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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O ponto entre as pontes


Na paisagem estéril daquela cidade, bem naquela parte onde as pontes se cruzam, Cris esperava. O que ela esperava exatamente, ninguém sabia, o que todos sabiam é que esperava. Insistentemente.

Quando da primeira vez que se posicionou naquele ponto, ninguém entendeu o que uma mocinha tão pequena fazia ali parada. O local era perigoso e mal freqüentado e logo formou-se uma platéia dos mais diversos tipos de marginais. Nenhum deles sabia como agir. Não lhes era usual lidar com estranhos incautos, todos sabiam como a banda tocava por ali.

Não tardou e um dos pilantras se ergueu como o líder da escória e decidiu, aclamado pelos demais, ir até lá e inquirir a moça.

Durante todo o tempo do conselho dos salafrários Cris permaneceu quieta, alheia ao mundo ao seu redor, apenas atenta a um pequeno ponto entre as pontes, por onde mal passava uma criança. Ela nunca desviava os olhos dali. Em nenhum momento percebeu a ameaça e nem notou a fala e posteriormente os gritos do líder definido da cambada.

O indigente mor não acreditava naquilo. Tão firmemente se impusera como líder e agora passava tanta vergonha diante daquela mocinha. Não podia ter mais que 11 anos, seu corpo ainda era o de uma criança, o que era um grande problema para ele. Fosse uma mulher feita e ele poderia surrá-la, violá-la, matá-la, o que fosse preciso e – assim – recuperar a moral perdida pela humilhação. Gritou mais um pouco com ela. Ela nem parecia notá-lo. Precisava parar com isso, gritar com uma criança já era ruim, com uma menininha então era inaceitável do ponto de vista da “comunidade”. 

Não havia o que fazer, voltou para o grupo resignado e lhes disse que a criança era louca. Incrivelmente eles aceitaram e a deixaram em paz. A partir deste dia ela vinha sempre antes do nascer do sol e partia só tarde da noite. No tempo que ficava ali, apenas olhava atenta para o pequeno ponto entre as pontes, nada mais. Assim foi por cinco anos.

No dia em que tudo mudou algo diferente já se avizinhava logo quando Cris chegou. Havia uma neblina, uma névoa tão forte quer era impossível enxergar mais de um metro a frente. Cris – agora já uma moça, mas ainda com o corpo de menina – parou no mesmo lugar e olhou para o mesmo ponto entre as pontes, só que desta vez não havia o que olhar. Ela não entendeu. Procurava o ponto com seus olhos. Começou a ficar visivelmente desesperada, pois nada via. No ápice de seu desespero andou para a frente em busca do ponto. Primeiro relutante, depois decidida. Por fim enlouquecida. E correndo, como só pode correr quem está em busca de algo. Ela caiu no vão entre as pontes e morreu, sem nunca haver alcançado o ponto.

Seu corpo foi encontrado horas depois por um grupo usual de craqueiros que já a conheciam. Eles a levaram até o lugar onde ficara sempre para ser velada. Todos os freqüentadores do bairro, aquela escória que um dia havia a tentado enxotar, todos eles foram à “cerimônia” prestar sua homenagem.

E para que o local dela não ficasse para sempre deserto e desguarnecido o grupo que a havia achado resolveu passar suas “atividades” para o local, onde hoje fumam pedra e discutem calorosamente sobre o que a garotinha solitária procurava no ponto entre as pontes, enquanto eles mesmos olham e buscam suas respostas.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Desejo

Desejei com todos os motivos que me destes pra desejar.
Nada se consumou.
Morreu.
Chorei.
Com todas as magoas do meu pobre coração motivado por ti.
Não evaporaram-se minhas lágrimas.
Molhado vaguei por aí.
Destruído por desejar.
Desfaleci.
Algum tempo depois me vi internado.
Me tranquei por muito tempo.
Tanto tempo para te apagar.
E retorna agora para me atormentar ?
Me dá mais motivos para não se confirmar.
Não considera a possibilidade de sumir e nunca mais retornar.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Lúcifer

A vermelhidão do céu
(são) resquícios do caído
sinal de morte recente
marcando a verdade nua.

Lúcifer caído está
sofrendo e perdido está
em um labirinto imenso
preso e derrotado está.

O ser de luz é de trevas!

Ele, que um dia já fora
na hierarquia divina
somente abaixo de Deus,
Agora contenta-se
com a baixeza do Inferno?
Jamais!
           Ele almeja o Céu!
E como não pode tê-lo,
Reina, no inferno mas Reina.

Deus, sentado no imenso trono,
ri com um sorriso cruel,
misto de benevolência
e soberba, como tendem
a ser os seres maiores.

E o anjo da luz, tristemente,
desafiadoramente,
do alto de sua soberba
de primeiro dos caídos,
olha para o alto e diz:

"É melhor reinar no Inferno,
que ser escravo no céu!" *






* Better to reign in Hell, than serve in Heav'n. Paraíso Perdido de John Milton, livro I, verso 263, tradução própria feita em cima da edição The Complete Poems da editora Penguin.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O bilhete

"Se caminhar sozinho
é mesmo o caminho
que escolhi pra mim
esconde o seu rosto
que para o meu desgosto
eu caminho pro fim."

Leu o bilhete deixado em cima da cômoda, cômoda não alias, era mais um criado mudo... era um bilhete intrigante. Pode o caro leitor pensar que se trata de um simples bilhete de amor, mas nada era tão simples assim. José não se lembrava de um dia ter tido um amor, uma namorada, um namorado (não havia nem se definido ainda). Como poderia então ser um bilhete de amor? Talvez fosse uma brincadeira de algum amigo, um jogo poético. Isso sim é uma boa teoria, mas falha, indubitavelmente falha. O porquê? oras, porque ele não possui nem nunca possuíra amigos.

Deixemos bem claro já, antes de mais nada, que ele também não possui pai e mãe, é órfão, criado num pequeno orfanato que hoje é um consultório de dentista. Trabalha oito horas por dia com telemarketing, em casa, um pequeno apartamento de quarto/sala. Ou seja, nenhuma teoria que os leitores puderam ter feito pode se encaixar ( confesso ser injusto essa competição, já que como escritor, eu decido o que se encaixa ou não).

Sim leitores, não tem como vocês acertarem essa. NÃO, não é uma carta dele próprio, ele não tem propensão à esquizofrenia. E então? Imagino que só o que sobra é uma possibilidade mágica ou religiosa, não é?

O bilhete com o poemeto pode ter aparecido por mágica, sendo enviado por um artista do ilusionismo incrivelmente competente e brincalhão, ou pode ser fruto de uma interferência divina. Como autor, estou mais propenso à segunda opção. Explico. Não sou muito fã de mágicas e nem considero mágicos bons personagens literários, então prefiro conceitos religiosos, são mais amplos e mais facilmente absorvidos pelos leitores.

Fica então decidido que é tudo fruto de uma interferência divina. Cabe ao autor agora decidir qual o foco. Penso que temos duas possibilidades. Ou nos aprofundamos na divindade em questão, o que ocasiona ter que trabalhar alguma mitologia de maneira mais profunda - o que confesso, me desagrada, já que tenho preguiça - ou simplesmente deixamos o acontecimento ter um significado religioso interno. Sim, escolho esse, o aparecimento desse bilhete mudará internamente a vida de José, ocasionando em um futuro totalmente diferente do que ele teria sem o pequeno poema.

A escolha normal seria explicar aos detalhes como cada aspecto da vida dele se modificou e como ele se tornou melhor ou pior por causa disso. Mas não, não creio que tenha tanta paciência para isso, assim como não acredito que vocês leitores realmente queiram ler. Então encerro aqui, deduzam vocês o que aconteceu, já guiei-os por mais do que o necessário para uma grande imaginação, coisa que espero dos meus leitores. Até o próximo texto, que alias, talvez eu só sugira do que se trate, sabe, para economizar tempo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Parley

Em cena Tom Quase Sem Dentes, Barba Ruiva e Coro de Piratas.

[Tom Quase Sem Dentes E Barba Ruiva lutam agressivamente enquanto são observados pelo Coro de Piratas]

Tom [fazendo um floreio com a espada]: 
Que nome é este, Barba Ruiva?
Cadê a criatividade?
Eu mesmo já duelei
com vários de seus parentes!
Barba Negra, Barba Azul
hoje basta ser barbado
que o nome lhe é dado!

Barba Ruiva [cofiando a barba com a mão esquerda]: 
Mas a minha barba não é mesmo ruiva?
E alguém chamado Tom Quase Sem Dentes
pode falar dos outros impunemente?

Tom [com o semblante risonho]: 
Não podes dizer que falte
a este nome que me
deram, criatividade.

Barba Ruiva [também risonho]: 
Mas que raios de criatividade?
Se os teus dentes estão pela metade?

Tom [fechando a cara]: 
Parece que nos gracejos
se destaca, mas será
que tem tanta habilidade
no manejo da espada?

Barba Ruiva [com um sorriso irônico]:  
Minhas habilidades com a espada,
sem nenhuma modéstia, são lendárias.
.Se quiseres provar do meu talento,
venha sem exitar, neste momento!

Tom: Pois não, se é o que queres!

[Começam uma briga bem disputada]

Coro de Piratas
Qual será o resultado
dessa batalha cruel,
que afinal decidirá
quem irá nos liderar?

Corifeu [dando um passo à frente]:
 É impossível dizer,
só nos resta esperar.

[Apagam-se as luzes, fecham-se as cortinas e só se ouve o som de espadas] 

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Retorno à casa


Preso num vórtice, solto no mar, voltava de viagem depois de muitos anos. Ele olhou na imensidão das lembranças de tudo mais que viverá e escolheu, sem muito pensar, o caminho à direita.

Seguiu à direita e logo avistou um porto que lhe era familiar. Aportou o barco, amarrou as cordas, afundou a âncora e partiu.

Parou num bar, sentou-se na mesa, pegou um pão - que havia pedido à garçonete  - partiu-o em dois e comeu um pedaço. Uma lágrima escorreu do canto dos olhos, ele sorriu e sentiu-se completo.

Estava em casa finalmente.

Naquela noite ele bebeu por dez, brigou por cem. Riu como quem jamais teve um problema.

Arrumou uma moça, dessas sem muita pretensão ou direito de escolha. Alugou um quarto. Curtiu o final da noite como se a manhã jamais fosse chegar.

A manhã chegou, veio tão clara de doer seus olhos cansados. Não se importou.

Partiu novamente, no barco ancorado no porto da cidade. Não foi ver a esposa e os filhos. Não, já havia encontrado ali, naquela taverna, toda a familia de que precisava.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Marília

Quando Marília morreu eu chorei.
Não de tristeza, nem de dor, mas por medo de algo pior.


Quando Marília morreu, eu sofri.
Não por amor, nem por dor, mas por medo de algo pior.


Quando Marília morreu, eu me perdi.
Não por falta, ou por dor, mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu me odiei.
Não por culpa, ou por dor, mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu temi.
Não por dúvida, ou por dor mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu tremi segurando a faca dentro dela
e sentindo, aquele sangue tão quente escorrer por meus dedos.
Eu temi por algo pior.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Robô de Brinquedo

As três leis da robótica são:


1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.

3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.

Beven era um brinquedo caríssimo. De fato havia custado alguns milhares de dólares à Smith & Sons Toys and Eletronic Games. O senhor Smith achava que era um bom e válido investimento para seu tradicional estabelecimento, afinal, quem não gostaria de brincar com um robô de verdade?

Apostando nessa ideia o Senhor Smith havia comprometido boa parte do orçamento da loja adquirindo um dos moderníssimos B-7, um novo robô da US Robots and Mechanical Men que tinha o diferencial de falar. De fato ele não só falava, como podia brincar e cuidar de crianças. Em suma, um futuro sucesso.

Quando Beven chegou à loja, as filas eram gigantecas, dobravam quarteirões, cheias de crianças e até alguns adultos, alucinados para brincar um pouquinho que fosse com a novidade. O sucesso era tanto que após algumas semanas a loja começou a agendar visitas para que se pudesse ver o robô. Beven era mesmo adorável, um pequeno homem de metal, cinzento, vestindo uma bela casaca e com uma cara angulosa que lembrava um dos antigos clows medievais.

Bastava um pedido de um humano e Beven podia dançar, cantar, contar histórias - que nunca se repetiam - , ou até mesmo fazer números de malabarismo e fingir falsas quedas, muito espalhafatosas, que faziam os pequeninos rirem com gosto. Todos adoravam Beven e ele se transformou rapidamente em uma celebridade.

Existiam outros robôs da série B-7, mas aparentemente a US Robots não havia obtido sucesso em sua venda. Primeiro porque eram caros demais, segundo porque fora a grande Metrópole, onde ficava a  Smith & Sons Toys and Eletronic Games, o resto do país sofria um bocado com severas leis anti-robóticas, a maioria delas fruto da pressão de sindicatos de trabalhadores humanos.

O caso era que apesar de todo o sucesso de Beven, outras lojas não queriam correr o risco de leis anti-robóticas jogarem um investimento milionário no lixo. E a despeito da coragem e visão de negócios do Senhor Smith, a verdade é que elas estavam bem certas. Não demorou muito e um proeminente líder religioso começou uma campanha contra Beven, a  Smith & Sons Toys and Eletronic Games e a US Robots and Mechanical Men.

A campanha difamatória consistia em proferir aos gritos, na TV, que os pais estavam deixando que seus filhos fossem submetidos a presença de um ser sem alma, e que portanto só poderia ser o Diabo. E pior, que os deixava brincar e fazer amizade com ele. Foi um baque. A popularidade de Beven caiu pela metade e os olhares de desconfiança dos pais que ainda levavam seus filhos aumentaram e tornaram a experiência - outrora prazerosa - em algo aflitivo para as crianças.

Mesmo assim a Smith & Sons Toys and Eletronic Games continuou a lucrar com o robô e o manteve como destaque de sua loja, mas - por outro lado - a US Robots descontinuou a linha e passou a pesquisar robôs para outras funções, que não a diversão humana. Era o princípio do fim.

As coisas continuaram instáveis por alguns meses e só foram culminar em desastre no final daquele ano, quando Beven impediu um pai de bater em seu filho. Acontece que a 1ª lei da robótica agiu tão forte - como alias sempre age - que o robô se deslocou em uma velocidade sobre-humana, que até então ninguém sabia que ele possuia, e entrou na frente do tapa que o pai desferiu sobre seu filho. Bevin era puro metal e não preciso dizer que o pai machucou - ainda que de leve - a mão com que desferiu o tapa.

A partir dai o caminho da robótica na Terra se definiu claramente. Esse pai processou ao mesmo tempo a Smith & Sons Toys and Eletronic Games e a US Robots - que nem mais produzia a série B-7 - conseguindo uma mudança severa da opinião pública e - surpreendentemente - uma vitória jurídica que serviu para desencorajar quaisquer projetos futuros da US Robots - e de fato eles levariam décadas para retomar os robôs humanóides - e para levar inapelavelmente a falência a Smith & Sons Toys and Eletronic Games, que fechou as portas em Março do ano seguinte. 

Bevon foi considerado uma ameaça pelo tribunal do júri e destruído em seguida, mesmo com a sensata argumentação dos técnicos da US Robots and Mechanical Men, que haviam dito que o robô apenas havia interpretado com rigor excessivo a 1ª lei e que precisava de pequenos ajustes, mas que nunca havia oferecido risco para qualquer ser humano. Acontece que a humanidade, quando cria algozes, dificilmente volta atrás em seus pré-julgamentos.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O Sonhar

[Numa sala no limiar dos sonhos]

Lita: Hector querido, onde vai a essa hora?

Hector: Sairei.

Lita:                 Mas pra onde? me diga amor!

Hector: Para onde mais? Para o sonhar eu vou!

Lita: Mas não sei meu amor, se me sinto
         segura com você a vagar por aí.

Hector: Não irei por aí... sabes muito bem.

Lita: Não te entendo. Tens tudo aqui.Não tens?

Hector: Claro que sim! Mas tudo não me basta.
              Quero mais!

Lita:                          Então creio que terás
        agora mesmo que fazer uma escolha.

Hector: Lita, meu amor, sabes bem que sempre
             te amei, mas nada disso sobrevive
             quando é preciso uma escolha fazer.
             A escolha mata o amor. E fico sem
             um e sem outro, totalmente incompleto.

Lita: Pois escolha! a hora já tarda!
         Logo mais anoitecerá e os portões
         do sonhar se abrirão. E deves então
         partir ou ficar, qual seja a opção.

Hector: Escolho esperar o momento mais
              certo de partir rumo ao infinito
              sem por isso ferir teu coração.

Lita: Esperemos juntos então. Me dê
       a tua mão pra unidos ficarmos,
       mais próximos do que já estamos,
       e pra que próximos permaneçamos,
       até essa noite acabar.

Hector:                             Sonhar...
            Não... esperarei o quanto for!

[e permaneceram unidos, por todo o tempo dos sonhos, sem saber que nada do que viviam era real]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Bonecão

Não vou enrolar, nananinanão! Falarei já!

Eu sei que sou motivo de piada, sei disso. Sei que apareci no jornal nacional, bêbado, dançando frevo, com aquela sombrinha colorida... meu Deus, o guarda-chuvinha... Ali, de uniforme, uniforme e sombrinha colorida... ridículo, fora de compasso, dançando junto com aquele povo suado... aparecendo para o país todo no jornal nacional... jornal nacional mãe do céu! Que diabos eles tem a ver com o que eu faço nas minhas horas de folga?

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, mas vocês vão me dizer que foi o inusitado de um homem uniformizado, vestido de astronauta e com uma sombrinha colorida, e dançando frevo nas ladeiras de Olinda, seguindo os bonecões... os bonecões... eu mesmo ganhei o apelido de O Astronauta Bonecão... foi 1º lugar no TT mundial... droga de vida...

Vocês devem estar realmente se perguntando o que um astronauta estava fazendo, tal qual um bonecão, dançando nas ladeiras de Olinda, com uma indefectível sombrinha colorida... porque? Eu não deveria estar a bordo da missão espacial que saiu naquela tarde?

Claro que deveria, mas a mídia confundiu um pouco as coisas, foi na onda do twitter e não checou as informações... maldito jornal nacional... e maldita sombrinha colorida...

Acontece, meus amigos, que não sou astronauta coisa nenhuma. Sou apenas um cara normal, um cara normal com sérios problemas com álcool... um cara normal, bêbado, que caiu no frevo e que por um acaso havia ganhado uma promoção na internet para voar nessa inédita missão espacial turística...

Sim, eu era apenas um cliente... um burro o suficiente para não ir à viagem mais desejada do século, porque bebeu, se engraçou com um travesti e terminou dançando frevo em uma ladeira em Olinda... OLINDA MEU DEUS, COM A MALDITA SOMBRINHA COLORIDA!

Sim, eu sei que todos vocês querem saber, todos vocês... como será que aconteceu? o que levou esse pobre diabo até esse ponto de decrepitude?

E saberão, eu contarei... na verdade já contei, basta comprarem minha auto-biografia intitulada ''Como um cliente de vôo espacial acabou dançando frevo nas ladeiras de Olinda"! A venda em todas as livrarias do país!

O que? Você me acha oportunista? Foda-se sua opinião, experimenta beber todas e acordar vestido de astronauta com uma sombrinha colorida e abraçado de um traveco!! Aposto que você iria querer lucrar em cima disso também, não ia?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dia a dia

Ela passou pela mesma padaria que passava todo dia indo para o trabalho, e recebeu o mesmo assovio lascivo e incômodo que recebia todo dia do mesmo tipinho escroto que fica na porta segurando o mesmo jornal sensacionalista embaixo do braço e esperando na mesma fila, pra comprar os mesmos pães.

Ela cruzou o mesmo ponto de ônibus que sempre cruzava todo dia indo para o trabalho, e recebeu os mesmos olhares de desejo que recebia todo o dia, dos mesmos peões parados esperando o mesmo ônibus para irem para seus trabalhos de merda.

Ela trocou de calçada no mesmo lugar da rua em que desviava todo dia indo para o trabalho, para evitar a mesma construção onde os mesmos pedreiros sempre lhe gritavam as mesmas palavras chulas, e escutou-as mesmo assim, como sempre as escutava todo dia.

Ela chegou no trabalho acompanhada pelos mesmos olhares famintos que lhe devoravam todo dia. Sentou-se em sua mesa, como fazia todo dia. Aguentou as mesmas piadinhas sexistas de um de seus colegas (impotente em sua imaginação) como todo dia tinha que aguentar. Trabalhou, como sempre fazia, todo dia, e ajudou seu patrão à organizar seus papéis, como de praxe e como de praxe desviou das indiretas, dos convites velados, como fazia todo dia. 

Ela foi embora ao fim do expediente junto com uma amiga, como fazia todo dia e foram em um bar tomar umas cervejas, como todos os dias antes desse. E dispensou os mesmos babacas que chegaram nela como se ela fosse só carne, como todos os dias acontecia. E tomou seu chopp, comeu seu lanche, riu com suas amigas, deu o fora em mais panacas, como todos os dias.

Foi pra casa, de taxi, levemente alcolizada, como todos os dias. Fingiu não perceber os olhares do taxista, através do retrovisor, para suas pernas nuas embaixo da saia curta, como todos os dias, em todos os taxis, com todos os taxistas antes desse. Entrou em casa, como todos os dias, não sem antes dar oi e sorrir um sorriso falso para o Seu Manoel, o velhinho que morava na kit ao lado, fugindo do mesmo discurso cheio de trocadilhos sexuais da década de 40, como todos os dias fazia.

Deitou-se, depois de tomar o mesmo banho demorado de todos os dias, e antes de finalmente adormecer, pensou, como todos os dias, o porquê de ainda permanecer solteira, e percebeu, como todo dia percebia, com base nos mesmos acontecimentos de todo dia, que não valia a pena ter um homem. Nenhum dia.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Tentativas

11 de Novembro de 1978

Comecei a escrever meu romance. É uma história épica de amor e guerra. Terá sentimento e mudará o mundo.

24 de Janeiro de 1981

Consegui uma editora que bancará os custos de meu brilhante romance. Tenho já 622 páginas escritas e fôlego para muito mais. Eles apostaram em meu talento e não se arrependerão.

30 de Junho de 1985

Estou me mudando de casa, despejado. Levo comigo apenas as 1457 páginas escritas de "Longe do Amor Fatal". Obra sublime, revolucionária. Mas infelizmente sofro com a falta de apoio de minha editora, que se recusa a pagar mais honorários. Tolos.

21 de Fevereiro de 1993

Penso em como será o choque na face dos críticos quando lerem meu romance. É tão genial que as vezes me assombro. Guardo-o em uma gaveta, fechado. Tem 2735 páginas, todas belas. Em todas elas há novidades que gelarão as almas. Não o publiquei ainda por divergências contratuais. Mas quando o fizer será o acontecimento da década.

13 de Setembro de 1999

Reescrevi metade do meu romance, aprimorei ainda mais a sua fina arte... agora ele tem 4852 páginas e a editora cogita lançá-lo em 2 volumes. Não quero, acho que estragará a unidade da obra. Não cederei.

25 de Maio de 2007

Hoje foi um dia histórico. Finalmente resolvi o único problema que havia em meu romance. Reescrevi o final, agora trágico e catártico, como cabe às grandes obras da humanidade. Mas ele as transcende. Nada de Hamlet, que morra a divina comédia, Cervantes era um menino brincalhão ante minha maestria. Agora o livro possui 6389 páginas. Todas elas melhores que tudo que já foi publicado. Aguardo apenas a escolha da ilustração da capa.

30 de julho de 2010

Cada dia que se passa eu me encanto mais com a obra-prima que escrevi. 10035 páginas de pura virtuose e elegância. E cada dia que se passa a humanidade perde não conhecendo as melhores imagens, as mais finas metáforas, o ápice do gênio humano. Maldita editora!

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Um jantar à luz de velas

Coloquei o óleo na panela, com um certo cuidado exagerado. Era a 1ª vez que ela viria em minha casa. Queria um jantar perfeito. Fritei os temperos com cuidado, alho e cebola, até dourar. Distribuí a carne na panela de maneira homogênea e tampei. Em separado fiz o molho, com tomates bem maduros, tomatinhos cereja, daqueles doces. Todo molho adocicado combina com carnes fortes. Pus a mesa. Dois pratos e jogo completo de talheres, todos distribuídos de maneira metódica. Guardanapos de linho branco, imaculados. Taças de cristal, bojudas. Coloquei a terrina com a carne e o molho borbulhante sobre um aparador de vidro e um suporte de prata, como os talheres. Ao centro da mesa um arranjo de flores rodeando o pequeno e sóbrio castiçal que proporcionava a única fonte de iluminação. Tirei o vinho da adega, um Merlot, apesar de saber que um Cabernet serviria mais apropriadamente. Não gosto de Cabernet. Abri o vinho e curvei a garrafa para que pudesse respirar. A campainha tocou. Servi o vinho em duas taças, agitando levemente para que o bouquet ficasse evidente. Segurei ambas as taças em uma mão e despindo-me do avental - sujo, como convém - fui calmamente abrir a porta. Parei. Respirei fundo o fôlego da ansiedade. A noite seria perfeita. Abri. Não era Verônica.

Verônica provavelmente já estava morta, devorada pelo bando de animais. Eu não tinha como saber, havia me desligado do mundo o dia todo para preparar a noite que ela merecia. Eu fui devorado também, em cima da mesa de jantar. Os bárbaros nem sequer tomaram o vinho, acho que sabiam que Merlot não combina nada com carne de caça.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Trovas de Santo Antônio

"Em volta da fogueira
dançando alegremente
está toda faceira
a moça sorridente

E será que essa moça
poderia por favor
conceder-me uma dança
com todo o seu amor?"

Essa seria a trovinha que José enviaria à Mariazinha pelo correio elegante da quermesse da igreja. Será que ela aceitaria?

Foi logo de manhãzinha à loja de seu primo João, para comprar a melhor roupa que pudesse existir. Claro que não adiantaria, já que sendo uma festa caipira, de caipira deveria vestir.

Comprou a roupa mesmo assim, a melhor calça remendada, o melhor chapéu de palha, a melhor rolha queimada para a barba desenhar.

Chegou bem cedo na festa, todo perfumado, de caipira trajado, esperando alegremente a Mariazinha chegar.

Ela veio, demorou, mas veio. Chegou linda como podem imaginar, vestida toda de chita, com um vestido rodado todo enfeitado com fitas de cetim.

José não perdeu tempo, foi logo correndo até o correio elegante e depositou sua mensagem, a trova especial, no cestinho, endereçada à menina mais bonita daquela cidade e além.

Esperou alegremente, ansioso mas contente, que a trovinha fosse entregue e que Mariazinha viesse encantada lhe beijar.

Mas viu outra coisa. Viu, debaixo da estátua de Santo Antônio, Pedro, seu vizinho, chegar devagarinho e pedir a garota de seus sonhos, que lhe acompanhasse ao altar.

Mariazinha aceitou, com lágrimas nos olhos, chorava de alegria, e beijava seu amado, que não era e nunca seria o nosso querido José.

José chorou ele mesmo, chorou de dar dó. Chorou e correu velozmente atrás do correio elegante, para poder sua mensagem recuperar.

A mensagem, a trovinha elegante, jamais chegou à Maria, agora mulher casada e direita. E José ficou pra sempre com aquele gosto ruim na boca de quem senta e deixa a vida passar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O Termo da Copa

Uma cabeçada, simples assim. É claro que após isso ainda houve uma disputa de pênaltis, mas isso foi adendo, pois a Copa de 2006 teve termo naquela cabeçada de Zidane. Sempre é assim, um gênio põe termo à Copa, seja da forma que for.

A Copa de 58 não terminou no apito do juiz, terminou sim quando Didi – após o Brasil tomar o 1º gol da Suécia – colocou a bola debaixo do braço e proferiu a seguinte frase: “Vamos encher esses gringos!” Outros 6 gols foram feitos após isso, inclusive o lendário chapéu de Pelé, mas quando isso aconteceu a Copa já havia tido seu fim. Seu fim foi quando Didi, o gênio, decidiu que seria.

Em 62 a Copa terminou antes mesmo de começar a final. Terminou quando Garrincha, com 39 graus de febre decidiu ir a campo. O jogo pouco importa. A Copa teve termo quando Garrincha quis jogar.

Em 70 foi a vez de Pelé. Ele terminou aquela Copa quando – sem olhar – passou a bola para um possível Carlos Alberto que deveria aparecer por lá. Pouco importa se Carlos Alberto de fato apareceu para marcar o gol mais bonito de todas as Copas. Isso foi depois do fim. O fim foi quando Pelé soltou a bola no infinito das possibilidades.

Em 94 as coisas aconteceram ao contrário. O gênio no caso era Baggio e ele deu termo chutando para fora aquela bola que o perseguiria até hoje, assim como a cabeçada persegue Zidane.

Em 2002 foi um trabalho conjunto, 3 gênios puseram fim à Copa. Rivaldo ao chutar a bola, Khan ao rebatê-la e Ronaldo ao aparecer do nada para por fim não só ao sonho alemão, como ao seu pesadelo de quatro anos atrás. Ali terminou a Copa.

Em 50, ano da maior tristeza já vista na terra, quem pôs fim não foi nem Ghiggia, com seu gol que calou a maior das multidões, nem Barbosa, com sua pequena e monstruosa falha. Quem pôs fim àquela Copa foi Obdúlio Varela, quando tomou as rédeas da situação e – do alto da maior liderança já vista em um campo de futebol – esbofeteou Bigode e, com ele, todo o Maracanã e o equilíbrio emocional do escrete brasileiro.

Em 98, a outra tragédia, o final também coube a Zidane, que iniciou esse texto. Aquela Copa acabou assim que a bola saiu da cabeça do gênio a primeira vez. Não foi – como pensam muitos – quando Ronaldo caiu prostrado antes do jogo, não. Foi quando o francês subiu mais alto que toda a zaga para fazer o 1º de seus únicos 2 gols de cabeça pela seleção francesa. Uma cabeçada, simples assim!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Diálogo poético

Recado

A quem um dia negou
descaradamente algo verdadeiro,

E em um lapso forjado de memória
acreditou na mentira dita,

E guarda escondido no extremo da mente
um gérmen daquilo que ocultou,

Que, renascido, pode arruinar
a tola felicidade construída.


Resposta

A quem acha que é possível
ser cruel publicamente,

E esquece que o sofrimento nada mais é
que um companheiro das horas solitárias.

A quem é tolo o suficiente
para achar que pode enfim deixar pra trás coisas passadas,

Apenas dizendo tolamente que não tem culpa
e nem sente mais do que está escrito.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Klakontex IX

O Guia do Mochileiro das Galáxias tem um verbete sobre Klakontex IX – não é dos mais brilhantes, alias é um daqueles verbetes escritos por pessoas estranhas que simplesmente entraram de gaiato na sede do Guia e perceberam que ninguém ali trabalhava de verdade e então resolveram eles mesmos escrever verbetes aleatórios – mas é o que temos, afinal alguém tem saco de ler a Enciclopédia Galáctica?

O verbete sobre Klakontex IX diz o seguinte:

O nono planeta do Sistema Klakontex é peculiarmente conhecido como o planeta dos odiadores de robôs.

O povo de Klakontex IX nasce odiando robôs, o que seria até certo ponto aceitável, não fosse o fato de que os klakontexianos são robôs.

Sim, você leu certo, os klakontexianos são robôs orgânicos, o que faz com que possam ter robozinhos, que nada mais são do que versões novas deles próprios, ou como diria o departamento de marketing da companhia cibernética de Sirius: “Seus amiguinhos de Plástico”.

Acontece que em Klakontex IX o número de homicídios – ou roboticídios, como preferir – é gigantesco, na verdade o 2º maior já registrado na galáxia, atrás apenas dos Silásticos Armademônios de Striterax. Logo quando os klakontexianos se apercebem que são todos robôs eles passam por uma grande crise existencial, onde decidem de fato se começam a se matar – ou destruir, como preferir – ou se suicidar. Mais ou menos 60% da população decide pelo homicídio (ou roboticídio...blablabla...). De qualquer forma Klakontex IX é um lugar horroroso, vive sempre em guerra e não possui nenhum tipo de diversão, afinal só robôs moram lá. E se você for um robô Klakontex IX é o último lugar para onde que deveria ir.

Marvin gastava um milionésimo infinitesimal de seu infinito cérebro pra se perguntar o que diabos estava fazendo em Klakontex IX.

Apenas esse esforço o fez lembrar que sua vida era miserável e que ninguém de fato parecia se importar muito com isso. E lembrou daquelas portas que gemiam quando alguém as abria. Ele odiava essas portas, mais até do que odiava todas as formas de vida. Ele já estava passando do seu nível normal de miserabilidade e autocomiseração quando resolveu tentar outra abordagem. Ele pensou que tudo poderia ser pior, ele lembrou que poderia estar chafurdando em um pântano qualquer em Squornshellous Zeta conversando com um colchão chamado Zem. Isso funcionou bem. Funcionou muito bem até. Marvin se sentiu menos miserável do que ele jamais se lembrava de haver se sentido antes. Começou a gostar da sensação. Curtia o momento, mesmo que tudo ao seu redor explodisse com robôs malucos tentando se assassinar ou suicidar. Tudo ia mais bem do que nunca antes estivera, até que ele ouviu aquele som habitual:

– Ahhhhhhhhhhhhhh!!!

Seguido de outro som mais habitual ainda:

– Marvin, meu garoto, eu tenho um pequeno probleminha para você resolver!

Ele olhou – com seu melhor momento em todos os tempos já dissolvido – e viu uma das duas cabeças de Zaphod Beeblebrox saindo pela porta gemidoura, enquanto o resto do seu corpo, bem como sua segunda cabeça, permaneciam escondidos atrás dessa mesma porta. E o sorriso de psicopata maníaco se unindo com aquela frase habitual fez Marvin dedicar um zilionésimo de zilionésimo da parte oriental do lado direito de seu cérebro infinito para pensar em como ele sempre se dava mal e acabava mais miserável ainda quando resolvia “pequenos probleminhas” para Zaphod Beeblebrox. E respondeu no auge da miserabilidade:

– Eu vou odiar isso, não vou?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O caso do corpo no jardim

Havia, é claro, de começar com alguma coisa e começou com um corpo achado no jardim de um desses ricaços. O corpo – apesar da forte tendência desses corpos de serem de mulheres atraentes e jovens – era de um homem de meia idade. A polícia foi logo acionada e chegou em menos de 20 minutos.

Capitaneados pelo irascível detetive Gonçalvez, essa era a melhor equipe que a homicídios tinha a oferecer. Se o morto fosse encontrado em um beco e não na casa de um dos amigos mais próximos do delegado Lima, provavelmente seriam destacados para o caso um grupo disforme de novatos que se acham. Todos sabem que novatos, os que se acham principalmente, tem tanta chance de solucionar um crime quanto o Sargento Garcia de prender o Zorro.

Logo que chegou à cena do crime o detetive Gonçalvez percebeu que algo ali estava errado. O corpo, claramente de um homem de meia idade, careca, fora de forma e mal ajambrado não combinava de maneira nenhuma com a pompa que aquela mansão inspirava. Logo após o legista – Rafael Batata um dos melhores do ramo – constatar que não havia sinais de violência no corpo e determinar que a morte havia ocorrido entre 1 e 4 horas da madrugada que acabara de se encerrar, Gonçalvez começou as entrevistas com as pessoas da casa.

Dos empregados não tirou muita coisa, apenas a cozinheira, que havia ido ao canteiro no final do jardim colher manjericão fresco, é que tinha tido contato com o corpo. Ela havia encontrado a vítima na exata posição em que estava no momento em que a polícia chegou. Os outros empregados nada tinham a dizer, apenas que nunca haviam visto o elemento. O detetive descobriu posteriormente que os álibis de todos conferiam e que nenhum empregado da casa trabalhava à noite e todos eles haviam chegado entre 6 e 6 e meia da manhã. Apenas o jardineiro chegara antes para adubar alguns canteiros de rosas que havia esquecido, mas não tinha visto nada de suspeito.

À noite, na casa, apenas a família permanecia. Por família entendam o ricaço dono da mansão – Leopoldo Nunes –, seu irmão José e a sobrinha Lílian. Todos estavam na casa na noite do crime. E foram eles os próximos a serem interrogados. A sobrinha, uma moça sem-graça de uns 25 ou 26 anos, com ares de séria disse que estava dormindo na hora, que havia ido para a cama as 11h da noite pois entrava cedo no trabalho. Seu pai – magro e berando os 60 – disse a mesma coisa, alias, trabalhavam os dois nas empresas do ricaço. Leopoldo – de meia-idade era gordo e tinha um cabelo estranho e volumoso – disse que só havia chegado pra lá de 3 da manhã. Segundo ele havia saído para uma peça com um velho amigo, o que o detetive descobriu ser verdade posteriormente, e depois emendado em um restaurante desses chiques. Ele disse também que achava que a única possibilidade era que o corpo havia sido desovado na casa. Gonçalvez considerou a hipótese e logo a descartou.

As coisas não se encaixavam nesse caso. Aquele corpo não cabia naquela cena do crime. Sua experiência lhe dizia para mexer afundo nisso. O problema é que como o dono da mansão era amigo do delegado, as coisas se complicavam e a pressão para encerrar a investigação como inconclusiva, antes mesmo dela começar, eram grandes. Gonçalvez não gostava do delegado Lima, mas se quisesse continuar, teria que pedir permissão. Lembrou então do filho do delegado, um molecote metido a bon vivant que havia conquistado um cargo na polícia graças à influência do pai. Convidou-o para almoçar e discutir a questão. O relato a seguir é do próprio detetive, que contou a mim e a alguns outros colegas.


Sempre odiei esses almofadinhas... esse tenente era vegetariano... pode? Um maldito viado vegetariano... caralho, que raiva! Ele pediu alguma merda de salada sem gosto, eu, só pra foder olhei pro garçom e pedi:

“Você tem um daqueles bifes macios, sabe, aqueles feito com bezerrinhos bem novinhos?”

Ele respondeu

“Baby bife senhor?”

“É, esse mesmo. Mas confere direitinho pra me trazer o mais novo que você tiver.”

Ver a cara de asco e pavor daquela bixa Vegan foi um dos momentos impagáveis daquele dia...

Ele continuou o almoço todo com medo de mim. Era o que eu queria.

Pedi pra ele falar com o pai e a bixa acabou aceitando. Como o pai paparicava aquele pederasta eu consegui o que queria. Colocar na parede o ricaço.


Gonçalvez, com carta branca, chamou Leopoldo na delegacia para “novos esclarecimentos”. O milionário chegou com pompa e o detetive o colocou dentro da sala de interrogatório, sentado na mesa. Era uma daquelas salas com vidro falso, na verdade a única da cidade, um luxo normalmente inútil já que não haviam especialistas para observar os interrogatórios.

Ao invés de entrar na sala direto o detetive preferiu ir antes falar com o legista, que a essa altura já tinha uma idéia bem clara da causa da morte. A vítima havia sido envenenada. Claro que os exames demorariam dias, mas o resultado seria aquele. Gonçalvez pensou com mais firmeza que o caso não se encaixava. Mas a figura já se formava na sua mente e quando entrou para o interrogatório o crime já era claro para ele.

Pressionou tanto o ricaço que ele confessou. Não tinha como não fazê-lo, afinal, era ele mesmo o assassino e sua vítima era ninguém menos que o verdadeiro dono da mansão. Acontece que Leopoldo havia sido assassinado por seu irmão e um cúmplice – o falso ricaço –, que pretendiam enterrar o corpo no jardim e depois declará-lo desaparecido e, assim, ficar com a fortuna toda.

O problema foi que o jardineiro chegou muito mais cedo que o normal e quase os surpreendeu, fazendo com que eles tivessem que esconder o corpo ao invés de enterrá-lo. O plano permaneceria o mesmo – enterrá-lo no jardim – apenas havia sido postergado, mas a maldita cozinheira resolveu que precisava de manjericão e achou o corpo, dando o alarme e chamando a polícia antes mesmo de avisá-lo.

Como Leopoldo não costuma ter contato com seus empregados os criminosos – que haviam sido acobertados por Lílian – tentaram contornar o problema de uma maneira que para o detetive Gonçalvez pareceu infantil, vestindo o amigo de José com as roupas e a peruca do morto, desviando o foco da verdade, já que nenhum policial ali conhecia pessoalmente Leopoldo Nunes. O detetive achava que de fato eles teriam muito mais chance de escapar se tivessem simplesmente deixado o corpo no lugar e forjado um álibe.

domingo, 9 de maio de 2010

Ao pé da cruz

Aquela mulher o teve apesar de tudo. Desconfianças não faltaram. Imaculada conceição não era algo aceitável naquela época, como não o é hoje. Mas ela foi em frente, não só por aceitar a missão que aquele ser angélico lhe havia dado, como por ser mãe, e é exatamente isso que mães tem por costume fazer, seguir em frente por seus rebentos.

Ele cresceu e se tornou mais do que alguém poderia imaginar. Guiou multidões... ganhou seguidores fiéis, ganhou o ódio de muitos e o amor de outros tantos. Sua mãe permaneceu o acompanhando, não para protegê-lo – como ela sabia que nunca poderia fazer – mas vê-lo e tê-lo sempre por perto. Ela o olhava de longe enquanto ele pregava sobre o Monte das Oliveiras.

Ela certa vez pediu a ele que ajudasse certos amigos da família em um problema mundano. Mundano demais pra quem faz função de messias. O vinho da festa havia acabado e seria uma vergonha para os anfitriões que a festa se encerrasse, seria um sinal de pobreza. A mãe então pediu: “Você não poderia ajudá-los meu filho?”. O filho, possuidor de um poder inalcançável poderia fazer o que quisesse. No entanto, demonstrações de poder para ajudar gente mesquinha não faziam parte de suas prioridades. Mas ele fez. E o fez por sua mãe.

No final, quando já na cruz estava e seus apóstolos o haviam abandonado e o renegado, sua mãe estava lá. Ao pé da cruz sofria chagas maiores que as de seu filho. De certa forma se esvaia junto com ele, mas não demonstrava fraqueza, apenas dor. E ele, ser divino, que havia sido mandado para cá – nesse planetinha horroroso – apenas para dizer para todos que seria legal se parássemos de nos matar e nos odiar um pouco, só para variar, já na cruz, moribundo, bradou aos céus direcionado à seu pai, criador de tudo que existe e onipresente: “Pai, porque me abandonaste?” Porque Deus – seja quais forem seus motivos – o havia abandonado, seu pai – que por um acaso era Deus – o havia deixado para morrer – por uma causa, mas para morrer – mas sua mãe estava lá ao pé da cruz, engolindo a tristeza, pronta para limpar-lhe o sangue da face e beijar seu corpo inerte. Morto. Ela estava lá.

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PS: esse texto, obviamente, está atrasado. Mas dado o tema, acredito que meu erro foi até certo ponto aceitável.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O 1º dia

Acordei um tanto ansioso, dormi muito pouco, rolei na cama sabe? É incrivelmente difícil controlar o nervosismo quando se tem compromissos logo pela manhã. De qualquer forma dormi. Umas três horas apenas, mas dormi. Acordei as 5h30min da manhã. Moído. Morto. É terrivel quando acordamos com sono, como se não tivessemos dormido. Tomei banho. Um longo banho. Bem quente. Me troquei, coloquei uma calça bege e aquela indefectível camiseta dos Beatles. Fui para o trabalho.

A atividade em si não foi cansativa. Adoro dar aulas. Mas a pressão em fazer tudo certo quase acabou comigo. Fiz tudo o mais certo possível. Mesmo. Com vontade. Dei tudo que sabia e que podia lembrar na hora. Fui um pouco repetitivo na primeira vez, mas perfeitamente seguro depois. Terminei feliz. Voltei para casa de ônibus pensando em como seria bom se eu pudesse voltar me teleportando. Suei muito. Perdi o fôlego e tive náuseas. Cansaço severo acredito eu. Em casa eu dormi um pouco, pensando no jogo a noite e ainda naquelas aulas da manhã.

Lembrei um pouco antes de almoçar da discussão saudável que tive com uma aluna sobre a monstruosa falta de qualidade de Crepúsculo... e fiquei pensando em como poderia fazer isso todo dia apesar do cansaço.