terça-feira, 8 de novembro de 2011

Business Class

Pouco depois de o piloto anunciar aquela ladainha toda sobre apertar os cintos, máscaras de oxigênio e aparelhos celulares, a rotação das turbinas aumentou e o vôo finalmente partiu, uma hora de atraso. Pelo menos a companhia tem um serviço de bordo decente e, assim que os desfavorecidos da classe veterinária passaram e foram para suas cadeiras, já que chamar aquilo de poltronas é muita boa vontade, a aeromoça, ou comissária de bordo, ou enfim a belíssima dona daquele sorriso industrializado veio solícita me oferecer um drink. Vinho, por favor, branco e gelado de preferência. Não, nada para comer ainda, obrigado. As pernas da aerocomissária que se afastava, por outro lado, não pareciam industrializadas, mas hoje em dia é difícil dizer com certeza. Um vinho seco de sabor argentino e agradável, mais um sorriso com número de série e lá se vão as pernas, me deixando com cinco horas de viagem e nenhuma disposição para ler, escrever ou assistir qualquer coisa.

Três taças de vinho argentino já se foram, deixando-me com essa sensação crescente de que puedo hablar castellano. Uma pena, ou quem sabe uma bênção, não haver nenhum Hermano do meu lado, poderia ser divertido, ou talvez nem tanto. Quando considero erguer a mão para que as aeropernas venham me trazer mais vinho, meus ouvidos são fisgados por uma conversa empolgada e em tom de voz discreto, de cujas palavras não pude entender nenhuma. Árabe? Caramba, porque é que sempre que ouço um idioma estranho em um avião penso em um árabe? Não, não é árabe, é algo mais rude, mais agressivo. Russo, talvez? Sim, russo, é bem provável que sejam russos, ou ucranianos, ou eslavos, enfim.

Agentes secretos desfarçados? Não, estamos justamente evitando clichês, droga. Analistas de software, ucranianos. Tinha um antivírus com nome eslavo, mas não lembro qual. São gays, se conheceram na faculdade de computação, em São Petersburgo, o de voz mais grossa já devia namorar garotos desde a escola, mas o de voz mais fina provavelmente só se encontrou quando conheceu o Yuri. Yuri Gredenko?

Ok, parece um nome melhor que "russo da voz grossa". Yuri e Ivan começaram a namorar no último ano da graduação, e entraram juntos para a empresa de antivírus lá, caramba, não lembro mesmo a porra do nome.

Não importa. Começo a me divertir tentando imaginar o que falam, mas em poucos segundos minha brincadeira é interrompida pelo deplorável choro de uma menininha, cinco anos talvez, que protesta desconsolada para uma avó com paciência homeopática. Pelo menos falavam em português. A matriarca, dançando entre o aborrecimento e a vergonha, tenta subornar a criança por silêncio uma, duas, três vezes. Mas aparentemente meninas de cinco anos têm muito pouco interesse por revistas de turismo, filmes legendados ou miniaturas plásticas do Cristo Redentor. Buscando forças na pequena miniatura, a senhora tenta explicar à menina que normalmente crianças não voam de avião, e é por isso que a telinha tem filme, mas não tem vídeo-game. Por um momento, com três taças de vinho a me dar apoio moral, quase me levanto e declaro meu apoio à menininha. Deus sabe que não faria mal a ninguém se instalassem um Playstation em cada poltrona. Mantenho-me quieto, a menininha reclama com demasiada convicção para ganhar minha simpatia.

Os pais, provavelmente, são empresários, ou executivos, quem sabe diplomatas brasileiros morando na Europa. A menina foi passar as férias com a avó no Brasil, para fugir do Inverno, ou melhor ainda, deve morar com a avó. Sim, os pais se mudam constantemente, vivem mais em hotéis que em residências, trabalham muito e em horários irregulares, e não queriam a filha crescendo nessa loucura. Foi morar com a avó materna, claro, porque os avós paternos não queriam nem saber da pequena encrenca. Como não podem criar, tentam compensar nas férias, e dinheiro para tanto não deve faltar, afinal de contas só o preço da passagem aérea aqui da First Class já é um assalto seguido de estupro e homicídio. Com essa voz, e esse histórico, a netinha da dona ... dona ... Nídia, isso, dona Nídia está bom. Enfim, mimada e irritante como é, a netinha de dona Nídia só pode se chamar Victoria, com c ainda para coroar a prepotência. Se eu fosse dona Nídia, chamava as aeropernas e pedia logo dois duplos de Bourbon sem gelo, uma pra mim e outra pra Victoria, que só ia acordar quando a despachassem pelo setor de cargas.

Levanto-me para ir até o banheiro. No caminho, dou uma olhadela para a menininha. Pele clara, cabelos ruivos em corte Chanel e pequenas sardas enferrujadas nas bochechas. Se não se chamar Victoria, pulo esse avião agora mesmo. O banheiro é apertado, que é para nenhum fundamentalista árabe poder usar como laboratório de explosivos. Toda vez que uso o banheiro, toda santa vez, dou descarga e não consigo deixar de imaginar o avião desovando o embrulho em pleno vôo, que nem uma pomba metálica de centenas de toneladas. Seria divertido, pelo menos para quem está aqui em cima. Lavo as mãos, fecho a porta do banheiro e só então percebo o casal sentado em uma das primeiras fileiras. Ela, quarenta e poucos anos, tão alemã que poderia dizer-se descendente de Otto Von Bismarck. Pálida demais para mim, mas com olhos de um azul cinzento e profundo como os céus de Berlim. Ele, não mais do que 30, mulato retinto, trigueiro, de queixo quadrado, nariz largo e olhar manso como a brisa matinal de Ipanema. Mãos dadas, dedos entrelaçados, e um olhar afetivo da senhora germânica para com o "Menino do Rio" que de maternal, não tinha sequer a perninha do M.

Pois é, eu tentando evitar clichês narrativos, mas as pessoas no mundo real também não ajudam em nada. Quando jovem, a senhora se chamava apenas Karen, e em uma Alemanha falida com o fim da Segunda Guerra, não pôde desperdiçar a chance quando um velho banqueiro declarou a seus pais o interesse em desposá-la. Foi, aliás, o que salvou a família da fome, razão pela qual Karen permaneceu casada, fiel e infeliz com o velho judeu mau humorado e suas repetitivas histórias da guerra até o fim. O fim dele, bem entendido, que morreu de enfarto aos 60 anos, deixando para trás uma mulher de 40 com alguns milhões de dólares e uma vida inteira para recuperar. Nem é difícil imaginar atrás de que veio ao Brasil, e as alianças douradas me confirmam uma velha hipótese de que, com a quantia, o contexto e a abordagem corretas, nem mesmo o coitado do amor verdadeiro escapa às garras do vil metal nesses tempos de globalização. O rapaz, de nome Wéber, é conhecido em Botafogo como Araketu, filho de Mestre Mingo, grande sambista e capoeirista querido por todos. Wéber tinha três irmãos, um cachorro vira-lata e músculos amplos e bem definidos, mas nem o mais vago conhecimento da Segunda Guerra Mundial ou de quem pudesse ser Max Weber, razões todas pelas quais Karen Schneider apaixonou-se perdida e irreversivelmente, tornando-se em poucos meses a senhora Karen Baden-Meyers assinava os documentos brasileiros que, além de garantirem a cidadania alemã de Wéber-Araketu, tornavam-na a senhora Karen Baden-Meyers Dias da Silva. Imagino o que o senhor Jakob, no céu dos judeus, pensaria disso, e deixo o casal para trás, caminhando de volta em direção ao tédio da poltrona.

É quando uma turbulência atinge o avião. Não uma pequena turbulência, pois para quem está no lado dos passageiros, preso numa caixa de metal cheia de gasolina e sem nenhuma informação sobre o que está acontecendo, não existem turbulências leves. A idéia de correr para a poltrona e apertar o cinto me vem à mente, mas francamente, aqui em cima o pior que pode me acontecer é cair no chão do avião, e se o avião por sua vez também decidir cair, não vejo como uma poltrona e um cinto poderiam me ajudar. Quando o característico e inconfundível aroma de pânico começou a ser sentido, no entanto, a voz do piloto veio, tranqüilizadora. Senhores passageiros, estamos passando por uma pequena turbulência, que não deve durar mais do que alguns segundos.

Permaneçam em seus assentos e não se preocupem. Pronto, nada como a voz do piloto, hein? Se eu tivesse uma companhia aérea, programaria os aviões para reproduzir essa mensagem automaticamente em qualquer turbulência, mesmo que o avião fosse cair. Se as pessoas vão morrer de um jeito ou de outro, que pelo menos sintam-se em segurança, oras.

Sento em minha poltrona e aperto o cinto, ainda com a queda do avião em mente. Não, o avião não está caindo, ou já estaríamos abaixo das nuvens, o que posso ver pela janela que não está acontecendo. Mas e se caísse? E se o piloto de repente voltasse aos alto-falantes e retificasse: Senhores passageiros, informamos que houve um erro nas últimas checagens. Na verdade, três das quatro turbinas pararam de funcionar, atingidas por uma revoada de urubus, e duas delas já estão em chamas. Como já estamos longe demais do continente, é provável que venhamos a cair em meio ao Oceano Atlântico, isto é, se a aeronave não vier a explodir ainda no ar, claro. Pedimos sinceras desculpas pelo transtorno.

Imagine só, formaria-se primeiro aquele silêncio completo, como que esperando o piloto completar a piada. Então, dona Nídia agarraria a netinha com a mão esquerda, o Cristo Redentor de plástico com a direita, e gritaria a plenos pulmões: Ai minha Nossa Senhora! Vamos morrer!!! E então, o caos, o empurra-empurra, a gritaria histérica das mulheres, Yuri abraçando o namorado e fazendo a última jura de amor.

Então, a asa direita explodiria, colocando o avião para cair em parafuso descontrolado rumo ao chão. Segurando-se em mim, a aeromoça e seus sorrisos industrializados debatiam as pernas como que procurando um chão, justamente a última coisa a se desejar em uma hora dessas, enquanto o Araketu tentava agilmente pular para a cabine do piloto em busca de um pára-quedas sem grande preocupação aparente com Fraulein Baden-Meyers Dias dos Santos que se agarrava em suas calças. . E enquanto dona Nídia procurava em sua bolsa uma cópia de bolso dos Salmos, a porta principal se abriu, descomprimindo a câmara e levando a pequena Victoria voando e reclamando para fora. A aeronave já chegava próxima do mar, da colisão final que encerraria a cena em um grand finale, quando ouço, distraído, a voz das aeropernas perguntandoem inglês ao Yuri e ao Ivan:

"Senhor Arileya, senhor Zabala, gostariam de ver o cardápio do jantar?"

Arileya. Zabala. Sobrenomes bascos, provavelmente de Bilbao. Não me consta que haja grande número de Yuris, Ivans ou analistas de segurança de dados no país Basco. Diabos, vou ter que começar tudo de novo. Suspiro e peço mais vinho. Ainda restam quatro horas de vôo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário