quinta-feira, 8 de julho de 2010

Fuga

Quando Francisco, 22 anos, negro, alto e forte, sentiu a terceira bolha nos pés estourar contra o chão de gravetos secos e mata fechada, já mal conseguia sentir suas pernas. Ainda assim, corria. Corria como nunca antes em toda sua breve vida, corria frenético, sem se preocupar com obstáculos espinhosos nem olhar para trás. Sabia o que o perseguia. Monstros. Seres pálidos e brutais, incansavelmente sedentos por saciar o insaciável. Quando era apenas um menino, ouvia sua avó contar lendas daqueles monstros e agora, aos 22 anos e correndo pela mata fechada como um coelho fugindo de lobos, ele conhecia os monstros muito bem. Mas não podia pensar nisso naquele momento. Precisava correr.

E Francisco correu. Enquanto corria, o vento secava seu rosto, há pouco banhado de lágrimas pelos seis amigos e dois irmãos que não conseguiram alcançar o fim da estrada, onde começava o bosque. Quando os viu cair, Francisco só conseguiu pensar que estava próximo do abrigo seguro e que, se aquilo que ouvira fosse verdade, , talvez, sua única esperança estivesse do outro lado do matagal. Ouviu os urros e gritos hediondos de seus implacáveis perseguidores e, de um só impulso, disparou em direção ao bosque, na esperança de que a mata fechada pudesse atrasá-los.

E então, correu. Por três malditas horas ele correu, até que seus sentidos lhe falharam e seu corpo caiu ao chão. Quando acordou, julgava-se morto, mas ao perceber que os monstros ainda não o haviam alcançado, voltou a correr. Não tinha mais idéia de quanto tempo ficara correndo, nem tampouco se algum dia suas pernas poderiam voltar a fazê-lo. Não se preocupou com as chagas que os estrepes do mato abriam em seus braços e pernas, e por mais que soubesse ser algo muito importante, não conseguia pensar nem mesmo nos ferimentos profundos que os demônios haviam rasgado em suas costas, que sangravam muito. Acima de tudo, tentava não pensar que talvez nunca conseguisse escapar vivo.

E foi quando seus músculos já não mais ouviam seus urros de súplica, quando seu corpo, fustigado de cortes, furos e contusões, caiu, latejante e ensangüentado sobre as folhas secas, que Francisco ouviu vozes familiares. Não o rugir insano de seus algozes carniceiros, mas a voz de um irmão, de alguém como ele.

Virou o rosto para trás, e, entre a vegetação alta rasgada e manchada de sangue por sua passagem, pôde ver a imagem da própria morte. Dois deles o haviam alcançado, haviam farejado seu sangue, seu medo, e agora estavam ali, diante dele e exibindo dentes satisfeitos como os de cães selvagens. Mas quando o primeiro avançou em sua direção, um zunido alto e agudo soou de entre as folhagens, e ambos os monstros caíram, com grandes lanças de bambu cravadas em seu corpo. Sem questionar ou mesmo considerar sua própria sorte, Francisco olhou, já quase perdendo os sentidos novamente, para seu salvador. As lendas eram verdadeiras. Aquele era Zumbi. Francisco alcançara os Palmares, e era um homem livre.

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