sexta-feira, 6 de julho de 2012

Imaginações do Chá Frio


Para Paulinha, com carinho.

O chá esfriava na caneca. Allan estava entediado, cotovelos apoiados no descanso da janela; o peso da cabeça sobre os punhos fechados. Olhava o jardim pela janela, atividade que fizera todo aquele mês, sentado na cadeira de rodas e com as duas pernas quebradas suspensas. Allan podia ouvir os gritos de outras crianças brincando no parque logo ao lado. O sol brilhava sobre as árvores e o jardim explodia em vida, mas Allan só pensava em explodir tudo aquilo. Não com vida, mas com napalm. Ele sentia raiva, queria sair e correr, pular fogueiras, cair de sua bicicleta e ralar os joelhos; queria as pernas sem a armadura branca que usava.
Desanimado, estudou o jardim novamente, talvez pela centésima vez naquele dia. Uma pilha de livros de fantasia e alguns quadrinhos jaziam, logo esquecidos para sempre, no canto da sala. Era um leitor ávido e em poucas semanas havia facilmente devorado a limitada biblioteca da casa. Agora, só restava assistir novelas com sua mãe ou olhar pela janela. Então ele olhava pela maldita janela, o maior tempo possível, esperando por algo que pudesse mudar seu mundo.
Como se tivesse nascido epontaneamente das sombras, um gato negro pulou dentre as plantas. Era um gato comprido e de olhos vermelhos; duas orelhas peludas enfeitavam a cabeça redonda do animal. Ele parou no meio da grama e sentou pacientemente, estudando o garoto com a cabeça apoiada nas próprias mãos. O gato piscou os dois olhos e lambeu uma das patas. De repente, outro gato pulou ao lado do gato negro, este branco com listras amarelas por todo o torso. Os dois gatos circularam-se, formando por um único segundo o símbolo de yin e yang quanse perfeito, não fosse a cor que diferenciava o animal branco.
Os gatos sentaram um pouco mais perto da casa e ficaram, impassíveis, assistindo o garoto por trás da janela. E assim ficaram, completamente imóveis, excluindo piscadas eventuais. Mais dois gatos pularam do muro, um castanho e outro branco e juntaram-se aos outros dois felinos. Allan olhou o quarteto, perguntando-se o que diabos estava acontecendo.
Cinco minutos depois, um total de nove animais ocupavam o gramado verde. Um deles, um gato castanho sem a orelha esquerda, miava. Quando ele parou, dezesseis gatos se espalhavam em toda a vista da janela, alguns miando em dissonância, outros andando com os rabos levantados e, Allan viu com empolgação e vergonha infantil, copulavam ao lado de uma árvore.
O menino resolveu então girar a cadeira para longe da janela, deslizando de forma ágil o assento especial para a cozinha, onde pretendia arranjar uma maneira de tirar o leite da geladeira e preparar um achocolatado: uma tentativa fútil de tirar o pensamento dos animais que estavam do outro lado do vidro. Por quanto tempo eles se limitariam a estar do outro lado, Allan não sabia e, para encostar na verdade mais profunda, não queria saber. Quando chegou no outro cômodo, havia outro gato na janela, sentado no parapeito externo, olhando com olhos estranhamente sagazes. Ele esqueceu instantaneamente do leite e impulsionou as rodas laterais da cadeira até a primeira gaveta da pia, de onde ele revelou uma longa faca para carnes. Retirou também a pedrar de amolar que sua mãe sempre usava. Ele não tinha idéia do que fazia, mas passou a pedra na lâmina do que seria sua arma e olhou, o mais ameaçador que podia, para o gato. Suas mãos tremiam e ele quase cortou um dos pequenos indicadores.
O gato de olhos sagazes miou em tom grava, um miado longo e rouco, perturbador; gutural. Logo, oito gatos surgiram na janela e começaram a procurar por uma entrada, aumentando o número de animais na cozinha. Allan viu, sentindo o medo escalando por sua espinha, que um dos vidros no canto mais afastado dele estava aberto. Ele tensionou os braços com força de atravessou a cozinha como se houvesse um pequeno motor na cadeira. A cadeira bateu na pesada mesa de madeira e deu um pulo, derrubando o garoto e arrastando-o pelo chão limpo. Sentindo uma explosão de dor em uma das pernas. Allan griou e agarrou o gesso, chorando pela mistura de dor e desespero. Os gatos chegavam rápido, ele não tinha muito tempo. Agarrou-se à mesa e levantou o corpo imobilizado. Duas novas explosões tomaram conta das pernas do garoto, que mordeu os lábios até sentir o gosto metálico do próprio sangue.
Era difícil mover-se daquela forma, além de extremamente dolorido, mas ele não tinha outra escolha: deu dois passos largos, cômicos, com as pernas retas e abertas em mais de setenta graus, alcançando a janela e fechando-a, prendendo a pata de um dos gatos, que miou rispidamente. Os nove felinos em sua janela mostravam os dentes e arranhavam o vidro.
Allan voltou para a cadeira, primeiro se jogando sobre a mesa, depois em uma cadeira que fazia parte do conjunto da cozinha para, finalmente, voltar à cadeira de rodas. Tinha pouco tempo para se preparar. Agarrou navamente a faca, esticando o corpo até o chão e quase caindo novamente, sem reconhecer a sorte por estar vivo depois de ter caída com uma faca daquele tamanho nas mãos; a pedra de amolar estava para sempre perdida, como se tivesse atravessado o fino tecido da realidade e pousado em uma Terra alternativa, por baixo de uma Jukebox que permitia a música na posição 42-B ser tocada repetidas vezes.
Ele foi até a lavanderia e pegou uma vassoura, desencaixando o cabo para usá-lo como uma lança. Pegou também álcool e fósforos. Novamente na cozinha, transformou um rolo para maças e um pano velho em uma tocha encharcada no álcool, apenas esperando para ser acessa e usada como arma contra os felinos. Estava armado. Que venham, ele pensou e deixou as lágrimas secarem no rosto.
Voltou para a janela em que estava no começo daquela tarde e se deparou com incontávei gatos no jardim. Eles estavam em todos os lugares, por baixo das árvores; na entrada da casa; pendurados no portão verde; espalhados pela grama, agora um caos de fezes e urina felina; verdadeiro campo minado. No meio deles, estava o gato de olhos sagazes, olhando de forma mortal para o garoto. Ele miou um única vez. E os animais ficaram loucos, soltando ginchos diabólicos e disparando ataques contra a porta de entrada e, principalmente, contra o vidro frágil que os separavam. Era lutar ou morrer, Allan percebeu em determinação frenética. Ele segurou a tocha improvisada em um das mãos e, com a caixa presa entre os dentes, riscou um fósforo na outra. Esperou. O vidro ensaiava as primeiras rachaduras.
Como a cavalaria em um dos filmes em preto e branco que seu pai amava, o portão automático abriu passagem e em poucos segundos, o carro de seus pais surgiu na entrada da casa. Antes deles passarem pelo portão, porém, os gatos sumiram magicamente de vista. Havia apenas as fezes na grama, nada mais.
O garoto apagou o fosforo com um movimento rápido e escondeu, na caixa de brinquedos, suas armas. O cabo da vassoura poderia ficar em qualquer lugar; seria fácil de explicar, decidiu. Quando seus pais entraram, carregando mais sacolas plásticas recheadas com legumes e carnes do que poderiam aguentar com facilidade, ele perguntou com audível excitação:
“Compraram o livro que pedi, aquele com os hobbits?”
“Desculpe filho, a livraria estava fechada. Mas alugamos um filme que sua mãe queria assistir”, ele respondeu com voz cansada.
Allan olhou para fora novemente, torcendo a boca para os pais. Um único gato estava no muro, encarando-o com olhos sagazes. Amanhã, prometiam aqueles terríveis olhos, ou depois, eu sou paciente. Mas vou comer sua carne, pequeno humano, e festejar com seus olhos. Amanhã ou depois, marque minhas palavras. O gato virou o corpo e desapareceu pela rua tranquila e vazia.
Meia hora depois e o chá estava frio, horrível. Allan estava entediado, apoiou os cotovelos no descanso da janela; o peso da cabeça sobre os punhos fechados.
Nada de emocionante acontecia em sua vida, lamentou em um suspiro.

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