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terça-feira, 8 de novembro de 2011

Business Class

Pouco depois de o piloto anunciar aquela ladainha toda sobre apertar os cintos, máscaras de oxigênio e aparelhos celulares, a rotação das turbinas aumentou e o vôo finalmente partiu, uma hora de atraso. Pelo menos a companhia tem um serviço de bordo decente e, assim que os desfavorecidos da classe veterinária passaram e foram para suas cadeiras, já que chamar aquilo de poltronas é muita boa vontade, a aeromoça, ou comissária de bordo, ou enfim a belíssima dona daquele sorriso industrializado veio solícita me oferecer um drink. Vinho, por favor, branco e gelado de preferência. Não, nada para comer ainda, obrigado. As pernas da aerocomissária que se afastava, por outro lado, não pareciam industrializadas, mas hoje em dia é difícil dizer com certeza. Um vinho seco de sabor argentino e agradável, mais um sorriso com número de série e lá se vão as pernas, me deixando com cinco horas de viagem e nenhuma disposição para ler, escrever ou assistir qualquer coisa.

Três taças de vinho argentino já se foram, deixando-me com essa sensação crescente de que puedo hablar castellano. Uma pena, ou quem sabe uma bênção, não haver nenhum Hermano do meu lado, poderia ser divertido, ou talvez nem tanto. Quando considero erguer a mão para que as aeropernas venham me trazer mais vinho, meus ouvidos são fisgados por uma conversa empolgada e em tom de voz discreto, de cujas palavras não pude entender nenhuma. Árabe? Caramba, porque é que sempre que ouço um idioma estranho em um avião penso em um árabe? Não, não é árabe, é algo mais rude, mais agressivo. Russo, talvez? Sim, russo, é bem provável que sejam russos, ou ucranianos, ou eslavos, enfim.

Agentes secretos desfarçados? Não, estamos justamente evitando clichês, droga. Analistas de software, ucranianos. Tinha um antivírus com nome eslavo, mas não lembro qual. São gays, se conheceram na faculdade de computação, em São Petersburgo, o de voz mais grossa já devia namorar garotos desde a escola, mas o de voz mais fina provavelmente só se encontrou quando conheceu o Yuri. Yuri Gredenko?

Ok, parece um nome melhor que "russo da voz grossa". Yuri e Ivan começaram a namorar no último ano da graduação, e entraram juntos para a empresa de antivírus lá, caramba, não lembro mesmo a porra do nome.

Não importa. Começo a me divertir tentando imaginar o que falam, mas em poucos segundos minha brincadeira é interrompida pelo deplorável choro de uma menininha, cinco anos talvez, que protesta desconsolada para uma avó com paciência homeopática. Pelo menos falavam em português. A matriarca, dançando entre o aborrecimento e a vergonha, tenta subornar a criança por silêncio uma, duas, três vezes. Mas aparentemente meninas de cinco anos têm muito pouco interesse por revistas de turismo, filmes legendados ou miniaturas plásticas do Cristo Redentor. Buscando forças na pequena miniatura, a senhora tenta explicar à menina que normalmente crianças não voam de avião, e é por isso que a telinha tem filme, mas não tem vídeo-game. Por um momento, com três taças de vinho a me dar apoio moral, quase me levanto e declaro meu apoio à menininha. Deus sabe que não faria mal a ninguém se instalassem um Playstation em cada poltrona. Mantenho-me quieto, a menininha reclama com demasiada convicção para ganhar minha simpatia.

Os pais, provavelmente, são empresários, ou executivos, quem sabe diplomatas brasileiros morando na Europa. A menina foi passar as férias com a avó no Brasil, para fugir do Inverno, ou melhor ainda, deve morar com a avó. Sim, os pais se mudam constantemente, vivem mais em hotéis que em residências, trabalham muito e em horários irregulares, e não queriam a filha crescendo nessa loucura. Foi morar com a avó materna, claro, porque os avós paternos não queriam nem saber da pequena encrenca. Como não podem criar, tentam compensar nas férias, e dinheiro para tanto não deve faltar, afinal de contas só o preço da passagem aérea aqui da First Class já é um assalto seguido de estupro e homicídio. Com essa voz, e esse histórico, a netinha da dona ... dona ... Nídia, isso, dona Nídia está bom. Enfim, mimada e irritante como é, a netinha de dona Nídia só pode se chamar Victoria, com c ainda para coroar a prepotência. Se eu fosse dona Nídia, chamava as aeropernas e pedia logo dois duplos de Bourbon sem gelo, uma pra mim e outra pra Victoria, que só ia acordar quando a despachassem pelo setor de cargas.

Levanto-me para ir até o banheiro. No caminho, dou uma olhadela para a menininha. Pele clara, cabelos ruivos em corte Chanel e pequenas sardas enferrujadas nas bochechas. Se não se chamar Victoria, pulo esse avião agora mesmo. O banheiro é apertado, que é para nenhum fundamentalista árabe poder usar como laboratório de explosivos. Toda vez que uso o banheiro, toda santa vez, dou descarga e não consigo deixar de imaginar o avião desovando o embrulho em pleno vôo, que nem uma pomba metálica de centenas de toneladas. Seria divertido, pelo menos para quem está aqui em cima. Lavo as mãos, fecho a porta do banheiro e só então percebo o casal sentado em uma das primeiras fileiras. Ela, quarenta e poucos anos, tão alemã que poderia dizer-se descendente de Otto Von Bismarck. Pálida demais para mim, mas com olhos de um azul cinzento e profundo como os céus de Berlim. Ele, não mais do que 30, mulato retinto, trigueiro, de queixo quadrado, nariz largo e olhar manso como a brisa matinal de Ipanema. Mãos dadas, dedos entrelaçados, e um olhar afetivo da senhora germânica para com o "Menino do Rio" que de maternal, não tinha sequer a perninha do M.

Pois é, eu tentando evitar clichês narrativos, mas as pessoas no mundo real também não ajudam em nada. Quando jovem, a senhora se chamava apenas Karen, e em uma Alemanha falida com o fim da Segunda Guerra, não pôde desperdiçar a chance quando um velho banqueiro declarou a seus pais o interesse em desposá-la. Foi, aliás, o que salvou a família da fome, razão pela qual Karen permaneceu casada, fiel e infeliz com o velho judeu mau humorado e suas repetitivas histórias da guerra até o fim. O fim dele, bem entendido, que morreu de enfarto aos 60 anos, deixando para trás uma mulher de 40 com alguns milhões de dólares e uma vida inteira para recuperar. Nem é difícil imaginar atrás de que veio ao Brasil, e as alianças douradas me confirmam uma velha hipótese de que, com a quantia, o contexto e a abordagem corretas, nem mesmo o coitado do amor verdadeiro escapa às garras do vil metal nesses tempos de globalização. O rapaz, de nome Wéber, é conhecido em Botafogo como Araketu, filho de Mestre Mingo, grande sambista e capoeirista querido por todos. Wéber tinha três irmãos, um cachorro vira-lata e músculos amplos e bem definidos, mas nem o mais vago conhecimento da Segunda Guerra Mundial ou de quem pudesse ser Max Weber, razões todas pelas quais Karen Schneider apaixonou-se perdida e irreversivelmente, tornando-se em poucos meses a senhora Karen Baden-Meyers assinava os documentos brasileiros que, além de garantirem a cidadania alemã de Wéber-Araketu, tornavam-na a senhora Karen Baden-Meyers Dias da Silva. Imagino o que o senhor Jakob, no céu dos judeus, pensaria disso, e deixo o casal para trás, caminhando de volta em direção ao tédio da poltrona.

É quando uma turbulência atinge o avião. Não uma pequena turbulência, pois para quem está no lado dos passageiros, preso numa caixa de metal cheia de gasolina e sem nenhuma informação sobre o que está acontecendo, não existem turbulências leves. A idéia de correr para a poltrona e apertar o cinto me vem à mente, mas francamente, aqui em cima o pior que pode me acontecer é cair no chão do avião, e se o avião por sua vez também decidir cair, não vejo como uma poltrona e um cinto poderiam me ajudar. Quando o característico e inconfundível aroma de pânico começou a ser sentido, no entanto, a voz do piloto veio, tranqüilizadora. Senhores passageiros, estamos passando por uma pequena turbulência, que não deve durar mais do que alguns segundos.

Permaneçam em seus assentos e não se preocupem. Pronto, nada como a voz do piloto, hein? Se eu tivesse uma companhia aérea, programaria os aviões para reproduzir essa mensagem automaticamente em qualquer turbulência, mesmo que o avião fosse cair. Se as pessoas vão morrer de um jeito ou de outro, que pelo menos sintam-se em segurança, oras.

Sento em minha poltrona e aperto o cinto, ainda com a queda do avião em mente. Não, o avião não está caindo, ou já estaríamos abaixo das nuvens, o que posso ver pela janela que não está acontecendo. Mas e se caísse? E se o piloto de repente voltasse aos alto-falantes e retificasse: Senhores passageiros, informamos que houve um erro nas últimas checagens. Na verdade, três das quatro turbinas pararam de funcionar, atingidas por uma revoada de urubus, e duas delas já estão em chamas. Como já estamos longe demais do continente, é provável que venhamos a cair em meio ao Oceano Atlântico, isto é, se a aeronave não vier a explodir ainda no ar, claro. Pedimos sinceras desculpas pelo transtorno.

Imagine só, formaria-se primeiro aquele silêncio completo, como que esperando o piloto completar a piada. Então, dona Nídia agarraria a netinha com a mão esquerda, o Cristo Redentor de plástico com a direita, e gritaria a plenos pulmões: Ai minha Nossa Senhora! Vamos morrer!!! E então, o caos, o empurra-empurra, a gritaria histérica das mulheres, Yuri abraçando o namorado e fazendo a última jura de amor.

Então, a asa direita explodiria, colocando o avião para cair em parafuso descontrolado rumo ao chão. Segurando-se em mim, a aeromoça e seus sorrisos industrializados debatiam as pernas como que procurando um chão, justamente a última coisa a se desejar em uma hora dessas, enquanto o Araketu tentava agilmente pular para a cabine do piloto em busca de um pára-quedas sem grande preocupação aparente com Fraulein Baden-Meyers Dias dos Santos que se agarrava em suas calças. . E enquanto dona Nídia procurava em sua bolsa uma cópia de bolso dos Salmos, a porta principal se abriu, descomprimindo a câmara e levando a pequena Victoria voando e reclamando para fora. A aeronave já chegava próxima do mar, da colisão final que encerraria a cena em um grand finale, quando ouço, distraído, a voz das aeropernas perguntandoem inglês ao Yuri e ao Ivan:

"Senhor Arileya, senhor Zabala, gostariam de ver o cardápio do jantar?"

Arileya. Zabala. Sobrenomes bascos, provavelmente de Bilbao. Não me consta que haja grande número de Yuris, Ivans ou analistas de segurança de dados no país Basco. Diabos, vou ter que começar tudo de novo. Suspiro e peço mais vinho. Ainda restam quatro horas de vôo.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Mundo de Cristal

Quando a campainha tocou, o menino já estava em pé ao lado da porta, esperando. Passava do meio-dia e o mundo deveria ser entregue naquela manhã. Assinou apressado o recibo dos Correios e girou sobre os calcanhares, dando as costas ao carteiro e correndo apressado para seu quarto. Fechou a porta, colocou a grande caixa sobre a cama e sentou-se do lado. A embalagem de papel pardo tinha uma etiqueta com seu nome, outra com o logotipo do fabricante, e uma terceira com a imagem de uma taça quebrada e a palavra “FRÁGIL” escrita em vermelho. Abriu com todo o cuidado, temendo profundamente ouvir o som de vidro quebrado ou peças soltas, mas quando finalmente removeu a tampa, o mundo estava lá, intacto.

O mundo era uma esfera de vidro transparente com cerca de 50 centímetros de diâmetro com água até um pouco acima da metade e uma grossa camada de matéria orgânica e algas coloridas forrando a base. Algas cinzentas, vermelhas e em vários tons de verde, algumas quase tão altas quanto o nível da água, a maioria das outras variando entre poucos milímetros de comprimento, formando uma paisagem simples, mas que o menino considerou como a coisa mais bonita que já vira na vida. Seus olhos, no entanto, abandonaram as algas e se fixaram, hipnotizados, no pequeno camarãozinho róseo que encontrou escalando uma das folhas maiores. Tinha dez minúsculas patinhas ao longo de um corpo gorducho e rosado de não mais do que um centímetro, e foi o primeiro que o menino avistou entre os oito que lá viviam.

Montou sobre a escrivaninha próxima à janela o suporte que veio na caixa, e sobre ele colocou o mundo. Tinha uma minúscula etiqueta na base da esfera, com o número 4213, e o menino imaginou quantos outros mundos haveriam espalhados por aí.

O mundo tornou-se imediatamente o foco gravitacional das atenções do menino. Frequentava a escola, a natação, as enfadonhas aulas de piano, mas seus pensamentos invariavelmente deslizavam para o mundo, e ao chegar em casa o menino sequer olhava para outros brinquedos, gibis ou jogos. Nem brincar na rua com os outros meninos interessava. Só o mundo interessava. O pequeno e por outro lado infinito Mundo de Cristal, como gostava de pensar. O mundinho de Escalador, Roedor, Covarde, chefe, Ligeiro, Gorducha, Sereia e Namoradeira, nomes com os quais batizara os oito pequenos senhores do Mar de Cristal. Decidira por observação, critério e conta própria que cinco pareciam machos e três fêmeas, e imaginou que essa distribuição cedo ou tarde traria conflitos ao fundo do mar. E durante horas a fio o menino observava silenciosa e atentamente a vida cotidiana dos pequenos crustáceos. O Chefe tinha esse nome porque era o maior deles, e nenhum dos outros parecia querer incomodá-lo por nada. Roedor e Gorducha passavam a maior parte do tempo abraçados em pequenas algas, apreciando ora o sabor das vermelhas, ora das verde-escuras. Sereia e Ligeiro gostavam de nadar, e estavam sempre cruzando despreocupadamente a extensão oceânica do mundo, enquanto Namoradeira nunca ficava longe de um dos cinco machos. Dois, no entanto, atraíam mais sua atenção. Covarde era o segundo de quem o menino mais gostava, ainda que não soubesse explicar exatamente o motivo. Ficava o tempo todo entre as algas com mais de um centímetro, de forma que pudesse se esconder sabe-se lá de quem. De fato, até sua coloração era um pouco mais puxada para o vermelho, e em algumas partes do mundo ele desaparecia totalmente. Logo na primeira semana, o menino notara que Covarde só tinha nove pernas, faltando-lhe uma das duas dianteiras. Teria nascido sem ela e dessa forma se escondia por vergonha de não ser exatamente como os outros? Quem sabe teria perdido aquela pata em uma luta, talvez contra o Chefe, pelo amor de Sereia, Gorducha ou Namoradeira, e desde então não saiu mais da segurança das algas?

Muito diferente de Covarde era o Escalador, seu preferido entre todos. Fora o primeiro que o menino encontrara no dia em que o mundo chegara pelo correio, e parecia gostar muito de escalar as algas mais compridas. Quando chegava ao topo, lá permanecia, às vezes por vários minutos, e então descia flutuando pela água até o chão. Certa vez, o menino agachou perto da escrivaninha em um momento de iluminação oportuna, e notou que de determinados ângulos, era possível ver seu reflexo na superfície da água também pelo lado de dentro. Seria isso que o Escalador tanto buscava? Descobrir quem seriam aqueles oito camarões que viviam no “mundo de cima”? Ou será que o Escalador compreendia estar olhando para o próprio reflexo, e todos os dias subia as maiores algas movido por um instinto completamente narcisista de se admirar mais de perto? Em uma noite, olhando para o mundinho por vários ângulos, encontrou-se pensando sobre como os camarões do aquário o veriam. Um borrão, provavelmente, esférico e com os tons azulados de seus olhos, que perscrutavam exaustivamente toda e qualquer atividade interna durante grande parte do dia. Será que pensavam sobre aquele grande olho azul? Será que olhavam para cima e atribuíam sentido ao que viam?

O menino fechou a janela do quarto. O termômetro interno acusava aumento de temperatura, e o mundinho precisava ser mantido em uma faixa muito estável. Sentia-se responsável por aquelas oito vidas, por seu bem-estar, por sua saúde. Sabia que um dia morreriam, mas não gostava de pensar no assunto. Amava-os como um pai poderia amar seus filhos, como um deus poderia amar sua própria criação, e ainda assim sabia que além de controlar sua temperatura, não podia fazer mais nada por eles. Sentia-se, afinal, um deus muito impotente, e perguntava-se se Deus, Deus mesmo, também não seria assim, um observador distante que amava muito a todos, mas nada podia fazer por seus filhos além de observar. Assistiu, maravilhado, quando o Chefe e a Namoradeira resolveram que estava na hora de fazer algo além de nadar e comer algas, e emocionou-se profundamente ao ver Sereia abandonar os encantos de Roedor para acasalar com o Covarde em seu esconderijo. Nenhuma das fêmeas, porém, jamais dera cria, e isso era algo que incomodava muito o menino-deus. Via as pequeninas bolhas de ar que deixavam as narinas dos habitantes do Mundo de Cristal, e percebendo que as bolhas aumentavam quando dois deles estavam próximos, achou razoável imaginar que era assim que conversavam, e dessa forma passou a imaginar sobre o que conversariam pequenos camarões rosados em um mundo de meio metro. Viu o Escalador falando aos outros do grande olho e do “mundo de cima” que vira no alto das algas, enquanto o Roedor dava mais atenção a uma alga cinzenta que a qualquer outra coisa, e viu Chefe e Ligeiro falando de Gorducha e Namoradeira, que nadavam distraídas de um lado para o outro. E assim o menino passava as manhãs na escola e o restante do dia em seu quarto, assistindo como um deus onisciente à vida cotidiana de seus oito pequenos amigos.

Um dia, procurando pelo Covarde, o menino encontrou o Chefe caído sob uma folha de alga. Foi o primeiro, e naquela noite o menino chorou como nunca antes na vida, de tristeza e impotência, porque a morte do Chefe o fez entender que logo os outros também morreriam e seu pequeno Éden, o Mundo de Cristal onde o menino-deus passava suas tardes e noites, chegava ao fim. Roedor e Ligeiro foram os próximos, na semana seguinte, e dez dias depois foi a Sereia. Nenhuma das fêmeas dera cria ao longo da vida, e o menino não sabia porque, mas também não importava mais. Seus pequenos corpos eram dissolvidos em poucos dias, por bactérias que o menino não via, mas sabia estarem lá. O Escalador foi ao encontro do grande deus-olho nos dias seguintes e, um mês depois da morte do Chefe, Gorducha e Namoradeira morreram, deixando para trás apenas o Covarde, último e irônico sobrevivente do mundo em colapso. E nem mesmo em seu último dia, já sozinho na imensidão do Mar de Cristal, Covarde deixou o conforto seguro de suas algas, morrendo abraçado a uma delas, parecendo mais medroso do que nunca.

O menino chorou apenas pelo Chefe, e chorava agora enquanto se despedia do Covarde e de seu mundo inteiro. Retirou o globo de vidro do suporte onde o colocara um ano antes, e com passos lentos e abatidos, levou-o até seu pai, que saberia o que fazer com ele. Naquela noite, deitado em sua cama, o menino olharia para o suporte vazio sobre a escrivaninha, refletiria sobre a natureza da vida e da morte, e chegaria assim oficialmente ao fim de sua infância.

em memória de Carl Sagan.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

MELWIN

Bom dia. Faz alguns meses que resolvi roubar uma idéia e publiquei no meu perfil do Facebook uma chamada para que as pessoas depositassem cada uma uma palavra qualquer nos comentários, de modo que ao fim do período eu reuniria as palavras todas e escreveria um conto onde todas estivessem presentes. Trinta amigos atenderam o chamado e ali estava eu com trinta palavras diversas, algumas esdrúxulas, outras simples, algumas rebuscadas, outras do baixo calão. Foram três meses só para decidir sobre o que escreveria, e a partir daí escrever foi mais um exercício de malabarismo, o que me deixou feliz por ser exatamente o que eu pretendia desde o começo. A escolha por ficção científica (tema sobre o qual já publiquei na semana passada) foi forçosa, uma das palavras presentes não me deixou escolha, e no final fiquei bastante satisfeito com o resultado. Se você é uma das trinta pessoas que participaram da construção desse conto, muito obrigado, espero ter dado um bom lugar à sua palavra. Finalmente, coagido pela natureza do conto, precisei utilizar muitas das palavras sugeridas em sua forma no plural. Espero que me perdoem por isso e que gostem do conto.


MELWIN

As três Leis da Robótica São:

Primeira Lei: Um Robô não pode causar qualquer mal a um ser humano ou,
por omissão, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

Segunda Lei: Um Robô deve obedecer a todas as ordens que lhe sejam
dadas por seres humanos, exceto em caso de conflito com a Primeira
Lei.

Terceira Lei: Um Robô deve proteger sua própria existência, exceto em
caso de conflito com a Primeira e Segunda Leis.

O céu noturno de 441T-A não possuía quaisquer atrativos apreciáveis. O pequeno globo orbitava uma também pequena estrela amarela em um sistema solar de um só astro, um só planeta e nenhum outro corpo celeste maior do que asteróides errantes. Nem mesmo um satélite natural possuía. Para piorar, o sistema solar 441T ficava em um dos extremos mais periféricos da Via Láctea, de forma que sua paisagem celeste não exibia mais do que uma dúzia de estrelas visíveis brilhando perdidas na imensidão escura. 441T e seu único planeta foram encontrados pelas naves e telescópios exploratórios da Federação há um século, e uma nave fora prontamente enviada para iniciar os processos de reconhecimento. Três pilotos, dois co-pilotos, biólogos, químicos, físicos, engenheiros, uma equipe médica completa, e os robôs.

Eram vinte e cinco robôs positrônicos trabalhadores, modelo MW, fabricados pela U.S. Robotics na Terra. Eram, na forma mais objetiva de se dizer, homens de lata, ou mais especificamente titânio e aço-boro. Seu formato e tamanho eram humanos, o que lhes permitia interagir com o mundo dos homens eoperar suas ferramentas, e seus cérebros positrônicos estavam programados com diversos procedimentos rotineiros de trabalho braçal, além é claro das Três Leis, que se encontravam na base mais profunda do sistema de inteligência artificial dos robôs Positrônicos e sem as quais nenhum modelo deixava a única fábrica de homens mecânicos da galáxia. Se a equipe de analistas humanos decidisse que o planeta era, de fato, viável para colonização, aqueles vinte e cinco trabalhadores eletrônicos poderiam construir uma pequena cidade em poucos meses. Até lá, os protocolos de migração teriam sido aprovados e as primeiras dezenas de milhares de pessoas chegariam a 441T-A para começar vida nova, e poderiam então batizar seu novo lar com um nome mais bonito.

Nada disso, no entanto, aconteceu. Um século havia se passado desde a chegada da primeira nave humana de exploração, e naquela noite costumeiramente sem estrelas os únicos olhos que observavam o céu noturno não eram humanos e não procuravam por estrelas. No alto do observatório estelar construído no ponto mais desértico de 441T-A, Melwin olhava, pela 365250ª vez para o infinito do Universo, à procura de qualquer sinal de movimento, à procura de qualquer nave humana que passasse pelo campo de leitura dos dezessete satélites artificiais que rodeavam 441T-A. Melwin não precisava observar o céu durante a noite. Todos os sistemas de escaneamento por satélites e telescópios orbitais estava conectado a seu cérebro positrônico, de forma que ele saberia, não importa onde estivesse, se alguém se aproximasse. Não acontecera nenhuma vez no último século. Ainda assim, todas as noites, Melwin caminhava até o observatório e procurava.

Melwin não era um robô trabalhador simples como os vinte e quatro que chegaram com ele na nave exploratória. A U.S. Robotics o produzira como uma versão superior dos modelos Multitask Worker, instalando em seu cérebro digital positrônico um módulo de aprendizado cognitivo e o maior banco de dados já organizado da ciência e cultura humanas. O modelo MLW - Multitask Learning Worker - a quem os cientistas e funcionários rapidamente passaram a chamar pelo hipocorístico "Melwin", foi então enviado com cento e trinta pessoas e vinte e quatro robôs MW para ajudar na colonização de mais um mundo. Os Robôs positrônicos inteligentes haviam sido inventados milhares de anos atrás, antes mesmo da humanidade explorar as estrelas e colonizar outros planetas. Seu uso, no entanto, era muito restrito, normalmente se limitando ao trabalho braçal em ambientes inóspitos. Nos grandes centros urbanos da Terra, seu uso continuava proibido por lei, um vestígio aparentemente incurável de uma Síndrome de Frankenstein inerente à humanidade. Cada robô era alimentado por micro-reatores de antimatéria virtualmente inesgotáveis, e valiam pequenas fortunas. Seu único fabricante, a U.S. Robotics, não os vendia em hipótese alguma. Eram arrendados, projetados especificamente para suprir as necessidades do cliente em particular e rios de dinheiro eram cobrados todos os anos por seu uso. Ainda assim, considerando-se a capacidade e eficiência de seu trabalho, robôs positrônicos valiam muito a pena para quem pudesse pagar.

Caminhando para fora do Observatório, Melwin perguntou-se novamente por que retornava ao telescópio todas as noites para constatar o que já sabia. Analisando a situação e combinando com seus registros sobre robopsicologia - uma versão exata e computacional da psicologia humana - concluiu que possivelmente experimentava uma sensação similar a uma emoção. Não era a primeira vez que acontecia com uma inteligência artificial. Os avanços na robótica trouxeram efeitos colaterais interessantes e assustadores, muitos deles relatados nos registros da U.S. Robotics. Houveram casos de robôs experimentando sensações análogas às humanas, como ciúmes e vergonha, e até mesmo o conhecido caso de Helvex, o robô que alegava sonhar quando inativo. Trata-se de uma emoção com certeza, pensou Melwin. Mas qual? Nas vinte e quatro horas seguintes, aquele problema ocuparia em seus circuitos todo o poder de processamento que não estivesse investido em sua missão.

Sim, evidentemente Melwin tinha uma missão. Robôs tinham aparência e inteligência humanóides, mas ainda eram equipamentos, aparelhos, ferramentas com finalidade e propósito de existência. Melwin havia sido programado com a diretriz primária de auxiliar no processo de colonização de 441T-A coordenando o trabalho dos MW até que as naves civis chegassem. Era por isso e para isso que existia, e todos os cálculos referentes a missão tinham prioridade máxima de processamento em suas trilhas positrônicas. Para melhor realizar seu propósito, Melwin possuía um gigantesco banco de dados contendo virtualmente toda a cultura dos últimos 10 séculos, da ciência à literatura, o que lhe conferia um entendimento singularmente amplo da natureza humana. Isso, é claro, para um Robô e em nível estritamente teórico.

Os circuitos positrônicos que lhe serviam de memória continham um único registro de contato prático com humanos, e já se encontrava no pequeno planeta na ocasião. Fora ativado às pressas pelo Coronel Joe Messi, líder militar da missão que gritava descontroladamente para que o robô fizesse algo, e a primeira coisa que viu foram muitos humanos correndo e gritando assustados por toda parte. A única frase que pôde compreender, no entanto, foi "Buceta! Caralho! Putaquepariu! O Frombotzer vai explo..." e então um forte clarão, uma forte pressão e um enorme aumento de temperatura. Nada no entanto que pudesse sequer manchar a estrutura reforçada de titânio e aço-boro, desenhada para resistir a ambientes extremos. Melwin e os modelos MW passaram incólumes pela explosão, mas a nave e seus tripulantes humanos foram vaporizados em um breve momento pelo calor liberado. No milissegundo que se passou entre a compreensão dedutiva do que estava acontecendo com o Deteronic Frombotzer – uma estrutura de alta tecnologia que alimentava toda a energia da nave – e a explosão em si, Melwin e todos os vinte e quatro MW ainda tentaram, impelidos pela Primeira Lei da Robótica, adiantar-se para salvar seus mestres, mas a expansão do reator foi mais rápida, e assim os vinte e cinco robôs se tornaram os únicos seres pensantes, ainda que não humanos, em 441T-A.

Sem seus mestres, sem suas ordens, os homens mecânicos passaram a aguardar instruções de Melwin, que estava registrado em seus cérebros positrônicos como instrutor de tarefas. Melwin, por sua vez, não tinha ordens a seguir, mas seu cérebro estava igualmente programado com milhares de protocolos que não necessitavam de apoio humano. E sem nenhum ser humano que pudesse ser de qualquer maneira prejudicado por suas decisões, Melwin passou a exercer sua função de colonizador por conta própria. Tinha um corpo de trabalhadores incansáveis que juntos valiam por algumas centenas de homens fortes, e em uma extrapolação lógica da Primeira Lei, concluiu que humanos que chegassem a 441T-A em naves civis sofreriam grande mal expostos às intempéries da natureza, de forma que os robôs deveriam impedir esse mal civilizando o planeta.

Assim, por um século, Melwin e os MW trabalharam dia e noite ininterruptamente em perfeita harmonia e sinergia, seguindo planos e projetos milimetricamente calculados por cérebros computadorizados.

Passaram os primeiros 22 anos recolhendo, purificando e armazenando matéria-prima do ambiente. Milhares de toneladas de pedra, madeira e material orgânico oriundo das formas de vida locais. Com a matéria-prima, produziram ferramentas rudimentares e, com estas, ferramentas mais complexas. E com ferramentas mais complexas, produziram outras ainda mais complexas. E em 3 anos de dedicação exclusiva ao avanço instrumental, Melwin e os MW finalmente atingiram o estágio mínimo de fissão nuclear necessário para passar à próxima etapa de colonização. Terraplanaram colinas, limparam inúmeros hectares de mata, e moldaram cidades à imagem daquelas que Melwin possuía em seus registros. Construíram ruas e casas, prédios e praças, conduítes e encanamentos, motores e computadores. Naquela noite, enquanto Melwin caminhava pela grande e desértica avenida para se juntar aos vinte e quatro no contínuo e interminável trabalho, 441T-A completava seu 100o. Aniversário desde a chegada da nave de exploração. Era um planeta completo, totalmente civilizado, com grandes cidades mantidas por sistemas robóticos tão complexos que poucas mentes humanas, se vissem, poderiam compreender. Mas não havia nenhuma alma humana em 441T-A. Haviam ruas, túneis e viadutos, e carros sem motoristas ou passageiros. Haviam grandes arranha-céus, escolas, hospitais e shopping centers novos em folha, e também haviam parques e reservas ecológicas, onde pessoas poderiam ver matilhas dos grandes canídeos que constituíam os maiores predadores do pequeno mundo. O Observatório foi o terceiro prédio a ser construído, e os templos religiosos estavam sendo os últimos. Pesquisando as necessidades infra-estruturais de uma cidade, Melwin deparou-se com um conceito que evadia o prático. Um sentimento amplamente registrado na cultura humana mas cujos fundamentos se estabeleciam sobre fatores ilógicos e inverificáveis. Os humanos, no entanto, possuíam uma evidente necessidade de expressar esse sentimento que Melwin encontrou com as palavras "Fé" e "Deus", e assim decidiu que precisavam de representatividade mesmo contrariando seu senso lógico. Construiu, desse modo, 39 templos religiosos, um para cada "Fé em Deus" contida em sua memória, e o último deles estava sendo concluído naquele instante.

Quando Melwin chegou ao canteiro de obras, os MW já estavam terminando o lugar depois de 70 horas de trabalho.. A cidade que estavam terminando era a quadragésima quinta do planeta, que agora poderia abrigar confortavelmente até cinqüenta milhões de pessoas. E cada cidade tinha seu estilo assim como cada casa, todos derivados do banco de dados de Melwin. Algumas casas tinham pianos, outras piscinas, outras salas de jogos. Algumas tinham aquários com peixes, vasos de petúnias, gatos e caixas de areia. Mas nem um único ser que pudesse de fato nadar, ouvir música, admirar os peixes ou brincar com o gato. Mesmo assim, em cada residência, a despensa estava cheia e bem abastecida de água e comida. Grandes plantações produziam constantes safras de alimentos para uma população inexistente. E todos os meses os robôs reuniam as produções agrícolas, chicória e agrião, maçãs e limões, arrozais e pés-de-feijão, quilométricas plantações de esponjas vegetais que pendiam do teto como imensas estalactites de proteína, e devolviam seu conteúdo estragado para a terra, onde aqueles nutrientes sem função se tornavam compostagem para o próximo plantio. Havia portos, e em cada um deles barcos, navios, submarinos, escafandros e guindastes. Haviam sorveterias, e nelas haviam máquinas que produziam Milk-shakes de chocolate com amêndoas e outros sabores, e em cada mesa, haviam lenços de papel para limpar a boca e as mãos. Mas não havia em 441T-A nenhuma boca ou mão humana que pudesse usufruir de nada daquilo. Quimicamente, os Milk-shakes eram idênticos às descrições nos circuitos de Melwin, mas ele próprio não seria capaz de dizer se sequer eram saborosos. Os robôs se reuniram diante de Melwin, e transmitiram por rádio o sinal de que haviam concluído a última tarefa para aquela cidade.

Ficaria registrada como 441T-A45, pois batizar as coisas e lugares era uma prerrogativa da qual os humanos gostavam muito, de forma que os robôs não deviam fazê-lo. Enquanto os MW recolhiam os utensílios de trabalho e carregavam o veículo de transporte, o cérebro de Melwin calculava o ponto em que seria fundada a próxima cidade, 441T-A46. Esta havia demorado quatro meses para ser erguida, trabalho que mil homens demorariam no mínimo dois anos para realizar em condições ideais. Todo aquele trabalho braçal, no entanto, não ocupava mais do que 5% da capacidade de processamento de Melwin, de forma que seus pensamentos voltavam-se constantemente para os registros culturais em seu banco de dados. Ouvia música, analisava quadros, lia e relia diariamente dezenas de milhares de páginas acerca de todos os assuntos sobre os quais o homem se debruçara. Tinha, no entanto, uma atração particular pelo estudo da psicologia humana, ciência que juntamente com a matemática originara, dezenas de milênios atrás, a Robopsicologia e a Robótica como campo da ciência. Intrigavam-lhe pontualmente as emoções, processos mentais que geralmente tinham função evolutiva, mas que não podiam ser apreendidos com perfeição por modelos matemáticos. Construído à imagem e semelhança de seus criadores, Melwin entregou-se ao mistério e, assim, passava e repassava todos os dias os trilhões de páginas em seus circuitos, à procura de modelos capazes de definir determinada palavra como "esperança", "rancor", "perdão", "hipocrisia" ou "humildade". Outros termos pareciam estranhos à primeira leitura, mas uma rápida pesquisa nas bases de dados logo trazia uma explicação, como quando deparou-se com o termo "engasopado" em um diálogo, palavra que logo descobriu referir-se a uma forma de combustível antiquado e fora de uso há mais de vinte mil anos.

E foi naquele exato momento, enquanto os MW carregavam o veículo e o aguardavam para deixar a cidade recém-construída, que Melwin olhou novamente para os céus, agora sem o telescópio do Observatório, e compreendeu a emoção que sentira horas antes no Observatório. O sentimento que nascera de seu contato ininterrupto com a produção intelectual humana, que o impelia a continuar trabalhando todos os dias e que ao fim de cada tarde o levava até o Observatório para procurar. O anseio, a constante equação mental que seus sistemas interpretavam como "desassossego" e que nenhum dos trabalhadores MW comuns pareciam sentir. Naquele milissegundo, olhando para o infinito escuro do Universo e situando-se em um mundo deserto, com cidades, ruas e casas vazias, tão distante da humanidade para que constituía sua razão de ser, Melwin compreendeu que se sentia solitário.

em memória de Isaac Asimov

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Turismo de Cemitério

Eu sempre gostei de cemitério. Sempre gostei de velório e coisas ligadas à morte. Eu não sei se é porque a minha mãe e meu pai não eram daqueles que ficavam pondo medo, não cantavam "A Cuca Vem Pegar" e outras coisas, de forma que assombrações, almas penadas, etc não fizeram parte da minha infância.

Na verdade eu era até um estraga-prazeres. Quando diziam que uma casa era mal assombrada ou cheia de almas penadas, eu entrava lá, abria as janelas e dizia: "Olha aí, gente, não tem alma penada nenhuma aqui não!"... Caminhos escuros onde se escondiam os sacis e outras coisas também me fascinavam. Fiquei três noites em Joanópolis para ver o Lobisomem e a Mula-Sem-Cabeça, que a mulher jura que o filho dela viu, mas eu sou um azarado mesmo. Nos dias que fui nunca apareceram. Já tentei até 13 de agosto de ano bissesto, em plena sexta-feira. Nada.

Eu nasci incrédulo. Essa é a única explicação. Ou minha mãe era tão incapaz de me convencer, que ela dizia mas eu não acreditava. Mas é certo que na minha família a morte nunca foi nem amiga nem inimiga. Choramos a morte dos que se vão com naturalidade, mas não queremos ir junto, como costumam fingir alguns à beira da sepultura. E depois que se vão os esquecemos (eu pelo menos esqueço) e não costumamos fazer visitas aos ossos do defunto que está sete palmos debaixo da terra.

Não faz sentido.

Em cidades menores, como Araraquara na minha infância, os velórios eram feitos na casa do defunto. A funerária punha uma cortininha roxa no portal da casa indicando que ali havia luto. As portas eram abertas, os móveis retirados e a visitação era sempre pública. Afinal todos se conheciam. E a entrada era franca, o que significava que se podia conhecer por dentro a casa de todos aqueles que morriam. Confesso que não resistia. Desde que que me conheço por gente, sete ou oito anos, que perambulava pelas ruas da cidade, não perdi um velório.

Só havia duas funerárias. Ou Micelli ou Almeida. Mas duas funerárias já dava concorrência. Eu preferia os funerais dos Micelli por ter cafezinho e mais alguns agrados. Às vezes fazíamos amizade no velório com outras crianças e ficávamos brincando de pega-pega, até por debaixo do caixão já passei correndo. E eu sempre tive muito apego ao uso das palavras. Então ficava observando como se comportavam as viúvas, e as frases prontas que se repetiam em todos os velórios. A mais comum na minha cidade era que o defundo nunca tinha feito mal "nem para uma mosca". Outra comum era o "tanta gente ruim nesse mundo, e bem ele vai morrer".

O fato foi que eu me diverti demais com os velórios da cidade, aproveitei velórios de ricos que compravam salgadinhos e guaranás e, enquanto uma turma chorava lá, a outra refestelafa de cá, entre risos, piadas e coisas comuns a todos os velórios. Também, chorar 24 horas sem parar, nem a mãe da criança.

Dada a hora marcada, um carrinho era encostado na porta da casa, o caixão era fechado aos berros desesperados dos órfãos, coisa compreensível, e íam empurrando o carrinho até o cemitério. Todo mundo ajudava um pouquinho para colaborar no esforço. Depois passaram a levar na kombi, bem devagarinho e o povo ia atrás. Mas a cidade foi crescendo e os trajetos da casa do finado até o cemitério começaram a ficar longe demais. Não dava para acompanhar a pé. Aí iam de carro, alguns não iam mais e a tradição foi-se acabando.


Para acabar com a festa de uma vez, um prefeito lá que nem quero lembrar qual foi, construiu o Velório Municipal e proibiu fazer velório nas casas. Aí acabou a graça. Velórios municipais são como conjuntos habitacionais: quem viu um viu todos. Já fazem num canto do cemitério e nem tem a procissão. Cada um corre para pegar um ângulo bom de vista. Acabou-se a cerimônia. Virou uma zona. Foi um tempo muito bom. Aprendi demais sobre como um defunto vira santo. Basta não matar "nem uma mosca".

Paralelamente a esse meu fascínio por velórios, eu também adorava andar em cemitérios e ver, pelos nomes mais conhecidos, os mais ricos, quem fazia o maior jazigo. A vaidade é uma coisa tão podre que se manifesta até na compra do caixão mais caro e na construção de jazigos com mármores importados e outras coisas que arquitetos famosos projetam para os que gostam disso. Credo.

Mas, fora os famosos, há os interessantes. Uma observação atenta te leva aos que estão enterrados a mais tempo. Quantos anos viveu. É só fazer as contas do dia do nascimento e da morte. Eu era bom de fazer contas de cabeça. E aos túmulos "classe média" eu dava só uma espiadela. Não tinham muita atração. Era só um granito barato, básico, e uma plaquinha informativa. Eu gostava mesmo era das pontas. Dos jazigos dos poderosos e dos podres de pobres.

Houve uma fase em que o granito e o mármore ficaram caríssimos e então surgiu a moda de fazerem túmulos azulejados. Era uma breguisse, mas ficava mais barato. Já imaginaram uma cruz azulejada em cima do túmulo? Um horror. Já até a década de 50, 60, ainda se conseguia colocar uma escultura em mármore de alguns anjos. Depois encareceu demais e hoje, quem tem, tem, quem não tem, morresse antes.

Por essas semanas, com o sepultamento de dona Ruth Cardoso no cemitério da Consolação, me lembrei que tive a oportunidade de conhecê-lo mas, que azar o meu, não sabia de tantos famosos lá enterrados. Presidentes, Monteiro Lobato, os Matarazzo e tantos outros. Perambulei por lá, gostei demais, mas não reconheci ninguém famoso. Fiquei sabendo das atrações através de um "guia turístico" do cemitério que foi entrevistado no Programa do Jô. A vida me empurra cada vez mais para longe de São Paulo, mas ainda vou visitar de novo o Cemitério da Consolação, dessa vez com o guia, pois quero contemplar o último lar dos que não voltam mais.

Enfim a moda virou e acharam que a morte nivelava as pessoas, de forma que surgiram os cemitérios parques, gramados, sem túmulos. Anda-se pelo gramado em busca das plaquinhas que ficam no chão. O primeiro, salvo engano, foi o Cemitério do Morumbi, onde estão os restos de
Ayrton Senna e da minha avó e família.


De fato nivela as pessoas mesmo, mas por cima. Não tem túmulos mas um pedacinho de terra custa uma fortuna. Como as pessoas andam pelos jardins aleatoriamente, não se cria trilhas. Menos no caso de Senna.

Ali é que nem área de goleiro. Não cresce grama nem a pau. Todo mundo vai lá, lê a plaquinha "Ayrton Senna da Silva", lamentam e se vão. Todos num vai e vem em linha reta. Não tem jeito. Só calçando mesmo. Esses cemitérios não têm charme. São monótonos demais.

Cemitério é cultura. Cemitério conta a história da cidade através dos que se foram e das suas condições financeiras à época da morte. Mostra costumes de épocas, como se colocar a foto do defunto no túmulo. Houve a era dos versos, dos anjos, das estátuas em bronze. Está tudo lá, datado. É só observar. E, como tudo na vida, tem que garimpar. Quem anda pelos meios das quadras acaba encontrando algumas preciosidades.

Finados é o carnaval dos cemitérios. Aconselho não ir nesses dias. A hipocrisia é imensa. Escolha uma segunda-feira normal, lá pelas 10 da manhã, e vá observando, lendo, aprendendo... Lá não há almas penadas, nem fantasmas ou assombrações.

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José Caparica Neto, autor do texto acima, foi escritor, cronista, jornalista e publicitário. Morreu no dia 22 de Outubro de 2010, aos 53 anos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Infinidade

Adam Saviour pisou dentro da Caldeira. Seus lados eram perfeitamente redondos e ela se ajustava confortavelmente dentro de um eixo vertical composto de barras largamente espaçadas, que tremeluziam numa neblina invisível, dois metros acima da cabeça do homem. Este tomou os controles e acionou calmamente a alavanca de partida da Caldeira.

Não esperava sentir qualquer movimento e, de fato, não se moveu. Ao menos não em qualquer direção espacial observável. Voltando-se para um marcador digital diante de seus olhos, pôde ver números subindo vertiginosamente até 129000. Era o século para o qual estava se dirigindo, mais exatamente no ano de 128048 da Era da Infinidade.

Enquanto os motores temporais cuidavam da transferência física de Saviour e sua Caldeira através dos milênios, seu destino espacial era idêntico ao endereço de partida: a câmara de viagem temporal, mas agora nas instalações da Infinidade do século 129000. O próprio Saviour não sabia exatamente como aquilo tudo funcionava, já que mesmo tendo um cargo importante como Técnico, tinha muito pouco envolvimento com Mecânica Temporal e Matemática de Cronotopos. Sabia, no entanto, que aquela Caldeira cruzava o tempo incontáveis vezes simultaneamente nas Infinidades de incontáveis séculos, e que nunca houveram erros de cálculo ou destino.

Percebeu que o mostrador havia estancado no dia 15 do mês 3 do ano de 128048, às 9h em ponto. Era, realmente, muito raro que um Infinito se atrasasse para um compromisso, dados os meios de transporte. Olhou para fora da Caldeira. Durante a viagem, as barras cinzentas se fundiram em uma cortina de luz tremeluzente, que agora era a única coisa que o separava, de um lado, da Realidade Temporal e, de outro, da Infinidade. Ajustou os controles e, movendo-se para fora da cortina, sentiu o calafrio psicossomático oriundo da entrada em um novo ponto do tempo.

Danny Javers o aguardava, com olhar impassível. Ao observar a sala de Caldeiras em que se encontrava, Saviour não conseguiu disfarçar uma sensação de incômodo. Devia ter lido pelo menos alguma coisa sobre o século 129000 antes de viajar, e agora se amaldiçoava por não tê-lo feito. As paredes não pareciam paredes, mas formações absoluta e opressivamente lineares, retas, perfeitas, de alguma presença que poderia ser confundida até mesmo com sonhos, mas jamais com matéria comum. Saviour rapidamente compreendeu que estava em um século orientado para a energia, da mesma forma como o seu distante século 251 era orientado à matéria. Javers, à sua frente, era um exemplar absolutamente típico de um Homo sapiens, exceto pelo traje eletromagnético que o vestia, dando-lhe o irritante aspecto de um caleidoscópio psicodélico. Ao notar o evidente estranhamento de Saviour, Javers regulou as cores da sala e de sua própria roupa para tons mais estáveis.

- Muito prazer, Técnico Saviour. Sou Javers Danny, Computador-Sênior deste século. É uma honra tê-lo em nossa Infinidade.

- Peço que desculpe minha falta de hábito com os costumes de seu tempo, Computador Javers – Saviour sabia ser polido e, mesmo que não soubesse, convinha muito pouco ser rude com alguém de um cargo tão alto como um Computador-Sênior.

Caminhando pelas instalações da Infinidade local, Saviour pôde ver em funcionamento a arquitetura alienígena daquele século, onde as salas não tinham portas, com paredes que se abriam naturalmente quando alguém a menos de 30 cm fazia um gesto simples com as mãos. Dessa forma, Saviour não pôde definir por que cômodos havia passado. Chegaram, finalmente, à sala pessoal de Javers.

- Imagino que possamos tratar imediatamente do assunto de nosso encontro, sem mais delongas, dada a importância da questão.

- Sem dúvida, Computador. Serei o mais objetivo possível, ainda que minhas teorias necessitem de alguma explicação prévia.

- Pois faça-o com toda a liberdade e nenhuma pressa além da conveniente – Javers fez um gesto para um canto de sua mesa de energia, e alguns aparelhos igualmente energéticos começaram a operar, ainda que Saviour não fizesse a menor idéia acerca de suas funções. Abriu uma pasta que, feita de plástico e papel, parecia igualmente alienígena para Javers.

- O que sabe sobre o Técnico Andrew Harlan, senhor Computador? – as palavras de Saviour atingiram os ouvidos de Javers. Aquele, mais do que muitos, era um assunto pouco falado nos corredores temporais da Infinidade.

- Foi o mais competente e destacado Técnico do Tempo de que já se ouviu falar. Nasceu no século 93 e morreu aos 89 anos de fisiotempo, na Terra do século 20 ou 21.

- E o que mais sabe, senhor Computador, sobre esse homem?

Javers encolheu os ombros. Respirando profundamente, levantou os olhos da superfície reluzente da mesa e encontrou o olhar inquisitivo de Saviour. Sabia que estava diante de um Técnico, o mais ingrato e ao mesmo tempo glorioso cargo da Infinidade.

Sempre que determinado evento na Realidade Temporal se mostrava nocivo ao destino e bom andamento da raça humana, a Infinidade intervinha. Primeiro, um Observador era enviado ao ponto crítico, onde fazia centenas de anotações sobre diversos fatores relevantes. Em seguida, um Computador – não um aparelho, mas um ser humano treinado exaustivamente em Cronomecânica de Populações – analisava os cálculos e apresentava seu relatório a um Técnico. A este, talvez o mais crucial ponto do procedimento, cabia a delicada e ingrata tarefa de decidir e executar pessoalmente uma MMN, a Mínima Mudança Necessária para que se obtivessem os resultados esperados a longo prazo. Estes podiam ser de diversas naturezas, mas normalmente envolviam a alteração de centenas, milhares, às vezes dezenas de milhões de indivíduos, alguns a ponto de se tornarem pessoas completamente novas e diferentes. Aquele era um cargo similar ao de um carrasco, e igualmente imprescindível. Alguém precisava ser a mão que toca e decide o futuro da humanidade, e poucas pessoas queriam tal responsabilidade para si.

- Andrew Harlan – respondeu o Computador-Sênior Javers – foi, entre outras coisas, o responsável direto pelo fim da Eternidade.

- E o que o senhor entende como Eternidade, Computador Javers?

- Sei muito pouco sobre ela, os registros na Academia são escassos e imprecisos. Por volta do século 26, o cientista Vikkor Mallansohnne decifrou as primeiras e mais fundamentais equações da Mecânica Temporal, que posteriormente deram origem a um grupo de humanos que decidiu monitorar e conduzir os rumos da humanidade ao longo do tempo. Sua missão era garantir a continuidade da espécie por tanto tempo quanto o Universo permitisse, e rapidamente se tornaram ditadores invisíveis controlando a Terra como em um palco de marionetes.

- Está certo. E o que aconteceu com a Eternidade, Computador Javers?

- Os homens do século 10000 conseguiram desvendar a Mecânica Temporal e, sozinhos, descobriram a Eternidade e seus planos. Conceberam um contraplano, arquitetado e executado pela Dra. Noys Lambent, para encontrar uma falha no sistema. Essa falha era o coração de Harlan, que foi convencido a dar fim à maior instituição até então conhecida pelo homem.

Saviour anotava palavras isoladas do que Javers dizia. Fez uma pequena pausa, como se quisesse mudar os rumos da entrevista, e então prosseguiu.

- E o que houve com a Eternidade?

- Harlan a expôs a um paradoxo existencial quando enviou seu próprio criador, o Dr. Mallansohnne, para um século onde os avanços tecnológicos não permitiriam a criação do Campo Cronotópico. Assim, todas as conseqüências do surgimento de tal invenção foram desfeitas.

- E os habitantes do século 10000?

- A própria Dra. Lambent tornou-se uma figura histórica ao oferecer-se para levar Harlan até o século 20 e lá passar o restante de seus fisioanos com ele. Sem ela o plano jamais teria ido adiante. Uma nova instituição foi criada, a Infinidade, para cuidar dos assuntos temporais.

- E porque é que nós, da Infinidade, não somos ditadores como o eram os Eternos?

- Simples – e esta resposta o Computador Javers parecia ter aprendido muito cedo na vida – somos uma instituição de humanos, mas totalmente governada por Robôs Positrônicos, o que nos impede de desvirtuar seus princípios.

- Exatamente, Computador Javers. Somos homens que criaram Robôs incapazes de fazer o mal a um ser humano, e que então deram aos Robôs ordens para impedir que os próprios homens fizessem mal a seus semelhantes. A Infinidade é controlada por um imenso e infalível cérebro positrônico, estruturado sobre as quatro leis da robótica.

- Não vejo, Técnico Saviour, a razão de cruzar tantos milênios para sabatinar-me acerca de tais conhecimentos.

- Logo entenderá. Vê esses diagramas temporais? Referem-se a um período de tempo compreendido entre os séculos 242 e 243? Saberia referir de alguma forma tal período?

- Sim – resmungou Javers, começando a cansar-se de responder perguntas evidentes – é o milênio da Fundação, quando Hari Seldon criou seu plano de desenvolvimento para o 3º Império.

- E o Computador saberia me dizer quem, exatamente, é o grande e maior responsável pelo bom andamento e tão exemplar sucesso do Plano Seldon?

- De acordo com os registros, foi o Robô Positrônico conhecido como Daneel Olival. Ele teria deduzido a Lei Zero a partir das três originais, e assim teria desenvolvido um plano inimaginavelmente complexo para garantir o bem-estar da humanidade.

- Exatamente, Computador. E agora finalmente chegamos onde pretendia. O senhor vê as extrapolações matemáticas que fiz sobre as equações que regem o destino de Daneel? Consegue notar, abaixo da quinta linha, um condicional invariável?

E Javers, de fato, via os pontos indicados por Saviour, e a gradual mudança de tonalidade em sua pele revelou que, sem dúvida, havia compreendido tudo.

- A Eternidade ...

- ... foi planejada e construída por Daneel Olival. As equações temporais, os motores cronotópicos, tudo. Ele encontrou, finalmente, uma forma infalível de salvar a raça humana, e a realizou.

- Mas, se isso é verdade ...

- Então nós logramos seus planos? Não seja tolo, Computador Javers. Daneel sabia que Robôs Positrônicos não poderiam jamais dar ordens a seres humanos, a menos que os próprios humanos assim lhes ordenassem.

O fôlego deixou os pulmões de Danny Javers. O quadro que o Técnico Saviour lhe apresentava era demasiado absurdo, demasiado fantasioso, demasiado improvável e, o pior, estava completamente demonstrado e embasado pelas irrefutáveis extrapolações matemáticas que seus olhos observavam. Retomou o ar e perguntou, receoso.

- Está dizendo, Técnico Saviour, que o surgimento de Mallansohnne, a formação da Eternidade, sua destruição casual por Andrew Harlan e a criação de uma Infinidade feita de humanos e controlada por Robôs ...

- ... é um grande, intrínseco e incompreensível, ainda que inadmissivelmente perfeito, plano de Daneel Olival, com o objetivo de cumprir seu dever que era cuidar da raça humana.

- Então é isso? O senhor veio até aqui para mostrar-me que somos simples e irreversíveis marionetes nos dedos mecânicos de um Robô que deixou de existir ainda no século 250? O que pretende com isso?

- De forma alguma, Computador. Vim porque preciso, ou melhor, a raça humana precisa de sua ajuda.

- Não entendo como posso ajudar de qualquer forma diante de tais circunstâncias.

- Consta dos arquivos da U. S. Robots and Mechanical Men que os projetos lógicos responsáveis pela dedução da Lei Zero por parte de Daneel são oriundos de pesquisas em robopsicologia conduzidas pela Dra. Susan Calvin, no século 21. Como creio que já esteja suficientemente esclarecido, o momento em que Daneel Olival deduz a Lei Zero a partir das três primeiras é o epicentro de uma onda civilizacional que garante a prosperidade humana por mais de um milhão de anos.

- E imagino que a Dra. Calvin seja o objeto de seu interesse. Mas o que haveria ela de ter em comum com meu século? Grande Tempo, Saviour, ela é habitante da pré-história, quando nem mesmo a Eternidade existia ainda.

- O que fazemos em vida ecoa pelos milênios, Javers. Pretendo acessar dados elaborados por Erton Nalaar, arqueólogo da pré-história que retomou os trabalhos de Janov Pelorat sobre a Terra e a origem da raça humana. Em seus papéis, pretendo encontrar informação suficiente para localizar e evitar um acidente de trajeto que julgo ser capaz de encerrar a vida da Dra. Calvin.

O Computador-Sênior Javers engoliu em seco. Finalmente, após mais de uma hora de discussão e explicações, compreendera as reais proporções do risco que se apresentava. Se tudo aquilo estivesse mesmo correto...

Olhou, sobressaltado, para o Técnico Adam Saviour e perguntou:

- O senhor afirma, desta forma, que existe uma variação imprevisível na linha do tempo da Dra. Susan Calvin e que, caso ela não seja corrigida ...

- Sim, Computador Javers. Se ela não for corrigida, existirá uma probabilidade de 21,457% de que Susan Calvin não escreva tais teoremas.

- ... impedindo assim a criação de Daneel Olival.

- ... e um milhão de anos na história da humanidade.



Em memória de Isaac Asimov, pai da Fundação, da Eternidade, da Robótica e de incontáveis sonhos que me ensinaram a a crer na ciência e não temer o infinito.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Breve, Conciso e Auto-Explicativo Diálogo Dramático

- Lívia, acabou.
- Ufa!
- Não, Lívia, é sério. Acabou mesmo.
- Não, tudo bem, eu sei, eu também estou falando sério.
- ...
- Então é isso, boa sorte para você na vida e muito obrigada por tudo, viu?
- Tá bom... de nada.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Meu Sentimento de Patriotismo

Após um período de recesso, estava morrendo de vontade de voltar pro Clube com uma narrativa, minha evidente modalidade favorita de texto. Mas o assunto me pareceu sério, e eu mesmo estou sério demais nos últimos dias para escrever algo menos opinativo.

Nunca senti absolutamente nada de especial em relação ao Brasil. Esse furor nacionalista, fomentado a cada dois anos pelas eleições e todo domingo pelo Galvão Bueno, essa coisa de que Deus é brasileiro e o cacete. Isso tudo me inspirava estranheza quando mais jovem e atualmente me inspira pena e compaixão.

Porque não tem nada mais deprimente do que ver um coitado de um sujeito ganhando 500 mangos por mês, tendo que deixar uns 150 em impostos para um governo que está pouco se lixando para ele, tendo que sustentar família e comprar caderno para o filho estudar em uma escola que se esforça para manter toda a família num mesmo nível de ignorância operacional, e ainda por cima gritando "Brasil!!!" porque a seleção fez um gol. E quando a gente enfia 5 a 0 nos EUA, parece que a diferença social e econômica entre os dois países fica perdoada, porque afinal de contas eles têm dinheiro e vivem bem, mas a gente é pentacampeão. Ta pago.

Eleições conseguem ser ainda mais cruéis, ainda mais desumanas do que o esporte. Passam anos e anos bebendo champagne e Blue Label, conhecendo os 5 continentes, fazendo esbórnias e orgias saturnais com prostitutas de 16 anos de idade, enchendo o rabo de cocaína e outras coisinhas mais, e tudo com o seu dinheiro. Tudo com aqueles 150 mangos de impostos que cada coitado que trabalha tem que pagar para não dormir no xilindró. Aí chegamos no ano eleitoral, e começam a falar que o voto é o exercício da cidadania, que o processo democrático é um direito adquirido, que vivemos em um país livre e somos dessa forma livres para escolher nosso futuro na forma de nossos líderes. Batem no peito com a camisa canarinho e ainda chamam jogador de futebol (porque não, NE?) para dizer na TV que o melhor do Brasil é ser brasileiro. Fazem piada com a sua cara o ano todo e ainda querem proibir os humoristas de fazer piada em tempo de eleição.

E sabem o motivo? Três letras: CQC. Um programa que nem acho bom, mas que constitui a primeira tentativa bem-sucedida de ridicularizar as atitudes ridículas de nossos líderes. Tudo isso porque, entre nossos 26 líderes governamentais, não há um que tenha preparo intelectual e retórico para sentar diante do Marcelo Taz e não ser esmagado. Agora eu pergunto, é o Taz que é o maior orador da humanidade, ou nossos líderes são néscios ignorantes incapazes de argumentar sem um discurso pré-concebido?

Para ser bem honesto, gosto muito da diversidade genética da população local, e ainda mais do clima ameno, sem catástrofes naturais relevantes na região em que vivo. Tirando isso, não vejo nada de razoável nesse país que me inspire qualquer amor à terra ou a seus ocupantes. Talvez nem você sinta de verdade esse patriotismo todo, meu caro leitor. Talvez você só esteja acostumado a acreditar quando nossos líderes te dizem que esse imenso aterro sanitário global, com líderes que se relacionam com governos terroristas, é muito cheiroso e bem arrumado. E eles, enquanto isso, podem trabalhar tranqüilos com você bem distraído pelo Campeonato Brasileiro e pelas Cestas Básicas que te mandam junto com o Bolsa-Família. O patriotismo, meu caro, já dizia Samuel Johnson, é o último refúgio dos canalhas.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Carta Ao Santíssimo Padre, o Papa Benedictus XVI

Meu caro e santíssimo padre,

Venho por meio dessa epistola ad vaticanum exprimir alguns de meus sentimentos atuais, que serão a seguir expostos para melhor justificar o pedido do qual se trata a mesma.

Acontece, meu bom senhor, que sou cristão e, o pior, católico, e isso vem me incomodando já há algum tempo. É claro que não se pode dizer exatamente que fui batizado e fiz a primeira comunhão contra minha vontade, de fato a honestidade não me permitiria dizer que estava eu lutando contra os sacramentos em ambos os eventos. Mas essa mesma honestidade não me foi oferecida por minha família, tampouco pela Igreja Católica, quando os termos de aceitação foram expostos.

Primeiro, ninguém me disse, na ocasião, que Javé (usarei o termo mais adequado, para não ofender nenhum outro deus) era um deus que incendiava cidades, exterminava primogênitos de famílias inocentes, condenava seus filhos à crucificação ou à danação nas chamas eternas e permitia que seus fiéis fossem flagelados só para provar um ponto e ganhar uma aposta. Isso tudo, só a Bíblia me contou, muito tempo depois. Além disso, ninguém me avisou ali, na hora do batismo, que eu concordava em queimar no fogo do inferno caso não seguisse as leis de algum príncipe do Egito de milhares de anos atrás. Na verdade, além de "Deus é bom" e "Deus é amor", ninguém me disse nem explicou absolutamente nada antes de me declarar Católico.

Não obstante, senhor Papa, sinto-me bastante desconfortável em participar de qualquer grupo, ainda que por mera formalidade, que defenda, faça ou tenha feito alguma das realizações históricas de vossa congregação. As cruzadas, para começar, não foram nada legais, nem com os muçulmanos, nem com os ateus, nem com os próprios cristãos. A inquisição também, se me perdoa o termo, foi a maior mancada. Encobrir os casos de padres acusados de pedofilia, remanejando-os para outras cidades, também não foi muito correto, ainda que eu não tenha sido uma vítima desses caras quando era criança. E ainda que eu também não vá ter benefícios pessoais com isso, vocês podiam muito bem aceitar que muita gente simplesmente não quer ser heterossexual, e que não tem nada de mais nisso. E para não esticar demais, só quero manifestar que, em um mundo indo para 7 bilhões de pessoas, mundo esse que não se expande nem é tão grande assim, talvez haja alguma lógica em usar anticoncepcionais ou castrar a população. Não vejo nada nos vossos dogmas proibindo a castração, então quero pular fora enquanto é tempo.

É por esses motivos, e outros que não arrolarei para não abusar de vossa santíssima agenda, que venho solicitar, encarecido, que seja emitida em meu nome uma bula de excomunhão, liberando-me dos benefícios e conseqüências de ser Cristão e Católico. Deixarei as chamas do inferno de lado, me aproximando no máximo de religiões com um plano de aposentadoria mais brando para com os pecadores. Ah, sim! Se possível for, sua santidade, gostaria de receber cópia impressa da Ordo Excomungationis, para exibição na parede da sala de estar. Muito obrigado por sua atenção, e viva Dom Bosco.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Meu Texto Para o Dia do Escritor

Pensei muito sobre como escreveria para essa semana. Dia do Escritor,e já que somos brasileiros, porque não Semana do Escritor? Ponderei sobre escrever uma breve narrativa sobre algum momento da vida de um escritor. Considerei um breve e vazio ensaio sobre o ofício de costurar palavras, e felizmente o juízo me fez considerar minha insignificância a tempo de mudar de idéia. Ponderei até sobre escrever um texto sem absolutamente nada a ver com o título da semana.

Foi então, e só então, que me lembrei de uma das maiores bênçãos da arte literária, aquela que a torna tão vasta e democrática, que me permite dissertar sobre o tema e nos autoriza a publicar nossas bobagens por aí: mesmo os escritores ruins, mesmo os muito ruins, ainda são escritores. São escritores porque escrevem, mas principalmente porque publicam. Porque dão a fuça para os leitores socarem. Não só arriscando uma crítica, não só arriscando uma crítica atroz e fulminante, daquelas de desanimar, mas arriscando o total e absoluto silêncio. Como se ninguém tivesse lido duas das 100 linhas que você achou que mereciam um olhar. É por isso que ficamos tão animados quando vemos um comentário, mesmo que para nos chamar de semi-analfabetos. Porque quem não se deu ao trabalho de ler, dificilmente se dá ao de comentar. Somos uma raça carente, há que se dizer.

E foi assim que cheguei até aqui, até esse textinho sem pretensão. Porque se estamos mesmo na Semana do Escritor, então ainda que à custa de dor e vergonha para a literatura brasileira, é minha semana. E como escritor na Semana do Escritor, me reservo o direito de não falar sobre nada além de porque decidi não falar sobre nada. E seria adorável se vocês comentassem mais nossos textos aqui no Clube. Até semana que vem.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Fuga

Quando Francisco, 22 anos, negro, alto e forte, sentiu a terceira bolha nos pés estourar contra o chão de gravetos secos e mata fechada, já mal conseguia sentir suas pernas. Ainda assim, corria. Corria como nunca antes em toda sua breve vida, corria frenético, sem se preocupar com obstáculos espinhosos nem olhar para trás. Sabia o que o perseguia. Monstros. Seres pálidos e brutais, incansavelmente sedentos por saciar o insaciável. Quando era apenas um menino, ouvia sua avó contar lendas daqueles monstros e agora, aos 22 anos e correndo pela mata fechada como um coelho fugindo de lobos, ele conhecia os monstros muito bem. Mas não podia pensar nisso naquele momento. Precisava correr.

E Francisco correu. Enquanto corria, o vento secava seu rosto, há pouco banhado de lágrimas pelos seis amigos e dois irmãos que não conseguiram alcançar o fim da estrada, onde começava o bosque. Quando os viu cair, Francisco só conseguiu pensar que estava próximo do abrigo seguro e que, se aquilo que ouvira fosse verdade, , talvez, sua única esperança estivesse do outro lado do matagal. Ouviu os urros e gritos hediondos de seus implacáveis perseguidores e, de um só impulso, disparou em direção ao bosque, na esperança de que a mata fechada pudesse atrasá-los.

E então, correu. Por três malditas horas ele correu, até que seus sentidos lhe falharam e seu corpo caiu ao chão. Quando acordou, julgava-se morto, mas ao perceber que os monstros ainda não o haviam alcançado, voltou a correr. Não tinha mais idéia de quanto tempo ficara correndo, nem tampouco se algum dia suas pernas poderiam voltar a fazê-lo. Não se preocupou com as chagas que os estrepes do mato abriam em seus braços e pernas, e por mais que soubesse ser algo muito importante, não conseguia pensar nem mesmo nos ferimentos profundos que os demônios haviam rasgado em suas costas, que sangravam muito. Acima de tudo, tentava não pensar que talvez nunca conseguisse escapar vivo.

E foi quando seus músculos já não mais ouviam seus urros de súplica, quando seu corpo, fustigado de cortes, furos e contusões, caiu, latejante e ensangüentado sobre as folhas secas, que Francisco ouviu vozes familiares. Não o rugir insano de seus algozes carniceiros, mas a voz de um irmão, de alguém como ele.

Virou o rosto para trás, e, entre a vegetação alta rasgada e manchada de sangue por sua passagem, pôde ver a imagem da própria morte. Dois deles o haviam alcançado, haviam farejado seu sangue, seu medo, e agora estavam ali, diante dele e exibindo dentes satisfeitos como os de cães selvagens. Mas quando o primeiro avançou em sua direção, um zunido alto e agudo soou de entre as folhagens, e ambos os monstros caíram, com grandes lanças de bambu cravadas em seu corpo. Sem questionar ou mesmo considerar sua própria sorte, Francisco olhou, já quase perdendo os sentidos novamente, para seu salvador. As lendas eram verdadeiras. Aquele era Zumbi. Francisco alcançara os Palmares, e era um homem livre.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Uma Noite Na Agradável Quezon

Em algum lugar do distante Oceano Pacífico, espremidas entre Taiwan e a Indonésia, num daqueles cantos do mapa múndi que ninguém presta muita atenção, existe um vasto arquipélago que abriga a nação conhecida por Filipinas. Em uma das mais de sete mil ilhas, quase todas habitadas, dessa nação, há uma morna e aconchegante cidade de nome Quezon. Para ser mais específico, Quezon é a maior cidade das Filipinas, ainda que isso não seja exatamente um feito, dado o tamanho das ilhas.

Em Quezon, bem ali, no Centro Velho, bem em frente à praça José Risal, fica o ainda mais aconchegante restaurante do Castro. Sujeito de pequeno porte e sorriso plástico, emoldurado por um denso bigode negro. Quezon é uma cidade mercantil, freqüentada por inúmeros estrangeiros, e talvez isso possa explicar a razão de, em um restaurante típico nas Filipinas, haver uma placa abaixo do nome 'Castro', onde pode-se ler, em língua inglesa para facilitar a compreensão, as palavras "Comida Típica das Filipinas".

Não que a língua inglesa seja mais alienígena lá do que aqui, nem que tal aviso não possa ser lido em outros restaurantes de outros países. Mas lá, em Quezon, no restaurante do Castro, bem no Centro Velho, era importantíssimo para qualquer estrangeiro ajuizado saber se poderia pedir um hambúrguer ou se teria de se refestelar com os inesquecíveis pratos típicos da culinária Filipina.

O Castro tem um cardápio bastante variado. Se você pedir uma sugestão ao Antonino, melhor garçom do Sudeste Asiático, ele te levará, por sua conta e risco, através de um tour gastronômico. Como entrada, para você já ir entendendo onde se enfiou, são servidas aranhas tarântulas (saca, aquela grandona, peluda?) apimentadas e fritas. Seu veneno, naturalmente, é desfeito no preparo, e as tripas do bichinho são removidas antes de fritar. Tem uma casquinha crocante e uma carne muito macia e de sabor delicado. Peça pelo molho Bashlak, fica excelente.

O prato principal mais servido no Castro é a sopa Lokot, feita com cebolas, salsa, um molho secreto do Castro de sabor adocicado e macarrão, estilo lamen, feito com fezes de Lokot, um tipo de peixe bastante comum na região. Para os dias mais quentes, onde uma sopa pode não cair tão bem, o Antonino vai sugerir a mais pitoresca e suculenta das iguarias Filipinas, os ovos Balut. Uma porção individual traz arroz, uma cumbuca com chili, vinagre e outros temperos, e cinco ovos de pato. O segredo do prato está nos ovos, que são fertilizados, com embrião por volta do 19º. Dia de desenvolvimento. No Vietnam esses ovos são levados ao fogo com apenas 13 dias, mas o chef do Castro deixa chocar por mais alguns, o que garante aos patinhos ossos mais firmes, embora macios depois de cozidos. Quebra-se a casca, para poder primeiro sugar o caldo, então coloca-se alguns temperos antes de comer o embrião. O sabor é característico, e não se parece com nada que a pobre e tediosa culinária ocidental conheça.

Para a sobremesa, não se deixe levar pelo freezer de sorvetes ou pela mesa de frutas, nada disso justificaria uma viagem a Quezon. Chame o Antonino e peça por uma porção individual de Hasma, com cobertura de caramelo. São pequenos flocos desidratados à base de trompas de falópio de sapos Tchun-Kien, importados da China. Misturados com açúcar e com uma cobertura de caramelo, formam uma massa deliciosa com textura de tapioca e coloração próxima à da rapadura.

O Castro aceita todos os cartões de crédito internacionais, entrega para toda Quezon e funciona de segunda a segunda. A fachada é muito bonita, decorada com adereços típicos e, bem ali do lado, coladinho no Castro, fica uma lanchonetezinha feia e suja onde você pode comer um hambúrguer de carne bovina e ocidental por um preço justo. Diga que é leitor do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta e, comprando o segundo hambúrguer, você ganha uma Coca-Cola.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Escola Estadual Bento de Abreu


É esse o nome do lugar onde estudei da 1ª série até o 3º colegial, aqui em Araraquara. E sendo Araraquara uma cidadezinha do interior de São paulo, mas que poderia perfeitamente estar situada no Texas ou Alabama, é lógico que, em todo mês de Junho, tínhamos festas típicas.

Para começar, tipicamente obrigatórias, visto que eram uma oportunidade excelente para a direção de um colégio público de 500 alunos extorquir dinheiro dos pais e dos filhos. Lembro-me que o diretor, seu Osvaldo Malaspina (sim, Malaspina, coincidência ou não, à vossa guiza) passava de sala em sala falando da festa, explicando que era tantos cruzeiros por pessoa da família, que já ia deixar 4 para cada aluno e que tinha que levar o dinheiro até sexta-feira. A gente tinha no máximo 9 anos e acreditava quando a "tia" ainda tinha a cara-de-pau de dizer que a participação valia nota. Pensando nisso agora, vejo que nossa sociedade tem isso de bom: já vão te acostumando a ser logrado desde os primeiros dias, para não traumatizar depois. Lembro-me que no meu colégio faziam uma competição fundamentada em exploração de trabalho infantil chamado "Miss Caipirinha". Cada criança recebia uma folha de sulfite com uma tabela de cinqüenta quadradinhos impressos em tinta azul de mimeógrafo velho. A criança pegava isso, e ia de parente em parente, por vezes vizinhos e amigos dos pais, esmolando X cruzeiros para cada quadradinho. Era uma rifa, excetuando-se o detalhe de que quem comprava não concorria a nada, o que enquadra a coisa toda em prática de mendicância infantil. A criança que vendesse tudo podia pegar outra folha e sair vendendo mais, e a que mais vendesse ganhava um jogo de dominó ou quebra-cabeças de 100 peças. Como o nome pode sugerir, era inicialmente exclusivo para meninas, mas em pouco tempo a direção percebeu que podia lucrar o dobro ao criar o "Mister Caipirinha".

Mas o melhor das festas era a própria festa. Primeiro porque nossas mães, precursoras desavisadas do movimento grunge, nos vestiam com camisas xadrez furadas, calças jeans surradas e remendadas e para completar, sujavam nossos rostos. Bigodinho era obrigatório e, se a mãe fosse agressive mesmo, chegava a pintar uns dentes de preto. Imagino como seria o Kurt Cobain aos 8 anos numa dessas.

A quadrilha. Uma série de coreografias feias, de origem européia medieval, regadas com expressões pitorescas da cultura local como "Ói a cobra!" e "Oi a chuva!". Tinha ensaio para ensinar toda essa micagem aos pobres e forçosos alunos. Alguns, como eu, eram demasiadamente descoordenados para tanto, e ficavam de testemunhas no Casório da Roça, papel cuja performance exigia pouco além de saber ficar parado. Os nerdinhos gordinhos-introspectivos-de-óculos-alvos-preferenciais-dos-moleques-que-faziam-karate ficavam todos lá, geralmente.

Do outro lado da festa, os descolados (e acho que todos conseguem imaginar bem um descolado de 9 anos de idade) ficavam no controle das duas instituições mais cafonas da festa: a Cadeia e o Correio Elegante. Pagava-se (mas calma, o dinheiro ia para a escola, o que você estava achando?) para prender crianças numa salinha até os pais pagarem a fiança (e nessa hora nós nerds gordinhos éramos muito requisitados) e para mandar recados com xavequinhos de galãs de 9 anos para as meninas de 7 ou 8. Lembro que tinha um moleque filho da puta que sempre recebia bilhetinho e depois vinha me zoar. Hoje penso que talvez ele pagasse para receber os próprios bilhetes, e me sinto meio burro de não ter feito isso na época.

Tinha pipoca, algodão doce, paçoca, quentão, vinho quente, doce de leite, churros, canjica, cachorro quente, churrasquinho de kafta, mariola de bananada, amendoim doce, amendoim salgado, pé-de-moleque, chocolate quente, milho verde cozido, bolo de milho, bolo de fubá, doce de batata doce, doce de abóbora e muita, muita tubaína. Particularmente, era o único aspecto da coisa toda que me agradava. Não era nem nerd nem gordinho à toa.

Finalmente, tinham os fogos. Ah, os fogos! Festas juninas e viradas de ano-novo são as únicas datas do ano fora do Afeganistão e do Iraque em que é socialmente aceitável ver crianças brincando com explosivos. Traques, bombinhas, bombas 1000 e 2000, com cargas em pólvora preta e pavios da marca Papaléguas. Caramuru de três tiros, buscapés e, porque não, balões incendiários. Uma criança ou outra sempre perde um dedinho, mas afinal de contas são 2500 alunos, acidentes acontecem. E chega, já falei demais de uma festividade que não gostava nem quando era Mister Caipirinha. Aliás, Mister Caipirinha não soa um incentivo ao alcoolismo infantil?

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O Último Pênalti

Quando Roberto olhou ao redor, sentiu subitamente cair-lhe sobre os ombros uma pressão que até aquele momento simplesmente ignorava. Não que não soubesse estar cercado por quase cem mil pessoas nas últimas duas horas. Mas, de um instante para outro, ao contemplar os dois exércitos – um azul e o outro verde e amarelo - que o cercavam, sentiu-se repentinamente oprimido. Como que não quisessem voltar-se para o fardo da responsabilidade, seus olhos fixaram-se, em busca de dúvidas, no letreiro que indicava seu nome e número para o próximo e derradeiro pênalti.

Já estivera antes em grandes decisões, com públicos até maiores do que aquele. Já havia enfrentado adversários melhores e com mais auto-confiança do que aqueles. Naquele mesmo evento, naquela mesma Copa, ele e seus companheiros haviam derrotado pelo menos dois times mais habilidosos e entrosados do que aquele amealhado de idosos e falsas estrelas. Sabia muito bem que toda batalha tinha seus heróis, e sabia igualmente ser o herói dos que o cercavam. E em outras batalhas, ele fora o herói, o campeão triunfante que carregava consigo a vitória e o orgulho. E como um verdadeiro herói, viu seus inimigos derrotados diante de si. Mas Naquela tarde, naquela improvável tarde, não haviam conseguido derrota-los.

Olhou para seus adversários. Alguns já velhos conhecidos de outros jogos, quando vestiam outras camisas. Haviam lutado por noventa minutos, mais uma prorrogação inteira. Ele próprio, o próprio Roberto, havia lutado em cada um desses cento e vinte minutos. As oportunidades surgiram, mas não um gol, um único e miserável gol que pusesse fim àquela tortura física e mental.

Física, porque já nas últimas semanas lutava contra uma lesão no joelho. Havia saído milagrosamente de uma cirurgia recente para em poucas semanas de terapia se habilitar ao jogo. Não houve um único minuto em que não houvesse sentido o fraquejar dos ligamentos recém-costurados. Não podia pensar naquilo, precisava concentrar-se, pensar no fim que se aproximava.

Respirou fundo. Olhou para a frente e, no exato momento em que seus olhos encontraram os do guardião das traves, um homem que sabia ser como os demais um dos melhores de seu país, nesse exato e inevitável momento, ouviu o apito do juiz.

Sabia o que o som indicava. Indicava a autorização para chutar, para colocar um fim à angústia de centenas de milhões. Para avançar alguns metros e decidir alguns futuros. O seu próprio futuro. E quando olhou novamente para o letreiro que dizia "R. BAGGIO", sentiu o joelho tremendo, as pernas dormentes e os pés latejando após duas horas de esforço bélico. O último pênalti, último de cinco, o último chute do jogo e também de uma Copa. No último segundo, pensou em duas formas simetricamente opostas para o desfecho de sua tragédia. E naquele derradeiro instante, sentindo-se incompreensivelmente oprimido por tudo o que o cercava, lembrou-se que, para cada herói glorificado, um vilão precisava ser igualmente rechaçado.

Nesse último e terrível instante, com tais últimos e terríveis pensamentos na improvável tarde de 17 de Julho de 1994, Roberto avançou e, com os olhos fixos, chutou o último pênalti.