sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sobre a Guerra


“Três, em Dudinka”, anunciou enquanto movia as peças vermelhas no lugar nomeado. Lançou os dados da mesma cor, específicos para o ataque, e franziu a testa diante do resultado medíocre. Alexandre arremessou os dados amarelos e sorriu. Dario estava derrotado em todos os ataques. “Tudo bem, você venceu hoje. Mas sempre há o próximo turno.” Suas palavras tentaram soar sérias, mas assim que fechou a boca, os três gargalharam.
O tabuleiro estava pintado pelas cores dos três jogadores, dividindo o mundo em facções de poderes equivalentes. Ao redor do simulacro de mapa mundi, cartas e peças descartadas estavam espalhadas, circulando copos e caixas de cigarros. Cinco horas de jogo e o ânimo dos amigos continuava o mesmo do começo da noite.
Alexandre segurava um copo com whisky e gelo. Perdera a conta de quantas vezes entornou a bebida, trocando as pedras de gelo entre uma dose e outra; sabia apenas que ainda sentia alívio no pescoço, livre da gravata cinza que havia usado a semana toda. “O que você está dizendo é que poderíamos sair do planeta, é isso?”, respondeu para Dario, quase meia hora depois do comentário do astrônomo amador.
Carlos concordou com um único aceno e moveu as peças. “É o que o Dario falou desde... ontem, quase. Dois na Inglaterra.” Jogou os dados: cinco e seis.
Alexandre cerrou os olhos e realizou a defesa, obtendo dois e três. “Essas merdas estão viciadas, não é possível!” Examinou os cubos amarelos de perto, estampando um sorriso etílico na boca.
“Não, não estão”, comentou Dario, encarando Dudinka ocupada pelas tropas de Alexandre.
“Não são os dados, minhas tropas são eficientes. Oataque foi feito pelo Tâmisa, tomei Londres despreparada e parti para o resto da ilha com velocidade e ferocidade. O pior é que a Europa não faz parte do meu objetivo,” fez uma cara de escárnio, “mas gosto dos Beatles. Com eles no meu poder, vou conquistar essa porra toda”, completou apontando para o mapa e empilhando algumas unidades verdes na Inglaterra. Tinha metade da Europa.
“Com a propulsão e velocidade suficiente, sim, poderíamos sair do nosso planeta para sempre e colonizar Kepler”, respondeu Dario. “Parece que confirmaram a temperatura média do planeta e que ele é rochoso. Uma rocha perdida no espaço, com água líquida, atmosfera como a nossa e temperatura agradável. Estou falando, vou para lá na próxima férias”, entregou o jornal para Alexandre, cuja manchete principal anunciava a descoberta da nova Terra.
“Pode ser, mas por enquanto você está sendo atacado na Autrália.” Alexandre atacou.
“Você deveria ter parado na Índia, sabia?” Dario jogou os dados e perdeu. “Mas que droga, cara. Você está fodendo meu jogo.” Ele ainda tinha a mania de procurar a aliança fantasma com o polegar da mão esquerda. Os outros jogadores notaram o movimento, mas evitaram falar qualquer coisa; percebeu o que fazia e resolveu ocupar a mão com uma garrafa de cerveja, levantando até a geladeira. Pegou mais chá gelado para Carlos.
“Eu sentiria falta dessas coisas se deixasse nosso mundo para trás”, Carlos respondeu, pegando a bebida.
“Do que você está falando?”, Alexandre estudava o tabuleira, tentando decidir o que fazer em seguida.
“Estou falando das coisas mais simples, como essa partida...”
Ainda estudava o mapa e contava mentalmente os inimigos fechando o cerco. “Devo dizer que ‘essa partida’ não está nada simples, cara. Pense em todas as famílias chorando os soldados mortos, a miséria causada pelo estado de guerra total de todos os países do mundo, nas plantações devastadas pelo gás mostarda, as reuniões entre líderes que se odeiam, os atentados terroristas, os fanáticos religiosos...”
“Eu vejo apenas peças”, Darios bebeu meia garrafa da cerveja em apenas uma golada.
“Você não enxerga a poesia do jogo”, Alexandre puxou uma carta do monte e indicou que estava satisfeito com o turno, bebeu mais do whisky.
“Poesia? Minha vida já está uma merda, eu jogo isso para descançar um pouco da realidade e tenho que ficar imaginando quantos jovens eu mando para a morte? Aqui somos líderes políticos e militares atrás de uma mesa, transformando soldados de papel em máquinas de guerra, em homens de família que pilham e estupram depois das conquistas.” Movimentou algumas peças. “Por falar nisso, três em Dudinka.” Novamente, os dados rolaram números baixos e ele xingou. “Sentiria falta de algumas coisas, Carlos, mas estaria feliz por deixar outras para trás”, o polegar novamente acariciava a linha pálida no dedo gordo.
“Todos nós”, continuou Carlos, já iniciando sua rodada. “Mas veja bem, você ficaria o quê, dez, quinze anos em uma nave para chegar em um planeta sem nada, apenas as condições mínimas para sobrevivência e exploração. Imagine que todas as coisas são dependentes, que o mutualismo entre os seres vivos é a única coisa que importa em nossas vidas... fazer parte do todo, peça única e insubstituível do tabuleiro, integrado e sincronizado com as outras coisas”, ele brincava com um soldado verde nas mãos. “Você renunciaria todas as cores da manhã, quando o sol está nascendo e há uma caneca cheia de café está na suas mãos. Talvez uma mulher esteja dormindo embolada no seu lençol, nua e linda. O som dos pássaros, a brisa matinal, pense nisso tudo que ficaria em outro mundo, literalmente. A bondade dos desconhecidos, a diferença que suas ações poderiam fazer na vida de outras pessoas. Tudo está conectado.” Ele sorveu o chá preto. “E só agora eu enxergo sem uma névoa em minha mente.”
“Quanto tempo?” Dario olhou com culpa para a cerveja, enquanto Alexandre derrubava mais do líquido ambar no próprio copo, confiante e sem censura. O gela estava derretendo e ele teria de jogá-los na pia.
“Dois anos já e sem uma única gota”, ele levantou o copo e fizeram um brinde. “Um dia por vez, como dizem. Um dia por vez”, a voz de Carlos estava repentinamente cansada, arrastada.
“Eu sentiria falta das tardes de sábado”, disse Alexandre. “Aquele sentimento específico das tardes de sábado, quando você poderia dormir o resto do dia e ainda sobraria o domingo para relaxar, assistir um filme na TV ou sair para caminhar um pouco.” Refletiu um pouco mais e continuou: “Filmes, sentiria falta de filmes. E de sushis.”
“Cheiro de talco para bebês, café, comida caseira, pantufas e condicionador feminino, adoro o cheiro de condicionador feminino.” Dario não percebia que suas escolhas demonstravam o efeito devastador do divórcio. Da noite para o dia, os conceitos de família, abusados e forçados por ele nos últimos anos, tornaram-se sagrados e objeto de culto. Era um caso em que a ordem dos fatores alteraram o resultado.
“Pantufas?”, ecoou Alexandre antes de gargalharem novamente.
“É mais confortável do que parece.”
“Sexo”, cortou-o, antes de iniciar um novo turno. “Daqueles que você fica desnorteado quando acaba, todo suado e sem forças, os músculos doloridos e um pouco de boa culpa cristã na caixola”, ele movimentou as peças e jogou os ataques.
“Haveria sexo em no novo mundo”, Carlos disse. “Desde que você tivesse alguém para fazê-lo, é claro. Ou uma mão.” Riram novamente. “Acho que é a primeira vez que podemos falar de um admirável mundo novo no sentido mais literal possível.”
Dario terminou o chá gelado e coçou o couro cabeludo, movimento que fazia sempre que estava imerso nos pensamentos. “As viagens portuguesas durante as épocas de descobrimentos podem ser comparadas, acho. Deixar tudo para trás, navegando por meses para chegar em lugares desconhecidos, enfrentando a fúria dos oceanos, fome, medo, doenças, solidão e o perigo constante dos ventos fortes e das chances de ficarem parados, no meio do oceano por semanas inteiras. Nesse caso também, retiravam-se da vida social quase que inteiramente, esquecendo o que foi feito e o que poderiam fazer em suas vidas antigas. Há algo de belo nessas escolhas. Às vezes, se pensarmos bem, tudo o que alguém precisa é precisamente escapar.” O polegar esquerdo raspava desesperadamente o outro dedo.
Alexandre estudou o amigo, sentindo um aperto no peito. Pensou nos cabelos grisalhos e nas olheiras profundas que assinavalam seus olhos. “Quando nos tornamos uma piada? Você saiu de um divórcio complicado e tem sorte por não estar respondendo por homicídio”, virou-se para Carlos, “sua vida inteira foi queimada, um fundo de copo por vez. Tenho uma úlcera do tamanho de uma laranja por causa dos filhos da puta em meu escritório. Quando foi que pegamos as curvas erradas?”
Dario refletiu por alguns instantes. Estavam todos em silêncio, apenas as pernas de Carlos faziam barulho, balançando na cadeira em que estava sentado. Eram velhos, independente da idade física; perderam, cada um deles por razões próprias, a confiança nas pessoas, no amor verdadeiro e na esperança por um amanhã melhor. Liam nos jornais sobre assassinatos, roubos e descaso generalizado. Carregavam machucados escondidos, enterrados no fundo de suas personalidades, machucados que sangravam em silêncio, cavando buracos cada vez mais profundos e irreversíveis; de alguma forma, eram tesouros que guardavam para si, algo que os deixava mais maduros e reais; experientes. “Algum dia vou para a nova Terra, o planeta Kepler”, prometeu Dario, “mas vou sempre levar comigo os momentos com vocês, são os dias mais preciosos e verdadeiros. Só consigo confiar em vocês, caras, e nas conversas desencontradas e fragmentadas durante nossos jogos. Desde pequenos, lembram? Apenas as conversas durante os jogos mudaram, ficaram mais chatas, o resto não. Algumas coisas não mudam.”
“Que coisa de menina”, disse Alexandre.
“É verdade, cara, deixe de ser boiola”, completou Carlos.
Sorriram e brindaram novamente.
“Três, em Dudinka e dessa vez vou pilhar e estuprar seus civis”, Dario disse. Poucos instantes depois, amaldiçoava os números baixos nos dados vermelhos.

Um comentário:

  1. Muito legal. Vc aborda vários temas em um único conto com "conhecimento de causa". Durante a leitura, no meio do caminho, percebemos que não é somente o conto sobre um jogo, mas também sobre historia com guerras e conquistas, comportamento humano, ciências, astrologia e etc... Gostei bastante. Ana Eliza.

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