sexta-feira, 30 de julho de 2010

Tentativas

11 de Novembro de 1978

Comecei a escrever meu romance. É uma história épica de amor e guerra. Terá sentimento e mudará o mundo.

24 de Janeiro de 1981

Consegui uma editora que bancará os custos de meu brilhante romance. Tenho já 622 páginas escritas e fôlego para muito mais. Eles apostaram em meu talento e não se arrependerão.

30 de Junho de 1985

Estou me mudando de casa, despejado. Levo comigo apenas as 1457 páginas escritas de "Longe do Amor Fatal". Obra sublime, revolucionária. Mas infelizmente sofro com a falta de apoio de minha editora, que se recusa a pagar mais honorários. Tolos.

21 de Fevereiro de 1993

Penso em como será o choque na face dos críticos quando lerem meu romance. É tão genial que as vezes me assombro. Guardo-o em uma gaveta, fechado. Tem 2735 páginas, todas belas. Em todas elas há novidades que gelarão as almas. Não o publiquei ainda por divergências contratuais. Mas quando o fizer será o acontecimento da década.

13 de Setembro de 1999

Reescrevi metade do meu romance, aprimorei ainda mais a sua fina arte... agora ele tem 4852 páginas e a editora cogita lançá-lo em 2 volumes. Não quero, acho que estragará a unidade da obra. Não cederei.

25 de Maio de 2007

Hoje foi um dia histórico. Finalmente resolvi o único problema que havia em meu romance. Reescrevi o final, agora trágico e catártico, como cabe às grandes obras da humanidade. Mas ele as transcende. Nada de Hamlet, que morra a divina comédia, Cervantes era um menino brincalhão ante minha maestria. Agora o livro possui 6389 páginas. Todas elas melhores que tudo que já foi publicado. Aguardo apenas a escolha da ilustração da capa.

30 de julho de 2010

Cada dia que se passa eu me encanto mais com a obra-prima que escrevi. 10035 páginas de pura virtuose e elegância. E cada dia que se passa a humanidade perde não conhecendo as melhores imagens, as mais finas metáforas, o ápice do gênio humano. Maldita editora!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Meu Texto Para o Dia do Escritor

Pensei muito sobre como escreveria para essa semana. Dia do Escritor,e já que somos brasileiros, porque não Semana do Escritor? Ponderei sobre escrever uma breve narrativa sobre algum momento da vida de um escritor. Considerei um breve e vazio ensaio sobre o ofício de costurar palavras, e felizmente o juízo me fez considerar minha insignificância a tempo de mudar de idéia. Ponderei até sobre escrever um texto sem absolutamente nada a ver com o título da semana.

Foi então, e só então, que me lembrei de uma das maiores bênçãos da arte literária, aquela que a torna tão vasta e democrática, que me permite dissertar sobre o tema e nos autoriza a publicar nossas bobagens por aí: mesmo os escritores ruins, mesmo os muito ruins, ainda são escritores. São escritores porque escrevem, mas principalmente porque publicam. Porque dão a fuça para os leitores socarem. Não só arriscando uma crítica, não só arriscando uma crítica atroz e fulminante, daquelas de desanimar, mas arriscando o total e absoluto silêncio. Como se ninguém tivesse lido duas das 100 linhas que você achou que mereciam um olhar. É por isso que ficamos tão animados quando vemos um comentário, mesmo que para nos chamar de semi-analfabetos. Porque quem não se deu ao trabalho de ler, dificilmente se dá ao de comentar. Somos uma raça carente, há que se dizer.

E foi assim que cheguei até aqui, até esse textinho sem pretensão. Porque se estamos mesmo na Semana do Escritor, então ainda que à custa de dor e vergonha para a literatura brasileira, é minha semana. E como escritor na Semana do Escritor, me reservo o direito de não falar sobre nada além de porque decidi não falar sobre nada. E seria adorável se vocês comentassem mais nossos textos aqui no Clube. Até semana que vem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Esse Ofício de Verso

Nada é mais infeliz para um escritor do que ser abjeto de si. Comum. Perder aquilo que se achava mágico. Notar que era um movimento efêmero e que se foi. O sopro gentil que lhe fazia compor histórias.

Ele não tinha mais nada. A semelhança de seus irmãos, estava velho e não amadureceu. Perdeu o controle da vida. Sentiu falta de si, falta de um mundo que lhe trouxesse emoção. Fora soterrado.

Os remédios que tomava diariamente para controlar sua lucidez minaram seu campo criativo. Suas palavras tornaram comuns como a lista do supermercado. Mas era tarde desejar ser outra pessoa, outra coisa a não ser esse homem cujo ofício era o verso.

Velho demais para aprender outro talhar. Sem outros talentos aparentes, apenas tendo que afirmar sua condição. Sua mísera situação de um homem que deixou se perder. Cuspiu na vida, negou os filhos, riu da morte.

Agora era palha. Memória enterrada em vala comum. Era nada, além de agonia. Nascido com vida, morto em líricas.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

ideogrâmico

Na feira mundial de literatura, livros e novas mídias educacionais, no pátio da maior editora de Taiwan, os estandes de autores e empresas enfileiravam-se a perder de vista. Entrando no evento pela esquerda, na esquina mais distante do prédio principal, a visão era enlouquecedora para qualquer bibliófilo.

Milhares de pessoas de toda parte do mundo se aglomeravam em torno dos autores famosos, das editoras com descontos incríveis e nas filas para as palestras das estrelas do mercado. Era um formigueiro mundial de bichinhos com livros na mão caminhando de um lado pro outro, sem dar atenção a nada que não fossem livros e escritores consagrados, a quem devoravam como formigas a besouros.

No corredor Z3-E78 – que quer dizer “corredor Z do terceiro conjunto de estandes, estande 78” – um pequeno senhor, dos já passados 80 anos, escrevia lenta e calmamente em pedaços perdidos de páginas mal impressas, daquelas provas que as editoras recebem com erros, ou daquelas provas que as editoras erram ao editar. Naquele pedaço da grande feira não havia muita gente, muito menos no estande do velhinho que, a despeito disso, escrevia letra a letra a melhor história da História humana

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Luz Negra

O vento crispava naquela cidade quente de dia e fria à noite. Passava das vinte e três quando ele atravessava a avenida rumo a sua casa.

A cidade não era das maiores, tão pouco era aquelas que não se vêem no mapa. Um dos pólos do interior, diziam. O frio batia em seu rosto e em suas pernas nuas, pois na pressa, colocou apenas um casaco pelo frio, ficando com a bermuda.

Estava na parte mais escura da rua. Seriam mais sete quarteirões até sua casa. Odiava essa parte do trajeto, repleto de árvores que escondiam a luminosidade e casas que fechavam-se cedo. A rua ficava deserta. Ainda demoraria algumas quadras para a parte mais iluminada, a quadra com o posto e a pizzaria, onde se sentiria com mais segurança.

Mesmo nessa cidade, de aparente tranqüilidade, já fora assaltado uma vez. Na volta do mercado, na rua de baixo, rua escura, quando quatro pivetes de bicicletas pediram-lhe um cigarro e quando ele replicou dizendo que não fumava, pediram a carteira. Pelo medo de ser machucado, cedeu.

Estava a duas quadras da luminosidade do posto, podia vê-lo ao longe. O barulho dos carros que entravam e saiam, o cheiro de gasolina. Apertou o passo para chegar mais rápido, quase não viu.

Estava adentrando o ínicio da quadra anterior quando notou a movimentação. A sombra da árvore o escondia, mas via que, calmamente, ele adentrava para a parca luz.

Pensou, “se for um preto, agora não tem mais jeito. Estou ferrado.” E cerrou suas mãos com violência, dizendo a si mesmo que, dessa vez, não seria assaltado. Revidaria com força. Colocou as mãos no bolso, retirando as chaves de casa e colocou-as entre os dedos, como um soco inglês improvisado. “Esse pretinho vai ver”.

Deu um forte suspiro e prosseguiu. Passos nervosos e improvisados em rumo aquela sombra negra. Foi aproximando-se e, um talho de luz passou por aquela pessoa, seus cabelos eram brancos. Com a noite escura teve foco da imagem quando estava muito perto, quando a pessoa já saia da sombra, rumo a luz: era um velho. Um pobre velhinho, desses que poderiam ser seu avô.

Andava devagar até parar na porta de sua casa e, de maneira lenta, retirava a corrente que prendia o portão. O garoto ergueu a sobrancelha e pensou que poderia ficar aliviado. “É só um velhinho. Não vai ser dessa vez.” E soltou as chaves de novo no bolso.

Passou a rua do posto e da pizarria, avançou para a quadra de sua casa e subiu. Chegou sem fôlego devido a rapidez. Colocou as chaves sobre a mesinha da cozinha e as fitou por um momento. “Ah, mas se fosse um pretinho, ah mas se fosse um”.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

preconceituose

Durante muito tempo pensei em qual seria o melhor texto a ser postado hoje. Pensei mesmo. Lancei mão de toda minha verve literária, meu conhecimento estilístico, recorri a dicionários de três idiomas, latim incluído, e fiz o grande texto. Ele é assim um texto tão fenomenalmente criativo e bem realizado, de tal modo tão sui generis na história da literatura mundial - ou, mais especificamente, na História em si - que meu processador de textos derramou uma lágrima depois do ponto final, agradecendo imensamente a honra de ter sido usado naquela obra-prima.
Depois, durante muito tempo pensei se postaria, e cheguei à óbvia conclusão de que vocês não merecem lê-lo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Um jantar à luz de velas

Coloquei o óleo na panela, com um certo cuidado exagerado. Era a 1ª vez que ela viria em minha casa. Queria um jantar perfeito. Fritei os temperos com cuidado, alho e cebola, até dourar. Distribuí a carne na panela de maneira homogênea e tampei. Em separado fiz o molho, com tomates bem maduros, tomatinhos cereja, daqueles doces. Todo molho adocicado combina com carnes fortes. Pus a mesa. Dois pratos e jogo completo de talheres, todos distribuídos de maneira metódica. Guardanapos de linho branco, imaculados. Taças de cristal, bojudas. Coloquei a terrina com a carne e o molho borbulhante sobre um aparador de vidro e um suporte de prata, como os talheres. Ao centro da mesa um arranjo de flores rodeando o pequeno e sóbrio castiçal que proporcionava a única fonte de iluminação. Tirei o vinho da adega, um Merlot, apesar de saber que um Cabernet serviria mais apropriadamente. Não gosto de Cabernet. Abri o vinho e curvei a garrafa para que pudesse respirar. A campainha tocou. Servi o vinho em duas taças, agitando levemente para que o bouquet ficasse evidente. Segurei ambas as taças em uma mão e despindo-me do avental - sujo, como convém - fui calmamente abrir a porta. Parei. Respirei fundo o fôlego da ansiedade. A noite seria perfeita. Abri. Não era Verônica.

Verônica provavelmente já estava morta, devorada pelo bando de animais. Eu não tinha como saber, havia me desligado do mundo o dia todo para preparar a noite que ela merecia. Eu fui devorado também, em cima da mesa de jantar. Os bárbaros nem sequer tomaram o vinho, acho que sabiam que Merlot não combina nada com carne de caça.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Fuga

Quando Francisco, 22 anos, negro, alto e forte, sentiu a terceira bolha nos pés estourar contra o chão de gravetos secos e mata fechada, já mal conseguia sentir suas pernas. Ainda assim, corria. Corria como nunca antes em toda sua breve vida, corria frenético, sem se preocupar com obstáculos espinhosos nem olhar para trás. Sabia o que o perseguia. Monstros. Seres pálidos e brutais, incansavelmente sedentos por saciar o insaciável. Quando era apenas um menino, ouvia sua avó contar lendas daqueles monstros e agora, aos 22 anos e correndo pela mata fechada como um coelho fugindo de lobos, ele conhecia os monstros muito bem. Mas não podia pensar nisso naquele momento. Precisava correr.

E Francisco correu. Enquanto corria, o vento secava seu rosto, há pouco banhado de lágrimas pelos seis amigos e dois irmãos que não conseguiram alcançar o fim da estrada, onde começava o bosque. Quando os viu cair, Francisco só conseguiu pensar que estava próximo do abrigo seguro e que, se aquilo que ouvira fosse verdade, , talvez, sua única esperança estivesse do outro lado do matagal. Ouviu os urros e gritos hediondos de seus implacáveis perseguidores e, de um só impulso, disparou em direção ao bosque, na esperança de que a mata fechada pudesse atrasá-los.

E então, correu. Por três malditas horas ele correu, até que seus sentidos lhe falharam e seu corpo caiu ao chão. Quando acordou, julgava-se morto, mas ao perceber que os monstros ainda não o haviam alcançado, voltou a correr. Não tinha mais idéia de quanto tempo ficara correndo, nem tampouco se algum dia suas pernas poderiam voltar a fazê-lo. Não se preocupou com as chagas que os estrepes do mato abriam em seus braços e pernas, e por mais que soubesse ser algo muito importante, não conseguia pensar nem mesmo nos ferimentos profundos que os demônios haviam rasgado em suas costas, que sangravam muito. Acima de tudo, tentava não pensar que talvez nunca conseguisse escapar vivo.

E foi quando seus músculos já não mais ouviam seus urros de súplica, quando seu corpo, fustigado de cortes, furos e contusões, caiu, latejante e ensangüentado sobre as folhas secas, que Francisco ouviu vozes familiares. Não o rugir insano de seus algozes carniceiros, mas a voz de um irmão, de alguém como ele.

Virou o rosto para trás, e, entre a vegetação alta rasgada e manchada de sangue por sua passagem, pôde ver a imagem da própria morte. Dois deles o haviam alcançado, haviam farejado seu sangue, seu medo, e agora estavam ali, diante dele e exibindo dentes satisfeitos como os de cães selvagens. Mas quando o primeiro avançou em sua direção, um zunido alto e agudo soou de entre as folhagens, e ambos os monstros caíram, com grandes lanças de bambu cravadas em seu corpo. Sem questionar ou mesmo considerar sua própria sorte, Francisco olhou, já quase perdendo os sentidos novamente, para seu salvador. As lendas eram verdadeiras. Aquele era Zumbi. Francisco alcançara os Palmares, e era um homem livre.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Carne (Quase) Viva

Quando eu estava no leito do hospital sendo tratado, imaginei que as luzes que se apagavam era apenas uma pane geral. A médica comentou que, mais cedo, isso já tinha acontecido. Mas os gritos ensandecidos e um barulho de passos truculentos fizeram com que, instintivamente, eu me escondesse. Retirasse o aparelho preso a minha costas, e corresse para debaixo daquela cama de hospital que, encostada na parede, parecia um bom lugar.

O peso do barulho me deixava imóvel, ainda que curioso. Quando os passos se aproximaram de mim, me encolhi o mais rápido que pude embaixo daquela cama, mas vi as sombras trôpegas e sangue a espirrar.

Não sei quanto tempo estive escondido. Sei que quando sai, as paredes brancas do lugar e sua paz foram mudadas por um vermelho violento estampado no chão. Estavam mortos, a maioria das pessoas e, as poucas ainda vivas, apresentavam horríveis marcas, mordidas dadas com sede e vontade.

Para não dizer que era o único, éramos sete sobreviventes naquele hospital. Vivos sem nenhuma ferida. Um deles que, se não salvo por mim, ao abrir a câmara hiperbárica, ficaria lá até morrer de fome.

Do alto do hospital era possível vizualizar o caminho que traçavam, como predadores que eram. Entravam, devastavam mas, ao invés de ficar devorando as vísceras, rumavam para outro lugar. Fato esse que me permitiu estar vivo até agora.

Ao contrário do que se imagina, visto que mesmo com uma força sobre humana, eles não são capazes de derrubar satélites, boa parte da comunicação permaneceu ativa. Ao contrário da força, essa sim cessada.

Dessa maneira que descobrimos o evidente. A escala global atacada. A população diminuindo aos poucos e rapidamente depois.

Pessoas davam sinal como podiam. Eu vi, pela primeira vez, um daqueles tiros que iluminam ao ar. Vi escrito em sangue “Socorro” quando era tarde demais. E dezenas de mensagens que não paravam de congestionar o que sobrou da rede, confirmando cada local dizimado e a localização dos sobreviventes. Não que existisse força armada suficiente para tal.

Foi assim que resolvi escrever. Ser mais um a dizer como tudo começou, meu pânico inicial e a sensação livre de saber que o fim chegou. Não o seu fim único, mas o de todos nós.

Quando você estiver lendo isso, eu já estarei morto e, provavelmente, a cidade inteira estará deserta, exceto por eles. Saibam que aqui não é um bom lugar para tentar fugir para começar algo novo.

Não se esqueça de fazer aquilo que quiser nas próximas horas, pois, se você ainda está vivo e respirando, daqui a pouco estará sendo devorado.

Saúde.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

o último sobrevivente

Três anos depois que a epidemia zumbi começou, perto do carnaval de 2015, eu era o último sobrevivente. Digo, o último que se mexia, pelo menos. Em 2012 os zumbis de repente apareceram, e foi tão rápido e tão sangrento que só se deram conta depois que metade dos humanos já tinha se transformado.

A outra metade durou mais ou menos os dois anos seguintes. Milhares de fortalezas improvisadas surgiram em pouco tempo, uma mais fortificada que a outra. Lembro bem dos muros altos, erguidos com esforço, que iam acumulando desmortos aos poucos, até que tombavam e davam passagem aos andarilhos. Até hoje tenho pena dos que se refugiavam nesses lugares.Justificar
Quando o número de mortos-vivos diminuiu um pouco, na ordem de 1 bilhão, deviam existir 42 mil sobreviventes humanos em todo o mundo. Mais ou menos isso. Era difícil restabelecer as comunicações, mas houve um grupo grande de militares que se empenharam nisso. Quando conseguiram contatar os outros grupos, espalhados no continente, foi só questão de tempo até que os “resgatassem”.

Eu, particularmente, lembro do grito dos civis na hora que o exército chegou. Alguns grupos civis sequer foram contatados, mas outros tinham se refugiado em grandes estoques de mantimentos. O exército precisava daquilo. Não precisava dos civis. Lembro bem da decepção dos zumbis que presenciaram a cena, vendo toda aquela comida desperdiçada sob o fogo das armas. Uma lástima.

Mas o tempo foi passando, os sobreviventes atacando uns aos outros, os militares morrendo aos poucos. Quando a comida humana acabou, zumbis tentaram caçar animais, mas eles eram todos muito rápidos, e a carne dos animais lentos não tinha o mesmo sabor.

Até que, um ano depois das privações, algum chef percebeu que carne zumbi não era tão ruim. Até saciava um pouco a fome, especialmente porque ninguém tinha alternativa. Os desmortos passaram a agir como humanos, atacando uns aos outros, e em pouco tempo existiam grupos de refugiados zumbis em fortalezas fortemente armadas.

Eu sempre tive um pouco mais de agilidade. Não sei porquê, mas tive. Daí que perambular pelo mundo atrás de refúgios e atacar os zumbis, um a um, foi fácil. Problema mesmo foi ter percorrido todo o continente, duas vezes, e perceber que acabara toda a carne. Humanos, zumbis, não tinha mais nada, e até os animais pareciam não se reproduzir.

Um tempo de meditação, cheguei ao óbvio: minha própria carne, claro, teria de servir. Durei mais alguns anos, assim, no alto dessa montanha contemplando o nascer do sol, o pôr do sol, o cantar dos pássaros, essas coisas. Sabe, não tinha mais o que fazer, depois de comer minhas pernas todas, o tronco, ter acabado com os braços e, por um ano, devagar, comer meu segundo ombro. Obrigado, senhor último sobrevivente, por ter aparecido com sua postura símia, pelos por todo o corpo e essa enorme pedra que estás erguendo agora. Obrig...

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Uma Noite Na Agradável Quezon

Em algum lugar do distante Oceano Pacífico, espremidas entre Taiwan e a Indonésia, num daqueles cantos do mapa múndi que ninguém presta muita atenção, existe um vasto arquipélago que abriga a nação conhecida por Filipinas. Em uma das mais de sete mil ilhas, quase todas habitadas, dessa nação, há uma morna e aconchegante cidade de nome Quezon. Para ser mais específico, Quezon é a maior cidade das Filipinas, ainda que isso não seja exatamente um feito, dado o tamanho das ilhas.

Em Quezon, bem ali, no Centro Velho, bem em frente à praça José Risal, fica o ainda mais aconchegante restaurante do Castro. Sujeito de pequeno porte e sorriso plástico, emoldurado por um denso bigode negro. Quezon é uma cidade mercantil, freqüentada por inúmeros estrangeiros, e talvez isso possa explicar a razão de, em um restaurante típico nas Filipinas, haver uma placa abaixo do nome 'Castro', onde pode-se ler, em língua inglesa para facilitar a compreensão, as palavras "Comida Típica das Filipinas".

Não que a língua inglesa seja mais alienígena lá do que aqui, nem que tal aviso não possa ser lido em outros restaurantes de outros países. Mas lá, em Quezon, no restaurante do Castro, bem no Centro Velho, era importantíssimo para qualquer estrangeiro ajuizado saber se poderia pedir um hambúrguer ou se teria de se refestelar com os inesquecíveis pratos típicos da culinária Filipina.

O Castro tem um cardápio bastante variado. Se você pedir uma sugestão ao Antonino, melhor garçom do Sudeste Asiático, ele te levará, por sua conta e risco, através de um tour gastronômico. Como entrada, para você já ir entendendo onde se enfiou, são servidas aranhas tarântulas (saca, aquela grandona, peluda?) apimentadas e fritas. Seu veneno, naturalmente, é desfeito no preparo, e as tripas do bichinho são removidas antes de fritar. Tem uma casquinha crocante e uma carne muito macia e de sabor delicado. Peça pelo molho Bashlak, fica excelente.

O prato principal mais servido no Castro é a sopa Lokot, feita com cebolas, salsa, um molho secreto do Castro de sabor adocicado e macarrão, estilo lamen, feito com fezes de Lokot, um tipo de peixe bastante comum na região. Para os dias mais quentes, onde uma sopa pode não cair tão bem, o Antonino vai sugerir a mais pitoresca e suculenta das iguarias Filipinas, os ovos Balut. Uma porção individual traz arroz, uma cumbuca com chili, vinagre e outros temperos, e cinco ovos de pato. O segredo do prato está nos ovos, que são fertilizados, com embrião por volta do 19º. Dia de desenvolvimento. No Vietnam esses ovos são levados ao fogo com apenas 13 dias, mas o chef do Castro deixa chocar por mais alguns, o que garante aos patinhos ossos mais firmes, embora macios depois de cozidos. Quebra-se a casca, para poder primeiro sugar o caldo, então coloca-se alguns temperos antes de comer o embrião. O sabor é característico, e não se parece com nada que a pobre e tediosa culinária ocidental conheça.

Para a sobremesa, não se deixe levar pelo freezer de sorvetes ou pela mesa de frutas, nada disso justificaria uma viagem a Quezon. Chame o Antonino e peça por uma porção individual de Hasma, com cobertura de caramelo. São pequenos flocos desidratados à base de trompas de falópio de sapos Tchun-Kien, importados da China. Misturados com açúcar e com uma cobertura de caramelo, formam uma massa deliciosa com textura de tapioca e coloração próxima à da rapadura.

O Castro aceita todos os cartões de crédito internacionais, entrega para toda Quezon e funciona de segunda a segunda. A fachada é muito bonita, decorada com adereços típicos e, bem ali do lado, coladinho no Castro, fica uma lanchonetezinha feia e suja onde você pode comer um hambúrguer de carne bovina e ocidental por um preço justo. Diga que é leitor do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta e, comprando o segundo hambúrguer, você ganha uma Coca-Cola.