quarta-feira, 30 de maio de 2012

Ninguém Vai Tirar Você De Mim

Não quero falar da morte. Presságios e interpretações sempre me assustam. Acho que estou com fome. Sinto minha mão tremendo lentamente. Só pode ser ausência de comida. Porém, meu estômago me mata agora de uma dor tão forte que não quero comer.

Meu estômago me mata. Curiosa forma de formular a frase. Usando a morte. O mesmo que dizer “estou morto de fome”. Por alguns momentos, penso que qualquer das coisas que estou doente agora sejam um tanto quanto incuráveis. Eu, que não conheço nada de medicina. E me pergunto, sendo um grande perdedor, se conseguirei tudo aquilo que sonhei sempre.

Ultimamente sei que minha mente tem oscilado. E me assusta caso descubra que isso não volta mais. Minha normalidade. Pergunto-me se terei competencia para julgar-me são se tudo continuar assim.

Minha felicidade é divida em pequenas coisas. As vezes, sinto que queria estar com alguém para usa-la como motivo de minha felicidade. Mas imagino algúem boba e feliz demais. Alguém que não sabe se está triste, por isso é feliz. Se a tristeza se ausentasse de nosso coração, seriamos felizes, portanto?

Dizem que é um momento, não? E todos os momentos felizes que tive quase me arrebataram. Não sei lidar com a felicidade. Já a tristeza é tão inerente ao ser humano. Porque sempre somos descontentes porque queremos mais. 

Minha vida foi muito pouco feliz depois de um certo tempo. Mas o que é essa felicidade, de fato? Pode ser mesmo um estado imaginário. Um ópio que invade nossas veias e acha que tudo pode estar bem.

A felicidade é instável, o amor de hoje vira lixo amanhã. Mas me falta compreensão para entender a felicidade. A felicidade é uma grande mentira bonita.

Talvez eu seja mesmo triste. Não esteja triste como algo passageiro. E sim a triste seja um dos meus componentes básicos de fábrica. O que me machuca é que tem dias que não quero nem palavras, nem tenho vontade de expressar nada em meu rosto tamanha a tristeza. É a hora de tomar pílulas quando a tristeza me invade assim.

Talvez nessa hora tudo que eu queria era uma pílula mágica que me tirasse disso, ou alguém forte o suficiente para tirar isso de mim. Romântico. Mas sempre sobra somente eu mesmo em meu mundo. Portanto, resta a mim, tirar com o meu nada, a dor. Claro que não há força alguma...

Clinicamente, eu seria diagnosticado como depressivo? Ou será que não apresento os sintomas? Talvez sim. Pretendo descobrir isso em breve fazendo terapia. Tenho tantas coisinhas dessa para fazer que me assusto. Tenho esse tempo que escorre até tudo se realizar. E até lá sofro sempre.

Minha felicidade vem em pequenas partículas. Dependem das pessoas que estão ao meu redor. Perceber que a pessoa está feliz, todos percebem. As vezes, invejam. E eu, de fato, acho esquisito quando as pessoas são felizes demais. Contraria o lado escuro da vida.

Nesse momento eu penso nos suicídas. Um homem pode muito bem destruir sua vida. As coisas que ele mais quer começam a ruir, e mesmo o mais preparado dos homens não suporta a destruição de tudo aquilo que fez ou acreditou.

Me lembro de um poema antigo de um amigo, não sei, que diz exatamente isso. Um homem que fez uma casa e foi destruida, mas que, com fé, a fez de novo. Porém, essa mesma casa é destruida novamente e o homem mete um balaço em sua cabeça. Não suportando a dor da perda de novo.

As pessoas sempre se assustam com os suicidas, mas tenho certeza que eles deixam pistas de seus lamentos espalhadas pelos cantos. Não sou um suicida, talvez um suicidário, no máximo. Mas sei que preciso de algum tipo de atenção. De um contraponto que não posso fazer. 

Talvez seja assim os suicídas, querem ser salvos por alguém. Fazem esse drama todo se enloquecendo, pois estão buscando o super homem que os salvem. Acho que é inconsciente. Procurar um lugar para encontrar aquilo ou isto que precisa-se.

É engraçado essa história dos suicidas. Quando eles se matam ou tentam. A familia o trata com muito cuidado, como se fosse um louco, uma aberração. Só nesse ato extremado as pessoas percebem o quanto aquele homem está arruinado. Porque é um desabar de um prédio o suicídio.

Esse pouco a pouco que um homem rui, quase ninguém percebe. Ou você conseguiria perceber que algo pouco a pouco se desfaz...? Caquinhos e caquinhos por dia...? Ninguém percebe, amigo.

Não acho que o suicidas se matem sem explicação. Se matam por não ter coragem de se reconstruir. Uma bela frase de efeito. Pena que a vida não é uma rima.


segunda-feira, 28 de maio de 2012

deutsch

"Você não se incomoda?"

O ar agitado do lado de fora ecoava na mente cansada de Carlos.

- Oi?

"Você. Não se incomoda que te achem arrogante?"

O blues que rolava na jukebox hoje era ao vivo, no palquinho. Carlos olhava mais para dentro do que para as luzes embaralhando os bluesmen, mas olhava pra lá também. O som contagiava o ar pesado daquela mesa.

- Você me acha arrogante?

Ela ficou em silêncio. Ele, sinceramente, não sabia se ela ficara em silêncio ou se o mundo ficara em silêncio. Ele não sabia muita coisa, no momento. Só o violão tocando ao fundo, velho do Texas, uma cerveja gelada e a cabeça cansada de trabalhar por três dias, sem pausas, sem sono. Perguntou de novo.

- Você me acha arrogante?

Percebeu que a senhora da mesa ao lado olhava assustada. Não, não era assustada. Ela estava com uma cara de estranhamento, isso sim, sempre que Carlos falava. Não sabia o motivo.

"Sim", foi o que ela disse. Carlos adormeceu brevemente após a resposta, ouvindo o violão cantar sobre uma terra cansada que nem ele, no momento.

Foi coisa de um piscar de olhos, supôs, mas quando os abriu não havia mais mulher na mesa. A velhinha do lado não olhava mais para ele, talvez porque agora estivesse quieto. Viu que sua garrafa, cheia até a metade, era a única coisa sobre a mesa. Nem taça de vinho, nem cinzeiro manchado a cigarro e batom.

Ouvindo a cadência do violão, não sabia mais se alguma mulher estivera com ele antes de dormir. Não quis perguntar à velhinha. Depois do cochilo, sua cabeça estava bem mais leve. Grande merda, ser arrogante.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

"I Love You Honey Bunny"



Um solo de bateria ecoava pelo restaurante. O som dos tambores, bumbos e pratos se mesclavam nas conversas paralelas de dezenas de pessoas, talheres batendo contra pratos de porcelana e do irritante som de crianças chorando ou correndo entre as mesas. Silêncio, no entanto, reinava na mesa para dois perto da parede esquerda, um pouco à direita dos banheiros. Fotos e quadros decoravam a parede azul. A mesa de madeira barata estava coberta por um pano vermelho. Sobre ele, uma taça com vinho branco acompanhava uma garrafa de cerveja pela metade e dois pratos igualmente consumidos parcialmente.
“Esse solo de bateria é a coisa mais deslocada que já vi”, ela finalmente quebrava o silêncio. “Cada batida no prato faz um reboliço no meu estomago. Desculpe-me se você acabar com salmão e molho de maracujá na sua camisa; a culpa será da bateria”, um sorriso amarelo cresceu no lindo rosto da mulher. Ela exibia, com descarado orgulho, o profundo decote do vestido vermelho e uma perna macia, libertada pelo recorte ousado; tinha os cabelos dourados ajeitados em um coque: perfeita sintonia com o rosto quadrado, bem desenhado. Curvas fartas contornavam a silhueta luxuriosa da mulher, sentada com graça simulada, gritando por atenção com cada centímetro exposto de seu corpo. Ele então percebeu que cada movimento parecia ensaiado. Quantas horas ela treinou tal postura e com quantos homens? Até o modo como ela segura a taça me parece falso, pensou.
“Posso pedir para eles trocarem a música para você.” Olhou para baixo e limpou as cascas de pão espalhadas pelo terno, depois passou a mão pelos cabelos curtos e ficou indeciso sobre o que fazer com elas em seguida. Por fim, segurou a garrafa de cerveja com ambas as mãos em um aperto firme, mas não bebeu.
“Não precisa”, ela retorquiu. “Estava puxando assunto. Você está muito quieto, normalmente as pessoas falam pelos cotovelos duranto os encontros, principalmente no primeiro.”
“Me desculpe. Estava pensando no sentindo disso tudo.”
“Disso tudo? Do que você está falando?”
“Disso, oras. De estarmos aqui, pagando mais que o triplo do custo real de nossa comida, jogando conversa desnecessária como uma desculpa para termos sexo, sorrindo das banalidades de outras pessoas, se perguntando quando é que vamos embora desse tédio e trepar até o mundo explodir.”
“Não precisa ser grosso. Se continuar com isso vou pegar minhas coisas e...”
“Você sabe que não quero isso. Você não quer isso, bem sei. Ambos desejamos a noitada que segue essas horas de restaurantes caros, decorados com quadros de saxofonistas obscuros e fotos de lugares exóticos. O que quero dizer é que temos que seguir esse ritual centenário apenas para uma noite vazia de significados, onde há grandes possibilidades de termos sentimentos feridos ou qualquer coisa desse mesmo baralho. Pense, você está realmente vivendo esse momento? Sua pose parece forçada e desconfortável, sua linguagem corporal vende intenções libidinosas... quanto tempo você ficou preparando o cabelo? Uma, duas horas?”
“Quarenta minutos”, qualquer sorriso, por mais amarelo e vazio de felicidade que fosse, estava agora morto, provavelmente enterrado há mais de sete palmos pelo resto do encontro.
“A verdadeira conexão entre nós poderia estar acontecendo agora, nessa mesa. Sobre quantos assuntos poderíamos conversar? Interesses que dividimos, lugares em que gostaríamos de passear em uma tarde de domingo, de mãos dadas com um bom livro nas mãos... Qualquer coisa! Mas ficamos presos em tópicos inócuos, esquivando de diálogos que poderiam expor quem realmente somos. Isso não é viver o momento. No máximo, antecipamos prazeres e os equiparamos com o pesar dessas horas perdidas em uma refeição sem sabor. Se valer a pena, se o sexo for bom, repetimos na próxima semana e na outra que seguirá... até quando? Até que ponto podemos calar nosso orgulho? Até onde...”
“Você tem razão”, a voz dela rasgou com ferocidade o chauvinismo que vinha do outro lado da mesa. Apontou com o queixo para uma foto de Miles Davis tocando com John Coltrane. Os dois homens estavam com os olhos fechados, dedos formando notas e rostos em perfeita paz. Ou em pacífica perfeição, ela não tinha certeza. “Eles estavam vivendo o momento para você? Ou estaria um deles preocupado com o que o outro poderia achar das falhas de personalidade ou do conhecimento superficial que ele poderia ter em qualquer outro campo? Sim, eu amo sexo, amo o suficiente para não jogar o vinho da minha taça nessa sua cara de porco. Vestir algo mais ousado e me preocupar em ficar especialmente bonita para você não faz de mim uma prostituta barata ou um estereótipo dos livros do John Grisham. Pensar nisso faz de você um babaca.”
Num ímpeto sincronizado, ambos pularam sobre a mesa e começaram a se beijar explicitamente. Línguas encontraram pescoços; unhas e costas se cumprimentaram. As mãos do homem percorreram a perna esquerda, exibida pelo desenho do vestido vermelho, até encontrar aquilo que procurava. Em poucos segundos os seios macios da loira estavam livres de qualquer tecido, pincelados por mamilos duros e sedentos. Os outros clientes do restaurante protestavam em conjunto, alguns puxavam a perna do homem, tentando derrubá-lo da mesa.
“Garçom significa ‘menino’”, ele sussurrou enquanto abaixava o zíper de sua calça.



Ela piscou, perdida por alguns momentos. “O que você disse?”
“No filme, ela fala que garçom, em francês, quer dizer ‘menino’. Você estava me escutando?”
“Me distrai um pouco, desculpe. Estava pensando no que aqueles dois poderiam estar conversando.” Ela indicou o casal, duas mesas distantes. Uma mulher com vestido vermelho e um cara qualquer com terno barato conversavam animados, ele constatou.
Enquanto ele falava incessantemente sobre filmes e jogos de computador, ela tentava não demonstrar tédio. Ela batucava com dedos ágeis na madeira da mesa, acompanhado o solo de bateria que persistia em continuar. Olhava para a bela fotografia de Miles Davis.
Por fim, escolheu outra mesa e começou a formular diálogos em sua cabeça.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Fagulhas

O jantar tinha sido excelente. Mas começava a produzir um leve desconforto no estômago. Estavam no carro, há trinta minutos de casa, quando ela decidiu perguntar. 

"Você estava olhando para a Amélia?"

Um tanto quanto absorto em seus pensamentos, Jonas deu um suspiro. Estavam casados há vinte e três anos, ele com quarenta e oito, ela com quarenta e dois. Encontravam-se em um patamar da relação que não havia mais motivos para mentiras, escândalos, divórcios.

"Sim. Estava.". E sua resposta pairou no ar em alta velocidade. Olhou as placas, a velocidade do carro, o tempo que demorariam até em casa. Seria um longo percurso. Rosângela fez um barulho com a boca. Significava muitas coisas. Mas não seria necessário um especialista para saber o que aquele significava.

"Olha", continuou Jonas, "Olhei. Não nego. Fazia tempos que Romero não trazia a esposa e não me lembrava do quanto ela poderia ser encantadora". Outro barulho. "Mas eu vou para casa com você, não com ela"

Ela explodiu e logo silenciou. "Porque você não pode ir com ela, só por isso. Eu vi a maneira como você a fazia rir, enquanto eu tentava compreender os motivos. Tenho ódio quando se lembra do passado"

A história era comum entre eles. Casados há tempos, com as liberdades necessárias para serem sinceros, demasiadamente sinceros um com o outro. O contrato que estabeleceram previa observações e leves comentários. Nunca era possível prever, porém, qual deles incomodaria Rosângela. Em um bom dia, ela ria, comparava com sua beleza, falava dos homens ao redor, e eles terminavam na cama fazendo um sexo que ele ainda achava vigoroso, embora não como o seu auge juvenil. Em um dia ruim faltavam vinte e cinco minutos para chegar em casa.

Jonas poderia apaziguá-la. Parar o carro, pegar em suas mãos, produzir um discurso encantador, mas não o fez. Eram vinte e três anos de devoção. Orgulho de não ter cedido a tentações. De ter tratado-a como merece, diferentemente da maneira como o pai tratou a mãe. Não concebia o comentário como infeliz. 

"As mulheres não deixam de ser atraentes só porque estamos casados", ela virou para a janela, sem barulhos na boca, "ter escolhido você que demonstra, de fato, o que sinto". Esperava que a frase gerasse uma carga de efeito. 

"Tudo bem", ela disse. Voltando a olhar para a janela.

 Jonas não pode ver, mas ela sorria. Um sorriso tímido. Mas sorria. Era o plano de Rosângela de tempos em tempos. Arquitetar discussões como uma maneira de sentir-se amada. Achando que, se não houvesse fogo e ódio, ele a deixaria-a sem pestanejar. Era como uma simulação de um ataque. Para saber se ele, ainda, a defenderia, pensava ela, com sua própria vida.

Fizeram sexo naquela noite. Duas vezes.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

cópulas cabulosas

- Fumaça e pentelhos? Que porra é essa, mané?
- Ah, um monte de papéis que encontrei em casa, no fundo do armário. Nem lembrava mais que existia.
- As traças que o digam. Parece bem velho. É teu?
- É, é. Na verdade é um tipo de, ahn, tesouro familiar. Passado de geração a geração desde o século XVII, e todos os grandes homens da família já contribuíram com isso.
- Tô vendo. Tem uma caralhada de contos aqui, hein? Olha esse...

"O suor escorria por suas costas, lívidas e sedosas. A luz da chama que preenchia o ambiente dava a seu corpo  uma aparência translúcida, irreal, como se o fantástico ser com quem eu acabara de phoder tivesse vindo de outra realidade."

- Quem escreveu esse?
- Marcílio Oliveira de Aragão. 1772.
- Eu gosto desse aqui, deixa te mostrar:

"Ouço os gemidos baixos sendo enviados aos céus, ao ar do quarto esfumaçado, a Deus, ao pau que meu pai me deu. Ela aperta meus braços com força, as unhas encravando em minha pele enquanto seus dentes passeiam em meu pêlo. A mulher está louca. Não posso conter um sorriso enquanto a observo ser envolvida, de dentro pra fora, por parte de mim. Seus olhos fecham e os gemidos continuam, num delírio incompreensível. Se alguém escrevesse um dicionário do léxico sexual, pouco ou nada seria entendido."

- Legal mesmo. De onde?
- Itália, século XIX. Chamava Martino di Firenze.
- Vocês não têm o mesmo nome?
- Como?
- É, o mesmo nome. Não é um tesouro de família, isso aí? Então, não deviam ter o mesmo sobrenome?
- Ah! É, acho que devíamos. Mas não parece mais seguro sair por aí, sendo um canalha, sem deixar rastros atrás de si? Imagina se as mulheres dessas histórias resolvessem procurar meus antepassados, pra tirar esse assunto a limpo. Provavelmente ia criar mais aborrecimentos do que a gente... do que eles queriam.

- Hm... e você nunca escreveu nada?

Ele deu um grande gole no uísque sem gelo que, de repente, estava em suas mãos. Sorriu. Quando apontou para o fim do livro, o outro viu que havia várias páginas ainda em branco. O copo de uísque voltou à mesa.

- Ainda não. Estou, você sabe... recolhendo material para isso.

Em algum outro lugar, talvez distante, duas mulheres comentavam o tesouro familiar de uma delas. "... di Firenze. O que diz aí?" O som de folhas sendo viradas encheu o Clube. "Diz: pau pequeno."

sexta-feira, 18 de maio de 2012

As Várias Vidas de Zack - Final


Para A. E.
Zack procurou nos bolsos de um dos marinheiros por cigarros. Não fumava há anos, mas achou que precisava de nicotina naquele momento. Suas mãos tremiam incontrolavelmente, tornando difícil acender o cigarro enrolado pelo próprio marinheiro, sem filtro; tabaco puro. Saboreou a nostalgia dos dias de adolescência, quando roubava bitucas e cigarros fumados pela metade, esquecidos pelos cantos da casa.
Deixou a fumaça escapar pelas narinas e desaparecer no teto do Clube. Retirou a Jukebox da tomada; algumas conversas têm de ser no silêncio, decidiu prontamente.
Tic. Tic.
Foi até o balcão e empilhou copos pequenos e a garrafa de seu melhor whisky e o serviu em quatro doses iguais. Uma das senhoras tricotava incessantemente. Eram muito parecidas, diferiam-se apenas em pequenos detalhes, todas com longos cachos brancos, corpos acima do peso e vestidos de algodão sem qualquer tipo de estampas ou detalhes. Enquanto a velha da direita controlava a lã que saía de sua bolsa, a que estava sentada no meio tricotava rapidamente, realizando pequenos cilindros, que provavelmente não precisariam de qualquer tipo de habilidade especial: eram nada mais que algumas linhas entrelaçadas, sequer um tricô em sua definição própria. Algumas linhas paravam ao longo do comprimento, outras seguiam até quase a ponta final do trabalho, mas apenas um fio permanecia isolado ao fim, livre de qualquer trabalho manual, um fio solitário e interrompido.
No final, todos morremos em solidão, uma voz que não era sua sussurrou na mente de Zack.
Na esquerda, a terceira velha lia com dificuldade o jornal do dia; as lentes entre elas alternadas estavam no rosto que controlava as agulhas. “Peixes”, ela leu em voz alta, “A lua passa por seu melhor astral e hoje será um ótimo dia para buscar novos caminhos e novos desafios. Ande pela calçada, no entanto.”
“Me pergunto se nosso público alvo realmente lê isso”, disse a velha da ponta. Cloto, Zack se lembrou, o nome dela é Cloto. “Às vezes acho que não deveríamos perder tempo brincando com o destinos das pessoas desse jeito.” As agulhas de tricô silenciaram quando as três trocaram olhares antes de gargalharem estrondosamente. Láquesis, que naquele momento tricotava, segurou com zelo os óculos enquanto balançava o corpo no esforço do riso.
“Você procura seu horóscopo diariamente, certo Zack?”, perguntou Átropos, com um tesoura de ferro em uma das mãos.
Ele abriu a boca para responder, mas virou o conteúdo de seu copo antes, fazendo uma careta. Com a garganta lubrificada, respondeu: “Não acredito em horóscopos. Acho que são textos genéricos produzidos por equações inseridas em algum programa de computador. São frases que se repetem n número de vezes em estruturas diferentes. É puro marketing para as massas, esperança servida em coluna, enquanto você se engana que a vida vai melhorar sem esforços.”
“Garotas, alguém aqui tem opiniões!”, disse novamente Átropos. As três riram com vontade. “Então não consegue acreditar que as constelações...”
“E a lua!”, interrompeu Láquesis ainda sorrindo entre as outras duas senhoras. Através das lentes, Zack viu retinas vivas, com um brilho mordaz, forte como o fogo que queimou as bruxas da Inglaterra.
“...e a lua, têm o poder de interferir com vidas aleatórias no nosso pequeno planeta perdido em uma das esperais desta galáxia?”
O bartender respondeu negativamente da cabeça.
“Faz bem, meu caro”. Láquesis pousou as agulhas e entregou os óculos para Átropos, junto com o início do fio, que estava no poder de Cloto. Ela estudou a o trabalho de suas irmãs e concordou com a cabeça, cortando uma das pontas sobressalentes. Zack não achou que importava qual ponta ela cortava, mas o bartender não poderia estar mais enganado.
Quanto a tesoura se fechou sobre a lã, a Jukebox disparou o inconfundível riff de abertura de Another One Bites the Dust, do Queen. Mesmo fora da tomada, as Jukebox espalhadas pelo mundo aparentemente tomavam liberdades quando as Parcas estavam presentes, ele concluiu. Zack não ficaria surpreso se a mesa de sinuca tivesse algum tipo de reflexão. Eis minha sanidade dando adeus, ele pensou.
Cloto disse, batucando a música com dedos longos: “O que é engraçado, Will... Vou te chamar de Will porque foi quando mais gostei de você, meu amigo. O que é mais engraçado, Will, é que nós escrevemos os horóscopos”. Zack não se lembrava de conhecer um Will ou de ter sido chamado de tal forma em um único momento de sua vida. A Parca prosseguiu: “Quem melhor para predizer seu dia do que as Parcas, hein? Não que fosse fazer qualquer diferença, o que vai acontecer, vai acontecer. Está traçado.”
“Mas o interessante”, Láquesis brincava com seu copo de whisky, “é que a pessoa para quem escrevemos o horóscopo nunca se preocupa em ler alguns conselhos sobre sua vida, mesmo vindo de nós.”
“De novo, isso não iria fazer diferença alguma. A mais pura verdade é que as vidas, o tempo que as pessoas têm, são oportunidades para realizarem feitos dos mais variados tipos enquanto esperam pela morte. É interessante ver quantas coisas acontecem na vida de uma pessoa para que ela não fique entediada até a linha ser cortada”, Átropos encerrou o assunto em um tom leve.
“Nas últimas três décadas escrevemos para você, nesse mesmo jornal, todo dia. Em trinta anos, você leu seu horóscopo, Will?” Antes que pudesse responder, Cloto continuou a falar: “Não, é claro que não! Vocês nunca escutam quem precisam escutar e quando precisam escutar. Seguem felizes, em plena escuridão, tateando pelo caminho, deixando para trás o que precisavam fazer.”
“Eu... eu não estou entendedo o que vocês estão dizendo. O horóscopo é para...”
“Para você, mortal”. Átropos leu novemente do jornal, desta vez usando os óculos: “Áries. Seus destino bate à porta e você precisa escutar o que a voz interior diz. Novos encontros irão questionar a realidade e você ficará louco até seu último dia, Zack.” Elas riram pela terceira vez. “Essa parte não está no jornal, mas o resto sim. Nós tentamos avisar.”
“Toda vida começa com um propósito...”, disse Cloto.
“Que deve ser realizado para continuar a trama de Todas as Coisas...”, Láquesis continuou em um tom grave.
“Encerrando apenas no último segundo de sua existência, e não antes. Nunca antes.” Átropos apontava a tesoura para o bartender. “Por que você desperdiçou o seu Fio nesse Clube, Zack? Durante toda sua vida você ignorou a canção que compúnhamos especialmente para seus ouvidos. Não percebe o mal que está fazendo, Zack?”
Ele não sabia o que responder. Sempre sentiu que estava no lugar errado, uma voz constante o lembrava disso. Mas ele havia sufocado o som irritante da voz que julgava suas decisões e erros com as necessidades supérfluas do mais irracional dentre os cotidianos, embriagando a parte de seu cérebro que tentava escutar os chamados com a fumaça intoxicante de centenas de charutos e cigarros que povoavam o ar do Clube. Um forte sentimento de culpa caiu sobre ele. Havia jogado fora o tempo que lhe fora dado.
“O que está feito, está feito. O desperdiçado agora se torna esgotado, caro Will. Seu nome já foi Homero, já assinou peças com a pena de Shakespeare, causou arrepios com o nome de Poe e ilusões no mundo de Tolkien”, Cloto proclamou.
“Escreva suas fantasia! Este é o seu mandamento desde sua primeira vida, quando andava no mundo mortal como Homero, Zack: escreva os sonhos e alucinações, torne a realidade terrível que assombra até mesmo os mais poderosos divinos em histórias de ficção, tire das abominações seu poder. Quando você criou as mais fortes histórias da humanidade até então, como Homero, possibilitou que os pesadelos fossem vencidos, as forças monstruosas perdem, seja o motivo qual for, grande parte de sua existência quando são fixadas na mente de milhares de pessoas como ficção, histórias de mentira. O poder deles se tornam mentira. Eles deixam de ser reais!” Láquesis segurava a mão do bartender, acariciando a pele com mãos macias, transmitindo calma e perdão.
“Uma moto que viaja no tempo, as idéias que escapam pelo buraco de um rosto, artefatos que amaldiçoam marinheiros, são manifestações de ameaças que vão além de sua compreensão e que teriam sido suprimidas se você as tivesse escrito, Zack, um perigo para a própria realidade. A fama, a riqueza, o sabor de conquista lhe foram concedidos quando firmamos o acordo. Em troca, você deveria permitir a existência... bem, existir! Tente se lembrar, Zack, lembre da Legião que assombra o mundo, dos terrores que se alimentam de crianças e se escondem no conforto da escuridão. Escute a música da próxima vez, Zack. E pelos deuses, escreva!” Segurando um longo fio de lã, mas solitário em sua quase totalidade, Átropos cortou uma das pontas.
Nos momentos finais, Zack não sentiu medo ou tristeza por deixar para trás o mundo em que vivia. Não se lembrou dos momentos importantes da vida sem ambições que levara até aquele segundo, os amores perdidos, as pequenas vitórias e grandes derrotas, as íncontáveis noites em claro tentando escrever histórias. Nos momentos finais, Zack se conectou com os fios que já foram seus, em outras vidas, em outros tempos. Ele se tornou William Shakespeare, Homero, Edgar Allan Poe e J. R. R. Tolkien. Ele viu o mundo pelos olhos de um xamã sem nome, que contava histórias de monstros gigantescos para as crianças e mulheres da tribo, histórias passadas oralmente de geração para geração, alertando para os perigos que espreitavam nas sombras; entendeu as coincidências do mundo na pele de um bardo que vagou pela Europa medieval; pintou máscaras teatrais com mãos de uma gueixa que viveu em um Japão antigo, quando os deuses da natureza atormentavam os humanos daquelas ilhas. O Escritor viveu e morreu incontáveis vezes naquele segundo final.
Zack não experimentou a vida se desprendendo de seu corpo. Ele criou dezenas... centenas de histórias simultâneas e ricas em detalhes, perigos reais travestidos na sedução da ficção, prontas para entreter gerações e conceder à realidade a estabilidade da qual necessitava.
Another one bites the dust, yeah. Another one bites the dust…
“Você nascerá novamente, Will…”, Cloto bebeu do copo que segurava, fazendo uma reverência ao corpo sem vida no chão do Clube.
“Escreverá com sucesso e criará uma infinidade de sonhos em suas histórias”, disse Láquesis e repetiu o ritual de sua irmã mais nova.
“O Freddie Mercury sempre foi meu cantor favorito”, constatou Átropos. As três – Nona, Décima e Morta; Cloto, Láquesis e Átropos; as Parcas, as Moiras, o Destino – gargalharam pela quarta vez naquele dia e beberam em homenagem ao Escritor.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Bruxo

Quando cheguei ao camarim não estava relaxado. Tinha uma violenta dor estomacal. No espelho luminoso tentei retirar de mim o rosto maldito. Retirei apenas os óculos, estragando a maquiagem.

Se estivéssemos na América, a história seria censurada e amenizada. Mas estamos em um desses pequenos países da Europa em que o topless é permitido, aceitado, sem que homens revelem o vigor de seus membros, explodindo das sungas, por causa de mamilos.

Aceitei o projeto porque estou fracassado. Não que tivesse uma carreira promissora. Comecei em 95, em uma comédia adolescente da qual me arrependo. No meio da década passada, entre a obscuridade e interpretações medianas, tive destaque em um circuito alternativo. Alternativo quero dizer tudo, menos Hollywood.

A intenção era filmar Lolita de Vladimir Nabokov. Um processo impossível sem trazer a tona masturbadores doentes guiados pelo prazer sexual. Mas quase tudo está presente. Exceto que o diretor não conseguiu os direitos de adaptação. Seguiu a escola de Murnau, recriou a base sem Humpert Humpert e a garotinha impertinente. 

Não li o romance. Desculpei-me pela necessidade de criar um personagem original. Era preguiça. Embora tenhamos repassado o texto diversas vezes, com uma equipe gigantesca do outro lado, não pude deixar de sentir na cena que, como disse o diretor, seria o ápice entre as personagens. Sob esse aspecto, foi um clichê puro as personagens sozinhas em cena para se beijarem.

A atriz é uma norueguesa que dizem ter uma boa interpretação, embora eu ainda sambe com seu inglês. Tem idade mais avançada que a lolita original, mas um câmera me afirmou, com direito a polegares para cima, que aquela extirpe de corpo franzino da conta do recado.

Gravamos seis takes e não pude mais. Quando não interpreto odeio aproximação. De fato, se repararem bem, as representações exageram na proximidade, devido ao enquadramento. Na vida real o limite é um metro ou mais. Mas não era o caso. Tive que envolve-la em meus braços. O fato dela ter o mesmo semblante de minha filha me incomodou aos diabos.

Cheguei a pensar que o diretor me escolhera por isso. Para introduzir até mesmo no ator o dilema moral. No sexto take a cena funcionou e pedi para me retirar. Estou aqui pedindo uma bebida, mesmo que eu não beba.

Embora as imagens compostas por H. P. Lovecraft sejam excelentes, o bestiário inexistente não é tão assustador quanto a potencia de uma catástrofe real. O desvio natural do curso humano. O aleijado, multilado, fora da linha padrão.

Tocamos nossos lábios. Tocamos nossas línguas. Eu, um homem de 32 anos beijando uma garota de 14, em um cenário de madeira prensada. A cena me feriu por dentro, mas eu precisava do dinheiro e, de qualquer maneira, a trama era boa, mesmo com a polêmica.

A beleza juvenil é bela por ser jovem, disse Paul Auster em um de seus romance. Não discordaria da afirmação, mas o efeito moral que ela carrega é mais destruidor do que imaginam. Após a bebida liguei para minha filha, deixando o telefone soar. Precisava saber que tudo estava bem e porque não haveria?

Um batida na porta interrompeu o devaneio. Era a norueguesa me chamando para a próxima cena. Teria sido eu seu primeiro beijo? Não. Eu não poderia viver com isso. Disse para a pequena garota Chutulhu que aguardasse e, após vê-la desaparecer da minha frente, saí. Eu estava contaminado.

Voltei ao cenário e chamei por Marlene: "Destruí minha maquiagem, querida". E ela, em um inglês tão macarrônico quanto a pequenina, me deu lufadas de pó branco que me trouxeram de novo o ar de professor corruptor.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

patia

- Então, o que vai ser hoje?
- Ora, Joana, você não sabe o que quero?
- Não, não sei. Se pudéssemos ler pensamentos, falar por telepatia, aí sim seria bom, que eu já serviria sem nem perguntar.

"Mas nós podemos ler pensamentos, meu bem, podemos sim. E podemos falar por telepatia, veja só."
"Ahn? Como assim... o que... o que é isso?"
"Viu? Não se surpreenda. Telepatia básica, transmimento de pensação."
"Uau! Então não preciso sequer falar nada, nem você. Uau!"
"Pois então, meu bem, pois então. Quero aquela cerveja especial, uma porção de tremoços e uma de azeitonas. Também coloque na jukebox um Chico César do bom, sim? Faz tempo que não ouço o paraíba."

- Bom, quando você parar de olhar feito bobo para o teto e resolver o que quer, estarei no balcão.

"Transmimento de pensação, que babaca", pensou Joana, enquanto caminhava para a jukebox com a intenção de um Chico César, sem saber muito o porquê.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

As Várias Vidas de Zack - 3


Durante o percurso, Zack recolheu alguns copos vazios e três pratos com restos de hambúrgueres e batatas. Era hilário o modo como os dois homens sentados perto da Jukebox comiam, enfiando grandes pedaços de pão e carne, lavando tudo com água, cerveja ou whisky. Havia um odor estranho ao redor deles, um cheiro deslocado. Depois de alguns segundos, o bartender percebeu que sentia o cheiro do mar naqueles homens.
“Vocês precisam de algo?”, ele perguntou, sabendo que iria escutar um pouco da história daquelas duas pessoas: estava determinado a seguir o roteiro, sentia que algo iria dar errado, terrivelmente errado se ignorasse os homens e se dirigisse para as três velhas sentadas no balcão.
Tic, tic, tic.
“Estou satisfeito”, respondeu um deles. O homem era alto e tinha o rosto escondido em uma barba hirsuta. A pele descoberta, mostrava fortes sinais de exposição aos elementos. “Você acredita em sonhos, homem?”
Acredito em praticamente qualquer loucura que você possa me contar, velho. Zack concordou com a cabeça, puxando ruidosamente uma cadeira e sufocando qualquer tom ríspido que poderia sair com suas palavras. Percebeu, com o canto dos olhos, o olhar afiado que o outro homem dirigiu para eles. Cuidado, alertavam aqueles olhos.
“Pois tenho motivos para acreditar, estando em perfeita sanidade e sobriedade... bem, não agora, mas quando estou em minha perfeita sobriedade, tenho motivos em acreditar na realidade das consequências físicas do que nos acontece em sonhos, bom homem. É o que quero dizer.”
“Como sonhar estar em alguma briga e acordar com olho roxo?”
“Ah, sim, mas muito além de confrontos e hematomas. Muito, muito além. São as visitas nas terras de Oneiros que permitem a manutenção e continuidade de minha existência, também de meu colega aqui ao lado”, ele falava em um ritmo estranho, tateando por um labirinto do qual não havia mapa. Zack tinha certa dificuldade em acompanhar as frases do estranho. “Somos marinheiros, praticamente no final da nossa existência, perto da clareira na floresta, como diria o autor. Eu, meu caro, tenho as moedas para Caronte já em meu punho. Nas palavras do poeta Coleridge, fique e escute minha história”.
Caught by his spell and the Mariner tell his tale, gritou a Jukebox.
“O horror alcançou o Trinidad no começo de 1520, ano em que vivo quando estou acordado. Na forma de tentáculos de enormes proporções, o cruel e impiedoso destino lançou sua ira contra a madeira do navio, embarcação honrosa que se transformou em nosso caixão, caro. Uma lula! Sim, uma lula gigante se abateu contra nós”, ele espalmava a mesa com força. “Ataque após ataque, o monstro arrancou o mastro, destruiu as velas e inutilizou todo o estibordo. Apenas a presença espirituosa de Fernão de Magalhães fez a tripulação resistir contra a força da besta. Dois homens foram esmagados pelos tentáculos, outros três sumiram nas águas geladas. Por dois sóis nós lutamos bravamente, assim como a impetuosa fera!”. O marinheiro levantou-se e colocou um dos pés sobre a cadeira, erguendo um punho fechado para o nada: “‘Acabem com esse Leviatã, Homens do Mar! Por vossa pátria, por vossas vidas!’, gritava Magalhães. E pelo bondoso Deus, como lutamos! Fui agarrado pelas pernas por um dos tentáculos e fui salvo por ele”, apontou para o outro marinheiro, sentado na mesa ao lado, um dos cantos mais escuros do Clube. “Com um único corte de sua lâmina, a parte do corpo da besta que esmagava meus magros músculos caiu, contorcendo-se e lutando em pleno vigor e periculosidade; besta infernal! Um pequeno ídolo de madeira estava preso em uma das ventosas e nós o coletamos, sem saber o que era. Um demônio! Chifres, caudas e fogo. Sentimos a maldição em nossas almas e jogamos a pequena estátua profana na água. ‘Volte, volte para suas profundezas, gritamos’. Por fim, a fera desistiu e afundou o colossal corpo no Atlântico, quase levando o danificado Trinidad com o volume de sua massa. Oitenta homens sobreviveram. E por muito tempo sobrevivemos juntos, comendou pouco, bebendo menos e dependendo da chuva e dos cardumes ao nosso alcance. Até chegar o dia em que nossos ralos mantimentos se esgotaram e uma sombra caiu sobre os corações de todos. Amamos o mar, mas amamos ainda mais a vida. Dez dias sem comida e vinte sem água doce. Uma tripulação de esqueletos ao sabor da maré. Sem terra à vista, sem instrumentos para pescar, condenados, todos nós. Mas o diabo tem suas artimanhas e nossa maldição se mostrou especialmente cruel.” Ele fez uma pausa e terminou de beber o whisky em seu copo. Zack aproveitou o momento de silêncio e bebeu, em apenas um gole, a cerveja que começava a esquentar em suas mãos.
Zack puxou na memória o que ele sabia sobre Magalhães. O que os mainheiros estavam falando estava completamente errado. Ele lembrava que Magalhães morria em batalha, poucos meses antes de completar o circunavegação e que não havia, nunca houve, relatos sobre monstros marinhos atacando os navios portugueses e espanhóis.
“Nosso verdadeiro horror vinha durante o sono”, repentinamente soltou o outro marinheiro. “Quando dormíamos... quando dormimos durante a noite, acordamos em algum lugar. Paris em 1930, Tókio em 1854... parece aleatório. Acredito que não dormimos, na verdade. Transitamos para outro lugar, em outra data. Mas sempre nos encontramos em um lugar que sirva comida e dinheiro corrente. Nos alimentamos, nutrimos o corpo que cerca nossa atormentada alma”, lágrimas caíam dos olhos de ambos. “Nossos amigos e colegas caindo sem forças. Homem após homem expirando, carcaças ocas e secas que ficaram para trás. Enquanto nós dois... ah, nós ganhamos peso e vitalidade. Temos estômagos cheios, mas vivemos em meio a miséria daqueles que amamos, que cruel destino é esse? ‘Bruxaria’, ‘Demônios’, acusaram os sobreviventes. Uma turba de esqueletos se abateu sobre nós e nos acorrentaram. Uma semana sem comida, uma semana sem bebida e ainda ganhamos peso. A fome é aterradora e sempre comemos quando estamos no... no mundo de sonhos. Nos mundos feitos de sonhos, é o que dizemos para justificar os prazeres que temos ao comer as mais deliciosas comidas enquanto assistimos os iguais tombarem em uma morte lenta e desumana.”
“Mas nosso terror acabará essa noite”, o tom de alívio era notável na voz do primeiro marinheiro. “Escutamos os planos para nossa execução. Enquanto dormimos, isto é, enquanto nos empanturramos dos mais variados pratos, eles irão cortar nossas gargantas e jogar os corpos sem vida no mar. Assim, esperam encontrar terra, pois acreditam que é culpa nossa a maldição do Trinidad. A ordem veio do próprio Magalhães.”
Tic, tic, tic...
Em um salto simultâneo, os dois marinheiros se colcaram de pé e trocaram olhares, concordando com a cabeça.
“Adeus”, disse um deles, “obrigado pela deliciosa comida”. Ele mostrou 3 moedas de ouro, jogando uma delas para Zack. “Acredito que isso cobrirá nossas despesas. As outras são para minha viagem com Caronte.”
Do mesmo modo que levantaram, caíram em perfeita sintonia. Zack viu as duas gargantas abertas. Dois rasgos profundos nas gargantas do marinheiros, mas sem os jatos de sangue, para sua surpresa.
Tic, tic.
Tic.
O cheiro de água salgada desapareceu do Clube.
Uma camada de suor cobriu o corpo de Zack. Ele olhou para trás, na direção das três idosas. O que ele viu fez seu coração pular algumas batidas.
Duas delas seguravam um fio dourado de lã. O fio não era comprido, talvez um pouco menos de trinta centímetros e era um pouco mais grosso. Uma aura branca parecia cercar a lã, mas Zack não sabia se era a cerveja, a distância ou a situação absurda que estava criando a ilusão. A terceira velha, usando o par de óculos que era constantemente dividido por todas, retirou de sua bolsa uma tesoura de cabo verde.
Com dois rápidos movimentos ela cortou os dois fios dourados.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Conversas Comigo Mesmo

(anotações feitas em um caderno de bolso na tentativa - que falhou - de lembrar uma ideia textual)

- Ontem, tive uma ideia.

- Qual?

- Vinha de um filme, mas não me lembro de qual deles. Vi dois há alguns dias... Um professor... Não sei...
- Que história?

- E se eu contar a história da história?

- Tanto faz.

- Em um metatexto?

- Não sei.

- Já imaginou quantas pessoas aqui vão ficar sempre dentro dos planos? Nunca fora dos padrões?

- Tento evitar. Normalmente só passo.

- Como assim?

- Não me atrevo a permanecer no mesmo lugar. Observando as mesmas pessoas.

- Elas costumam ser chatas, não?

- Como você...

- Ei, amigo, cuidado.

- Porquê?

- Tenho sentimentos... No fundo, mas tenho.

- No fundo todos temos.

- Fundos?

- Não, sentimentos. Não está acompanhando?

- Provavelmente não.

-

E a ideia não veio. Que ela descanse em paz.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

buxixo na aldeia

- Como assim não sabe?
- É, não sei. E faz uns anos que prometi pra mim mesmo ficar quieto quando não soubesse.
- Mas como você sabia, há alguns anos, que não saberia disso?
- Constância.
- Como assim constância?
- Constância, oras. Eu costumo não saber de nada. Ou, no mínimo, costumo não saber de muita coisa.

Uma mosca voava sobre a mesa de bilhar. Na jukebox tocava uma música doida que ninguém mais sabia. Ninguém conhecia. Até o dono dela morava, hoje, numa praia deserta no norte do sol, longe de qualquer um que o quisesse ver. Mas ninguém queria. O Clube estava abafado de cerveja e solidão, mas curiosamente havia mais gente naquela noite do que houvera a semana passada inteira.

No fundo do bar, porque essas coisas sempre acontecem no fundo do bar, uma cadeira se afastou da mesa. Os pés arranhando o assoalho chiaram um choro e ninguém se levantou para sair. A mesa vazia continuou vazia, como estivera a noite inteira. Sobre ela, no cinzeiro, o fim de um cigarro queimava lentamente.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Intermissão

“Eu tirei 17... com minha base de ataque... o total deu 35, acertei?”, parecia uma criança, ansioso e angustiado. Sua personagem estava em perigo. Gostava do homem que havia criado do nada, apenas usando sua imaginação. Naquela mesa de RPG, todos podiam criar coisas sem precisar de matéria prima, tudo que tinham de fazer era pensar um pouco e anotar uns poucos números em uma folha de papel e criar um nome. Às vezes, criar o nome era o mais difícil. Ah, ele podia rapidamente pensar em todo o passado para suas personagem, coerente com o mundo em que estavam e com seu status social, credo e caráter, podia traçar toda uma rede de contatos e relações em um piscar de olhos; até mesmo o destino de suas pessoas de papel, em alguma parte de seu subconciente, já estava formado, mas podia demorar semanas até chegar a um nome que o agradasse. 

“35?”, falou o Mestre rapidamente –trintaecinco – e se inclinou para checar o nome na ficha. “Acertou. Ricardo Coração de Leão corre até o turco e o trespassa com a cimitarra. Depois de derrubar o inimigo, ele solta a arma bárbara e saca de sua própria lâmina. Você ganhou 200 pontos de experiência.” 

A satisfação era visível no rosto, mesmo encoberto pelas várias camadas brancas de barba. 

“Meu turno! Ambrósio caminha até o hospitalário e aponta para o soldado caído, com dez flechas cravadas”, disse outro jogador, “‘Cure-o! Precisamos de todos os homens que temos, esses malditos parecem sair da maldita areia, maldição!’, ele grita.” 

“Eu corro até ele e começo a curar as feridas”, respondeu a mulher que interpretava o Hospitalário, antes de jogar um dado de vinte faces. Depois de rodar aleatóriamente pela mesa, momento em que todos seguraram a respiração, o pequena dado parou, exibindo um gritante 20. 

Os jogadores exalaram aliviados. 

O Mestre estudou algumas tabelas, virando rapidamente as páginas dos livros de capa dura e fez alguns cálculos em um rascunho que ficava sempre ao seu alcance. “O Cruzado se levanta e olha para o Hospitalário, sem saber o que aconteceu. Uma luz fraca ainda os cerca, sumindo gradativamente. Com a espada nas mãos, ele pula no meio dos turcos e mamelucos e começa a disparar golpes laterais e estocadas, ignorando as flechas em seu corpo. Antes que vocês pudessem fazer qualquer coisa, uma flecha atravessa seu crânio e o Cruzado cai sem vida, cercado pelos corpos dos inimigos; uma morte honrosa.” 

“Ricardo grita: ‘Atacar! Não façam prisioneiros!’ e faço uma carga até meu cavalo. Quantos inimigos até ele?” 

“Três. Você tem quantos ataques por turno?” 

“Dois. O Ambrósio está perto?” 

Eles olham para as miniaturas na mesa, indicando onde cada personagem estava e quantos inimigos ainda restavam. 

“Não”, responde o outro jogador, “mas estou com meu Arco Longo Composto, posso tentar matar o terceiro”. 

“Vão em frente”, responde o mestre. Os dados rolaram. “Ok. Ricardo corre na direção do cavalo, facilmente derrubando dois mamelucos, mas é surpreendido por um terceiro inimigo. Você sofreu um ataque...”, o Mestre joga um dado atrás do Escudo, usado para realizar jogadas em segredo. “Ele acertou seu braço. Você foi derrubado no chão e sente um líquido quente se espalhando pelo lado esquerdo do corpo. O turco pegou uma lança no chão e estava se preparando para perfurar seu pescoço, quando uma flecha atravessou seu peito. Ele cai em cima de você. 400 pontos de experiência para vocês dois.” 

“Meu Hospitalário está procurando Saladino”. Ela novamente joga um dado, sem obter sucesso. 

“Fomos atacados por um grupo pequeno”, disse o jogador de Ricardo Coração de Leão, “não acho que o Saladino estaria aqui. Acho que nunca vamos encontrá-lo em batalha, ele deve estar do outro lado do deserto.” 

Por trás de um sorriso sádico, o Mestre respondeu: “Vocês vão ter que jogar para saber.” 

Eles sempre tinham de jogar para descobrir e o jogo era tão divertido que eles iriam jogar para sempre, pelo menos até o Mestre decidir encerrar aquela mesa e criar outro mundo. 

Em um forte estrondo a porta se abriu e Odin entrou, carregando diversas caixas de cerveja e alguns sacos com quilos e mais quilos de ovelha cozida. “Ainda não sei porque vocês perdem tempo com esse faz de conta.” 

Olhando com desprezo para o deus nórdico, o Mestre pensou em dizer algo sarcástico sobre o faz de conta de Loki, que sempre surpreendia os deuses do norte, mas achou melhor sufocar as palavras. Mesmo sendo o Mestre, não sabia se iria para no Hades ou em Valhalla. Odin não tinha uma personalidade pacífica. 

Em poucos segundos, todos os jogadores saíram da mesa. Gaia e Zoroastro conversavam animados, enquanto Zeus fazia algumas anotações na ficha de Coração de Leão. 

O Mestre fazia planos para as próximas campanhas. Ele gostava daquele faz de conta.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Apresentando Os Incólumes

Cardoso acorda tarde. Sempre está ansioso. No calendário fixo na parede, um círculo marca o dia de hoje como um evento especial. "Finalmente", diz. Tira a guitarra do case, faz alguns acordes aleatórios, ouve a afinação e executa um pequeno ensaio. Confere se no compartimento de acessório há, ao menos, um encordoamento novo.

Tem vaidade para escolher a melhor roupa. Um novo jeans, a velha jaqueta de couro, presente de uma mulher que não mais se lembra, e os óculos de sol. A tática que, além do estilo, evita que as luzes venham direto aos seus olhos e, de quebra, permite olhar com mais facilidade para todas as garotas, sem promover rivalidade.

A banda sempre vai junto ao show. Embora um tanto quanto velhos, não perderam a vibração jovial. Vão em um carro, dirigido por Santoro, o baterista, e os instrumentos seguem em uma velha van, resquícios da fase hippie, dirigida por Aline, uma senhora de quarenta anos que ainda acha que é uma gruppie sexy de vinte.

Quando Os Incólumes adentram o Clube, Joshua perceptivelmente faz sua tradicional cara de espanto. Uma expressão que significa, mais ou menos, que diabos esses filhos da puta estão fazendo aqui? Cardoso se aproxima do balcão e ergue as sobrancelhas, como um cumprimento silencioso.

No mesmo silêncio, Joshua ergue a mão para a placa feita de letras pretas no lado direito do Clube. "Hoje: Velha Guarda Costeira. Amanhã: Os Incólumes". E ergue os braços como quem afirma não ter nada com isso. A decepção no rosto da banda é tão visível, que, com um sinal, Joana aproxima-se dos rapazes com latas de cerveja na mão.

Mas Cardoso deu as costas dessa vez. A van parava ao lado do Clube quando ele gesticulou dizendo para voltar. Seria mais uma noite de decepção aguardando um espetáculo que, como sempre, era adiado para amanhã. O restante da banda acompanhou Cardoso no sereno noturno fora do Clube. Estavam desolados mas dois deles não negaram a bebida de Joana. 

Duas horas depois Cardoso estava em casa e guardava o case da guitarra estrategicamente na parte de cima do guarda roupa. Antes de dormir, foi para o calendário e fez um circulo no dia seguinte. Amanhã, finalmente, pensou. E deitou.