sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dia a dia

Ela passou pela mesma padaria que passava todo dia indo para o trabalho, e recebeu o mesmo assovio lascivo e incômodo que recebia todo dia do mesmo tipinho escroto que fica na porta segurando o mesmo jornal sensacionalista embaixo do braço e esperando na mesma fila, pra comprar os mesmos pães.

Ela cruzou o mesmo ponto de ônibus que sempre cruzava todo dia indo para o trabalho, e recebeu os mesmos olhares de desejo que recebia todo o dia, dos mesmos peões parados esperando o mesmo ônibus para irem para seus trabalhos de merda.

Ela trocou de calçada no mesmo lugar da rua em que desviava todo dia indo para o trabalho, para evitar a mesma construção onde os mesmos pedreiros sempre lhe gritavam as mesmas palavras chulas, e escutou-as mesmo assim, como sempre as escutava todo dia.

Ela chegou no trabalho acompanhada pelos mesmos olhares famintos que lhe devoravam todo dia. Sentou-se em sua mesa, como fazia todo dia. Aguentou as mesmas piadinhas sexistas de um de seus colegas (impotente em sua imaginação) como todo dia tinha que aguentar. Trabalhou, como sempre fazia, todo dia, e ajudou seu patrão à organizar seus papéis, como de praxe e como de praxe desviou das indiretas, dos convites velados, como fazia todo dia. 

Ela foi embora ao fim do expediente junto com uma amiga, como fazia todo dia e foram em um bar tomar umas cervejas, como todos os dias antes desse. E dispensou os mesmos babacas que chegaram nela como se ela fosse só carne, como todos os dias acontecia. E tomou seu chopp, comeu seu lanche, riu com suas amigas, deu o fora em mais panacas, como todos os dias.

Foi pra casa, de taxi, levemente alcolizada, como todos os dias. Fingiu não perceber os olhares do taxista, através do retrovisor, para suas pernas nuas embaixo da saia curta, como todos os dias, em todos os taxis, com todos os taxistas antes desse. Entrou em casa, como todos os dias, não sem antes dar oi e sorrir um sorriso falso para o Seu Manoel, o velhinho que morava na kit ao lado, fugindo do mesmo discurso cheio de trocadilhos sexuais da década de 40, como todos os dias fazia.

Deitou-se, depois de tomar o mesmo banho demorado de todos os dias, e antes de finalmente adormecer, pensou, como todos os dias, o porquê de ainda permanecer solteira, e percebeu, como todo dia percebia, com base nos mesmos acontecimentos de todo dia, que não valia a pena ter um homem. Nenhum dia.

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