terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Mundo de Cristal

Quando a campainha tocou, o menino já estava em pé ao lado da porta, esperando. Passava do meio-dia e o mundo deveria ser entregue naquela manhã. Assinou apressado o recibo dos Correios e girou sobre os calcanhares, dando as costas ao carteiro e correndo apressado para seu quarto. Fechou a porta, colocou a grande caixa sobre a cama e sentou-se do lado. A embalagem de papel pardo tinha uma etiqueta com seu nome, outra com o logotipo do fabricante, e uma terceira com a imagem de uma taça quebrada e a palavra “FRÁGIL” escrita em vermelho. Abriu com todo o cuidado, temendo profundamente ouvir o som de vidro quebrado ou peças soltas, mas quando finalmente removeu a tampa, o mundo estava lá, intacto.

O mundo era uma esfera de vidro transparente com cerca de 50 centímetros de diâmetro com água até um pouco acima da metade e uma grossa camada de matéria orgânica e algas coloridas forrando a base. Algas cinzentas, vermelhas e em vários tons de verde, algumas quase tão altas quanto o nível da água, a maioria das outras variando entre poucos milímetros de comprimento, formando uma paisagem simples, mas que o menino considerou como a coisa mais bonita que já vira na vida. Seus olhos, no entanto, abandonaram as algas e se fixaram, hipnotizados, no pequeno camarãozinho róseo que encontrou escalando uma das folhas maiores. Tinha dez minúsculas patinhas ao longo de um corpo gorducho e rosado de não mais do que um centímetro, e foi o primeiro que o menino avistou entre os oito que lá viviam.

Montou sobre a escrivaninha próxima à janela o suporte que veio na caixa, e sobre ele colocou o mundo. Tinha uma minúscula etiqueta na base da esfera, com o número 4213, e o menino imaginou quantos outros mundos haveriam espalhados por aí.

O mundo tornou-se imediatamente o foco gravitacional das atenções do menino. Frequentava a escola, a natação, as enfadonhas aulas de piano, mas seus pensamentos invariavelmente deslizavam para o mundo, e ao chegar em casa o menino sequer olhava para outros brinquedos, gibis ou jogos. Nem brincar na rua com os outros meninos interessava. Só o mundo interessava. O pequeno e por outro lado infinito Mundo de Cristal, como gostava de pensar. O mundinho de Escalador, Roedor, Covarde, chefe, Ligeiro, Gorducha, Sereia e Namoradeira, nomes com os quais batizara os oito pequenos senhores do Mar de Cristal. Decidira por observação, critério e conta própria que cinco pareciam machos e três fêmeas, e imaginou que essa distribuição cedo ou tarde traria conflitos ao fundo do mar. E durante horas a fio o menino observava silenciosa e atentamente a vida cotidiana dos pequenos crustáceos. O Chefe tinha esse nome porque era o maior deles, e nenhum dos outros parecia querer incomodá-lo por nada. Roedor e Gorducha passavam a maior parte do tempo abraçados em pequenas algas, apreciando ora o sabor das vermelhas, ora das verde-escuras. Sereia e Ligeiro gostavam de nadar, e estavam sempre cruzando despreocupadamente a extensão oceânica do mundo, enquanto Namoradeira nunca ficava longe de um dos cinco machos. Dois, no entanto, atraíam mais sua atenção. Covarde era o segundo de quem o menino mais gostava, ainda que não soubesse explicar exatamente o motivo. Ficava o tempo todo entre as algas com mais de um centímetro, de forma que pudesse se esconder sabe-se lá de quem. De fato, até sua coloração era um pouco mais puxada para o vermelho, e em algumas partes do mundo ele desaparecia totalmente. Logo na primeira semana, o menino notara que Covarde só tinha nove pernas, faltando-lhe uma das duas dianteiras. Teria nascido sem ela e dessa forma se escondia por vergonha de não ser exatamente como os outros? Quem sabe teria perdido aquela pata em uma luta, talvez contra o Chefe, pelo amor de Sereia, Gorducha ou Namoradeira, e desde então não saiu mais da segurança das algas?

Muito diferente de Covarde era o Escalador, seu preferido entre todos. Fora o primeiro que o menino encontrara no dia em que o mundo chegara pelo correio, e parecia gostar muito de escalar as algas mais compridas. Quando chegava ao topo, lá permanecia, às vezes por vários minutos, e então descia flutuando pela água até o chão. Certa vez, o menino agachou perto da escrivaninha em um momento de iluminação oportuna, e notou que de determinados ângulos, era possível ver seu reflexo na superfície da água também pelo lado de dentro. Seria isso que o Escalador tanto buscava? Descobrir quem seriam aqueles oito camarões que viviam no “mundo de cima”? Ou será que o Escalador compreendia estar olhando para o próprio reflexo, e todos os dias subia as maiores algas movido por um instinto completamente narcisista de se admirar mais de perto? Em uma noite, olhando para o mundinho por vários ângulos, encontrou-se pensando sobre como os camarões do aquário o veriam. Um borrão, provavelmente, esférico e com os tons azulados de seus olhos, que perscrutavam exaustivamente toda e qualquer atividade interna durante grande parte do dia. Será que pensavam sobre aquele grande olho azul? Será que olhavam para cima e atribuíam sentido ao que viam?

O menino fechou a janela do quarto. O termômetro interno acusava aumento de temperatura, e o mundinho precisava ser mantido em uma faixa muito estável. Sentia-se responsável por aquelas oito vidas, por seu bem-estar, por sua saúde. Sabia que um dia morreriam, mas não gostava de pensar no assunto. Amava-os como um pai poderia amar seus filhos, como um deus poderia amar sua própria criação, e ainda assim sabia que além de controlar sua temperatura, não podia fazer mais nada por eles. Sentia-se, afinal, um deus muito impotente, e perguntava-se se Deus, Deus mesmo, também não seria assim, um observador distante que amava muito a todos, mas nada podia fazer por seus filhos além de observar. Assistiu, maravilhado, quando o Chefe e a Namoradeira resolveram que estava na hora de fazer algo além de nadar e comer algas, e emocionou-se profundamente ao ver Sereia abandonar os encantos de Roedor para acasalar com o Covarde em seu esconderijo. Nenhuma das fêmeas, porém, jamais dera cria, e isso era algo que incomodava muito o menino-deus. Via as pequeninas bolhas de ar que deixavam as narinas dos habitantes do Mundo de Cristal, e percebendo que as bolhas aumentavam quando dois deles estavam próximos, achou razoável imaginar que era assim que conversavam, e dessa forma passou a imaginar sobre o que conversariam pequenos camarões rosados em um mundo de meio metro. Viu o Escalador falando aos outros do grande olho e do “mundo de cima” que vira no alto das algas, enquanto o Roedor dava mais atenção a uma alga cinzenta que a qualquer outra coisa, e viu Chefe e Ligeiro falando de Gorducha e Namoradeira, que nadavam distraídas de um lado para o outro. E assim o menino passava as manhãs na escola e o restante do dia em seu quarto, assistindo como um deus onisciente à vida cotidiana de seus oito pequenos amigos.

Um dia, procurando pelo Covarde, o menino encontrou o Chefe caído sob uma folha de alga. Foi o primeiro, e naquela noite o menino chorou como nunca antes na vida, de tristeza e impotência, porque a morte do Chefe o fez entender que logo os outros também morreriam e seu pequeno Éden, o Mundo de Cristal onde o menino-deus passava suas tardes e noites, chegava ao fim. Roedor e Ligeiro foram os próximos, na semana seguinte, e dez dias depois foi a Sereia. Nenhuma das fêmeas dera cria ao longo da vida, e o menino não sabia porque, mas também não importava mais. Seus pequenos corpos eram dissolvidos em poucos dias, por bactérias que o menino não via, mas sabia estarem lá. O Escalador foi ao encontro do grande deus-olho nos dias seguintes e, um mês depois da morte do Chefe, Gorducha e Namoradeira morreram, deixando para trás apenas o Covarde, último e irônico sobrevivente do mundo em colapso. E nem mesmo em seu último dia, já sozinho na imensidão do Mar de Cristal, Covarde deixou o conforto seguro de suas algas, morrendo abraçado a uma delas, parecendo mais medroso do que nunca.

O menino chorou apenas pelo Chefe, e chorava agora enquanto se despedia do Covarde e de seu mundo inteiro. Retirou o globo de vidro do suporte onde o colocara um ano antes, e com passos lentos e abatidos, levou-o até seu pai, que saberia o que fazer com ele. Naquela noite, deitado em sua cama, o menino olharia para o suporte vazio sobre a escrivaninha, refletiria sobre a natureza da vida e da morte, e chegaria assim oficialmente ao fim de sua infância.

em memória de Carl Sagan.

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