quarta-feira, 30 de junho de 2010

Meu Pedaço

Escolheu pimenta, salsa e alho como tempero de sua refeição. Selecionou com cuidado, dentre as panelas disponíveis na vasta cozinha, a mais indicada para refogar seu almoço. Tinha comprado o vinho na noite anterior, uma boa safra, imaginava.

A carne ainda denotaria certo tempo, cuidado para talhá-la, retirar as partes que não parecessem suculentas e, após a seleção, temperá-las com cuidado, para a especial refeição.

Estava nitidamente cansado. Porém, o tempo de demora a realizar o prato lhe dava mais apetite. A cada vez que passava o escovão no quarto dos fundos, a memória se prolongava no futuro, e os lábios umedeciam de desejo. Esperou muito por esse momento e, finalmente, chegara.

Comprou livros como estudo, tamanho o prazer. Descobrindo a melhor maneira de produzir a carne, selecionando pedaços cruciais e descartando aqueles não tão nutritivos. Era necessário prática para corta-la sem transformá-la em pedaços feios e disformes. Mas havia treinado há meses para seu jantar especial.

A cabeça já havia retirado no quarto dos fundos. Não imaginara que tanto sangue escorreria, mas valeria o esforço. Restava agora o corpo, que retirava do gigantesco freezer alocado na sala.

Colocando desajeitadamente o corpo sobre a mesa da pia, corpo ainda inteiro, de homem branco na faixa dos trinta anos. Escolheu as pernas como primeira refeição. Dois talhos precisos nas carnes da coxa, com a faca mais afiada. O homem era grande, os dois pedaços de bife recém retirados lhe dariam uma boa refeição. Tornou a guardá-lo no congelador.

Picou a coxa em quadrados, como orientava a receita que tinha lido, trocando a eventual carne bovina por aquela que tinha desejo. Fez o picote quase com devoção, salgou-a e foi para o fogão.

Esperou que o fio de azeite espanhol começasse a emanar seu cheio no ar para concluir que a panela estava quente suficiente para os ingredientes. Colocou o pimentão, a salsa, o alho e a carne humana ao mesmo tempo. E exalou, pela primeira vez, o cheiro que diria depois ser a comida dos deuses.

Refogou mexendo com uma colher de pau, até sentir que as carnes vermelhas parecessem tenras e prontas para a degustação.

Abriu o vinho, deixando-o descansar, enquanto aguardava os legumes serem cozidos. Acendeu uma vela para a cena se tornar mais romântica e serviu o prato. Preparou a primeira garfada suculenta, com a boca cheia d´agua, e, colocando o alimento em seus lábios, realizava um sonho contido de trinta anos. Era um momento espetacular de sua vida.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

bistrô quarenta e dois

- Sim, claro. Posso chamar o chef. Um instante, sim?
- Vá, vá, mâitre. Fico com meu vinho enquanto isso.

- Pois não?
- És o chef, vejo.
- Sim, sou o chef. Nota o chapelão?
- Belo sorriso, cara, mas que seja. Olha, esse foie gras, aqui, tá vendo?
- Sim, senhor, claro que vejo.
- Pois bem, esse foie gras é de um pato ou de um ganso? Sabe, porque sinto gosto de...
- Pâte de abricot? Du pomme? Pâte d'amande? Nossos víveres vêm diretamente das melhores fazendas de criação do estado, monsieur, e aposto que esse sabor peculiar, essa nota como um flavor sincopado (se o senhor me permite), essa marca nítida da presença culinária criativa de nossa cozinha premiada...
- Premiada?
- Sim, claro! Premiadíssima. Por três das melhores revistas de crítica mundiais do momento, quatro estrelas pelo Le guide culinaire, recomendadíssimo (repito, recomendadíssimo!) pelo chef Rémy. Talvez essa sensação nova e ousada, talvez seja a influência oriental que temos experimentado, a pitada leve e quase indistinguível de gengibre, não?
- Não. É bucho. Gosto de buchada, meu filho. Faz favor, traga lá o catchup e não se toca mais no assunto.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Trovas de Santo Antônio

"Em volta da fogueira
dançando alegremente
está toda faceira
a moça sorridente

E será que essa moça
poderia por favor
conceder-me uma dança
com todo o seu amor?"

Essa seria a trovinha que José enviaria à Mariazinha pelo correio elegante da quermesse da igreja. Será que ela aceitaria?

Foi logo de manhãzinha à loja de seu primo João, para comprar a melhor roupa que pudesse existir. Claro que não adiantaria, já que sendo uma festa caipira, de caipira deveria vestir.

Comprou a roupa mesmo assim, a melhor calça remendada, o melhor chapéu de palha, a melhor rolha queimada para a barba desenhar.

Chegou bem cedo na festa, todo perfumado, de caipira trajado, esperando alegremente a Mariazinha chegar.

Ela veio, demorou, mas veio. Chegou linda como podem imaginar, vestida toda de chita, com um vestido rodado todo enfeitado com fitas de cetim.

José não perdeu tempo, foi logo correndo até o correio elegante e depositou sua mensagem, a trova especial, no cestinho, endereçada à menina mais bonita daquela cidade e além.

Esperou alegremente, ansioso mas contente, que a trovinha fosse entregue e que Mariazinha viesse encantada lhe beijar.

Mas viu outra coisa. Viu, debaixo da estátua de Santo Antônio, Pedro, seu vizinho, chegar devagarinho e pedir a garota de seus sonhos, que lhe acompanhasse ao altar.

Mariazinha aceitou, com lágrimas nos olhos, chorava de alegria, e beijava seu amado, que não era e nunca seria o nosso querido José.

José chorou ele mesmo, chorou de dar dó. Chorou e correu velozmente atrás do correio elegante, para poder sua mensagem recuperar.

A mensagem, a trovinha elegante, jamais chegou à Maria, agora mulher casada e direita. E José ficou pra sempre com aquele gosto ruim na boca de quem senta e deixa a vida passar.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Escola Estadual Bento de Abreu


É esse o nome do lugar onde estudei da 1ª série até o 3º colegial, aqui em Araraquara. E sendo Araraquara uma cidadezinha do interior de São paulo, mas que poderia perfeitamente estar situada no Texas ou Alabama, é lógico que, em todo mês de Junho, tínhamos festas típicas.

Para começar, tipicamente obrigatórias, visto que eram uma oportunidade excelente para a direção de um colégio público de 500 alunos extorquir dinheiro dos pais e dos filhos. Lembro-me que o diretor, seu Osvaldo Malaspina (sim, Malaspina, coincidência ou não, à vossa guiza) passava de sala em sala falando da festa, explicando que era tantos cruzeiros por pessoa da família, que já ia deixar 4 para cada aluno e que tinha que levar o dinheiro até sexta-feira. A gente tinha no máximo 9 anos e acreditava quando a "tia" ainda tinha a cara-de-pau de dizer que a participação valia nota. Pensando nisso agora, vejo que nossa sociedade tem isso de bom: já vão te acostumando a ser logrado desde os primeiros dias, para não traumatizar depois. Lembro-me que no meu colégio faziam uma competição fundamentada em exploração de trabalho infantil chamado "Miss Caipirinha". Cada criança recebia uma folha de sulfite com uma tabela de cinqüenta quadradinhos impressos em tinta azul de mimeógrafo velho. A criança pegava isso, e ia de parente em parente, por vezes vizinhos e amigos dos pais, esmolando X cruzeiros para cada quadradinho. Era uma rifa, excetuando-se o detalhe de que quem comprava não concorria a nada, o que enquadra a coisa toda em prática de mendicância infantil. A criança que vendesse tudo podia pegar outra folha e sair vendendo mais, e a que mais vendesse ganhava um jogo de dominó ou quebra-cabeças de 100 peças. Como o nome pode sugerir, era inicialmente exclusivo para meninas, mas em pouco tempo a direção percebeu que podia lucrar o dobro ao criar o "Mister Caipirinha".

Mas o melhor das festas era a própria festa. Primeiro porque nossas mães, precursoras desavisadas do movimento grunge, nos vestiam com camisas xadrez furadas, calças jeans surradas e remendadas e para completar, sujavam nossos rostos. Bigodinho era obrigatório e, se a mãe fosse agressive mesmo, chegava a pintar uns dentes de preto. Imagino como seria o Kurt Cobain aos 8 anos numa dessas.

A quadrilha. Uma série de coreografias feias, de origem européia medieval, regadas com expressões pitorescas da cultura local como "Ói a cobra!" e "Oi a chuva!". Tinha ensaio para ensinar toda essa micagem aos pobres e forçosos alunos. Alguns, como eu, eram demasiadamente descoordenados para tanto, e ficavam de testemunhas no Casório da Roça, papel cuja performance exigia pouco além de saber ficar parado. Os nerdinhos gordinhos-introspectivos-de-óculos-alvos-preferenciais-dos-moleques-que-faziam-karate ficavam todos lá, geralmente.

Do outro lado da festa, os descolados (e acho que todos conseguem imaginar bem um descolado de 9 anos de idade) ficavam no controle das duas instituições mais cafonas da festa: a Cadeia e o Correio Elegante. Pagava-se (mas calma, o dinheiro ia para a escola, o que você estava achando?) para prender crianças numa salinha até os pais pagarem a fiança (e nessa hora nós nerds gordinhos éramos muito requisitados) e para mandar recados com xavequinhos de galãs de 9 anos para as meninas de 7 ou 8. Lembro que tinha um moleque filho da puta que sempre recebia bilhetinho e depois vinha me zoar. Hoje penso que talvez ele pagasse para receber os próprios bilhetes, e me sinto meio burro de não ter feito isso na época.

Tinha pipoca, algodão doce, paçoca, quentão, vinho quente, doce de leite, churros, canjica, cachorro quente, churrasquinho de kafta, mariola de bananada, amendoim doce, amendoim salgado, pé-de-moleque, chocolate quente, milho verde cozido, bolo de milho, bolo de fubá, doce de batata doce, doce de abóbora e muita, muita tubaína. Particularmente, era o único aspecto da coisa toda que me agradava. Não era nem nerd nem gordinho à toa.

Finalmente, tinham os fogos. Ah, os fogos! Festas juninas e viradas de ano-novo são as únicas datas do ano fora do Afeganistão e do Iraque em que é socialmente aceitável ver crianças brincando com explosivos. Traques, bombinhas, bombas 1000 e 2000, com cargas em pólvora preta e pavios da marca Papaléguas. Caramuru de três tiros, buscapés e, porque não, balões incendiários. Uma criança ou outra sempre perde um dedinho, mas afinal de contas são 2500 alunos, acidentes acontecem. E chega, já falei demais de uma festividade que não gostava nem quando era Mister Caipirinha. Aliás, Mister Caipirinha não soa um incentivo ao alcoolismo infantil?

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Festas Juninas

I - Junho, 1991

A lembrança é viva por uma foto, tirada ao pé de uma falsa árvore, com um falso sorriso, obrigada pela escola. Ele de mãos dadas com ela, a infeliz que, aleatoriamente, foi escolhida para dançar quadrilha com aquele garoto tímido. Um risco falso como bigode, retalhos de mentira na roupa e ela, japonesinha, de vestido quadriculado e chapéu com tranças falsas coladas.


II - Junho, 1994

A professora insistia que cada classe deveria organizar uma quadrilha. Aulas e aulas perdidas para tentarem sincronizar um bando de crianças da segunda, terceira, quarta série, que ainda não tinham vergonha em usar aquelas fantasias mas, em breve, teriam. E muito.


III - Junho, 1999

No ano da formatura da oitava série qualquer festa é motivo para arrecadar fundos para a formatura, o pior momento custo benefício da história da humaninade. Ele ficou, ao lado da mãe, responsável pela barraca de cachorros-quentes. Entregando, um após outro, pães embebidos naquele caldo forte de ketchup que dá azia estomacal só de pensar.


IV - Junho, 2000; Junho, 2001; Junho, 2002

Em escola Batista, festas de santos não tem vez. Corta.


V - Junho, 2005

Uma das grandes festas do ano. A primeira que o calouro decide ir, principalmente por ser na praça, a céu aberto, de graça. Meia hora em uma fila para comprar o que se comer, mais meia hora para ter o que beber. Metade são universitários bêbados, a outra calouros perdidos. O que marcou foi a japonesa – não a mesma da primeira cena – que após três horas dando em cima de qualquer homem, foi embora sem pegar ninguém. Os amigos apelidaram o lugar em sua homenagem: a praça da japonesa triste.


VI - Junho, 2010

Um dia depois o amigo que o visitava iria embora. Decidiram subir algumas quadras e conferir a festa que acontecia. Eles, outro amigo e a namorada de um deles. A dita festa se resumia a um quarteirão lotado de universitários, com duas barracas de bebida e duas de comida. Deram uma volta pelo local, falaram mal da gordinha que, vestida de caipira, mais parecia a capa de um bujão de gás e, perante a festa mais patética que já foram, decidiram voltar para casa e pedir duas pizzas.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

coisas juninas

Tomou uma lapada de cana e entrou na casa. Era velório, bebia ao morto. Tradição, sabe como é... entrou na casa cheirando a cachaça, camisa aberta e choro e lágrimas.

Seu João era seu vô.

O velório estava cheio, a essa altura. Pedro chegou tarde porque bebera antes. Antes de beber ao morto, até. Porque, sabe como é, tradição... e não conseguiria olhar pro caixão sem ter bebido um pouco. A dose do morto não dava conta, então tomou umas antes, fumou umas pontas. Sabe como é...

O velório cheio cheirou a sangue, quando o neto entrou. Todo mundo olhou pro velho João, porque o neto cheirava a cachaça, cheiro de sangue vinha mesmo era do caixão. A gente toda em silêncio com olhos abertos, tremendo, a gente toda cruz-credo ave-maria e nossa-senhora-olhai-por-nós. Além de uns "Puta que pariu!" que toda gente ouviu, de um canto e de outro.

Era tradição, sabe como é. Quando o defunto sangra é sinal de que o homem tá por perto. O homem que matou o defunto. Tradição.

- Cês tudo aqui sabe como é? Sabe como é a cara do pilantra desgramado? Sabe? Sabe não, cês não sabem. Mas eu sei, ora porra, sei porque eu olho todo santo dia essa cara infeliz. Desde que me vejo por gente, até quando quebrei o nariz e no espelho tinha meio esparadrapo com dois olhos e o resto, as orelhas, tudo mais. Fui eu, tô dizendo, fui eu que mandei o velho encontrar com a onça Caetana. Rasguei-lhe o bucho a facão. Fui eu, maldição.

Daí perguntou alguém, "Por que matou Seu João?", e Pedro depois respondeu:

- Matei porque ele era bom. O vô era mais muito bom, vivia dizendo o certo, fazendo o direito, ralhando com o resto. O vô era bom demais pra aguentar um neto feito eu. E eu era novo, daí que entre novo e bom o novo chegou na frente. Na frente do velho. E matou.

A gente toda olhou, de novo, até que entendendo a razão. Pedro devia sair linchado, dali, provavelmente sairia, acho que saiu, até. A história não chega até lá. Pára antes. Até onde eu sei, depois da confissão, o neto ajoelhado, nem pedindo perdão, até onde eu sei a gente parou de chorar e lamentou o que ia acontecer. Toda a gente toda indo pra cima do Pedro, do Pedro de joelhos, sem facão nem nada, agora. Ouviu-se só um murmúrio, um lamento, vindo do meio da turba que ia. Lamento dizia que o velho era bom, mesmo, que o velho era um santo.

- São João...


sexta-feira, 18 de junho de 2010

O Termo da Copa

Uma cabeçada, simples assim. É claro que após isso ainda houve uma disputa de pênaltis, mas isso foi adendo, pois a Copa de 2006 teve termo naquela cabeçada de Zidane. Sempre é assim, um gênio põe termo à Copa, seja da forma que for.

A Copa de 58 não terminou no apito do juiz, terminou sim quando Didi – após o Brasil tomar o 1º gol da Suécia – colocou a bola debaixo do braço e proferiu a seguinte frase: “Vamos encher esses gringos!” Outros 6 gols foram feitos após isso, inclusive o lendário chapéu de Pelé, mas quando isso aconteceu a Copa já havia tido seu fim. Seu fim foi quando Didi, o gênio, decidiu que seria.

Em 62 a Copa terminou antes mesmo de começar a final. Terminou quando Garrincha, com 39 graus de febre decidiu ir a campo. O jogo pouco importa. A Copa teve termo quando Garrincha quis jogar.

Em 70 foi a vez de Pelé. Ele terminou aquela Copa quando – sem olhar – passou a bola para um possível Carlos Alberto que deveria aparecer por lá. Pouco importa se Carlos Alberto de fato apareceu para marcar o gol mais bonito de todas as Copas. Isso foi depois do fim. O fim foi quando Pelé soltou a bola no infinito das possibilidades.

Em 94 as coisas aconteceram ao contrário. O gênio no caso era Baggio e ele deu termo chutando para fora aquela bola que o perseguiria até hoje, assim como a cabeçada persegue Zidane.

Em 2002 foi um trabalho conjunto, 3 gênios puseram fim à Copa. Rivaldo ao chutar a bola, Khan ao rebatê-la e Ronaldo ao aparecer do nada para por fim não só ao sonho alemão, como ao seu pesadelo de quatro anos atrás. Ali terminou a Copa.

Em 50, ano da maior tristeza já vista na terra, quem pôs fim não foi nem Ghiggia, com seu gol que calou a maior das multidões, nem Barbosa, com sua pequena e monstruosa falha. Quem pôs fim àquela Copa foi Obdúlio Varela, quando tomou as rédeas da situação e – do alto da maior liderança já vista em um campo de futebol – esbofeteou Bigode e, com ele, todo o Maracanã e o equilíbrio emocional do escrete brasileiro.

Em 98, a outra tragédia, o final também coube a Zidane, que iniciou esse texto. Aquela Copa acabou assim que a bola saiu da cabeça do gênio a primeira vez. Não foi – como pensam muitos – quando Ronaldo caiu prostrado antes do jogo, não. Foi quando o francês subiu mais alto que toda a zaga para fazer o 1º de seus únicos 2 gols de cabeça pela seleção francesa. Uma cabeçada, simples assim!

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O Último Pênalti

Quando Roberto olhou ao redor, sentiu subitamente cair-lhe sobre os ombros uma pressão que até aquele momento simplesmente ignorava. Não que não soubesse estar cercado por quase cem mil pessoas nas últimas duas horas. Mas, de um instante para outro, ao contemplar os dois exércitos – um azul e o outro verde e amarelo - que o cercavam, sentiu-se repentinamente oprimido. Como que não quisessem voltar-se para o fardo da responsabilidade, seus olhos fixaram-se, em busca de dúvidas, no letreiro que indicava seu nome e número para o próximo e derradeiro pênalti.

Já estivera antes em grandes decisões, com públicos até maiores do que aquele. Já havia enfrentado adversários melhores e com mais auto-confiança do que aqueles. Naquele mesmo evento, naquela mesma Copa, ele e seus companheiros haviam derrotado pelo menos dois times mais habilidosos e entrosados do que aquele amealhado de idosos e falsas estrelas. Sabia muito bem que toda batalha tinha seus heróis, e sabia igualmente ser o herói dos que o cercavam. E em outras batalhas, ele fora o herói, o campeão triunfante que carregava consigo a vitória e o orgulho. E como um verdadeiro herói, viu seus inimigos derrotados diante de si. Mas Naquela tarde, naquela improvável tarde, não haviam conseguido derrota-los.

Olhou para seus adversários. Alguns já velhos conhecidos de outros jogos, quando vestiam outras camisas. Haviam lutado por noventa minutos, mais uma prorrogação inteira. Ele próprio, o próprio Roberto, havia lutado em cada um desses cento e vinte minutos. As oportunidades surgiram, mas não um gol, um único e miserável gol que pusesse fim àquela tortura física e mental.

Física, porque já nas últimas semanas lutava contra uma lesão no joelho. Havia saído milagrosamente de uma cirurgia recente para em poucas semanas de terapia se habilitar ao jogo. Não houve um único minuto em que não houvesse sentido o fraquejar dos ligamentos recém-costurados. Não podia pensar naquilo, precisava concentrar-se, pensar no fim que se aproximava.

Respirou fundo. Olhou para a frente e, no exato momento em que seus olhos encontraram os do guardião das traves, um homem que sabia ser como os demais um dos melhores de seu país, nesse exato e inevitável momento, ouviu o apito do juiz.

Sabia o que o som indicava. Indicava a autorização para chutar, para colocar um fim à angústia de centenas de milhões. Para avançar alguns metros e decidir alguns futuros. O seu próprio futuro. E quando olhou novamente para o letreiro que dizia "R. BAGGIO", sentiu o joelho tremendo, as pernas dormentes e os pés latejando após duas horas de esforço bélico. O último pênalti, último de cinco, o último chute do jogo e também de uma Copa. No último segundo, pensou em duas formas simetricamente opostas para o desfecho de sua tragédia. E naquele derradeiro instante, sentindo-se incompreensivelmente oprimido por tudo o que o cercava, lembrou-se que, para cada herói glorificado, um vilão precisava ser igualmente rechaçado.

Nesse último e terrível instante, com tais últimos e terríveis pensamentos na improvável tarde de 17 de Julho de 1994, Roberto avançou e, com os olhos fixos, chutou o último pênalti.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O Declínio do Império Brasileiro


27 de Junho de 2006

Era o cochilo da tarde, a folga leve após o almoço, doce almoço de casa que José saboreava após dias no restaurante perto da firma. Não era feriado, mas hoje estava de folga, meio período ao menos. Motivo para que sorrisse, “Viva a seleção”, dizia, “graças a ela meio expediente e a tarde livre para o jogo das oitavas”.

Saiu de seu bom sono pelo empurrão da esposa, idas e vindas em seu braço esquerdo até que ele acordasse, abrisse bem os olhos. Saltando a sua frente, Amanda foi certeira. “Zé, estou com desejo, preciso de pistaches”.

Era o oitavo mês do bebê, oitavo mês daquela alegria única divididas por casais. O primeiro deles, vindo depois de muito estudo e planejamento. Contas para saber se tudo ocorreria bem.

Esposa e neném passavam bem. Amanda tinha poucos enjôos, ele chutava demais e, na época de Copa, um chute nem era reclamação, era motivo de felicidade boba para dizer o óbvio. Será esportista, já está torcendo pela seleção, lá de dentro.

“Agora, mulher?”, e José olhou no relógio de pulso, que estava na mesinha ao lado do sofá. "Mas são três e cinqüenta da tarde, eu escuto o Galvão daqui falando sobre nosso jogo". “Agora, José. Aqueles pistaches bem torradinhos, que a gente quebra com cuidado e come” e soltou uma sonora onomatopéia recheada de apetite.

“Hoje é jogo do Brasil, Amanda”. E ela, começando a não compreender a situação, fechava o rosto. “E, José?”. "A essa hora tudo está fechado, a cidade para por causa da copa", José insistiu, um pouco irritado.

E ele levantou do sofá com cara de poucos amigos. “Vamos repassar. Você”, e apontou para ela dizendo todas as silabas com cuidado, “quer que agora, eu, José, saia, com o carro, para buscar pistaches no jogo do Brasil. Brasil.”, e mostrou a bandeirinha colada na frente de casa, “contra a França do Zidane. Zidane. Para comprar pistaches?”.

Amanda lhe olhou por alguns segundos em silêncio, “uhum, e uma soda se possível, mas eu estou com desejo mesmo dos pistaches”.

E trocaram rostos cômicos, José com sorriso irônico vencido por Amanda com rosto de faça se não o sofá será sua residência no próximos dias. “Mas eu nem tenho rádio no carro”, bufou. E foi. O mais rápido que podia.


“Posto de conveniência, fechado. Mercado, fechado. Fechado. Esse também fechado. Droga. Malditos pistaches”. E olhava no relógio, quatro horas e trinta e cinco minutos. “O jogo, o jogo. O Brasil deve estar batendo um bolão”. Um posto aberto. Frentistas em frente da televisão.

O carro veio veloz, parou quase em cima deles, que não se mexeram. “Amigos, o mercadinho está aberto, eu preciso de pis... ta... ches...” E olhou para a tela que reprisava o único gol do jogo. Pênalti, Zinedide Zidane, aos 33 do primeiro tempo, exatos dois minutos atrás.

Os funcionários não responderam e José, espantado só perguntou, “Como?”. Um dos frentistas tirou uma cerveja de um balde cheio de gelo, jogou ao rapaz e apontou uma cadeira de praia fechada. “Se o senhor perder o resto, é capaz de não dormir a noite”.


E esqueceu de tudo. Permaneceu concentrado com olhos naquela tela imunda cheia de fantasmas, e na cerveja que lhe descia gelada pela guela, anestesiando o que, no meio do segundo tempo, muitos brasileiros sabiam. A derrota.


Quando chegou em casa de mãos vazias, sem soda ou pistache, esquecido pela tristeza da perda, imaginou encontrar Amanda furiosa. Mas ela estava na sala, em frente a televisão, chorosa. Embora achasse estranho, hormônios da gravidez, afinal, foi consolada. E abraçaram-se. “Perdemos”, ela disse. “Eu vi”, replicou. Ficaram em silêncio. Um abraço prolongado.



15 de junho de 2010

Ele corria pela sala empolgado, vestido de camiseta amarela, calção azul e com o rosto pintado. Apitava para lá e para cá gritando “Brasil”. Era a primeira copa de Juninho. Seu nascimento ocorreu quase um mês depois da derrota canarinha para a França, no fatídico jogo dominado brilhantemente por Zidane. Não que isso fosse importante para José, a perda do mundial, naquela ano, não seria nada, comparado a benção de receber um filho.


E la estava ele, brincando de bola antes do jogo. Era lindo, lembrava o pai, pensava. Mas as vezes, olhando demais, sempre tinha a leve impressão de que, além de sua figura paterna, o garoto lembrava pistaches. Mas não lembrava-se do porque exatamente.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

rumo à Copa

Gavilanes nem se lembrava mais de quando abandonara a esposa. Fazia tempo. Quando saiu de casa foi direto à Série A do Paulistão. Jogou como um diabo, aquela temporada, comandando o time mesmo não sendo o capitão. Foram vice. Tudo bem, pensou Gavilanes, vice pra quem era segundona ano passado, fomos bem.

Mas o técnico não gostou do quanto ele era bom, os cartolas fecharam o samba e botaram Gavilanes fora. Despedido, sem contrato em canto algum. E sem mulher.

Ter jogado como um diabo, no entanto, serviu pra alguma coisa. O mundo todo botou os olhos no zagueiro, grande jogador, já velho em fim de carreira. Ia pendurar as chuteiras? Não! Temos aqui, Gavilanes meu filho, uma coisa pra ti. Uma missão.

Como? Sim, sim, temos dinheiro. Não, não temos nada que ver com clube algum. Só mexemos nossos paus, sabe como é. Sabe sim, eu sei... Enfim, meu amigo, vamos logo ao assunto: queremos que vá à Copa do Mundo.

...

Gavilanes claro que aceitara. Não tinha nada a perder, a Copa era um sonho altíssimo e ele, ora, ele foi. Na hora. Pegou uma mochila, o rumo da Copa, e caminhou. Caminhou, caminhou, e quando pensou ter chegado, era só o começo. A missão pra qual o mandaram era mesmo das mais arriscadas, e ele começou a escalar. Subiu pelos galhos mais tortos, mais altos, mais todos da Árvore-Mundo. Demorou, mas quando chegou lá no topo, nas últimas folhas, não pode conter o sorriso.

Estava na Copa do Mundo.

domingo, 13 de junho de 2010

Agora Apresentando...




Prezados sócios,

Após três meses da reabertura do Clube Dos Corações Solitários do Sargento Pimenta, temos o prazer de apresentar dois novos integrantes do show.

Os novatos são amigos antigos e também parceiros de outros projetos que vem somar mais dois na multiplicidade textual de nosso clube.

Sendo assim, a partir de amanhã, contamos com as ilustres presenças de José Percego e Victor Caparica, respectivamente nas terças e quintas-feiras.

Ao lado dos dois, Arthur Malaspina, Leandro Durazzo e Thiago Augusto Corrêa serão responsáveis a cada semana por cinco dias de ficções inéditas, sempre escoradas no tema da semana.

Os membros fundadores do clube dão boas vindas aos novos integrantes. Será um imenso prazer trabalhar ao lado de vocês.

A partir dessa semana iniciamos um novo movimento para O Clube, uma ampliação de seu espaço inicial.

Deixamos aqui também registrada nossa atenção e agradecimento aos leitores, com o desejo que eles redobrem agora que temos mais talentos ao nosso lado.

Cinco, definitivamente, é melhor do que três. Esperamos que gostem do show.



Excelsior,
Thiago Augusto

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Diálogo poético

Recado

A quem um dia negou
descaradamente algo verdadeiro,

E em um lapso forjado de memória
acreditou na mentira dita,

E guarda escondido no extremo da mente
um gérmen daquilo que ocultou,

Que, renascido, pode arruinar
a tola felicidade construída.


Resposta

A quem acha que é possível
ser cruel publicamente,

E esquece que o sofrimento nada mais é
que um companheiro das horas solitárias.

A quem é tolo o suficiente
para achar que pode enfim deixar pra trás coisas passadas,

Apenas dizendo tolamente que não tem culpa
e nem sente mais do que está escrito.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Maçãs de Amor

Eles sorriram dentes perfeitos para a foto. A automática registrou muitos fotogramas digitais, um mais plástico que o outro. Na mesma noite, diversas dessas imagens seriam repassadas aos amigos e figuradas na rede de relacionamentos preferidas de qualquer um.

Seria um belo retrato se pelos espaços vazios daquela imagem não existissem silêncios que a foto não revelava. Eram seis, tendo como laço um amigo em comum. Abraçados par a par da maneira que os satisfazia e confortava.

À direita, o primeiro casal arriscava um beijo mal formulado com olhos de soslaio para a fotografia. Poderia ser a imagem da felicidade, se ele não estivesse ao lado dela por desespero. Após uma longa vida de amores escusos, encontrou naquela mulher doente quem o amasse e não lhe cobrasse muito. A família achava que tinha futuro. Mas nunca sairiam do chão.

O casal do centro era o mais belo. Semelhantes no físico. E, ao contrário dos parceiros ao lado, tinham saído do lugar. Viajaram para o interior do Brasil, fotografaram em diversas praias, degustando camarões e peixes. Imagens que ilustrariam uma futura casa de casados. Que sempre seria interrompida pelo fato dela não amá-lo suficientemente. Necessitando encontrar em outros homens o ardor que não descobria em sua contraparte.

O lado esquerdo simbolizava, para os outros, a cumplicidade única do eterno. O casal mais velho da dupla já adiposo de tanto tempo que estavam juntos. Sem saberem que, dentro do cerne de cada um, o cansaço era rei. Ele não a compreendia mais, fingindo saber que a conhecia. Não entendendo como, aos trinta, ainda agia como uma garota de quinze. E ela, tendo ele como o primeiro e o único amor, sentia-se presa. Amando-o sim, mas sempre, vez ou outra, deixando o pensamento a levar para um mundo em que ela seria livre e poderia experimentar outros frutos proibidos.

Aos poucos, um a um naquele retrato perdia seu reflexo de perfeição quando se conhecia os vazios que os determinavam. Se tornavam apenas imagens que comprovavam almas insatisfeitas, vitimadas pelos desvios da vida. Abstendo-se de boa parte de si. Sem coragem para assumir seu lado miserável. Amores que só eram chamados assim por não haver outra palavra mais rude para defini-los. Amores surdos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

dias do namorado

Quinta-feira Josemário foi ao padre. Dom João era seu amigo de pequeno, e devia um favor a ele, então achou por bem cobrar. "Claro, Josemário, claro. Marieta vai ficar feliz".

Não tinha dinheiro, nosso herói, então foi pedindo mais favores. Ao Palocci da padaria encomendou docinhos finos, fazer uma bela festança com uma mesa colorida. Marieta ficaria feliz.

E surpresa. Marieta ficaria surpresa com o que ele proporia. No sábado, dia dos namorados, ele proporia. Marieta ia ficar feliz que só.

E os dois, depois, muito tempo juntos. Ah, ficariam, ficariam sim.

Sexta-feira passou ajustando os detalhes. Confirmou o salão, arrumou as mesas cortinas e tudo mais, etiquetas com os nomes convidados sobre as toalhas de mesa rendadas com arranjos florais feitos a mão. Marieta ia ficar cheinha de emoção, ela toda. Daí ligou pra Damião, o cara do som.

"Ô, Zémário, claro, cara. Tinha um lance pra fazer no sábado mas pô, claro. É data importante tua, é bom, eu faço. Chego aí pela manhã."

Josemário foi dormir. Sexta-feira passou voando, nem percebeu. Ainda bem que já tinha avisado da festa ao Babir, Moreno, Pelúcia, Marleide, Joelma, Cabíria e a turma toda. Marieta ficaria felicíssima.

Sábado chegou. Dia dos namorados. Ia propor. Levou Marieta ao salão de olhos fechados, ia propor, estava suando, nervoso, primeira vez que faria isso, uma nova vida.

Todo mundo estava lá. Sorriram, gritaram. Bateram palmas. O buffet montado.

Zémário propôs, tímido, propôs:

-Entra de sócia comigo numa firma de buffet e festas?