segunda-feira, 30 de agosto de 2010

do Aurélio

Arthurar: v.i. 1. Ato de se ausentar do dia de postagem. 2. Ação que indica não ter (o sujeito da oração) cumprido com seu dever para com o blog. 3. Designação do lapso de escrita/postagem, frequente em pseudoliteratos. 4. Apresentar-se como o rei mítico da Grã-Bretanha. Tirou a espada da pedra e se arthurou. Invocou seu direito sagrado e inalienável de arthurar. Faltou com suas obrigações. Escafedeu-se.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

banshee



O vento gritou um grito agudo, lá fora, enquanto ventava em torno da casa.

- Não. Não posso ir. Não vou.

O homem permanecia em silêncio, olhando as árvores dançando na pouca luz da meianoite. Ela dizia que não ia, não ia, não ia, ele pensava, ela só dizia isso.

- E não vou mesmo. Chega, acabou. Eu fiquei quando você foi, fiquei lá, e chorei, e só eu passei mal, só eu passei. Você nem sabe, nem imagina, não suspeita a porra da dor que doeu em mim...

De fato não suspeitava. Olhando as árvores lá fora, enquanto a mulher falava rápido e quase gritando, ele não suspeitava, também, que a dor que doía nele era tão grande quanto. Não suspeitava que era até maior. Olhava os galhos batendo uns nos outros, tocando no vidro da janela, e ouvia mais um gemido agudo do vento rondando, rodando e rindo.

- Não é pelo que a gente teve, nem porque tenho medo. Não é por nada. É só porque acabou, desgraça, só porque você foi e eu fiquei, e agora é só, eu fui também. Não volto, não vou, não posso.

Ele ouvia.

- Não quero. Quanto tempo, diabos, quanto tempo você acha que isso duraria? Quanto tempo acha que teríamos ainda juntos? Porra!, quanto tempo acha que VOCÊ aguentaria?

No terceiro grito do vento ele viu, sobre a árvore que dançava, uma mulher lânguida e pálida, com um forte e rosado riso de escárnio. Sorrindo sem vontade, tirou os olhos lá de fora e pensou, triste, enquanto ela ia embora, que não teria nem mais três dias pela frente.

- Nem mais três dias...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dia a dia

Ela passou pela mesma padaria que passava todo dia indo para o trabalho, e recebeu o mesmo assovio lascivo e incômodo que recebia todo dia do mesmo tipinho escroto que fica na porta segurando o mesmo jornal sensacionalista embaixo do braço e esperando na mesma fila, pra comprar os mesmos pães.

Ela cruzou o mesmo ponto de ônibus que sempre cruzava todo dia indo para o trabalho, e recebeu os mesmos olhares de desejo que recebia todo o dia, dos mesmos peões parados esperando o mesmo ônibus para irem para seus trabalhos de merda.

Ela trocou de calçada no mesmo lugar da rua em que desviava todo dia indo para o trabalho, para evitar a mesma construção onde os mesmos pedreiros sempre lhe gritavam as mesmas palavras chulas, e escutou-as mesmo assim, como sempre as escutava todo dia.

Ela chegou no trabalho acompanhada pelos mesmos olhares famintos que lhe devoravam todo dia. Sentou-se em sua mesa, como fazia todo dia. Aguentou as mesmas piadinhas sexistas de um de seus colegas (impotente em sua imaginação) como todo dia tinha que aguentar. Trabalhou, como sempre fazia, todo dia, e ajudou seu patrão à organizar seus papéis, como de praxe e como de praxe desviou das indiretas, dos convites velados, como fazia todo dia. 

Ela foi embora ao fim do expediente junto com uma amiga, como fazia todo dia e foram em um bar tomar umas cervejas, como todos os dias antes desse. E dispensou os mesmos babacas que chegaram nela como se ela fosse só carne, como todos os dias acontecia. E tomou seu chopp, comeu seu lanche, riu com suas amigas, deu o fora em mais panacas, como todos os dias.

Foi pra casa, de taxi, levemente alcolizada, como todos os dias. Fingiu não perceber os olhares do taxista, através do retrovisor, para suas pernas nuas embaixo da saia curta, como todos os dias, em todos os taxis, com todos os taxistas antes desse. Entrou em casa, como todos os dias, não sem antes dar oi e sorrir um sorriso falso para o Seu Manoel, o velhinho que morava na kit ao lado, fugindo do mesmo discurso cheio de trocadilhos sexuais da década de 40, como todos os dias fazia.

Deitou-se, depois de tomar o mesmo banho demorado de todos os dias, e antes de finalmente adormecer, pensou, como todos os dias, o porquê de ainda permanecer solteira, e percebeu, como todo dia percebia, com base nos mesmos acontecimentos de todo dia, que não valia a pena ter um homem. Nenhum dia.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

soltinha, solteira

Ser solteira, pra ela, não dava nada, não era problema...
mas ela, solteira, dava que só, pra turma inteira.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O Homem do Auditório

Toda semana era sempre igual: o suor frio antes de entrar ao vivo, o suor que lhe escorria a face por causa dos holofotes, mesmo com o ar condicionado. A mão dolorida por causa das horas segurando o microfone dourado, sua marca registrada.

O terno incomodava, não era uma roupa adequada para permanecer boa parte do domingo. Se escolhesse, usaria algodão. Mas a imagem de um apresentador ainda tinha que ser mantida, mesmo que eles estivessem há um certo tempo deslocados do auge do sucesso.

A cada intervalo chamava a maquiagem e ia ao monitor que marcava o Ibope. Se um ponto caísse de seu percentual padrão sentia engulhos no estômago. Mas não podia se dar ao luxo de ter um desarranjo intestinal ao vivo, não no palco.

Eram incontáveis domingos, incontáveis ternos da mesma cor azul escura. O mesmo sorriso patético, clareado mais de três vezes no dentista, por causa do abuso dos cigarros, que fumava em casa, escondido, longe do público. Não podia afetar sua imagem de bom moço.

Conhecera todos os canais por dentro mas seu programa era o mesmo em todos. O formato da platéia cheia de mulheres, as gincanas que dão brindes ou dinheiros, os anunciantes que o irritavam e que, há dez anos, era imposição obrigatória de qualquer diretor.

Antes de entrar no palco, ao vivo, fazia o mesmo ritual. As luzes do espelho do camarim brilhavam como um sonho etéreo, o refrigerante de marca vagabunda que gostava de tomar, para sentir um gosto mais fétido que o de seu trabalho. Fixava em seu rosto, olhava os vincos, o cheiro forte do laquê que deixava seus cabelos perfeitos. Dizia a si mesmo que, após aquele domingo, iria desistir. Iria sumir das câmeras, inventar que estava doente.

Tinha cinqüenta e um anos e voltava à realidade quando batiam em sua porta, avisando sobre os dez minutos antes da entrada ao vivo. Então se recolhia, colocava o terno, apertava o nó da graveta que lhe incomodava, pegava o microfone guardado em uma caixa especial e sorria.

“Seu imbecil”, dizia. “Seu filho de uma puta imbecil”, repetia. E entrava em cena. Não havia mais para onde fugir.

Era tudo o que sabia fazer. Ser o patetico homem de logros e farsas no domingo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

live

Há 55 anos não deu certo, decididamente não deu certo. Não por nada, mas a televisão não conseguiu acompanhar direito, as imagens ficara chuviscadas e poucos repórteres estavam no local. Como nem eles nem os equipamentos voltaram, foi mesmo uma bela perda de tempo.

Mas hoje provavelmente seria diferente, pensavam todos na ilha de edição. Provavelmente porque o satélite fora direcionado desde o dia anterior, e um pulso eletromagnético enorme foi emitido do epicentro da ilha: nenhum celular, câmera digital, cinegrafista amador ou qualquer outro filho da puta desses tiraria a exclusividade daquela transmissão de TV.

Nenhum outro filho da puta. O satélite focalizava ao mesmo tempo toda a região construída, todas as cidades importantes da ilha, e era capaz de focar diretamente e com uma aproximação de centímetros qualquer objeto, pessoa ou animal que estivesse no solo. E tudo, genialmente, transmitido via streaming pela Rede de Notícias BGTon.

Daria certo hoje, pensavam todos na ilha de edição, enquanto no centro da ilha, pela televisão, o mundo assistia à terceira detonação de uma bomba nuclear sobre pessoas, a terceira em toda a história.

Nagasaki não importava: agora o mundo todo via, ao vivo, a morte da ilha de Cuba.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Carta Ao Santíssimo Padre, o Papa Benedictus XVI

Meu caro e santíssimo padre,

Venho por meio dessa epistola ad vaticanum exprimir alguns de meus sentimentos atuais, que serão a seguir expostos para melhor justificar o pedido do qual se trata a mesma.

Acontece, meu bom senhor, que sou cristão e, o pior, católico, e isso vem me incomodando já há algum tempo. É claro que não se pode dizer exatamente que fui batizado e fiz a primeira comunhão contra minha vontade, de fato a honestidade não me permitiria dizer que estava eu lutando contra os sacramentos em ambos os eventos. Mas essa mesma honestidade não me foi oferecida por minha família, tampouco pela Igreja Católica, quando os termos de aceitação foram expostos.

Primeiro, ninguém me disse, na ocasião, que Javé (usarei o termo mais adequado, para não ofender nenhum outro deus) era um deus que incendiava cidades, exterminava primogênitos de famílias inocentes, condenava seus filhos à crucificação ou à danação nas chamas eternas e permitia que seus fiéis fossem flagelados só para provar um ponto e ganhar uma aposta. Isso tudo, só a Bíblia me contou, muito tempo depois. Além disso, ninguém me avisou ali, na hora do batismo, que eu concordava em queimar no fogo do inferno caso não seguisse as leis de algum príncipe do Egito de milhares de anos atrás. Na verdade, além de "Deus é bom" e "Deus é amor", ninguém me disse nem explicou absolutamente nada antes de me declarar Católico.

Não obstante, senhor Papa, sinto-me bastante desconfortável em participar de qualquer grupo, ainda que por mera formalidade, que defenda, faça ou tenha feito alguma das realizações históricas de vossa congregação. As cruzadas, para começar, não foram nada legais, nem com os muçulmanos, nem com os ateus, nem com os próprios cristãos. A inquisição também, se me perdoa o termo, foi a maior mancada. Encobrir os casos de padres acusados de pedofilia, remanejando-os para outras cidades, também não foi muito correto, ainda que eu não tenha sido uma vítima desses caras quando era criança. E ainda que eu também não vá ter benefícios pessoais com isso, vocês podiam muito bem aceitar que muita gente simplesmente não quer ser heterossexual, e que não tem nada de mais nisso. E para não esticar demais, só quero manifestar que, em um mundo indo para 7 bilhões de pessoas, mundo esse que não se expande nem é tão grande assim, talvez haja alguma lógica em usar anticoncepcionais ou castrar a população. Não vejo nada nos vossos dogmas proibindo a castração, então quero pular fora enquanto é tempo.

É por esses motivos, e outros que não arrolarei para não abusar de vossa santíssima agenda, que venho solicitar, encarecido, que seja emitida em meu nome uma bula de excomunhão, liberando-me dos benefícios e conseqüências de ser Cristão e Católico. Deixarei as chamas do inferno de lado, me aproximando no máximo de religiões com um plano de aposentadoria mais brando para com os pecadores. Ah, sim! Se possível for, sua santidade, gostaria de receber cópia impressa da Ordo Excomungationis, para exibição na parede da sala de estar. Muito obrigado por sua atenção, e viva Dom Bosco.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Padre e o Ócio

O sacerdócio lhe deixava ocioso a maior parte da semana. Levantava cedo, fazia suas orações, tomava um banho e vestia as pesadas roupas da vocação. Nos sábados realizava o café da manhã para os pobres, com a ajuda das senhorinhas da paróquia, mas bom tempo passava com os dedos sobrepostos entre si.

Refletia sobre Deus, a própria condição de servo, sabendo que sua crença as vezes se abalava. Refletia sobre os pensamento mundanos que ouvia nas confissões e, por muitas vezes, se aventurou por eles a conhecer o mundo como não conhecia antes. Lera livros além da bíblia, assistia filmes, mesmo que o cargo superior lhe olhasse com maus olhos.

Começou quando o marido de uma recente pároca, Dona Cota, foi fazer sua confissão. Disse ser homem de pouca confissão, mas de muitos atos. Por isso que sua história demoraria um bocado. Regediu ao inicio do ano, onde ainda era um homem que perseguia a retidão, para aquele que hoje era: bandido.

Temia a Deus, a força dos trovões divinos a cair sobre ele. Mas era necessário, pelo bem da família. Eram cinco bebês para alimentar e o corte de cana, seu trabalho anterior, não lhe deu o que merecia. Mas a coca transportada pela fronteira sim.

Tinha rosto de homem honesto, ainda. Passava desapercebido pelos minguados guardas da fronteira, mas era apenas um transportador. Nada mais. Um filho novo vinha no bucho da esposa e precisava de mais, disse ao padre.

E esse era o problema de quem permanece boa parte da semana sem nada a fazer. Para o padre, do outro lado do confessionário, seria uma aventura. Talvez a mais excitante que tivera e, mesmo hesitante, propôs.

“Você sabe que vendemos ídolos com a imagem de nosso Senhor, produzidos pelas próprias senhorinhas da paróquia, não?”. E viu, pelas gradinhas, o homem assentindo. “José” – e o homem olhou-lhe como pode – “sua vida resolveria e você ainda acreditaria e temeria a Deus se eu te ajudasse a traficar essas drogas? Coloca-las dentro dos ídolos e vendermos por ai. Matando dois coelhos com uma oração só? Seu problema de dinheiro e o meu, que preciso conquistar mais fiéis para essa paróquia não fechar?”.

E estava feito o plano. Produzido pelas mulheres, o padre se encarregaria de colocar a droga dentro deles, que José chamou de Espírito Santo, e enquanto o padre proclamava o amor de Cristo na praça, José avisava os viciados de que encontrar-se com Deus, não seria, necessariamente, algo careta de se fazer. E que, afinal, eles tinham a benção Dele, do Divino, em pessoa para tal.

Era uma tarefa árdua. Discursos todos os dias na praça. Os superiores ficaram satisfeitos com o padre, por agregar mais almas para as missas. E, ele, feliz. Por conseguir gastar seu ocioso tempo livre, dedicado ao sacerdócio, em qualquer bobagem que pudesse esquecer o tédio de sua vocação.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

o mi to fo

- Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo.

E prostração. Joelho direito na almofada, esquerdo, testa e mãos postas. Palma pra baixo. Fecha a mão, gira a palma pro alto, abre. Segura e esvazia a mente. Sente o cheiro de incenso, ouve a mestra do outro lado do salão continuar entoando:

- Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo. Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo. Nam mo ben shi shi jie mo-ooooo niiiii...

Toca o sino. Fecha as palmas que estavam pra cima, vira pra baixo, recolhe os braços e se apóia nas mãos. Levanta a cabeça devagar com a mão esquerda espalmada sobre o peito. Não, com a palma pro peito não; com a palma pra direita. A mão direita levanta o corpo. Aguenta o peso nas pernas e levanta também a mão direita, junta na esquerda e, na frente do peito, mãos postas. Nossa vez, agora, Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo; Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo.

O grupo do outro lado do salão prostra. A gente canta. Em bom e velho português, Nam mo ben shi shi jie mo ni Fo significa algo como “Amém ao Buda Shakyamuni”. Ok, sei que não parece, mas shi shi jie mo ni Fo é a transcrição pro chinês do sânscrito Shakyamuni. Pode fazer o teste, Sha/shi shi – kya/jie – mu/mo – ni/ni. O “Fo” é “Buda” em chinês, e por uma diferença qualquer de sintaxe o primeiro nome vai no fim. Que seja.

O sino, nossa vez. Vai, prostra!