sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sobre a Guerra


“Três, em Dudinka”, anunciou enquanto movia as peças vermelhas no lugar nomeado. Lançou os dados da mesma cor, específicos para o ataque, e franziu a testa diante do resultado medíocre. Alexandre arremessou os dados amarelos e sorriu. Dario estava derrotado em todos os ataques. “Tudo bem, você venceu hoje. Mas sempre há o próximo turno.” Suas palavras tentaram soar sérias, mas assim que fechou a boca, os três gargalharam.
O tabuleiro estava pintado pelas cores dos três jogadores, dividindo o mundo em facções de poderes equivalentes. Ao redor do simulacro de mapa mundi, cartas e peças descartadas estavam espalhadas, circulando copos e caixas de cigarros. Cinco horas de jogo e o ânimo dos amigos continuava o mesmo do começo da noite.
Alexandre segurava um copo com whisky e gelo. Perdera a conta de quantas vezes entornou a bebida, trocando as pedras de gelo entre uma dose e outra; sabia apenas que ainda sentia alívio no pescoço, livre da gravata cinza que havia usado a semana toda. “O que você está dizendo é que poderíamos sair do planeta, é isso?”, respondeu para Dario, quase meia hora depois do comentário do astrônomo amador.
Carlos concordou com um único aceno e moveu as peças. “É o que o Dario falou desde... ontem, quase. Dois na Inglaterra.” Jogou os dados: cinco e seis.
Alexandre cerrou os olhos e realizou a defesa, obtendo dois e três. “Essas merdas estão viciadas, não é possível!” Examinou os cubos amarelos de perto, estampando um sorriso etílico na boca.
“Não, não estão”, comentou Dario, encarando Dudinka ocupada pelas tropas de Alexandre.
“Não são os dados, minhas tropas são eficientes. Oataque foi feito pelo Tâmisa, tomei Londres despreparada e parti para o resto da ilha com velocidade e ferocidade. O pior é que a Europa não faz parte do meu objetivo,” fez uma cara de escárnio, “mas gosto dos Beatles. Com eles no meu poder, vou conquistar essa porra toda”, completou apontando para o mapa e empilhando algumas unidades verdes na Inglaterra. Tinha metade da Europa.
“Com a propulsão e velocidade suficiente, sim, poderíamos sair do nosso planeta para sempre e colonizar Kepler”, respondeu Dario. “Parece que confirmaram a temperatura média do planeta e que ele é rochoso. Uma rocha perdida no espaço, com água líquida, atmosfera como a nossa e temperatura agradável. Estou falando, vou para lá na próxima férias”, entregou o jornal para Alexandre, cuja manchete principal anunciava a descoberta da nova Terra.
“Pode ser, mas por enquanto você está sendo atacado na Autrália.” Alexandre atacou.
“Você deveria ter parado na Índia, sabia?” Dario jogou os dados e perdeu. “Mas que droga, cara. Você está fodendo meu jogo.” Ele ainda tinha a mania de procurar a aliança fantasma com o polegar da mão esquerda. Os outros jogadores notaram o movimento, mas evitaram falar qualquer coisa; percebeu o que fazia e resolveu ocupar a mão com uma garrafa de cerveja, levantando até a geladeira. Pegou mais chá gelado para Carlos.
“Eu sentiria falta dessas coisas se deixasse nosso mundo para trás”, Carlos respondeu, pegando a bebida.
“Do que você está falando?”, Alexandre estudava o tabuleira, tentando decidir o que fazer em seguida.
“Estou falando das coisas mais simples, como essa partida...”
Ainda estudava o mapa e contava mentalmente os inimigos fechando o cerco. “Devo dizer que ‘essa partida’ não está nada simples, cara. Pense em todas as famílias chorando os soldados mortos, a miséria causada pelo estado de guerra total de todos os países do mundo, nas plantações devastadas pelo gás mostarda, as reuniões entre líderes que se odeiam, os atentados terroristas, os fanáticos religiosos...”
“Eu vejo apenas peças”, Darios bebeu meia garrafa da cerveja em apenas uma golada.
“Você não enxerga a poesia do jogo”, Alexandre puxou uma carta do monte e indicou que estava satisfeito com o turno, bebeu mais do whisky.
“Poesia? Minha vida já está uma merda, eu jogo isso para descançar um pouco da realidade e tenho que ficar imaginando quantos jovens eu mando para a morte? Aqui somos líderes políticos e militares atrás de uma mesa, transformando soldados de papel em máquinas de guerra, em homens de família que pilham e estupram depois das conquistas.” Movimentou algumas peças. “Por falar nisso, três em Dudinka.” Novamente, os dados rolaram números baixos e ele xingou. “Sentiria falta de algumas coisas, Carlos, mas estaria feliz por deixar outras para trás”, o polegar novamente acariciava a linha pálida no dedo gordo.
“Todos nós”, continuou Carlos, já iniciando sua rodada. “Mas veja bem, você ficaria o quê, dez, quinze anos em uma nave para chegar em um planeta sem nada, apenas as condições mínimas para sobrevivência e exploração. Imagine que todas as coisas são dependentes, que o mutualismo entre os seres vivos é a única coisa que importa em nossas vidas... fazer parte do todo, peça única e insubstituível do tabuleiro, integrado e sincronizado com as outras coisas”, ele brincava com um soldado verde nas mãos. “Você renunciaria todas as cores da manhã, quando o sol está nascendo e há uma caneca cheia de café está na suas mãos. Talvez uma mulher esteja dormindo embolada no seu lençol, nua e linda. O som dos pássaros, a brisa matinal, pense nisso tudo que ficaria em outro mundo, literalmente. A bondade dos desconhecidos, a diferença que suas ações poderiam fazer na vida de outras pessoas. Tudo está conectado.” Ele sorveu o chá preto. “E só agora eu enxergo sem uma névoa em minha mente.”
“Quanto tempo?” Dario olhou com culpa para a cerveja, enquanto Alexandre derrubava mais do líquido ambar no próprio copo, confiante e sem censura. O gela estava derretendo e ele teria de jogá-los na pia.
“Dois anos já e sem uma única gota”, ele levantou o copo e fizeram um brinde. “Um dia por vez, como dizem. Um dia por vez”, a voz de Carlos estava repentinamente cansada, arrastada.
“Eu sentiria falta das tardes de sábado”, disse Alexandre. “Aquele sentimento específico das tardes de sábado, quando você poderia dormir o resto do dia e ainda sobraria o domingo para relaxar, assistir um filme na TV ou sair para caminhar um pouco.” Refletiu um pouco mais e continuou: “Filmes, sentiria falta de filmes. E de sushis.”
“Cheiro de talco para bebês, café, comida caseira, pantufas e condicionador feminino, adoro o cheiro de condicionador feminino.” Dario não percebia que suas escolhas demonstravam o efeito devastador do divórcio. Da noite para o dia, os conceitos de família, abusados e forçados por ele nos últimos anos, tornaram-se sagrados e objeto de culto. Era um caso em que a ordem dos fatores alteraram o resultado.
“Pantufas?”, ecoou Alexandre antes de gargalharem novamente.
“É mais confortável do que parece.”
“Sexo”, cortou-o, antes de iniciar um novo turno. “Daqueles que você fica desnorteado quando acaba, todo suado e sem forças, os músculos doloridos e um pouco de boa culpa cristã na caixola”, ele movimentou as peças e jogou os ataques.
“Haveria sexo em no novo mundo”, Carlos disse. “Desde que você tivesse alguém para fazê-lo, é claro. Ou uma mão.” Riram novamente. “Acho que é a primeira vez que podemos falar de um admirável mundo novo no sentido mais literal possível.”
Dario terminou o chá gelado e coçou o couro cabeludo, movimento que fazia sempre que estava imerso nos pensamentos. “As viagens portuguesas durante as épocas de descobrimentos podem ser comparadas, acho. Deixar tudo para trás, navegando por meses para chegar em lugares desconhecidos, enfrentando a fúria dos oceanos, fome, medo, doenças, solidão e o perigo constante dos ventos fortes e das chances de ficarem parados, no meio do oceano por semanas inteiras. Nesse caso também, retiravam-se da vida social quase que inteiramente, esquecendo o que foi feito e o que poderiam fazer em suas vidas antigas. Há algo de belo nessas escolhas. Às vezes, se pensarmos bem, tudo o que alguém precisa é precisamente escapar.” O polegar esquerdo raspava desesperadamente o outro dedo.
Alexandre estudou o amigo, sentindo um aperto no peito. Pensou nos cabelos grisalhos e nas olheiras profundas que assinavalam seus olhos. “Quando nos tornamos uma piada? Você saiu de um divórcio complicado e tem sorte por não estar respondendo por homicídio”, virou-se para Carlos, “sua vida inteira foi queimada, um fundo de copo por vez. Tenho uma úlcera do tamanho de uma laranja por causa dos filhos da puta em meu escritório. Quando foi que pegamos as curvas erradas?”
Dario refletiu por alguns instantes. Estavam todos em silêncio, apenas as pernas de Carlos faziam barulho, balançando na cadeira em que estava sentado. Eram velhos, independente da idade física; perderam, cada um deles por razões próprias, a confiança nas pessoas, no amor verdadeiro e na esperança por um amanhã melhor. Liam nos jornais sobre assassinatos, roubos e descaso generalizado. Carregavam machucados escondidos, enterrados no fundo de suas personalidades, machucados que sangravam em silêncio, cavando buracos cada vez mais profundos e irreversíveis; de alguma forma, eram tesouros que guardavam para si, algo que os deixava mais maduros e reais; experientes. “Algum dia vou para a nova Terra, o planeta Kepler”, prometeu Dario, “mas vou sempre levar comigo os momentos com vocês, são os dias mais preciosos e verdadeiros. Só consigo confiar em vocês, caras, e nas conversas desencontradas e fragmentadas durante nossos jogos. Desde pequenos, lembram? Apenas as conversas durante os jogos mudaram, ficaram mais chatas, o resto não. Algumas coisas não mudam.”
“Que coisa de menina”, disse Alexandre.
“É verdade, cara, deixe de ser boiola”, completou Carlos.
Sorriram e brindaram novamente.
“Três, em Dudinka e dessa vez vou pilhar e estuprar seus civis”, Dario disse. Poucos instantes depois, amaldiçoava os números baixos nos dados vermelhos.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Bzzz


As luzes vermelhas iluminavam a sala. Sombras se transformaram na luz escarlate, tornando o ambiente ainda mais ameaçador. Hag ouviu os passos apressados dos subordinados do outro lado do espelho de face única. Ele fechou os olhos e os imaginou com pranchetas nas mãos, óculos sujos e mal conservados nos rostos apreensivos, checando o batimento cardíaco nos monitores e a porcentagem ainda intacta do DNA em outras máquinas quase futuristas, muito mais complexas do que o conhecimento da inteligência militar do país. Hag estava calmo, respirava profundamente enquanto esperava pela agulha que logo romperia a epiderme de sua nuca e injetaria o Soro K. Revistos e repensados, os dados e planos estavam redundantemente corretos na teoria, mas nem todas as redundâncias acumuladas o salvariam de um erro prático dentro da teoria, por mais correta que fosse; Hag, mesmo assim, estava calmo, confiante. Eram seus planos, seus sonhos que estavam em andamento, afinal. Algumas pessoas simplesmente estão dispostas a se sacrificar pela curiosidade. Ele iria romper a barreira e nada poderia mudar a convicção que sentia.
Hag queria sobreviver ao teste, voltar como que tinha aprendido no mais extremo método empírico já proposto. Ele pensou no livro escrito por Kafka, nas maravilhas possíveis dentro da fantasia... bem, nos limites do modelo kafkaniano; o mundo seria seu, toda a glória, toda a honra. Hag, o Herói. Traria novas descobertas e possibilidades, quem sabe a cura para doenças, talvez novos meios de exploração espacial.
“Está tudo pronto?”, ele perguntou com uma voz profunda, grave.
“Últimos ajustes, chefe.” Era a voz de Brenda. Ela era brilhante. Sabia que ela estava com o cabelo preso em uma longa trança dourada e que usava um par novo de lentes na armação preta de seus óculos. Coisas estranhas para notar no que pode ser meu último dia na Terra, ele pensou antes de sorrir. Brenda era perfeita, linda e inteligente. Seios fartos e firmes, pernas longas escondidas pela beca impecavelmente branca, mas que se deixavam ver, olhos azuis e penetrantes, vivos; curiosos. “Hag, tudo bem?” Havia preocupação na voz dela.
“Estou, estou.” Respirou com calma e retirou a mulher dos pensamentos. Em poucos instantes, tinha novamente os batimentos cardíacos estabilizados, conforme indicado pelos leitores.
Hag estava deitado em 75 graus, fixado à mesa de metal por três faixas de couro ao longo do corpo, além de duas em cada membro. Fios conectados ao couro cabeludo raspado liam as ondas cerebrais e uma incômoda sonda media a temperatura do cientista.
As luzes piscaram por um segundo e mudaram para o verde. Começou.
Hag sentiu uma sensação de calor em sua nuca, seguida por uma picada e intensa dor. Ele escutou, pelo espelho falso, os computadores ficarem loucos. Batimentos cardíacos altos, dores fortes, náusea, vertigens e alucinações. Hag experimetou todas as ameaças potenciais do experimento. Seu corpo entrou em convulsão e ele fechou a mandíbula em uma mordida forte, errando a própria língua por pura sorte.
A operação Kafka surgiu de um sonho de criança do famoso cientista. Considerava por horas o que faria se fosse uma mosca. Pensava em várias situações de onde poderia tirar proveito, muito além de bisbilhotar mulheres no banho ou experimento roupas em alguma loja, as primeiras fantasias da puberdade precoce; Hag iria mais longe: estudaria a dinâmica do corpo desenhado para voar, poderia sentir os sensores de movimento e utilizá-los para inúmeros fins. Defesa anti-aérea avançada, captadores que estabeleceriam um novo sentido para os homens, afinal, como centralizar centenas de imagens consecutivas em um único e lindo campo de visão? Se Hag pudesse ser uma mosca... Quando tinha quatorze anos, ganhou de seu avô uma cópia do Metamorfose. Ficou obcecado pela história do caixeiro viajante que acorda como uma barata gigante, apesar da maçã apodrecendo em suas costas. Teria cuidado para criar um ambiente seguro e estável para o teste, considerou. O adolescente introvertido não enxergou os conceitos abstratos do livro, sequer cogitou a questão existencialista. O romance de Kafka afirmou os sonhos improváveis em outro patamar, afinal a personagem estava vivendo como um inseto, passando por problemas concretos com o novo centro de gravidade, testando o exoesqueleto... pensando!
Ele estudou nos melhores lugares, sacrificou tudo em sua vida para alcançar os objetivos, investiu milhões e milhões, perseguiu patrocinadores, enfrentou o governo, as forças armadas e o fanatismo religoso. Você não pode brincar de Deus!, gritaram em uma entrevista, antes de três balas se alojarem em sua cavidade pulmonar. Sobrevivera, de alguma forma. E esperava estar vivo ao final do dia, ainda no laboratório desconhecido por todos os órgãos governamentais e privados possíveis, se tudo ocorresse como planejado.
Seu corpo começou a mudar. Os braços se alongaram, os olhos incharam como duas bolas vermelhas, com as que crianças levavam para a praia; o queixo afinou, as pernas esticaram. Poucos minutos depois, os leitores presos ao seu crânio balançavam no ar e as faixas de protação jaziam despedaçadas no chão. Ele estava livre da mesa, apoiado em seis magníficos membros, fortes o suficiente para atravessar paredes. Hag era uma mosca enorme, grotesca. Como placas hexagonais, os complexos sistemas de visão captavam detalhes minúsculos da sala em que estava, capacidade impossível ao olho humano. Via o corpo segmentado em três partes no espelho falso, perfeito. Sou um Deus, pensou. Pêlos, grossos como os cabos dos computadores ao seu redor, expalhavam-se pelo corpo bizarro de Hag, funcionando como antenas de recepção. Asas! Eu tenho asas!
Conseguia ler cada movimento na sala ao lado. Contou cinco corações batendo de forma acelerada e uma batida calma... Brenda, sempre foi fria e calma. Vaca. As fibras musculares dos colegas produziam ondas a cada movimento; os calçados em contato com o chão eram como britadeiras para ele. Sabia onde cada pessoa estava e sua exata posição. Sem entender ao certo porque o fazia, abriu as asas e se movimentou rapidamente, atravessando com facilidade para a sala onde seus colegas estavam. O corpo humano, ele percebeu, era frágil e fácil de quebrar. Quase nenhum esforço era necessário para atravessar os corpos dos cientistas com as patas que saiam de seu abdômem. Ele tinha uma precisão exata de cada movimento que seguiria e podia ler no ar tudo o que acontecia. Era como viver dois segundos no futuro. Movimentou-se de acordo. Deixou os instintos tomarem conta e uma ira insana obscureceu sua consciência.
O mundo apagou.
A primeira coisa que notou, quando voltou ao controle da mosca gigantesca que agora era, foi que algo estava preso ao prosbócide alongado de sua cabeça. Fez um movimento instintivo e expeliu o objeto entalado na boca tubular. Brenda! Não!, pensou ao ver a cabeça rolando entre os corpos desfigurados ao redor. Havia sangue nas paredes, membros espalhados nas mesas e um corpo atravessado em uma das máquinas maiores. Um triunfo estranho ganhava sua mente, no entanto.
Oh, Deus... Me perdoem, eu...
Novamente, o mundo estava em completa escuridão.
O mundo era bonito visto de cima. Hag percebeu que estava segurando algo. Os olhos compostos traduziram a imagem e ele demorou alguns minutos para perceber que havia um carrinho de bebê preso em um dos pêlos de seu corpo. Um carrinho vazio. Ele voava rápido. Uma cidade pequena se aproximava? Não, era uma vila. Cristo, uma vila? Onde estou? Voava em uma velocidade inimaginável e podia sentir as melhores correntes na atmosfera. A vila cresceu rapidamente em seu campo de visão e logo podia sentir cada pequena coisa que ocorria dentro das casas.
Hag viu apenas imagens piscando em seus olhos. Cenários horrendos, mulheres nuas rasgadas ao meio pela força de seus membros, carros virados, casebres destruídos. Sua consciêcia migou rapidamente para o corpo gigantesco e, irreversivelmente, para a mente de uma mosca. Algumas pessoas tentavam atirarcontra ele, mas as balas eram muito lentas, os padrões no ar indicavam para onde ele devia girar para evitá-las. Os projéteis que o atigiam eventualmente eram defletidos pelo exoesqueleto. Conveniente, pensou.
Seu último pensamento enquanto Hag, o cientista herói, foi sobre a fúria surpreendente que a mosca sentia contra os humanos. Todo o conhecimento empírico, toda a experiência... o potencial estava perdido no cérebro simples da mosca. Ele estava se transformando em um monstro, sua mente estava se transformando. Não! Não era para acontecer desta forma! Ele sabia que perderia controle sobre aquele corpo e que as únicas pessoas hábeis a ajudá-lo estavam mortas. Sentiu terror quando viu os ovos que saíram do corpo da mosca diretamente nos corpos dos desconhecidos. Não era um DNA híbidro. Não era humano. Hag era uma mosca. Os ovos pulsavam e milhares de asas ganhavam vidas.
A mosca estava aliviada, ao menos até onde poderia estar na consciência simplória. A voz estranha estava finalmente calada. Havia mais ovos em seu corpo e logo encontraria mais humanos para desová-los. A voz atrapalhava.
Ela abriu as asas e desapereceu no horizonte, continuando o belo e infinito ciclo de vida para seus ovos preciosos.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Obscuro

Estou fedendo. Não tomo banho há dois dias. Não saio de quase a quatro. Passei mais uma madrugada escrevendo e agora pássaros cantam lá fora. Meu pulso esquerdo começa a pedir arrego mas não consigo parar.

Não é compulsão de despejar palavras em uma folha. Nem fluxo de consciência. É método. Uma ideia que transpassou a cabeça e não me fez parar. Agitado como cocainômano. Embora nunca tenha visto um só lido a respeito.

Tenho as unhas sujas. As que não sujas, estão roidas. Começo a ficar com fome. Por toda madrugada comi somente um bom bocado. Sei que parece bobo. Pedi para a vizinha me trazer qualquer doce da padaria e ela me trouxe esse. Bom bocado. Acho o nome engraçado.

Enquanto escrevia pensei em amigos. Percebendo como estão velhos. Minha narrativa levou-me a reflexão interna. Lembrei de mulheres que antes me davam desejo e hoje foram massacrada. Como provavelmente estou, sem dúvida.

Tenho vistos meus amigos e não consigo salvar nenhum. As fotos do passado são mais límpidas. Mais corretas do que esse desastre. Não encontro um que possa afirmar, sim, está diferente, está melhor.

Faz frio nesse quarto na madrugada enquanto penso. Muito espaço para pouca mobília. Não achei meias limpas exceto as sem par. Uso uma de cada cor e como não saio de casa, tanto faz. Esquentam e me basta.

Deve ser segunda feira. Há mais constância de barulhos nesse dia. Somente ouço, não vejo. Lembro-me de amigos que gostavam de assistir o nascer do sol. Observando a bola incandescente. Sabe que nunca dei a mínima?

Encontrei uma amiga na rua semana passada, nome Carolina. Lembrou-me que nos conhecemos há dez anos. O número não significou nada, não foram anos de um contato contínuo. Sempre que a vejo ela parece interessada em mim. Pode ser meu egocentrismo. Lembro dela aos dezesseis, quando nos conhecemos. Olho para ela hoje. Não é a gordura que me incomoda mas a falta de perspectiva nos olhos.

Como se chegasse a descida violenta da montanha russa. Como, me pergunto, você antes mesmo dos trinta é capaz de ceder a vida. Os quilos, as tristezas, acidentes, ejaculações precoces, porque pequenos momentos parece emparedar as pessoas.

O texto que escrevo fala sobre a morte. Não o descanso final mas aquele tipo de morte enquanto ainda vivos. O descompasso entre vidas. O retrocesso da relação. A parede de concreto colocada no caminho. É a dor invisível com que gosto de trabalhar.

Me admira a tentativa de acreditar em esperança estando coberto de amarras e prisões. Sorrindo por um dia bom até o céu ficar nublado e aviões baterem em prédios gigantescos, porque não? Não queria falar assim, desculpe. Fui movido pelo clichê.

Gosto de me ver caótico. Admira-me o odor subindo as narinas enquanto agito os braços. Enquanto coço a barba rabiscada no rosto. Me dá uma sensação de foco. A missão é escrever o texto. Nada mais. Se sinto fome, como. Se sono, durmo. Mas persisto compondo essa história.

Mas não há um fim. Não sem nem mesmo chegar onde quero. Não sem nem mesmo chegar com estas também. Um banho não adiantará nada. Continuo a escrever.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

43

Quando entrou no Clube, aquela noite, estranhou ver sentada uma freira sozinha, com taça de vinho na mão. Não seria aquela mesma freira que, não, não podia ser, será que era?, a mesma freira de outro dia, na sala de espera e depois refeitório, enquanto sua mente ainda pulava de cobre pra bório, será que era a freira que era no dia do almoço, seria?

Se aproximou. A mente vincada por teorias e provas, por dados e notas e relatórios científicos a entregar, pareceres nem sempre gentis a enviar, notebook para formatar, a ciência da vida a ciência da morte a ciência da ciência e mais um monte de coisas que nunca deixavam tempo nem para que ela... para que ela se aproximasse.

"Quanto mais aproximações executamos", dizia seu antigo professor, "menos certezas obtemos. A proximidade altera o grau do questionamento".

- Altere o questionamento.

A doutora se espantou ao ser trazida de volta ao mundo. Dos pensamentos profundos, praticamente caiu no presente, ouvindo a velha temente a Deus no vestido de freira e com a taça ainda cheia de sangue do Cristo nas mãos.

- C... como? Mil perdões, mas a senhora falou comigo?

- Eu? - disse a freira, espantada - Não, minha jovem, estava apenas rezando. Desculpe se a incomodei.

A jovem ajeitou a alça da bolsa no ombro, distribuindo de novo o peso pesado do material de estudo, dos quadros de estado da arte e o prumo da respiração. "Posso me sentar?", perguntou. "Pode, claro, por gentileza!", a irmã respondeu.

Um silêncio constrangedor, por fim, deu coragem à doutora, que perguntou num tom bem menos arrogante que o planejado:

- Onde está seu deus agora?

A freira, sorrindo, deu mais um gole no vinho antes de dizer qualquer coisa. Mas disse.

- Apenas sei onde estou.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

42


A pilha de papéis crescia exponencialmente, ameaçando encobrir o pôster de Albert Einstein que ela tinha em uma das paredes do pequeno escritório. A sala era apertada e sem janelas, apenas uma lâmpada balançava no teto e apenas quando ela se levantava e batia, com muita força, a cabeça no lustre, derrubando partículas de poeira que brilhavam na luz artificial, cena que sempre a fazia sonhar sobre os maiores mistérios sobre o Universo e tudo mais. Porque para ela não bastava sonhar apenas sobre o universo: havia todo o resto!
Ela tinha embutido em algum lugar do cérebro teimoso e mimado uma curiosidade nata, às vezes respondia para as pessoas que sua profissão era ser curiosa. Era uma curiosa profissional, por assim dizer. Atrás do poster do Einstein mostrando a língua, três diplomas estavam pendurados e esquecidos, mas, caro leitor, não fique preocupado pois eles jogam poker todas as terças e não ficam entediados. Afinal, deixe-me lembrar, eles são apenas pedaços de papel. Medicina, Filosofa e Física, diziam em letras garrafais. (Mesmo sem importância para a trama, o leitor anônimo pode estar se perguntando: ‘E quem geralmente ganha as rodadas da jogatina?’. O narrador então responde: ‘A Física. Todos conhecem a regra do jogo, mas ela é a única a se preocupar com o que está fora das regras escritas’. O cenário é na verdade impossível: lembre-se, estamos falando de pedaços de papel presos entre um vidro e uma imitação barata de madeira). Era o último diploma, entretanto, o que mais justificava o ordenado com cinco dígitos que ela recebia por vasculhas os mistérios do mundo da Física Teórica. Quando digo ‘mundo’ faço, na verdade, referência às infinitas possibilidades das mais variadas teorias do Tudo, desde as Cordas, Loops e as partículas de luz, qua ainda teimam em agir como partícula e onda ao mesmo tempo, até os malditos neutrinos específicos que, para o engasgo da protagonista, podiam andar mais rápido que a luz. ‘O que é rápido pra cacete’, ela explicou uma vez para uma freira que cometera o terrível engano de sentar naquela mesa, naquele dia. Veja bem, em praticamente qualquer outro dia ou horário (ou mesa), a pobre freira teria uma refeição agradável após uma prece rápida; bem rápida porque o corpo tem mais fome que a alma. Mas ela escolheu sentar-se ao lado da garota com cabelo esquisito; gostava de se misturar, a freira. ‘Sabe o que isso significa?’, ela perguntou para a freira sem nome, que negou com a cabeça, visto que a boca estava cheia após uma bocada glutona em um sanduíche com carne de porco. A garota continuou: ‘Que podemos estar abrindo uma nova era de conhecimento! Quem sabe, assim poderemos provar que seu amigo imaginário não existe!’. Depois de comer um pouco mais ela concluíu: ‘Aliás, o que uma freira está fazendo em um lugar dedicado a derrubar suas teorias?’. A freira não tinha respostas para essa pergunta e a garota não abria espaço para ela falar, explicando a maravilha do Big Bang e citando biólogos, astrônomos, físicos e filósofos que explicavam como o Universo não precisava de um Deus. ‘Em teoria’, ela continuou falando como se não precisasse respirar, ‘em teoria, se você socar uma porta tempo suficiente, eventualmente sua mão irá atravessar a matéria! Seria necessário mais tempo do que... bem, o próprio tempo que existiu até hoje, mas as probabilidades não mentem: uma hora sua mão iria atravessar a madeira intacta. Bum! Bug na existência, cadê o seu Deus agora, hein?’ Ao final da refeição a freira estava a meio caminho de fazer perguntas para outros deuses, menores e um pouco menos antropomórficos e passava a duvidar de todas suas crenças até aquele momento. Por outro lado, aquele sanduíche estava realmente muito bom, o que valeria outra visita.
Voltemos ao presente. Ela estudava os dados do último teste no CERN. Dados eram importantes naquele lugar, talvez o único lugar do mundo em que eles eram de importância mais vital do que em uma mesa cercada por adolescentes com fortes odores, grandes espinhas, baixa estima e imune virgindade brincando de serem outras pessoas. Amava os dados, cada partícula em alta velocidade podia gerar novas perspectivas para entender o mundo. Era uma médica formada porque queria entender o mundo interior, mesmo motivo pelo qual tinha cursado filosofia. O que restava em sua busca poderia ser alcançado naquele lugar, com minúsculas bolas se chovando e provocando energia suficiente para queimar qualquer coisa viva em um raio de alguns quilômetros.
Aqueles números eram, no entanto, impressionantes. Impressionantes além do que ela podia imaginar. Eu vim aqui para isso, ela se lembrou. Pegou o telefone e ligou para outro cientista, em outro lugar e em outro CERN. ‘Estou vendo isso direito?’, ela perguntou. ‘Essa é a verdadeira partícula divina!’, respondeu o outro cientista, em outro lugar e em outro CERN, ‘acertamos a loteria! Esqueça tudo que você sabe, as possibilidades são infinitas. Não é mais Deus quem joga os dados. Somos nós, minha querida. Nós jogamos os dados agora.’
Ela não acreditava no que estava vendo. Derrubou a pilha imensa de cálculos todas as dimensões testadas (algumas inventadas para justificar a complexidade matemática das formulas utilizadas) e puxou o pôster da parede, derrubando o diploma de Filosofia durante um de seus All in (o primeiro que o triste pedaço de papel, impossibilitado de qualquer sentimento uma vez que não era um ser vivo, iria ganhar em toda sua vida) No armário, em um canto esquecido e mofado, retirou um grande tubo de cartolina e espirrou por causa do pó. Desenrolou o novo poster e o prendeu na parede com duas tachinhas. Olhou para a nova ordem, para o novo modelo de entendimento da física moderna e chorou como nunca chorou antes ou depois em sua vida. Na parede, Douglas Adams sorria com as feições hobbitiescas que tinha. Era como se estivesse sorrindo em deboche do que fora feito até então. Sabíamos tão pouco! Mas ela agora tinha a resposta: ‘42’, diziam os dados. E os dados não mentem, pergunte ao mestre.
Ela, de repente, pulou sobre as pilhas intermináveis de números desconexos. ‘Quarenta e dois’ diziam seus lábios. Ela tinha a resposta, mas a pergunta ainda estava lá fora, perdida em algum lugar do Universo. Ou em outro Universo, quem sabe em uma mesa de bilhar ou em uma jukebox quebrada. Talve-

Zack parou e leu o que tinha escrito. Fez uma careta, amassou o papel e terminou o drink que estava ficando quente no balcão vazio do bar fechado. Tirou a jukebox da tomada. Pensou um pouco mais e colocou-a de volta no plug; era melhor assim, algo dizia em seu interior.
Quando chegou no pequeno quarto em que dormia, jogou fora a cópia que tinho d’O Guia do Mochilerio das Galáxias e foi dormir, decidido a nunca mais tentar escrever outra vez.
Não fora feito para escrever, cogitou. Às vezes eu nasci sem histórias em mim. Tenho que me contentar em servir as bebidas, não é como se as minhas histórias tivessem alguma importância.
Os Universos, todos eles, tremiam com o caos e o paradoxo criados pela decisão de Zack. Ele, entretanto, dormia tranquilamente, noite após noite.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

garfield

- Segunda-feira de novo.
- É.
- E frio.
- É.

- Por que o som tá pulando?
- Não sei, CD arranhado.
- Mas é memória flash. Jukebox moderna.
- É nada.
- É sim.
- Tá.

- Segunda-feira.
- É.
- O que fez o dia inteiro?
- Frio.
- Cara, quando você não sabe o que fazer, escreve diálogo. Já reparou?
- Já.
- E por que?
- Porque quando não sei o que fazer, escrevo diálogo. E sou perspicaz. Por isso já reparei.

Cerveja.

- Não, cara! Por que você escreve diálogo quando não sabe o que fazer?
- Porque quando eu sei, faço silêncio.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Imaginações do Chá Frio


Para Paulinha, com carinho.

O chá esfriava na caneca. Allan estava entediado, cotovelos apoiados no descanso da janela; o peso da cabeça sobre os punhos fechados. Olhava o jardim pela janela, atividade que fizera todo aquele mês, sentado na cadeira de rodas e com as duas pernas quebradas suspensas. Allan podia ouvir os gritos de outras crianças brincando no parque logo ao lado. O sol brilhava sobre as árvores e o jardim explodia em vida, mas Allan só pensava em explodir tudo aquilo. Não com vida, mas com napalm. Ele sentia raiva, queria sair e correr, pular fogueiras, cair de sua bicicleta e ralar os joelhos; queria as pernas sem a armadura branca que usava.
Desanimado, estudou o jardim novamente, talvez pela centésima vez naquele dia. Uma pilha de livros de fantasia e alguns quadrinhos jaziam, logo esquecidos para sempre, no canto da sala. Era um leitor ávido e em poucas semanas havia facilmente devorado a limitada biblioteca da casa. Agora, só restava assistir novelas com sua mãe ou olhar pela janela. Então ele olhava pela maldita janela, o maior tempo possível, esperando por algo que pudesse mudar seu mundo.
Como se tivesse nascido epontaneamente das sombras, um gato negro pulou dentre as plantas. Era um gato comprido e de olhos vermelhos; duas orelhas peludas enfeitavam a cabeça redonda do animal. Ele parou no meio da grama e sentou pacientemente, estudando o garoto com a cabeça apoiada nas próprias mãos. O gato piscou os dois olhos e lambeu uma das patas. De repente, outro gato pulou ao lado do gato negro, este branco com listras amarelas por todo o torso. Os dois gatos circularam-se, formando por um único segundo o símbolo de yin e yang quanse perfeito, não fosse a cor que diferenciava o animal branco.
Os gatos sentaram um pouco mais perto da casa e ficaram, impassíveis, assistindo o garoto por trás da janela. E assim ficaram, completamente imóveis, excluindo piscadas eventuais. Mais dois gatos pularam do muro, um castanho e outro branco e juntaram-se aos outros dois felinos. Allan olhou o quarteto, perguntando-se o que diabos estava acontecendo.
Cinco minutos depois, um total de nove animais ocupavam o gramado verde. Um deles, um gato castanho sem a orelha esquerda, miava. Quando ele parou, dezesseis gatos se espalhavam em toda a vista da janela, alguns miando em dissonância, outros andando com os rabos levantados e, Allan viu com empolgação e vergonha infantil, copulavam ao lado de uma árvore.
O menino resolveu então girar a cadeira para longe da janela, deslizando de forma ágil o assento especial para a cozinha, onde pretendia arranjar uma maneira de tirar o leite da geladeira e preparar um achocolatado: uma tentativa fútil de tirar o pensamento dos animais que estavam do outro lado do vidro. Por quanto tempo eles se limitariam a estar do outro lado, Allan não sabia e, para encostar na verdade mais profunda, não queria saber. Quando chegou no outro cômodo, havia outro gato na janela, sentado no parapeito externo, olhando com olhos estranhamente sagazes. Ele esqueceu instantaneamente do leite e impulsionou as rodas laterais da cadeira até a primeira gaveta da pia, de onde ele revelou uma longa faca para carnes. Retirou também a pedrar de amolar que sua mãe sempre usava. Ele não tinha idéia do que fazia, mas passou a pedra na lâmina do que seria sua arma e olhou, o mais ameaçador que podia, para o gato. Suas mãos tremiam e ele quase cortou um dos pequenos indicadores.
O gato de olhos sagazes miou em tom grava, um miado longo e rouco, perturbador; gutural. Logo, oito gatos surgiram na janela e começaram a procurar por uma entrada, aumentando o número de animais na cozinha. Allan viu, sentindo o medo escalando por sua espinha, que um dos vidros no canto mais afastado dele estava aberto. Ele tensionou os braços com força de atravessou a cozinha como se houvesse um pequeno motor na cadeira. A cadeira bateu na pesada mesa de madeira e deu um pulo, derrubando o garoto e arrastando-o pelo chão limpo. Sentindo uma explosão de dor em uma das pernas. Allan griou e agarrou o gesso, chorando pela mistura de dor e desespero. Os gatos chegavam rápido, ele não tinha muito tempo. Agarrou-se à mesa e levantou o corpo imobilizado. Duas novas explosões tomaram conta das pernas do garoto, que mordeu os lábios até sentir o gosto metálico do próprio sangue.
Era difícil mover-se daquela forma, além de extremamente dolorido, mas ele não tinha outra escolha: deu dois passos largos, cômicos, com as pernas retas e abertas em mais de setenta graus, alcançando a janela e fechando-a, prendendo a pata de um dos gatos, que miou rispidamente. Os nove felinos em sua janela mostravam os dentes e arranhavam o vidro.
Allan voltou para a cadeira, primeiro se jogando sobre a mesa, depois em uma cadeira que fazia parte do conjunto da cozinha para, finalmente, voltar à cadeira de rodas. Tinha pouco tempo para se preparar. Agarrou navamente a faca, esticando o corpo até o chão e quase caindo novamente, sem reconhecer a sorte por estar vivo depois de ter caída com uma faca daquele tamanho nas mãos; a pedra de amolar estava para sempre perdida, como se tivesse atravessado o fino tecido da realidade e pousado em uma Terra alternativa, por baixo de uma Jukebox que permitia a música na posição 42-B ser tocada repetidas vezes.
Ele foi até a lavanderia e pegou uma vassoura, desencaixando o cabo para usá-lo como uma lança. Pegou também álcool e fósforos. Novamente na cozinha, transformou um rolo para maças e um pano velho em uma tocha encharcada no álcool, apenas esperando para ser acessa e usada como arma contra os felinos. Estava armado. Que venham, ele pensou e deixou as lágrimas secarem no rosto.
Voltou para a janela em que estava no começo daquela tarde e se deparou com incontávei gatos no jardim. Eles estavam em todos os lugares, por baixo das árvores; na entrada da casa; pendurados no portão verde; espalhados pela grama, agora um caos de fezes e urina felina; verdadeiro campo minado. No meio deles, estava o gato de olhos sagazes, olhando de forma mortal para o garoto. Ele miou um única vez. E os animais ficaram loucos, soltando ginchos diabólicos e disparando ataques contra a porta de entrada e, principalmente, contra o vidro frágil que os separavam. Era lutar ou morrer, Allan percebeu em determinação frenética. Ele segurou a tocha improvisada em um das mãos e, com a caixa presa entre os dentes, riscou um fósforo na outra. Esperou. O vidro ensaiava as primeiras rachaduras.
Como a cavalaria em um dos filmes em preto e branco que seu pai amava, o portão automático abriu passagem e em poucos segundos, o carro de seus pais surgiu na entrada da casa. Antes deles passarem pelo portão, porém, os gatos sumiram magicamente de vista. Havia apenas as fezes na grama, nada mais.
O garoto apagou o fosforo com um movimento rápido e escondeu, na caixa de brinquedos, suas armas. O cabo da vassoura poderia ficar em qualquer lugar; seria fácil de explicar, decidiu. Quando seus pais entraram, carregando mais sacolas plásticas recheadas com legumes e carnes do que poderiam aguentar com facilidade, ele perguntou com audível excitação:
“Compraram o livro que pedi, aquele com os hobbits?”
“Desculpe filho, a livraria estava fechada. Mas alugamos um filme que sua mãe queria assistir”, ele respondeu com voz cansada.
Allan olhou para fora novemente, torcendo a boca para os pais. Um único gato estava no muro, encarando-o com olhos sagazes. Amanhã, prometiam aqueles terríveis olhos, ou depois, eu sou paciente. Mas vou comer sua carne, pequeno humano, e festejar com seus olhos. Amanhã ou depois, marque minhas palavras. O gato virou o corpo e desapareceu pela rua tranquila e vazia.
Meia hora depois e o chá estava frio, horrível. Allan estava entediado, apoiou os cotovelos no descanso da janela; o peso da cabeça sobre os punhos fechados.
Nada de emocionante acontecia em sua vida, lamentou em um suspiro.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

T. C. C.

(Um conto cômico entre aquilo que é e o que deveria ter sido ou aquilo que você coloca no seu trabalho e o que deveria ter colocado. Baseado nas probabilidades de um conto de Rubem Fonseca)




Agradecimentos

Primeiramente, agradeço a...
a) Deus
b) Alá
c) Darwin
d) Ao Timão

... por me trazer para este momento conclusivo. Em seguida, agradeço a faculdade Rodrigues de Santana que...
a) não fez mais que a obrigação
b) é uma merda mas, mesmo assim, consegui estudar por conta
c) me ajudou com muito apoio e dedicação
d) quase me colocou no Serasa por não pagar uma mensalidade

... fazendo com que isso tornasse possível. Meu eterno carinho ao meu orientador Petruchio que ...
a) era o único disponível para esse trabalho ruim
b) é um picareta
c) um excelente profissional
d) é mais burro que uma porta

... favorecendo, assim, meu crescimento profissional. Não posso deixar de expressar minha dedicação a...
a) minha família
b) todos os judeus mortos no holocausto
c) Juliana Paes
d) a ninguém

... que foram minha sustentação nos momentos em que pensei em desistir. Sem mencionar as diversas pessoas que não estão aqui citadas, pois, ...
a) são inúteis
b) são completamente irrelevantes
c) não significam nada, eu as usei
d) são muitas

... para esse projeto.

Por fim, não posso esquecer de ...
a) meu chefe
b) minha namorada
c) o padeiro João
d) A Casa de Marmitas da Tia Cida

...que me presentou com ...

a) macetes maravilhosos para mim
b) boquetes maravilhosos para mim
c) baguetes maravilhosas para mim
d) croquetes maravilhosas para mim

Sem vocês esse trabalho não seria ...
a) possível
b) diferente, pois eu que ralei para escrevê-lo
c) um lixo somente para eu ter um diploma e começar a trabalhar em algo que não tem a ver com minha formação
d) uma perda de tempo

Muito obrigado,
(Assine aqui seu nome)

terça-feira, 3 de julho de 2012

antes tarde do que arthura

- Mas que caralho! Tu se chama Arthur?

- Não, porra. Não.

- Então o quê?

- Ah, só não deu.

- Como não deu?

- Não deu não dando. Eu tava lá até o meio da tarde, fazendo coisas, e quando passou do meio as coisas tavam feitas, era tarde à tarde e sol, saí pra tomar cerveja. E vim pra cá.

- E veio pra cá?

- Mas claro, claro. Vim pra cá. O  Clube é onde eu mais bebo, não sei beber noutro buraco. E vim pra cá.

- E daí, e então, e agora que já é dia de amanhã, mané, que que tu faz?

- Ah, eu me desculpo.

- Desculpa como?

- Hm... a próxima rodada é minha conta. Depois, conta da casa.