no entanto, a voz do piloto veio, tranqüilizadora. Senhores passageiros, estamos passando por uma pequena turbulência, que não deve durar mais do que alguns segundos.

Permaneçam em seus assentos e não se preocupem. Pronto, nada como a voz do piloto, hein? Se eu tivesse uma companhia aérea, programaria os aviões para reproduzir essa mensagem automaticamente em qualquer turbulência, mesmo que o avião fosse cair. Se as pessoas vão morrer de um jeito ou de outro, que pelo menos sintam-se em segurança, oras.

Sento em minha poltrona e aperto o cinto, ainda com a queda do avião em mente. Não, o avião não está caindo, ou já estaríamos abaixo das nuvens, o que posso ver pela janela que não está acontecendo. Mas e se caísse? E se o piloto de repente voltasse aos alto-falantes e retificasse: Senhores passageiros, informamos que houve um erro nas últimas checagens. Na verdade, três das quatro turbinas pararam de funcionar, atingidas por uma revoada de urubus, e duas delas já estão em chamas. Como já estamos longe demais do continente, é provável que venhamos a cair em meio ao Oceano Atlântico, isto é, se a aeronave não vier a explodir ainda no ar, claro. Pedimos sinceras desculpas pelo transtorno.

Imagine só, formaria-se primeiro aquele silêncio completo, como que esperando o piloto completar a piada. Então, dona Nídia agarraria a netinha com a mão esquerda, o Cristo Redentor de plástico com a direita, e gritaria a plenos pulmões: Ai minha Nossa Senhora! Vamos morrer!!! E então, o caos, o empurra-empurra, a gritaria histérica das mulheres, Yuri abraçando o namorado e fazendo a última jura de amor.

Então, a asa direita explodiria, colocando o avião para cair em parafuso descontrolado rumo ao chão. Segurando-se em mim, a aeromoça e seus sorrisos industrializados debatiam as pernas como que procurando um chão, justamente a última coisa a se desejar em uma hora dessas, enquanto o Araketu tentava agilmente pular para a cabine do piloto em busca de um pára-quedas sem grande preocupação aparente com Fraulein Baden-Meyers Dias dos Santos que se agarrava em suas calças. . E enquanto dona Nídia procurava em sua bolsa uma cópia de bolso dos Salmos, a porta principal se abriu, descomprimindo a câmara e levando a pequena Victoria voando e reclamando para fora. A aeronave já chegava próxima do mar, da colisão final que encerraria a cena em um grand finale, quando ouço, distraído, a voz das aeropernas perguntandoem inglês ao Yuri e ao Ivan:

"Senhor Arileya, senhor Zabala, gostariam de ver o cardápio do jantar?"

Arileya. Zabala. Sobrenomes bascos, provavelmente de Bilbao. Não me consta que haja grande número de Yuris, Ivans ou analistas de segurança de dados no país Basco. Diabos, vou ter que começar tudo de novo. Suspiro e peço mais vinho. Ainda restam quatro horas de vôo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

quietação

José tinha dois papéis nas mãos. Na direita, um bilhete ou um poema. A garçonete não sabia dizer olhando assim, de longe. Na esquerda era um poema, com certeza. José tirara da grande mesa literária à entrada do Clube, onde poetas vagabundos deixam suas poesias vagabundas para ver se, algum dia, alguém os lê ali. No Clube é desse jeito: entre e faça o que quiser. Se Joshua não gostar, te enfia um pontapé no rabo e nunca mais te abre a porta. Um lugar democrático, afinal.

A garçonete estava curiosa. Já vira José sentado ali na outra noite, meio chorando meio bebendo, com um sorriso no rosto, e na mão esquerda o mesmo papel que hoje trazia na direita. O bilhete-ou-poema. E, na outra noite, lia incansavelmente o papelzinho. A garçonete tentara olhar o que havia, ao tirar os copos, mas não conseguira. Parecia que não havia nada, até...

José hoje não sorria, não chorava e não bebia tanto quanto antes. Mas bebia, ainda assim. E lia atentamente o papel da mesa literária, e olhava atentamente os homens tocando no palco. A garçonete não percebeu mas, a certa altura, José até mesmo observara atentamente o movimento de sua bunda enquanto andava.

Joshua riu. No palco tocava Big Band Voodoo Daddy. O poema na mão esquerda parecia escrito pra ele, José, de um velho poeta que não ia ao Clube mais.

"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!"

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O bilhete

"Se caminhar sozinho
é mesmo o caminho
que escolhi pra mim
esconde o seu rosto
que para o meu desgosto
eu caminho pro fim."

Leu o bilhete deixado em cima da cômoda, cômoda não alias, era mais um criado mudo... era um bilhete intrigante. Pode o caro leitor pensar que se trata de um simples bilhete de amor, mas nada era tão simples assim. José não se lembrava de um dia ter tido um amor, uma namorada, um namorado (não havia nem se definido ainda). Como poderia então ser um bilhete de amor? Talvez fosse uma brincadeira de algum amigo, um jogo poético. Isso sim é uma boa teoria, mas falha, indubitavelmente falha. O porquê? oras, porque ele não possui nem nunca possuíra amigos.

Deixemos bem claro já, antes de mais nada, que ele também não possui pai e mãe, é órfão, criado num pequeno orfanato que hoje é um consultório de dentista. Trabalha oito horas por dia com telemarketing, em casa, um pequeno apartamento de quarto/sala. Ou seja, nenhuma teoria que os leitores puderam ter feito pode se encaixar ( confesso ser injusto essa competição, já que como escritor, eu decido o que se encaixa ou não).

Sim leitores, não tem como vocês acertarem essa. NÃO, não é uma carta dele próprio, ele não tem propensão à esquizofrenia. E então? Imagino que só o que sobra é uma possibilidade mágica ou religiosa, não é?

O bilhete com o poemeto pode ter aparecido por mágica, sendo enviado por um artista do ilusionismo incrivelmente competente e brincalhão, ou pode ser fruto de uma interferência divina. Como autor, estou mais propenso à segunda opção. Explico. Não sou muito fã de mágicas e nem considero mágicos bons personagens literários, então prefiro conceitos religiosos, são mais amplos e mais facilmente absorvidos pelos leitores.

Fica então decidido que é tudo fruto de uma interferência divina. Cabe ao autor agora decidir qual o foco. Penso que temos duas possibilidades. Ou nos aprofundamos na divindade em questão, o que ocasiona ter que trabalhar alguma mitologia de maneira mais profunda - o que confesso, me desagrada, já que tenho preguiça - ou simplesmente deixamos o acontecimento ter um significado religioso interno. Sim, escolho esse, o aparecimento desse bilhete mudará internamente a vida de José, ocasionando em um futuro totalmente diferente do que ele teria sem o pequeno poema.

A escolha normal seria explicar aos detalhes como cada aspecto da vida dele se modificou e como ele se tornou melhor ou pior por causa disso. Mas não, não creio que tenha tanta paciência para isso, assim como não acredito que vocês leitores realmente queiram ler. Então encerro aqui, deduzam vocês o que aconteceu, já guiei-os por mais do que o necessário para uma grande imaginação, coisa que espero dos meus leitores. Até o próximo texto, que alias, talvez eu só sugira do que se trate, sabe, para economizar tempo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Factóides

Meu nome é Eduardo. Gostaria de lhes informar meu nome para ter a ilusão de que não serei esquecido. Que nos dez minutos que os senhores demorarão para ler este texto, alguma fagulha lhe machucará o coração. E no que termino do mesmo, sensibilizados por minhas palavras, procurarão o nome do autor e, mesmo que somente seu prenome, guardarão mentalmente.

Minha secretária eletrônica marca quatro recados não lidos e não sei se os lerei.

(silêncio)

Desculpem-me. O costume de escritor quase me induz a produzir uma ambientação mais sedutora do que a realidade. Na verdade, estou sozinho na frente de um computador que produz mais barulho que uma britadeira. A tela não me seduz, mas mesmo assim continuo a sua frente. Esperando algo, meu Godot.

Na verdade, tenho quatro mensagens piscando em minha tela. Avisando que chamaram-me no programa de mensagens instantâneas. Hesito em abri-las. Parte de mim questiona-se, como se houvesse um motivo que justificasse este agora.

(silêncio)

Apago cada uma de minhas frases após escreve-las. Desejo cortar o sentimentalismo. As veias que levam sangue ao meu coração. Então, apago. Mais apago do que escrevo. Traços esbranquiçados ondem sobra apenas fragmentos de idéias, partículas da borracha.

Na biblioteca, os livros de Clarice Lispector chamam minha atenção e deleto as frases sem vê-las. Não quero me tornar Clarice. A escritora amorfa cujas palavras são lidas apenas por sentenças sentimentais em redes sociais. Gostaria de escrever um livro mas todas as palavras parecem rir de mim.

(goles de água, então, silêncio novamente)

Disseram-me que o talento que tenho me levaria a algum lugar. Só vejo miséria. Aquilo que componho, ninguém lê. Preciso pedir-lhes atenção, mendigar que pousem os olhos nessas palavras. Há excesso de informação no mundo, televisão, internet, farmville. Leituras só em poucos caracteres. Os romances russos morreram.

Deveria ter trabalhado na televisão. Números, melhor, são precisos. Um bartender, bem possivelmente. Ninguém cansa de beber. Livros são só para escorar as cadeiras que vão ficando coxas.

Estou fadado ao fracasso, senhores.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Mundo de Cristal

Quando a campainha tocou, o menino já estava em pé ao lado da porta, esperando. Passava do meio-dia e o mundo deveria ser entregue naquela manhã. Assinou apressado o recibo dos Correios e girou sobre os calcanhares, dando as costas ao carteiro e correndo apressado para seu quarto. Fechou a porta, colocou a grande caixa sobre a cama e sentou-se do lado. A embalagem de papel pardo tinha uma etiqueta com seu nome, outra com o logotipo do fabricante, e uma terceira com a imagem de uma taça quebrada e a palavra “FRÁGIL” escrita em vermelho. Abriu com todo o cuidado, temendo profundamente ouvir o som de vidro quebrado ou peças soltas, mas quando finalmente removeu a tampa, o mundo estava lá, intacto.

O mundo era uma esfera de vidro transparente com cerca de 50 centímetros de diâmetro com água até um pouco acima da metade e uma grossa camada de matéria orgânica e algas coloridas forrando a base. Algas cinzentas, vermelhas e em vários tons de verde, algumas quase tão altas quanto o nível da água, a maioria das outras variando entre poucos milímetros de comprimento, formando uma paisagem simples, mas que o menino considerou como a coisa mais bonita que já vira na vida. Seus olhos, no entanto, abandonaram as algas e se fixaram, hipnotizados, no pequeno camarãozinho róseo que encontrou escalando uma das folhas maiores. Tinha dez minúsculas patinhas ao longo de um corpo gorducho e rosado de não mais do que um centímetro, e foi o primeiro que o menino avistou entre os oito que lá viviam.

Montou sobre a escrivaninha próxima à janela o suporte que veio na caixa, e sobre ele colocou o mundo. Tinha uma minúscula etiqueta na base da esfera, com o número 4213, e o menino imaginou quantos outros mundos haveriam espalhados por aí.

O mundo tornou-se imediatamente o foco gravitacional das atenções do menino. Frequentava a escola, a natação, as enfadonhas aulas de piano, mas seus pensamentos invariavelmente deslizavam para o mundo, e ao chegar em casa o menino sequer olhava para outros brinquedos, gibis ou jogos. Nem brincar na rua com os outros meninos interessava. Só o mundo interessava. O pequeno e por outro lado infinito Mundo de Cristal, como gostava de pensar. O mundinho de Escalador, Roedor, Covarde, chefe, Ligeiro, Gorducha, Sereia e Namoradeira, nomes com os quais batizara os oito pequenos senhores do Mar de Cristal. Decidira por observação, critério e conta própria que cinco pareciam machos e três fêmeas, e imaginou que essa distribuição cedo ou tarde traria conflitos ao fundo do mar. E durante horas a fio o menino observava silenciosa e atentamente a vida cotidiana dos pequenos crustáceos. O Chefe tinha esse nome porque era o maior deles, e nenhum dos outros parecia querer incomodá-lo por nada. Roedor e Gorducha passavam a maior parte do tempo abraçados em pequenas algas, apreciando ora o sabor das vermelhas, ora das verde-escuras. Sereia e Ligeiro gostavam de nadar, e estavam sempre cruzando despreocupadamente a extensão oceânica do mundo, enquanto Namoradeira nunca ficava longe de um dos cinco machos. Dois, no entanto, atraíam mais sua atenção. Covarde era o segundo de quem o menino mais gostava, ainda que não soubesse explicar exatamente o motivo. Ficava o tempo todo entre as algas com mais de um centímetro, de forma que pudesse se esconder sabe-se lá de quem. De fato, até sua coloração era um pouco mais puxada para o vermelho, e em algumas partes do mundo ele desaparecia totalmente. Logo na primeira semana, o menino notara que Covarde só tinha nove pernas, faltando-lhe uma das duas dianteiras. Teria nascido sem ela e dessa forma se escondia por vergonha de não ser exatamente como os outros? Quem sabe teria perdido aquela pata em uma luta, talvez contra o Chefe, pelo amor de Sereia, Gorducha ou Namoradeira, e desde então não saiu mais da segurança das algas?

Muito diferente de Covarde era o Escalador, seu preferido entre todos. Fora o primeiro que o menino encontrara no dia em que o mundo chegara pelo correio, e parecia gostar muito de escalar as algas mais compridas. Quando chegava ao topo, lá permanecia, às vezes por vários minutos, e então descia flutuando pela água até o chão. Certa vez, o menino agachou perto da escrivaninha em um momento de iluminação oportuna, e notou que de determinados ângulos, era possível ver seu reflexo na superfície da água também pelo lado de dentro. Seria isso que o Escalador tanto buscava? Descobrir quem seriam aqueles oito camarões que viviam no “mundo de cima”? Ou será que o Escalador compreendia estar olhando para o próprio reflexo, e todos os dias subia as maiores algas movido por um instinto completamente narcisista de se admirar mais de perto? Em uma noite, olhando para o mundinho por vários ângulos, encontrou-se pensando sobre como os camarões do aquário o veriam. Um borrão, provavelmente, esférico e com os tons azulados de seus olhos, que perscrutavam exaustivamente toda e qualquer atividade interna durante grande parte do dia. Será que pensavam sobre aquele grande olho azul? Será que olhavam para cima e atribuíam sentido ao que viam?

O menino fechou a janela do quarto. O termômetro interno acusava aumento de temperatura, e o mundinho precisava ser mantido em uma faixa muito estável. Sentia-se responsável por aquelas oito vidas, por seu bem-estar, por sua saúde. Sabia que um dia morreriam, mas não gostava de pensar no assunto. Amava-os como um pai poderia amar seus filhos, como um deus poderia amar sua própria criação, e ainda assim sabia que além de controlar sua temperatura, não podia fazer mais nada por eles. Sentia-se, afinal, um deus muito impotente, e perguntava-se se Deus, Deus mesmo, também não seria assim, um observador distante que amava muito a todos, mas nada podia fazer por seus filhos além de observar. Assistiu, maravilhado, quando o Chefe e a Namoradeira resolveram que estava na hora de fazer algo além de nadar e comer algas, e emocionou-se profundamente ao ver Sereia abandonar os encantos de Roedor para acasalar com o Covarde em seu esconderijo. Nenhuma das fêmeas, porém, jamais dera cria, e isso era algo que incomodava muito o menino-deus. Via as pequeninas bolhas de ar que deixavam as narinas dos habitantes do Mundo de Cristal, e percebendo que as bolhas aumentavam quando dois deles estavam próximos, achou razoável imaginar que era assim que conversavam, e dessa forma passou a imaginar sobre o que conversariam pequenos camarões rosados em um mundo de meio metro. Viu o Escalador falando aos outros do grande olho e do “mundo de cima” que vira no alto das algas, enquanto o Roedor dava mais atenção a uma alga cinzenta que a qualquer outra coisa, e viu Chefe e Ligeiro falando de Gorducha e Namoradeira, que nadavam distraídas de um lado para o outro. E assim o menino passava as manhãs na escola e o restante do dia em seu quarto, assistindo como um deus onisciente à vida cotidiana de seus oito pequenos amigos.

Um dia, procurando pelo Covarde, o menino encontrou o Chefe caído sob uma folha de alga. Foi o primeiro, e naquela noite o menino chorou como nunca antes na vida, de tristeza e impotência, porque a morte do Chefe o fez entender que logo os outros também morreriam e seu pequeno Éden, o Mundo de Cristal onde o menino-deus passava suas tardes e noites, chegava ao fim. Roedor e Ligeiro foram os próximos, na semana seguinte, e dez dias depois foi a Sereia. Nenhuma das fêmeas dera cria ao longo da vida, e o menino não sabia porque, mas também não importava mais. Seus pequenos corpos eram dissolvidos em poucos dias, por bactérias que o menino não via, mas sabia estarem lá. O Escalador foi ao encontro do grande deus-olho nos dias seguintes e, um mês depois da morte do Chefe, Gorducha e Namoradeira morreram, deixando para trás apenas o Covarde, último e irônico sobrevivente do mundo em colapso. E nem mesmo em seu último dia, já sozinho na imensidão do Mar de Cristal, Covarde deixou o conforto seguro de suas algas, morrendo abraçado a uma delas, parecendo mais medroso do que nunca.

O menino chorou apenas pelo Chefe, e chorava agora enquanto se despedia do Covarde e de seu mundo inteiro. Retirou o globo de vidro do suporte onde o colocara um ano antes, e com passos lentos e abatidos, levou-o até seu pai, que saberia o que fazer com ele. Naquela noite, deitado em sua cama, o menino olharia para o suporte vazio sobre a escrivaninha, refletiria sobre a natureza da vida e da morte, e chegaria assim oficialmente ao fim de sua infância.

em memória de Carl Sagan.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

não se fazem leis ao outro mundo

Ele estava sentado ao canto do bar, bem longe do palco, enquanto no palco tocavam um som do Caribe. "Calypso Callaloo", pensou o negro solitário ao canto do bar. "Ê, Calypso, ê!".


A noite era fria e havia u'a neblina descendo do céu. Isso lá fora, claro, porque no Clube a neblina saía da altura dos joelhos do velho Walter, um cheiro adocicado de máquina de fumaça. O negro sozinho no canto fumava sua própria fumaça, bem mais amarga. Quando o jogo de luzes do palco girava um pouco, os raios coloridos iluminavam a careca do sujeito. Ele, pensando "Calypso, ê...", só fumava.

Uma família indiana, passando pela cidade, ouviu falar desse Clube e foi lá pra ver. Sentaram a um canto, no extremo oposto da sala, e eles e o negro sozinho eram os únicos lá, naquela noite. Além de Joshua, da garçonete nova estranha e, é claro, do velho Walter.

A garçonete perguntou ao negro se ele queria algo. A família indiana perguntou à garçonete se eles podiam acender um incenso. O negro queria cachaça. A garçonete disse que, com tanta fumaça, um incenso a mais ou ao menos não daria nada...

A cachaça chegou, enquanto o incenso queimava. O velho Walter do Callaloo continuava a tocar, enquanto as crianças da Índia corriam o salão inteiro. Era noite só de travessuras, pensou o negro isolado em seu canto.

Quando a porta abriu para uma linda mulher de cabelos vermelhos entrar, entrou também uma corrente de ar. O vento gelado rodopiou o incenso indiano e o negro viu, do outro canto, que a fumaça virava uma enorme borboleta.

Quando a ruiva sentou com o negro, ele soprou a fumaça do tabaco. Primeiro em círculos, depois em rodamoinho. "Rodamunho", disse a ruiva. Seu sorriso era felino.

Lá fora passava voando um morcego, a noite escura era fria e o negro, no Clube, coçava a única perna que tinha.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011


Cansaço


Sabe cansaço?

Cansaço mesmo, em estado bruto. Quando você não tem vontade de fazer nada? Quando tudo te entedia, tudo é um saco, tudo enche e você só queria poder se trancar no seu quarto e dormir por uns três, por uns dez anos. Sabe?

É assim que eu tenho me sentido, sempre.
Sem-pre.

Acho que a primeira coisa me faz sentir assim é a idade. A velhice. Já estou perto dos 30... Não é a idade em si que me incomoda - aliás, incômodo não é bem o termo. Insatisfação, talvez seja melhor... Enfim, o problema não é a idade em si, mas o jeito que a sua vida está quando você chega lá. Eu sempre imaginei minha vida com um certo senso de completude aos 30 anos. Senso de completude, olha que bonito isso. Mas assim, eu imaginava já ter feito alguma coisa a essa altura, sabe? Não necessariamente casar, ter filhos, família carro e cachorro, esses sonhos de menininha que assiste Sessão da Tarde. Mas ter feito alguma coisa, sabe? Afinal, tempo pra isso eu tive. Chances também, não dá pra dizer que não. E não fiz porra nenhuma pra poder contar história.

- Oi, tudo bom? Como você chama?

É sempre o mesmo papinho... Sempre a mesma coisa, nunca muda. Sabe cansaço? Tem horas que eu só queria ser um avestruz pra poder enfiar a cabeça na areia.

Mas, pensando bem, avestruzes não enfiam a cabeça na areia de verdade, né?

- Você pode vir aqui um instante, por favor?

Desculpa, eu estou trabalhando agora. É, é isso aqui que eu faço. Uma loucura, né? Ficar lidando com pessoas o tempo todo, com essa obrigação de demonstrar educação e simpatia o tempo todo, tendo que tratar bem até o sujeito mais filho-da-puta-escroto que resolver aparecer aqui. Legal, né? Pelo menos eu vou embora daqui a pouco.

Vou pro meu apartamentinho, comer alguma coisa, tomar um banho e ficar só comigo, na cama vendo TV até dormir. Dormir seria bom se fosse de verdade.

Sabe aquele cansaço que você descansa e não passa?


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Parley

Em cena Tom Quase Sem Dentes, Barba Ruiva e Coro de Piratas.

[Tom Quase Sem Dentes E Barba Ruiva lutam agressivamente enquanto são observados pelo Coro de Piratas]

Tom [fazendo um floreio com a espada]: 
Que nome é este, Barba Ruiva?
Cadê a criatividade?
Eu mesmo já duelei
com vários de seus parentes!
Barba Negra, Barba Azul
hoje basta ser barbado
que o nome lhe é dado!

Barba Ruiva [cofiando a barba com a mão esquerda]: 
Mas a minha barba não é mesmo ruiva?
E alguém chamado Tom Quase Sem Dentes
pode falar dos outros impunemente?

Tom [com o semblante risonho]: 
Não podes dizer que falte
a este nome que me
deram, criatividade.

Barba Ruiva [também risonho]: 
Mas que raios de criatividade?
Se os teus dentes estão pela metade?

Tom [fechando a cara]: 
Parece que nos gracejos
se destaca, mas será
que tem tanta habilidade
no manejo da espada?

Barba Ruiva [com um sorriso irônico]:  
Minhas habilidades com a espada,
sem nenhuma modéstia, são lendárias.
.Se quiseres provar do meu talento,
venha sem exitar, neste momento!

Tom: Pois não, se é o que queres!

[Começam uma briga bem disputada]

Coro de Piratas
Qual será o resultado
dessa batalha cruel,
que afinal decidirá
quem irá nos liderar?

Corifeu [dando um passo à frente]:
 É impossível dizer,
só nos resta esperar.

[Apagam-se as luzes, fecham-se as cortinas e só se ouve o som de espadas] 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Arte de Caminhar Sozinho

Não foi necessário sentar-se de frente para o mar. Ver estrelas brilhando ao longe para concluir que nessa vida estamos sós. Bebendo partículas de solidão. Por isso compreendo os suicidas.

Acordo os dias sem ninguém esperando por mim. Pelas janelas, saboreio o sol. A luz opaca refrata-se fria. Tenho no sol meu parceiro silencioso e solitário. Cercado por um mundo feito de entulhos.

Queria ser capaz de chorar as copiosas lágrimas que vejo nos filmes. Mas de mim sai desespero seco. Não trazem o acalanto que machuca a cabeça, dando vontade de dormir. Alias, se, por ventura, me falta o sono, tomo uma pílula calmante. Se ainda continuar desperto, ingiro outra sem problemas.

Gasto meu dinheiro comigo, com quem mais? Fico em frente a televisão solitária acompanhando programas noturnos. Se tenho alguma epifanía, a faço em voz alta, como se dividisse com o invisível meus pensamentos.

Aquilo que escrevo não é lido por ninguém. Também me incluo na lista. Meros exercícios, deixados em gavetas, para que o tempo passe. Para ver o ponteiro fazer o percurso de uma hora sem tanto esforço.

Há dias uma sensação me invadiu, chegando a corroer o estômago. Não sei ao certo o que é. Apenas tenho. Os móveis continuam ao meu redor, como sempre. Não sei se os amo ou os esqueço em definitivo. Se deixá-los para trás, preservarei minha cama. É a única que me mantém bem na postura, junto com meus travesseiros ortopédicos. Acidente na infância, coluna doente para sempre.

Os tênis machucam meus pés. Unhas longas demais. Escolho os chinelos de tira larga, nada entre os dedos. Abro a porta de casa, eu e o sol na sua solidão sepulcral. Somos o mesmo astro em algum lugar imaginário.

Na esquina de casa, no posto, compro uma água mineral. E caminho. Sempre sozinho.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

MELWIN

Bom dia. Faz alguns meses que resolvi roubar uma idéia e publiquei no meu perfil do Facebook uma chamada para que as pessoas depositassem cada uma uma palavra qualquer nos comentários, de modo que ao fim do período eu reuniria as palavras todas e escreveria um conto onde todas estivessem presentes. Trinta amigos atenderam o chamado e ali estava eu com trinta palavras diversas, algumas esdrúxulas, outras simples, algumas rebuscadas, outras do baixo calão. Foram três meses só para decidir sobre o que escreveria, e a partir daí escrever foi mais um exercício de malabarismo, o que me deixou feliz por ser exatamente o que eu pretendia desde o começo. A escolha por ficção científica (tema sobre o qual já publiquei na semana passada) foi forçosa, uma das palavras presentes não me deixou escolha, e no final fiquei bastante satisfeito com o resultado. Se você é uma das trinta pessoas que participaram da construção desse conto, muito obrigado, espero ter dado um bom lugar à sua palavra. Finalmente, coagido pela natureza do conto, precisei utilizar muitas das palavras sugeridas em sua forma no plural. Espero que me perdoem por isso e que gostem do conto.


MELWIN

As três Leis da Robótica São:

Primeira Lei: Um Robô não pode causar qualquer mal a um ser humano ou,
por omissão, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

Segunda Lei: Um Robô deve obedecer a todas as ordens que lhe sejam
dadas por seres humanos, exceto em caso de conflito com a Primeira
Lei.

Terceira Lei: Um Robô deve proteger sua própria existência, exceto em
caso de conflito com a Primeira e Segunda Leis.

O céu noturno de 441T-A não possuía quaisquer atrativos apreciáveis. O pequeno globo orbitava uma também pequena estrela amarela em um sistema solar de um só astro, um só planeta e nenhum outro corpo celeste maior do que asteróides errantes. Nem mesmo um satélite natural possuía. Para piorar, o sistema solar 441T ficava em um dos extremos mais periféricos da Via Láctea, de forma que sua paisagem celeste não exibia mais do que uma dúzia de estrelas visíveis brilhando perdidas na imensidão escura. 441T e seu único planeta foram encontrados pelas naves e telescópios exploratórios da Federação há um século, e uma nave fora prontamente enviada para iniciar os processos de reconhecimento. Três pilotos, dois co-pilotos, biólogos, químicos, físicos, engenheiros, uma equipe médica completa, e os robôs.

Eram vinte e cinco robôs positrônicos trabalhadores, modelo MW, fabricados pela U.S. Robotics na Terra. Eram, na forma mais objetiva de se dizer, homens de lata, ou mais especificamente titânio e aço-boro. Seu formato e tamanho eram humanos, o que lhes permitia interagir com o mundo dos homens eoperar suas ferramentas, e seus cérebros positrônicos estavam programados com diversos procedimentos rotineiros de trabalho braçal, além é claro das Três Leis, que se encontravam na base mais profunda do sistema de inteligência artificial dos robôs Positrônicos e sem as quais nenhum modelo deixava a única fábrica de homens mecânicos da galáxia. Se a equipe de analistas humanos decidisse que o planeta era, de fato, viável para colonização, aqueles vinte e cinco trabalhadores eletrônicos poderiam construir uma pequena cidade em poucos meses. Até lá, os protocolos de migração teriam sido aprovados e as primeiras dezenas de milhares de pessoas chegariam a 441T-A para começar vida nova, e poderiam então batizar seu novo lar com um nome mais bonito.

Nada disso, no entanto, aconteceu. Um século havia se passado desde a chegada da primeira nave humana de exploração, e naquela noite costumeiramente sem estrelas os únicos olhos que observavam o céu noturno não eram humanos e não procuravam por estrelas. No alto do observatório estelar construído no ponto mais desértico de 441T-A, Melwin olhava, pela 365250ª vez para o infinito do Universo, à procura de qualquer sinal de movimento, à procura de qualquer nave humana que passasse pelo campo de leitura dos dezessete satélites artificiais que rodeavam 441T-A. Melwin não precisava observar o céu durante a noite. Todos os sistemas de escaneamento por satélites e telescópios orbitais estava conectado a seu cérebro positrônico, de forma que ele saberia, não importa onde estivesse, se alguém se aproximasse. Não acontecera nenhuma vez no último século. Ainda assim, todas as noites, Melwin caminhava até o observatório e procurava.

Melwin não era um robô trabalhador simples como os vinte e quatro que chegaram com ele na nave exploratória. A U.S. Robotics o produzira como uma versão superior dos modelos Multitask Worker, instalando em seu cérebro digital positrônico um módulo de aprendizado cognitivo e o maior banco de dados já organizado da ciência e cultura humanas. O modelo MLW - Multitask Learning Worker - a quem os cientistas e funcionários rapidamente passaram a chamar pelo hipocorístico "Melwin", foi então enviado com cento e trinta pessoas e vinte e quatro robôs MW para ajudar na colonização de mais um mundo. Os Robôs positrônicos inteligentes haviam sido inventados milhares de anos atrás, antes mesmo da humanidade explorar as estrelas e colonizar outros planetas. Seu uso, no entanto, era muito restrito, normalmente se limitando ao trabalho braçal em ambientes inóspitos. Nos grandes centros urbanos da Terra, seu uso continuava proibido por lei, um vestígio aparentemente incurável de uma Síndrome de Frankenstein inerente à humanidade. Cada robô era alimentado por micro-reatores de antimatéria virtualmente inesgotáveis, e valiam pequenas fortunas. Seu único fabricante, a U.S. Robotics, não os vendia em hipótese alguma. Eram arrendados, projetados especificamente para suprir as necessidades do cliente em particular e rios de dinheiro eram cobrados todos os anos por seu uso. Ainda assim, considerando-se a capacidade e eficiência de seu trabalho, robôs positrônicos valiam muito a pena para quem pudesse pagar.

Caminhando para fora do Observatório, Melwin perguntou-se novamente por que retornava ao telescópio todas as noites para constatar o que já sabia. Analisando a situação e combinando com seus registros sobre robopsicologia - uma versão exata e computacional da psicologia humana - concluiu que possivelmente experimentava uma sensação similar a uma emoção. Não era a primeira vez que acontecia com uma inteligência artificial. Os avanços na robótica trouxeram efeitos colaterais interessantes e assustadores, muitos deles relatados nos registros da U.S. Robotics. Houveram casos de robôs experimentando sensações análogas às humanas, como ciúmes e vergonha, e até mesmo o conhecido caso de Helvex, o robô que alegava sonhar quando inativo. Trata-se de uma emoção com certeza, pensou Melwin. Mas qual? Nas vinte e quatro horas seguintes, aquele problema ocuparia em seus circuitos todo o poder de processamento que não estivesse investido em sua missão.

Sim, evidentemente Melwin tinha uma missão. Robôs tinham aparência e inteligência humanóides, mas ainda eram equipamentos, aparelhos, ferramentas com finalidade e propósito de existência. Melwin havia sido programado com a diretriz primária de auxiliar no processo de colonização de 441T-A coordenando o trabalho dos MW até que as naves civis chegassem. Era por isso e para isso que existia, e todos os cálculos referentes a missão tinham prioridade máxima de processamento em suas trilhas positrônicas. Para melhor realizar seu propósito, Melwin possuía um gigantesco banco de dados contendo virtualmente toda a cultura dos últimos 10 séculos, da ciência à literatura, o que lhe conferia um entendimento singularmente amplo da natureza humana. Isso, é claro, para um Robô e em nível estritamente teórico.

Os circuitos positrônicos que lhe serviam de memória continham um único registro de contato prático com humanos, e já se encontrava no pequeno planeta na ocasião. Fora ativado às pressas pelo Coronel Joe Messi, líder militar da missão que gritava descontroladamente para que o robô fizesse algo, e a primeira coisa que viu foram muitos humanos correndo e gritando assustados por toda parte. A única frase que pôde compreender, no entanto, foi "Buceta! Caralho! Putaquepariu! O Frombotzer vai explo..." e então um forte clarão, uma forte pressão e um enorme aumento de temperatura. Nada no entanto que pudesse sequer manchar a estrutura reforçada de titânio e aço-boro, desenhada para resistir a ambientes extremos. Melwin e os modelos MW passaram incólumes pela explosão, mas a nave e seus tripulantes humanos foram vaporizados em um breve momento pelo calor liberado. No milissegundo que se passou entre a compreensão dedutiva do que estava acontecendo com o Deteronic Frombotzer – uma estrutura de alta tecnologia que alimentava toda a energia da nave – e a explosão em si, Melwin e todos os vinte e quatro MW ainda tentaram, impelidos pela Primeira Lei da Robótica, adiantar-se para salvar seus mestres, mas a expansão do reator foi mais rápida, e assim os vinte e cinco robôs se tornaram os únicos seres pensantes, ainda que não humanos, em 441T-A.

Sem seus mestres, sem suas ordens, os homens mecânicos passaram a aguardar instruções de Melwin, que estava registrado em seus cérebros positrônicos como instrutor de tarefas. Melwin, por sua vez, não tinha ordens a seguir, mas seu cérebro estava igualmente programado com milhares de protocolos que não necessitavam de apoio humano. E sem nenhum ser humano que pudesse ser de qualquer maneira prejudicado por suas decisões, Melwin passou a exercer sua função de colonizador por conta própria. Tinha um corpo de trabalhadores incansáveis que juntos valiam por algumas centenas de homens fortes, e em uma extrapolação lógica da Primeira Lei, concluiu que humanos que chegassem a 441T-A em naves civis sofreriam grande mal expostos às intempéries da natureza, de forma que os robôs deveriam impedir esse mal civilizando o planeta.

Assim, por um século, Melwin e os MW trabalharam dia e noite ininterruptamente em perfeita harmonia e sinergia, seguindo planos e projetos milimetricamente calculados por cérebros computadorizados.

Passaram os primeiros 22 anos recolhendo, purificando e armazenando matéria-prima do ambiente. Milhares de toneladas de pedra, madeira e material orgânico oriundo das formas de vida locais. Com a matéria-prima, produziram ferramentas rudimentares e, com estas, ferramentas mais complexas. E com ferramentas mais complexas, produziram outras ainda mais complexas. E em 3 anos de dedicação exclusiva ao avanço instrumental, Melwin e os MW finalmente atingiram o estágio mínimo de fissão nuclear necessário para passar à próxima etapa de colonização. Terraplanaram colinas, limparam inúmeros hectares de mata, e moldaram cidades à imagem daquelas que Melwin possuía em seus registros. Construíram ruas e casas, prédios e praças, conduítes e encanamentos, motores e computadores. Naquela noite, enquanto Melwin caminhava pela grande e desértica avenida para se juntar aos vinte e quatro no contínuo e interminável trabalho, 441T-A completava seu 100o. Aniversário desde a chegada da nave de exploração. Era um planeta completo, totalmente civilizado, com grandes cidades mantidas por sistemas robóticos tão complexos que poucas mentes humanas, se vissem, poderiam compreender. Mas não havia nenhuma alma humana em 441T-A. Haviam ruas, túneis e viadutos, e carros sem motoristas ou passageiros. Haviam grandes arranha-céus, escolas, hospitais e shopping centers novos em folha, e também haviam parques e reservas ecológicas, onde pessoas poderiam ver matilhas dos grandes canídeos que constituíam os maiores predadores do pequeno mundo. O Observatório foi o terceiro prédio a ser construído, e os templos religiosos estavam sendo os últimos. Pesquisando as necessidades infra-estruturais de uma cidade, Melwin deparou-se com um conceito que evadia o prático. Um sentimento amplamente registrado na cultura humana mas cujos fundamentos se estabeleciam sobre fatores ilógicos e inverificáveis. Os humanos, no entanto, possuíam uma evidente necessidade de expressar esse sentimento que Melwin encontrou com as palavras "Fé" e "Deus", e assim decidiu que precisavam de representatividade mesmo contrariando seu senso lógico. Construiu, desse modo, 39 templos religiosos, um para cada "Fé em Deus" contida em sua memória, e o último deles estava sendo concluído naquele instante.

Quando Melwin chegou ao canteiro de obras, os MW já estavam terminando o lugar depois de 70 horas de trabalho.. A cidade que estavam terminando era a quadragésima quinta do planeta, que agora poderia abrigar confortavelmente até cinqüenta milhões de pessoas. E cada cidade tinha seu estilo assim como cada casa, todos derivados do banco de dados de Melwin. Algumas casas tinham pianos, outras piscinas, outras salas de jogos. Algumas tinham aquários com peixes, vasos de petúnias, gatos e caixas de areia. Mas nem um único ser que pudesse de fato nadar, ouvir música, admirar os peixes ou brincar com o gato. Mesmo assim, em cada residência, a despensa estava cheia e bem abastecida de água e comida. Grandes plantações produziam constantes safras de alimentos para uma população inexistente. E todos os meses os robôs reuniam as produções agrícolas, chicória e agrião, maçãs e limões, arrozais e pés-de-feijão, quilométricas plantações de esponjas vegetais que pendiam do teto como imensas estalactites de proteína, e devolviam seu conteúdo estragado para a terra, onde aqueles nutrientes sem função se tornavam compostagem para o próximo plantio. Havia portos, e em cada um deles barcos, navios, submarinos, escafandros e guindastes. Haviam sorveterias, e nelas haviam máquinas que produziam Milk-shakes de chocolate com amêndoas e outros sabores, e em cada mesa, haviam lenços de papel para limpar a boca e as mãos. Mas não havia em 441T-A nenhuma boca ou mão humana que pudesse usufruir de nada daquilo. Quimicamente, os Milk-shakes eram idênticos às descrições nos circuitos de Melwin, mas ele próprio não seria capaz de dizer se sequer eram saborosos. Os robôs se reuniram diante de Melwin, e transmitiram por rádio o sinal de que haviam concluído a última tarefa para aquela cidade.

Ficaria registrada como 441T-A45, pois batizar as coisas e lugares era uma prerrogativa da qual os humanos gostavam muito, de forma que os robôs não deviam fazê-lo. Enquanto os MW recolhiam os utensílios de trabalho e carregavam o veículo de transporte, o cérebro de Melwin calculava o ponto em que seria fundada a próxima cidade, 441T-A46. Esta havia demorado quatro meses para ser erguida, trabalho que mil homens demorariam no mínimo dois anos para realizar em condições ideais. Todo aquele trabalho braçal, no entanto, não ocupava mais do que 5% da capacidade de processamento de Melwin, de forma que seus pensamentos voltavam-se constantemente para os registros culturais em seu banco de dados. Ouvia música, analisava quadros, lia e relia diariamente dezenas de milhares de páginas acerca de todos os assuntos sobre os quais o homem se debruçara. Tinha, no entanto, uma atração particular pelo estudo da psicologia humana, ciência que juntamente com a matemática originara, dezenas de milênios atrás, a Robopsicologia e a Robótica como campo da ciência. Intrigavam-lhe pontualmente as emoções, processos mentais que geralmente tinham função evolutiva, mas que não podiam ser apreendidos com perfeição por modelos matemáticos. Construído à imagem e semelhança de seus criadores, Melwin entregou-se ao mistério e, assim, passava e repassava todos os dias os trilhões de páginas em seus circuitos, à procura de modelos capazes de definir determinada palavra como "esperança", "rancor", "perdão", "hipocrisia" ou "humildade". Outros termos pareciam estranhos à primeira leitura, mas uma rápida pesquisa nas bases de dados logo trazia uma explicação, como quando deparou-se com o termo "engasopado" em um diálogo, palavra que logo descobriu referir-se a uma forma de combustível antiquado e fora de uso há mais de vinte mil anos.

E foi naquele exato momento, enquanto os MW carregavam o veículo e o aguardavam para deixar a cidade recém-construída, que Melwin olhou novamente para os céus, agora sem o telescópio do Observatório, e compreendeu a emoção que sentira horas antes no Observatório. O sentimento que nascera de seu contato ininterrupto com a produção intelectual humana, que o impelia a continuar trabalhando todos os dias e que ao fim de cada tarde o levava até o Observatório para procurar. O anseio, a constante equação mental que seus sistemas interpretavam como "desassossego" e que nenhum dos trabalhadores MW comuns pareciam sentir. Naquele milissegundo, olhando para o infinito escuro do Universo e situando-se em um mundo deserto, com cidades, ruas e casas vazias, tão distante da humanidade para que constituía sua razão de ser, Melwin compreendeu que se sentia solitário.

em memória de Isaac Asimov

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

é cedo

- Por favor!, e estendo a mão.

A garçonete não parece se lembrar de mim. Se bem que, olhando melhor, também não me lembro dela. Não é a Joana, disso estou certo. Mas era o horário dela, não era? Devia estar aqui, a menina.

Faz tempo que não nos falamos, desde que saí de viagem e o bar, ao que me parece, entrou em reformas. "Para melhor atendê-lo", dizia o Joshua. Todo bronzeado, deve ter fechado um mês e passado o verão na Europa. Ou na Somália, porque também está magro.

A garçonete me atende, afinal. Não é Joana, de fato, um crachá idiota na blusa diz que se chama Marta. Pois bem, Marta, que seja

- Uma cerveja. Meus amigos também logo chegam...

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Trampolins

Tenho esperado essa encomenda há mais de um mês. Diversas tardes passei angustiado, achando que qualquer barulho na rua fosse a campainha. Ontem, justamente quando estava no meu escritório do centro odontológico, um entregador foi em casa para ninguém.

Deixou-me um anuncio avisando da falha tentativa de entrega. Motivo no qual o despertador gritou as oito em ponto e as oito e meia eu trancava a porta principal de casa. Estaria nos Correios assim que abrisse.

Se eu fumasse, estaria na metade do segundo cigarro. Sentei no meio fio aguardando que a porta lateral abrisse, a esquerda de uma gigantesca garagem que recebia e despachava entregas, somente para funcionários.

“Bom Dia, vim retirar um pacote que ontem foi entregue em minha casa.” A moça do balcão me olha, esperando. “Tentaram entregar mas eu não estava” e retirei do bolso a notificação.

Ela era atraente mesmo na roupa azul e amarela dos Correios. Seu rosto fora agredido pelo tempo, mas ainda assim saira vencedora. Levou o papel para seu campo de visão e, acompanhando com o indicador um código de mais de treze dígitos, passou os dados para um computador.

“Está para entrega hoje, novamente. Ontem foi a primeira tentativa”. Esperou novamente.

“Seria possível retirar agora?”, e tentei apelar para meu sorriso mais convidativo. Ela retornou a olhar o papel, e num suspiro disse me que não. Entregas de produtos ainda em rota somente após as dez e meia.

Olhei para trás e, além de mim, só havia pedaços de papel picado no chão do salão. Vasculhei a mente a procura de um sorriso melhor que o anterior, acrescido da tentativa de olhar profundamente nos olhos. “Estou aguardando essa encomenda por mais de um mês, não posso mesmo pegar agora?”.

E, lentamente, eu vislumbrava meu pacote, preso embaixo de seu braço. Assim que colocou no balcão, arranhei com minha chave as proteções e retirei do envelope. Só havia um papel bolha entre eu e aquilo que considerava uma das belezas mais belas que já pus os olhos, perdão a hipérbole.

“Veja só, veja só, veja só”. O livro tocou levemente o balcão. Era novo, intocável. Suas mais de mil páginas lhe davam um peso que imaginei não ser capaz de suportar. Elevei-o até a altura dos olhos, “todas as peças de William Shakespeare”, sussurrei e, sem nenhuma vergonha, senti o aroma de papel recém impresso.

“Parece especial”, me disse. “Sim”, respondi, “um dos meus autores máximos e um dos maiores da literatura. Desculpe se exagerei”, tentando corrigir minha contemplação anterior. Ergueu-me uma das sobrancelhas ao invés de chamar-me de maluco. O computador imprimia uma ordem de entrega que ela me deu, instantes depois, para assinar. “Nome completo na linha e me mostre sua identificação, senhor”.

Quando meus olhos pousaram novamente nela, ela sorria. Minha vez de erguer a sobrancelha. “Está tudo certo e, a propósito, meu nome é Mônica”.

A manhã me atrasou em segundos para compreender seu sorriso e, quando percebi, eu já havia começado um amarelo. Essa sentença que me persegue pouco depois de meu nascimento, provavelmente, estaria comigo até o fim da vida. Ter um nome, ou parte dele, de uma canção que se tornaria famosa em todo o Brasil pela banda de rock de Renato Russo.

“Prazer, Eduardo”, disse, mantendo o sorriso e estendendo-lhe a mão, suave, alias. Esperamos, sabendo que nenhum dos dois diria mais nada.

Meia hora depois, a obra completa de Shakespeare iluminava minha mesa como nada foi capaz. Folheei as páginas como um devoto que encontra as palavras de seu deus. Romeu e Julieta, segundo ato, segunda cena, entra Romeu: He jests at scars that never felt a wound.


Só ri de uma cicatriz quem nunca foi ferido. E meus pensamentos eclodiram no sorriso de Mônica. Na posição perfeita dos dentes em contraponto as marcas desgastadas na pele. Quantas escaras aquele riso já teria colocado para fora, refleti. Ela esteve comigo em pensamento por aquele dia todo. Eu estava condenado.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

molho

Hoje ele não veio ao bar. Supostamente um milhão de coisas o ocupam agora, umas bem boas, outras nem tanto, meia dúzia de se jogar fora e três muito importantes.

A mesa do canto esquerdo, lá no fundo, está vazia. Nem seus amigos vieram. Ele tem coisas que o ocupam, os amigos não sei dizer. São todos uns vagabundos, esses caras, então devem não ter vindo para encher a cara em outro lugar.

A garçonete vai ter menos gorjeta, essa noite.