segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ditos populares

Entrou no Clube e logo foi à sua mesa habitual. 

- Ora, quem é vivo sempre aparece, hein? - falou Joana. 

Ele sorriu. De fato, quem era vivo aparecia sempre. Mas quem era mais vivo, como ele tentava ser, às vezes ficava escondido. Passar desapercebido, sabe como é. 

- Despercebido - disse uma voz na sombra do batente, janela ao lado da mesa. 

- Como? - perguntou o nosso amigo, olhando pra sombra ao batente tentando entender quem era ele. 

- "Passar despercebido, sabe como é". Foi isso que você quis dizer, quando pensou "desapercebido" - retrucou a sombra. 

O homem olhou Joana chegando com um copo na mão. Era tão habituê do lugar que a garçonete nem perguntava mais: via o rapaz chegando na mesa que lhe era devida e pronto, levava a bebida.

- Ela não consegue me ver - sussurrou a sombra.

- Nem eu, meu caro. Só te ouço, metido a gramático, corrigindo os outros. 

A sombra ficou quieta. Joana pousou o copo na mesa, reparou o ar estranho do seu cliente e perguntou: 

- Tudo beleza?

- Uma maravilha. 

Sorriram. Ela voltou pro balcão; ele, voltou-se pro vulto.

- Certo, e daí? Que diferença te faz se eu sou desapercebido ou despercebido? Que que isso muda? Hein, ahn? 

A sombra sorriu. 

- Você quer passar despercebido. Quer ser esperto, malandrão. Porque "os vivos não são controlados pelos mortos. Os vivos são controlados pelos mais vivos ainda", como diria tio Jorjão. 

O homem parou de sorrir. A sombra continuou.

- Como diabos você vai passar despercebido, vai conseguir ficar escondido, ser malandro e sorrateiro, se durante esse tempo inteiro nem soube o nome do que quer? Despercebido, mané. Enquanto não souber isso, não tem malandragem que te camufle. 

O homem tentou retrucar, mas percebeu que a sombra já havia sumido. Então, sacou um dicionário da bolsa e leu em voz alta, mas não tão alta que Joana escutasse: 

- Desapercebido (particípio passado de desaperceber) adj. Segunda acepção: Que não se viu ou não se percebeu. = DESPERCEBIDO ≠ NOTADO, OBSERVADO

Sorriu. Sombras passam desapercebidas, mas são orgulhosas demais para consultar um dicionário. Ficar sumido, pensou, não faz ninguém mais inteligente. Saber gramática não deixa ninguém menos otário.

Sorriu, e sorrateiramente avaliou o conteúdo da carteira que roubara daquela sombra. Otária.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O Canto da Sereia

O pequeno junco completou a crista da onda, como tantas vezes naquele mesmo dia. Estava balançando sozinho no pequeno pedaço de mar aberto que existia entre as duas ilhas, alguns peixes ainda pulavam na cesta entre seus pés rachados pelo sal marinho; um chapéu velho protegia sua cabeça contra o sol forte. O velho pescador japonês retirou o chapéu e deixou o sol esquentar os cabelos grisalhos, fechando os olhos e sentindo o cheiro do peixe fresco. Paz, pensou.
De repente, viu claramente o resto do dia. Iria para a velha casa à beira do grande oceano, onde dividia teto com sua mulher e três filhos que não sabia se eram realmente seus, salgariam os peixes e comeriam um mínima parte da pesca, destinando o resto para a venda na cidade, há três dias de viagem. Com sorte, teriam um punhado de sopa de arroz para o final do ano. Mas era uma promessa distante e duvidosa. Logo os peixes dariam espaço para os polvos e lulas, depois mais peixes. Um ciclo interminável, pensou. Cada dia é um ciclo de tormenta e vã esperança. Era sempre o mesmo: acordava e lavava o rosto, tirando as remelas dos olhos e limpando as narinas com sonoridade despida de pudor; engolia um pouco de peixe, olhava para o rosto mal humorado da mulher e entrava no mar; com sorte, teria pesca. Nos dias ruins... ao menos ficara longe da família que o odiava. Um ciclo eterno, formado por incontáveis pequenos ciclos de tormenta: assim via a vida. As vendas diminuiam, ano após ano. As colheitas fracas e o escasso comércio apenas com os Holandeses minaram as trocas da vila com as cidades maiores. O venerável Dáimio também não tinha mais disposição para ajudá-los, pelo menos não enquanto tinha que passar metade do ano em Edo.
Ele suspirou com pesar, pensando nos filhos preguiçosos e na yokai que havia escolhido como parceira. Demônio de mulher. Maldita, que fosse levada para a profundeza das terras com aquela língua traiçoeira e as pernas abertas para outro homem sempre que estava em alto mar. Tudo que fazem é sugar de meu trabalho, comendo o peixe que os kamis me deram. Ele retirou de dentro da camisa de algodão um pequeno crucifixo. Os kamis e o Deus. Alí, sozinho no meio do mar, era o único lugar em que podia professar a fé única que sentia, dividida entre as verdades de sua própria terra e das palavras exóticas dos homens que vinham do Oeste. Não, não dividida. Sua fé era uma mistura entre tudo aquilo que ouvia dos homens sábios. Os barbudos do oeste e os carecas de sua terra. Como a maior parte dos vizinhos, abraçara a fé exótica do oeste, aceitando a existência de um único ser mais poderoso que todos os outros, criador das coisas e da vida. Acreditar nas palavras dos portugueses e espanhóis era um crime capital e o Xogun reprimia ao máximo aquelas doutrinas que ameaçavam a pureza do Yamato. Alguns diziam que os jesuítas preparavam as ilhas para serem invadidas pelos homens brancos de outro continente. Eles chegariam com armas poderosas e grandes exércitos e os kamis morreriam para sempre, lutando pela terra que era deles por direito divino. Apesar do perigo e do temor, tinha fé no santo homem e em sua mãe, contraditoriamente virgem e sentia-se muitas vezes dividido entre a nova crença e os velhos deuses.
Estava, no entanto, proibído de expressar as crenças ocidentais, sob ameaças de morte para ele, sua família e as famílias vizinhas. As ordens do Xogun chegaram até a pequena vila na primavera anterior e, dois meses depois, viu quando os samurais de Edo chegaram e encontraram o português escondido entre eles. Dezoito pessoas foram executadas, juntamente com o padre. Eles caminharam até Edo em uma marcha humilhante, tiveram a orelha esquerda decepada e foram mortos como animais, sem ter o direito do Harakiri. Nenhuma pessoa deveria partir daquela forma. Depois disso foi a época da fome: dois anos quase sem conseguirem vender a pesca e metade das crianças pereceram. Diziam que na capital as pessoas morriam com dinheiro na mão, sem ter onde comprar comida. E mesmo assim, o país permanecia fechado para o mundo.
Mas não ele. Ele estava aberto para mudanças e cansado da vida que levava. Estava exausto daquela vida miserável, sabia que longe, depois de muita água, havia novos mundos, milhares de possibilidade. Sim, algumas delas representavam perigos inimagináveis e muitas mortes, mas eram todas melhores do que morrer lentamente em uma vida desgostosa. Queria conhecer os homens do Deus misterioso e saber mais sobre seus kamis, queria estar fora do alcance das garras do Xogun.
Olhou com desprezo para a pequena casa, alguns horizontes de distância; apenas um ponto na vila natal. Girou o rosto e escutou o canto do mar aberto. Doce, sensual, cheio de promessas e perigos. Pesou o que havia de água doce na cabaça que trazia e contou novamente os peixes dentro da cesta.
Sem pensar duas vezes, virou o junco e remou para o sul, longe das proibições, longe das pessoas que atrasavam sua vida; longe de tudo o que conhecia. Iria para o sul até o sol desaparecer, depois quem sabe para o oeste ou leste... não tinha planejado até lá.
Apenas remou e agradeceu ao mar, quem sabe assim ele não jogaria sua fúria contra ele. Era uma amante temperamental.
A vila desaparecia ao longe, como um ponto que enfraquecia no horizonte.
Ele remou e beijou o crucifixo.
Não sabia para onde ia. Era livre.
Ele remou.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Voz de Capote


Larry entrou no quarto abafado. O cheiro do mofo impregnou imdediatamente em suas narinas e ele teve de suprimir uma urgência de espirrar, tampando o nariz com os dedos polegar e opositor, enchendo seus olhos de lágrimas.
“Desculpe pelo cheiro”, o homem disse com uma voz aguda.
“Não se preocupe. Eu convivo com essa alergia desde criança... é o mofo, essa cidade inteira está tomada pela maldita umidade”, Larry respondeu, abrindo o zíper do casaco.
A mão rápida do homem gordo voou para o coldre em seu peito e Larry congelou, travando cada músculo do corpo. “Devagar, rapaz.” Ele ergueu lentamente uma das mãos, mostrando a palma limpa e continuou a baixar o zíper, desta vez com calma, quase um trinco por vez. Pensou em um pequeno trem percorrendo lentamente um deserto devastado. “É estupido”, constatou a voz fina.
“O que é estúpido?”
“Alguém intolerante ao mofo morar em uma ilha. Você é estúpido.”
Larry terminou de abrir o casaco e mostrou o envelope preso ao cinto. “Não posso contra-argumentar. Colocado assim, parece estupidez, realmente.” Estudou o outro homem. Romsey era o tipo de pessoa que não parecia ter nascido pela vagina de uma mulher, mas talhado em uma pedra. O queixo quadrado fazia o professor pensar nas cabeças da Ilha de Páscoa e os olhos pequenos pareciam perdido no meio do rosto angular. As orelhas eram duas pequenas bolas nas laterais da larga cabeça e o cabelo estava raspado, dando espaço para um lustroso couro cabeludo. O professor considerou se estava diante da pessoa certa e puxou pela memória o número do quarto. Viraria uma lenda urbana, tinha certeza, seria para sempre o cara que entrou em um quarto de motel para contratar um assassino profissional e acabou trancado com um homossexual masoquista. O corpo musculoso e gordo de Romsey ficava de certa forma deslocado com as roupas que vestia: calças bem cortadas, uma camiseta branca por baixo de um colete de algodão verde e suspensórios. Larry via, pendurado no cabideiro, a parte de cima do terno de riscas de giz. Romsey era gordo, mas muito, muito, forte, ele percebeu. O homem era largo e a gordura cobria um armário de músculos capazes de impressionante demonstrações de força bruta. A voz, no entanto, era o mais curioso naquele homem. Larry ouvira as atrocidades das quais era capaz de realizar por dinheiro - um mercenário contemporâneo, Ron havia dito – e presumiu uma voz ao menos mais... máscula. Romsey tinha a voz de uma garota, fina e frágil, até mesmo trêmula. Seria divertido, Ron afirmara. E Romsey de fato parecia capaz de promover diversão. O professor estava estagnado em sua rotina estéril e precisava de alguma emoção para voltar um pouco da felicidade dos dias antigos, quando parecia que precisava correr por sua vida. Ei, aquele cara, um mercenário dos dias atuais, o faria correr por sua vida! Tudo na segurança das regras do jogo. Um jogo, afinal, precisa de regras e não da morte de seu protagonista. Será divertido, pensou enquanto estudava o assassino, ele deve acrescentar uma realidade impressionante na brincadeira.
“Sei no que está pensando”, Romsey disse e só então Larry percebeu o tempo em que estava calado, com os olhos vivos nas órbitas do crânio, estudando cada aspecto do rosto esculpido, parado como um imbecil com os quarenta mil dólares no envelope pardo. Abriu a boca, mas nada disse. “Eu fiz o terno sobre medida, um homem precisa parecer decente nesse mundo poluído.” Olhou com um sorriso para o professor. “Você deveria procurar um médico, há tratamentos para sua alergia. Além do mais, é suposto que tiremos proveito do tempo em que vivemos.” Romsey retirou um cigarro do bolso da calça e o acendeu com um isqueiro dourado. “Então”, continuou enquanto sentava-se na cama, “conte-me as especificações.”
“O joelho direito do alvo não está muito bom e o ombro esquerdo sofreu uma lesão da qual nunca se recuperou totalmente. Ele corre bastante e consegue se esquivar das bolas quando joga futebol. Não é um tolo sem qualquer coordenação, é o que quero dizer. Muito ágil, na verdade, grande habilidade corporal.”
“Sabe lutar?”
“Kung Fu. Fez uns anos de aula quando era adolescente.”
“E nada mais?”, peguntou com a voz de Capote.
“Nada mais.”
“Sem golpes chiques de Kung Fu quando chegar a hora; sem surpresas, certo?”
“Certo. Ele está mais enferrujado do que o esqueleto do Bruce Lee, se é isso que você quer saber.” O cigarro estava caminhando para a metade.
“Alguma arma?”
“O quê?”, a voz dele é realmente engraçada.
“Revólver, espingarda, metralhadoras, um F-16, tacos de baseball, raquetes de tênis, rolo para massa. Armas, cacete. O objetivo porta ferramentas de ataque e defesa? Preciso ser mais claro?” Quando ele gritava, Larry percebeu, a voz se tornava ainda mais estridente. Parecia que seus ouvidos iriam sangrar.
“Não, sem armas, acredite.” Ele disse e sufocou um sorriso com dificuldade. Seria embaraçoso explicar que estava rindo da voz aguda do homem, além de explicar que não estaria mentindo sobre a pergunta. Era melhor não rir diante de um assassino profissional, aprendeu com o filme do Jean Reno.
“Devo perguntar uma vez mais”, o homem disse, apagando o cigarro no cinzeiro. “Você tem certeza de que quer isso? Quando você pisar para fora deste quarto, não haverá volta e irei cair sobre o contrato com a fúria de mil deuses indianos, daqueles com oito braços cada um. Eu vou pegar pesado, vou implodir o mundo do filho da puta nomeado pelo contrato.”
“É exatamente o que eu quero. Não hesite, derrube seu mundo sobre o cara. Essa é a emoção do jogo, certo?”
“Jogo?”, ele parou para pensar. Por fim, sorriu sinceramente. “Sim, acho que você pode colocar dessa forma. O cara nunca vai saber o que está acontecendo, apenas que tudo que lhe é sagrado será queimado com C-4... e quando tudo for destruído, aí sim eu dou o tiro final”, ele bateu dois dedos gordos no centro da testa. “Dizem que quando você atira na testa de alguém, a pessoa ainda sente dor antes de morrer. É minha assinatura profissional, gosto de saber que meu alvo morreu em agonia. É um jogo mental com um final glorioso. É um jogo, sim.”
Que autenticidade! Larry já podia sentir a adrenalina percorrer seu corpo. Seria caçado como um animal, teria de correr, se esconder, fugir. E lutar de volta. Essa era a idéia: acurralado por um predador muito mais forte que ele. Essa era a emoção do jogo. Ron já participara quatro vezes. “Aqui estão os detalhes. Horários, dados de familiares, senhas de e-mail, do banco... tudo que você precisa saber sobre o alvo”, entregou o pen-drive com absolutamente tudo que havia sobre sua própria vida para o assassino. Alea jacta est, pensou. Que os jogos comecem!
Romsey pegou o envelope com o dinheiro e levantou-se da cama, estendendo a mão forte para o professor. “Isso será interessante, Larry. Você é um cara curioso.”
Larry sentiu o aperto firme do mercenário. Sim, sou curioso, acho. Quarenta mil é uma quantia boa, espero que esteja contratando um cara bom para o jogo. O professor fechou o casaco e saiu pela porta. Sem volta, agora tenho que ficar de prontidão 24 horas. Desceu pelas escadas do velho motel e passou pelo recepcionista gordo sem dizer nada. D ma da No te, dizia o letreiro gasto. O motel em estado de abandono, o assassino profissional peculiar, esperando em um quarto escuro... a brincadeira estava no início e Larry sentia a emoção de todo o projeto. Andava sem prestar atenção para onde ia e bateu o ombro, cuja lesão nunca havia curado plenamente, em outra pessoa. Virou-se para pedir desculpa para o outro homem quando viu que um envelope caiu aberto no chão, espalhando centenas de notas verdes. O dinheiro molhado no chão, o envelope pardo, o rosto assustado e fragilizado do homem que se apressava em pegar todas as notas e sair daquele estacionamento...
Um clique foi acionado no cérebro do professor.
Suas pernas tentaram acompanhar a urgência de sua mente e o joelho ruim falhou no meio da escada e ele caiu alguns degraus. Sentiu sangue escorrer por sua perna. Quando chegou no quarto em que estava, chutou a porta, abrindo-a com um estrondo. Vazio. No quarto, apenas a fumaça do cigarro semi-fumado e o cabide sem parte do terno.
“Você é o Larry?”, escutou e deu um pulo. Um homem magro de óculos grossos perguntava, parado na porta ao lado. Ele parecia um lagarto com aquele rosto fino e olhos esbugalhados pelas lentes de correção. Larry andou até ele e empurrou-o com violência, entrando no cômodo vizinho. Viu, com crescente desespero e cruel clareza mental, um par de metralhadoras e pistolas repousadas na cama. Elas pareciam reais, não fossem os sacos de bola de tinta ao lado. “Elas parecem reais, não é?”, o homem magro fez eco de sua mente, com um sorriso orgulhoso. “O jogo é bem legal, você verá!”
‘Irei cair sobre o contrato com a fúria de mil deuses indianos, daqueles com oito braços cada um. Eu vou pegar pesado, vou implodir o mundo do filho da puta nomeado pelo contrato’, escutou a voz feminina do assassino em sua cabeça.
Olhou do parapeito do corredor. O homem com o envelope estava saindo com um carro escuro, sumindo do campo de visão em poucos segundos. O homem com o envelope certo... porra! Com o nome certo para Romsey, Larry pensou. Minha vida acaba com uma bala na testa e a porra da voz do Truman Capote!
Ele tentou planejar o que fazer.
“Está tudo bem, Larry?”, o homem magro perguntou.
Larry então percebeu o que estava acontecendo. O jogo havia começado. O homem do estacionamento, o quarto vazio... o jogo já começara. “Começou, não é? O jogo... o jogo já está acontecendo, certo?”
O outro homem arrumou os óculos grossos no rosto e o olhou com indagação estampada no olhar, perdido, confuso.
“Certo?”, Larry perguntou novamente, com uma voz aguda e trêmula, um pouco parecida com o Capote. Ou com Romsey.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

libertas quae

- O que você está esperando?

- O trem.

A jukebox rolava lenta.

- O trem?

- É. Não deve demorar.

O outro olhou para um lado e pro outro. O trem?

- O trem?

- É.

- Mas aqui é um inferno de lonjura da estação. Por que espera aqui?

A garçonete chegou com o X-batata.

- Sei o que cê quer não, moço. Agora dá licença que o trem chegou.

E se fartou.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Faça um pedido, pense em alguém e aperte o botão


Bernardo tomou a limonada, sentiu o líquido ao mesmo tempo azedo e doce escorregar por sua garganta e gelar o estômago. Soltou uma exclamação aliviada diante do frescor da bebida e olhou para cima, encarando por um breve segundo o sol que parecia fritar o mundo por puro prazer. Esse puto, ele pensou. As tardes de verão eram os momentos que ficariam marcados na memória do garoto, horas de sol quente, quente o suficiente para criar bolhas no asfalto, onde o tempo se derretia e não existia. Havia apenas a bola de fogo no céu e as nuvens perdendo-se despreocupadamente, para onde os ventos as levassem. Mas não era tudo, é claro. Bernardo não estaria completo sem a pequena bola de borracha avermelhada, os dois tacos e as garrafas de refrigerante vazias. Os garotos gastavam dias tentando rebater ou derrubar as garrafas com a bola e o astro espacial completava os ciclos quase sem mudança na rotina das crianças. Eram dias felizes, sem preocupações, sem escola e cercado de mistérios e magia.
“Duvido”, respondeu para seu irmão mais velho. Às vezes odiava Henry, que tinha quatro anos quando Bernardo nasceu, ele podia ser maldoso; dava cascudos fortes no topo de sua cabeça e inventava histórias assustadoras, horríveis de verdade, apenas para se divertir mais tarde, fazendo barulhos estranhos com a boca e dizendo que eram fantasmas ou monstros presos no armário. Uma vez o fizera acreditar que havia sido encontrado no lixo e que estava sendo criado por um casal de lixeiros; ou que seus pais eram alienígenas que esparavam o momento certo de comer as duas crianças, o que ocasionou uma dieta forçada para ele durante as próximas semanas, não queria estar fofinho quando fosse a hora de alimentar os aliens.
“Pode duvidar, mariquinha”, disse com tom provocador. “Estou dizendo a verdade, azar o seu! Mas depois eu vou ter a bicicleta só para mim e você não vai encostar um dedo sujo nela.”
“Meu dedo não é sujo!” Bernardo torceu o rosto em uma cara de choro, ranho começou a descer pelo seu nariz.
“Não chore! Por Deus.”
Ele limpou as narinas com o fim de sua camisa e disse, a voz embargada: “Mamãe falou para não usar o nome Dele assim.”
“Não enche o saco!”, soltou-lhe um cascudo sonoro na cabeça. “E não chore! Ou vou abaixar sua calça e jogar formigas no seu pipi. Estou dizendo a verdade! Se você apertar esse botão, vai ter o que mais quer, juro mesmo. Que eu encontre o papai morto atrás da porta se estiver mentindo.”
O garoto mais novo esbugalhou os olhos. Jurar pela vida dos pais era sagrado naquele mundo esquecido de inocência e simplicidade, Henry não diria uma coisa daquelas se fosse mentira. Ele olhou o pedaço retangular de plástico cinza no meio da terra, dando espaço em seu centro para um botão vermelho, gordo e redondo, destacado alguns centímetros em sua superfície. Era uma bola chamativa, quase um desafio de resistência para os curtos dedos de unha roída e cheios de terra. Um cabo negro, grosso, cruzava a caixa cinza com o botão no meio e desaparedia, em abos os lados, nas roseiras de sua mãe. Não era nada mais que uma caixa cinza com um botão vermelho no meio, mas Henry dizia que qualquer coisa que aquilo fosse, funcionava por mágica.
“Esses cabos vão para o centro da Terra e cada vez que alguém aperta esse botão os anões de lava atendem seu pedido”, Henry jurou. Os cabos realmente pareciam misteriosos o suficiente para continuar até o centro da Terra, furando camadas e mais camadas de pedras, magma, ossos de dinossauros, tesouros esquecidos, casas secretas e ovnis acidentados muito antes dele nascer. Muito, muito antes. “Tudo que você precisa é pensar em alguém e dizer o que quer.”
Ele queria a bicicleta, pensou. Por semanas ele ficava deitado no chão da sala com as revistas em quadrinhos nas mãos, tomando leite com chocolate e comendo bolachas recheadas. Passava mais tempo obcecado com a foto de um menino feliz em uma bicicleta - vermelha decorada com raios amarelos nos lados e com fitas saindo das luvas - que propriamente lendo a revista de super-herói. Com o tempo, passou a acreditar que seria feliz apenas quando tivesse aquela máquina selvagem entre as pernas. Até os tacos perderam o apelo sobre ele, acertar bolas em garrafas vazias parecia pueril e insípido. Iria certamente dominar o mundo com ela, viajar por todos os cantos do grande país em que vivia e além, atravessar o fundo do oceano até. Já estava tudo planejado, tudo que precisava era da bicicleta e de um aquário vazio e invertido, largo o suficiente para colocar a cabeça e estava pronto para pedalar até outro continente. Bernardo precisava daquela bicicleta, mas seus pais não tinham o dinheiro. Ele entregou jornais por uns dias, mas precisou de cinco minutos e um lápis para fazer a conta. Até juntar a quantia suficiente, estaria casado. Homens casados não vão para o trabalho com uma bicicleta daquelas, não: eles andam em carros sem graça e trancam as portas do quarto duas noites por semana. Não queria esperar até ser um velho chato, queria aquela bicicleta o quanto antes!
O menino esticou o dedo indicador direito e se preparou para apertar o botão, o coração louco como um cavalo... bem, um cavalo louco. “É só pensar em alguém e apertar o botão?”
“Isso”, Henry concordou.
Sentiu a textura lisa do botão em seu dedo. “Quero a bicicleta da capa da minha revista do Homem-Aranha”, ele disse com uma voz trêmula e fechou os olhos, pensando em seu pai.
“Só mais uma coisa”, ele retesou a mão, assustado, “a pessoa que você pensar vai morrer!”
Bernardo recolheu o braço e dirigiu para o irmão um olhar indignado, cheio de lágrimas. Forçou o joelho e chutou o garoto mais velho no meio das pernas, sentindo as bolas juvenis sendo esmagadas em sua canela. Henry cruzou as pernas protegendo, tarde demais, a área atingida e soltou um grito de dor e surpresa, caindo de joelhos em seguida, jurando mil sofrimentos diferentes para Bernardo, que corria desesperado para a casa.
Quase matei o papai!, sua mente gritava alto. Oh Deus, eu chutei o saco do henry e agora ele vai pedir a bicicleta e me matar! Tinha certeza que aquele era seu último dia vivo. Trancou-se no banheiro e chorou até sua mãe chegar. Ela tentou conversar com o filho, mas ele apenas balbuciava palavras sem sentido e se afogava no próprio muco. Ao menos ainda estava vivo... por enquanto. Henry iria escolher o que mais queria, pensar nele e apertar o botão. Se não fosse isso, estaria morto por ter chutado as bolas do irmão. Era o fogo ou a frigideira.
Naquela noite tiveram um jantar péssimo. A mesa de quatro lugares estava ocupada por todos eles. Seus pais, um cada ponta da mesa, não se olhavam e bebiam mais vinho do que o normalmente entornavam. As duas crianças trocavam farpas com os olhos e chutes por baixo do pano.
“Parem com isso, vocês dois”, disse seu pai em uma voz grave, imperativa.
“Deixe que brinquem”, retrucou sua mãe, em um tom frio.
Fora o suficiente. De um momento para o outro, o silêncio quebrado apenas pelos talheres batendo na louça se transformou na Terceira Guerra Mundial. Palavrões foram ditos, pratos arremessados e dedos apontavam. Seus pais gritavam e, por algum motivo, aquilo não feria os dois meninos como normalmente acontecia. Eles tinham lugar apenas pela raiva um do outro. Um esbarrão e Bernardo espalhou groselha por toda a mesa.
“Está vendo o que você faz com as crianças? O pobre moleque nem consegue se controlar mais, seu porco nojento! Quando cheguei em casa ele sequer conseguia falar, de tanto que chorava!”
“Eu?”, disse o pai, ofendido. “Você que torna qualquer coisa em um ponto de histeria, mulher! Esse pivete é desastrado e deve ser alguma coisa que você fumou quando estava grávida”, a fúria fazia bolhas de baba acumular na boca do homem e um tapa violento explodiu na nuca de Bernardo.
Um silêncio caiu sobre eles. “Oh, meu bem, me desculpe, foi sem querer... eu... eu não estava pensando.” Seu pai tentou abraçá-lo, mas ele foi mais rápido, mais rápido que suas próprias lágrimas, aliás. Não daria a satisfação para Henry. Em poucos segundos ele havia cruzado a cozinha e estava avançando para fora. “Ben, não faça isso!”, escutou Henry gritando. Sua mãe xingava compulsivamente. Ele tem razão, pensou enquanto cruzava o jardim, ela é histérica.
Ajoelhou-se na terra, perto da cerca viva e entre as roseiras, e fechou novamente os olhos, imaginando com mais detalhes possíveis o rosto feio do homem que havia lhe dado o tapa e disse, claramente: “A bicicleta na capa de minha revista do Homem-Aranha!” Apertou o botão e no mesmo instante seu coração parou por menos de um segundo. Não havia volta. Ele teria a bicicleta, mas por qual preço?
De repente sua mente se transformou em um turbilhão de culpa e perguntas. Olhou de volta para a casa e viu seu irmão de pé, no limite da porta da cozinha, olhando-o com olhos assustados. Ele havia mostrado até que ponto ia seu rancor. Henry soube, daquele dia até o momento da sua morte que não poderia ficar no caminho do irmão.
Nada aconteceu, no entanto. Seu pai continuou vivo, divorciou-se de sua mãe e casou com uma dançarina que tirava a roupa por dinheiro. A mãe, normalmente carinhosa, envelhecia, rude com as outras pessoas, um cigarro sempre presente em uma das mãos e com vinho demais na geladeira. Ele nunca ganhou a bicicleta.
Ficou a madrugada toda olhando de sua janela, pensando no que havia feito, assistindo o botão de longe, tentando enxergar melhor os cabos que iam até o centro da Terra. Mas a escuridão escondia os mistérios do mundo.
Foi sua primeira noite acordado e as horas se passaram enquanto ele pensava no que tinha feito. Queria voltar no tempo, queria salvar seu pai e não ter que encarar o olhar ferido de Henry. Seu coração pesava e a limonada, ele tinha certeza, nunca mais teria o mesmo sabor, ela seria mais azeda que doce. Ele esperava pela bicicleta e pelo choro de sua mãe quando o homem da casa sofresse um ataque súbito e caísse duro como pedra.
Durante a madrugada notou os jatos de água que saíam entre as rosas, formando pequenas piscinas no jardim da casa. Estranhou o descuido de sua mãe e culpou a briga do jantar pelo deslize.
Quado o sol apareceu por detrás da casa vizinha e da rua que subia em um pequena colina, ele assistiu, boquiaberto, sua mãe sair da casa, vestindo o único roupão que tinha e segurando uma caneca de café, apressada, xingando algo que ele não conseguiu ouvir. Poças de água se formavam ao redor das rosas, que afundavam em um mar de lama. A mulher abaixou-se depressa e apertou o botão, afundando os chinelos na terra molhada.
Bernardo, com horror no coração, nunca soube o que ela pediu. Ou em quem sua mãe estava pensando.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Botões


“Meu dia está fadado desde o começo”, eu disse, bebericando um pouco do vinho branco. Zack era um cara legal e estávamos realmente conversando há alguns minutos, apesar dos clientes ao nosso redor e dos copos de bebida que ele deslizava suavemente pela madeira do balcão. Uma conversa de verdade, não apenas um papo para matar o tempo. Ele acenou com a cabeça enquanto despejava amendoins em um pote: continue. Eu continuei. “A primeira camisa que escolhi para hoje estava com um furo em uma das mangas. Traça, eu acho. O que é um problema por causa dos trezentos livros que tenho em casa. Bom, não eu. Minha irmã os tem, ela é novelista. Trezentos livros, consegue imaginar?”
“Consigo”, Zack respondeu com um sorriso no canto da boca, “eu também os tenho. Não os mesmos, quero dizer, isso seria impossível. Possuo uma senhora biblioteca.”
Um bartender bibliófilo, pensei, em que mundo vivemos? Senti vergonha de minha mente mesquinha logo depois e continuei a falar, era o melhor a se fazer. “E como você faz para guardá-los? E o pó? E as traças?”
“Uma pergunta por vez”, ergueu uma mão para minha direção, dizendo ‘calma lá, rapaz’. “Quando você está lendo, essas coisas não importam. Nada disso. Então não me preocupo, apenas abro um livro por vez e deixo as palavras fluírem.”
Ergui meu vinho para ele. “Você deveria ser escritor, Zack, tem um jeito com as palavras. Estamos nos afastando da conversa. A primeira camisa tinha um buraco, então abri o armário para escolher outra. Quando estava terminando de me trocar, um dos malditos botões descosturou e caiu. Suspirei e procurei outra peça... eu estava quase sem camisas. Na terceira tentativa, dois... dois botões caíram e rolaram para baixo da cama, acredita? Eu quase liguei para minha diretora e mandei ela enfiar a reunião.”
Zack me estudou com afinco. Estava vestido com a parte de baixo do meu terno, sapatos, uma camiseta preta do Black Sabbath e moletom verde escuro. “E você decidiu que seria uma boa idéia ir para sua reunião assim”, disse como afirmação.
“Estava atrasado! O que mais poderia fazer?”
O bartender letrado riu ruidosamente e despejou mais vinho diante de mim. “Por conta da casa, pelos colhões.”
Acho que ele tinha razão. Eu fui para aquela reunião vestido como um adolescente e fiz a minha melhor apresentação de todas. Merecia aquele vinho branco. “Às vezes acho que estou ficando velho, Zack.”
Ele servia uma jovem, depois de devolver-lhe uma identidade. Ela era magra, tinha o corpo pequeno e seios quase inexistentes; eram um acidente anatômico, seios apenas por definição. O rosto era bonito e o cabelo... diferente. “O primeiro sinal de velhice, meu pai dizia, são pêlos púbicos brancos.”
“De maneira alguma estou comprando essa sua história, dos pêlos públicos.”
“Por que não?”
“Nenhum pai entraria nesse campo minado com a própria prole. Pais conversam sobre o tempo, ou sobre esportes. Talvez sobre filmes, mas não sobre pêlos púbicos... brancos ou não.”
“Talvez os seus, os meu falavam sobre qualquer coisa. Quase sempre.”
“Sério?”
“Não, só dessa vez. Que tipo doente de pessoa conversa sobre pêlos do saco o tempo todo?” Depois de quase me fazer engasgar com o vinho, Zack continuou: “Um pêlo púbico branco é o que desencadeia a velhice, ele me disse certa vez. Você pode estar bem até os quarenta, sessenta anos, cheio de estamina e vigor, realizando mil tarefas ao mesmo tempo e sem precisar de óculos. Até o primeiro pelo branco na sua virilhia ou entre as bolas e boom, você se transforma em um velho decrépito. Deste momento em diante, meu amigo, você está ferrado. Os cabelos ficam todos como leite, suas sombrancelhas afinam e você precisa procurar um oftalmologista para ver se está com cataratas. Depois são as dores nas juntas, a saudade dos velhos tempos, o dominó na praça e dormir enquanto caminha. O primeiro pelo púbico sem cor é o furo em sua represa do tempo. Depois dele, você passa a dormir às seis da tarde e viver com gatos.”
“E se a pessoa tiver cabelos brancos?”, perguntei para o bartender que estava apoiado na minha frente, com os cotovelos no balcão manchado por cerveja velha.
“Tudo bem, desde que os pêlos abaixo do umbigo estejam de qualquer outra cor.”
Pensei por um tempo. Não sabia, até aquele momento, que pêlos púbicos pudessem ficar brancos. Imaginava as idosas com cabelos crespos e brancos, mas com pêlos íntimos negros como a noite ou loiros ou ruivos ou como uma aurora boreal. Estava de certo modo decepcionado, sem saber exatamente o porquê. Abri a boca para colocar para fora meus pensamentos, mas um homem corpulento desabou no banco alto à minha esquerda. Ele pediu um Blue Label e se contentou com o Black que Zack tinha no bar, empoeirado o suficiente para ter se transformado no whiskey mais velho e caro que o gordo queria em primeiro lugar. Ele transpirava e o suor se acumulava no colarinho do terno azul.
“Que porcaria de lugar que só tem Black, hein? Aposto que os ratos fazem a comida daqui”, suspirou no meu ouvido com hálito horrível. Devolvi apenas um sorriso amarelo. De repente, minha conversa com Zack estava terminada. Ninguém teria a capacitade de passar um tempo agradável com aquele homúnculo por perto. Ele tinha o aspecto de quem possuía escravos infantis apenas para polir os sapatos do dia. O tipo de gente bondosa, você conhece um, eu tenho certeza. “Que dia de merda, pode ter certeza”, ele continuou apesar de meus sinais de desencorajamento para um diálogo. Nem comece, pensei. Olhei com súplica para Zack, mas ele estava ocupado, misturando um Bloody Mary para a jovem. Eu me perguntei a cor dos pêlos púbicos dela. Com certeza não eram brancos.
O homem afundou a mão gorda no pote de amendoins e os jogou na boca, iniciando automaticamente uma mastigação explícita. Comia amendoim quase como um atentado ao pudor, seria condenado por um júri; pedaços de amendoim voavam de seus lábios, juntamente com bolas de saliva e whisky, massas de comida triturada colonizavam os dentes da frente. Você sabe, a cena que abre o seu apetite.
Zack despejou um pouco mais de vinho em meu copo e indicou a garota ao meu lado, olhando-a com ternura nas pupilas. Afaste o banco devagar, ele apelava com aqueles olhos, puxe papo com essa belezinha e não com o genocida de amendoins. “Meu pai não era homem par-”, começou a dizer, apenas para ser cortado pelo gordo.
“É uma bosta, quer saber?”, um tapa eclodiu em minhas costas, sonoro e ardido. Fechei meus olhos, buscando algum sinal de paciência e encontrei uma pilha estocada em algum lugar, juntando assim forças para não quebrar aquele nariz seboso. Zack encarou-me como se estivesse lembrando dos botões de minhas camisas. Péssimo dia, péssimo dia de fato.
“O que é uma bosta, amigo?”, havia cinismo em minha voz.
“As mulheres, cara. Elas são foda. Impossíveis, são seres de outro planeta. Eu gosto de pensar nelas como plantas, faz sentido se você passar um tempo com a idéia.” Não, não faz, eu pensei, a única coisa que acontece é que você levanta a bandeira do preconceito, gordão. “Há todo tipo de mulher pelo mundo, certo? As gordas, as magras, as gostosas... toda estirpe feminina pode ser comparada como um grande e diversificado jardim botânico.” Como mágica, estava sinceramente surpreso com as palavras que saíam daquela boca anti-higiênica. Não há termo para descrever o buraco nojento que era aquela boca, ela era apenas o oposto da higiêne, Hitler do bom hálito. Apesar do machismo implícito em seu discurso, esperava por uma analogia interessante. A jovem ao meu lado estava prestando atenção, percebi. “Há mulheres que são como orquídeas... ei, por que você está usando calças e essa camisa podre? Não importa... temos um tipo de mulher para cada flor. Por exemplo, as mulheres que buscam parceiros com fama, que se importam apenas com o estilo de vida colocam as baladas no centro de suas vidas são como girassóis, apontando para o que é luminoso e confortável; existem as margaridas, que são inúmeras... legião, e que passam rápido por nossas vidas. Você está me escutando?” Parou para beber mais whisky e pediu outra dose, dupla e sem gelo. Concordei com minha cabeça e bebi do vinho, podia sentir o álcool dando voltas em meu organismo, entorpecendo o cérebro até o mundo parecer um lugar bom. Porra, o gordo asqueroso começava a parecer legal.
“Mulheres que são como flores, estou ouvindo sim. Continue, por favor.” Zack parou o que estava fazendo para parecer ocupado e abriu uma cerveja, bebendo direto do gargalo enquanto escutava a teoria. Zack parecia o tipo de cara que gostava de teorias.
“Plantas carnívoras, dama da noite, bromélias... aponte um mulher e ela será parte da flora, tenham certeza.” Mais pessoas estavam ao nosso redor agora e ele estava sentado em 45 graus do balcão, falando para todos. Uma das pernas estava apoiada no banco, a outra no chão. Ele gostava de atenção e assumia a posição treinada para pregar o Evangelho segundo o Amendoim. O barulho do bilhar estava encerrado; até mesmo a Jukebox estava baixa, como se estivesse escutando a conversa. “Mas as mais importantes são as rosas e as orquídeas. As rosas são maravilhosas, estonteantes, o par de pernas que te faz virar a cabeça e enfiar o carro num poste. Elas não exigem carinho especial ou cuidados extras, não. Têm espinhos, é verdade, mas são belas como o diabo. Já as orquídeas não são tão belas, são mais temperamentais, difíceis de lidar e zelar. Qual o problema, vocês devem estar se perguntando. Bom, se você-”, parou para terminar a segunda dose e Zack despejou mais álcool no copo sem o homem precisar pedir-lhe por mais. Gasolina para pensamentos. “Ah. Se você quiser companhia, não colocará um vaso com rosas no meio da sala. Rosas morrem rápido, vocês teriam pétalas apodrecendo no carpete da sala em poucos dias, apesar de toda água e sol que ela pudesse sonhar em ter. Se procuram por companhia, escutem o que estou dizendo, coloquem uma orquídea em suas vidas. Ela precisará de mais cuidado, de terra, água, sol, conversa, carinho e cinema. Mas estarão lá quando o sol baixar e a luz da lua pesar em seu peito, meu amigo”, ele levantou o copo para mim e brindamos. Que sujeito! Todos aplaudiam e davam tapinhas em suas costas.
“O problema”, continuou, “é que trato as rosas como orquídeas e as orquídeas como rosas. É sério, não estou de gozação. Mulheres lindas têm um feitiço poderoso e sou usado como capaxo, enquanto as que demonstram afeto e carinho... bem, piso nelas como se fossem baratas.”
Ele parou e bebeu mais. Acompanhei e em pouco tempo perdi a conta de quantos copos havíamos virado juntos. A jovem voltou para seu próprio espaço; as pessoas retornaram para suas mesas e seus jogos de bilhar; a música explodiu nas caixas de som. “Eu realmente acho que faço tudo errado”, disse enquanto rodava o copo vazio entre as mãos roliças. Eu apertei seu ombro, tentando dar algum conforto para aquele homem mal interpretado pelo modo brusco que abordava as pessoas. Só podia ser isso. Eu tive a impressão de que se tratava de um porco, um canalha sem escrúpulos, mas era, afinal, um bom sujeito. “Eu tenho uma orquídea em casa e ela é tão boa comigo. Escuta meus problemas, prepara minhas refeições... agüenta todas as minhas merdas e ainda me espera na cama quase todas as noites.” Ele se virou para minha direção, olhos do tamanho de duas bolas de bilhar. “O problema são as minhas namoradas. Elas são más Eu tenho uma rosa... uma não, tenho todo um buquê, que...”
Ele abriu aquele buraco de merda que chamava de boca e continuou a despejar filosofia barata. Filho da puta. Esqueçam o que disse, ele era um canalha.
Abri minha carteira, pesquei duas notas de dez e as empilhei no balcão. “Parece que seu botão estava certo”, Zack brincou enquanto recolhia meu copo.
O gordo me olhava, incrédulo. “Porra, estou falando com você”, ele disse.
“Foda-se com sua orquída e suas rosas e arranje uma trepadeira. É o que você merece.” Virei as costas e saí pela porta, inalando o ar fresco da noite. Em algum lugar lá dentro, Zack gargalhava com força. A garota que estava do meu lado saiu em seguida e parou na calçada, alguns metros de onde eu estava.
“Gostei da sua saída.” Vestia uma camiseta do The Who e tinha parte do cabelo escuro tingido de verde. “Aquele babaca quase me enganou também”, tragou profundamente e me estudou. “Você parece ser legal. Se andar com você vai me estuprar?”
Meu queixo caiu e nenhuma resposta saiu. Ela deu uma risada alta e disparou um soco no meu braço. “Relaxa, eu sei que não vai. Eu arrancaria suas bolas com meus dentes.”
Sorri, ainda incerto do que fazer.
“Vem, vamos andar. A noite está linda.” Ela passou o braço pelo meu e andamos pelo píer da cidade. Uma brisa fresca chegava do mar e o cheiro de peixe impregnava o lugar. “O que você faz da vida, senhor estranho?”
“Meu nome é-”
“Nã-ã-ão”, ela me cortou, “sem nomes, sem defeitos.”
Eu sorri novamente. Que garota estranha. “Certo, sem nomes. Eu trabalho para um escritório de contabilidades e marketing, nada de muito emocionante.”
“E hoje por um acaso foi uma sexta casual?”, ela olhava para minha camiseta do Black Sabbath. “Ótimo gosto musical, aliás.”
“E você? O que você faz com sua vida?”, perguntei.
“Eu ajudo na papelaria do meu pai. Ele está viajando, para o Uruguai, acho. Nós, eu e minha irmã, estamos tocando o negócio e fazendo mágica com nosso orçamento, quando preciso de mais dinheiro escrevo textos de viagem para Guias, coisa simples, sabe? Tal lugar é assim e as pessoas são do tipo A, enquanto a comida do estilo G e você provavelmente gostaria de visitar a cachoeira S. O dinheiro não é espetacular, mas ajuda muito.”
“E seu nome é Midori, certo?”, um sorriso sarcástico agora estampava meu rosto.
Ela enrubesceu e mexeu no cabelo para disfaçar o desconforto. “Então você também leu Norwegian Wood?”
“Minha irmã é novelistas e temos uma tonelada de livros em casa. Eu leio bastante.”
“Bem, vergonha minha. Mas é um ponto positivo para você, eu só saio com caras que gostam de ler. Não essa merda de vampiros feitos de purpurina diurna, não, livros de verdade, que valem a árvore derrubada para fazer o papel. Um homem lendo algo bom faz minha libido explodir.”
“Você está mudando de assunto. É mais do que justo, vamos lá. Eu não estou pedindo pelo seu nome, quero apenas saber o que você faz.” Tentei não parecer interessado no seu nível de líbido.
Ela parou e acendeu outro cigarro, tragando com força. Ofereceu-me um e, sem saber exatamente o porquê, aceitei. Nos primeiros segundos eu quase vomitei e tossi repetidas vezes, mas logo reconquistei o controle dos fumantes. Velhos hábitos.
“Sou produtora de bandas novatas. Ando pelos bares à procura de talento em estado bruto e caio neles com minhas ferramentas de mineradora. É um saco, sério. Muita musica ruim para uma promessa de promessa e os egos, meu Deus! O ego, o ego...”, ela imitou Marlon Brandon em Apocalipse Now.
“Sério?”
Ela levantou o dedo mínimo da mão esquerda, como se fosse um sinal universal para sinceridade. “Sério.” Andamos mais alguns minutos, fumando nossos cigarros e apreciando a lua cheia acima de nós.
“Eu perdi três botões hoje. Acho que foi sinal de azar.” Meu cigarro caminhava para a metade, enquanto a garota com as mechas coloridas quase terminava o dela. Ela pulava, evitando pisar nas rachaduras que permeavam a calçada. “E posso ficar velho a qualquer momento, segundo o Zack.”
“Quem?”
“Zack, o dono do Clube.”
“Ah, ele é legal. Você envelhece, todos nós envelhecemos. O que acontece é que algumas pessoas escolhem se tornar velhas, percebe a diferença?” Estava gostando dela. “O que significa que você estar comigo agora é azar?”
“Isso exatamente por qual motivo...?”
“Os botões.”
“Ah, os botões. Não, acho que não. Foram três. Meu dia foi até que bom, mas cansativo. Acho que o gordão foi o resultado de dois botões, então você fica com um dos três que caíram hoje de manhã. Você é metade do azar daquele cara, nada mal.”
Ela chutou minha canela.  “As mulheres são flores... imbecil. Nunca havia escutado tanta merda na minha vida.”
“Por um momento o que ele dizia foi interessante, no entanto.” Olhei para ela e vi as facas em suas pupilas. “Não? Ok, não. Escuta, Midori... qual flor você seria?”
Ela olhou para a lua e refletiu por alguns segundos. “Você não vai conseguir nada comigo, cara do marketing, já aviso.”
“Prometo encerrar qualquer tentativa. Já falei que leio muito?”
A garota deu uma risada nasal e socou meu braço novamente. “Eu seria uma tulipa.”
“Por quê?”
“Porque gosto de tulipas, oras. É uma teoria tosca, não preciso me explicar.”
“Não, não precisa. Eu contei que gosto de ler?”
Um novo soco no meu braço. Continuamos no píer e conversamos por várias horas. Quando o sol estava levantando no horizonte, fazíamos amor no meu carro pela segunda vez naquele dia. Eu lia muito, afinal. Ela deixou um papel dobrado em forma de tulipa, era boa em origami. Sem telefones, sem nomes. Apenas uma tulipa branca de papel. Fui para casa depois disso e dormi por doze horas. Depois de acordar com a maior dor de cabeça que já tive, vi que o botão da minha calça havia caído em algum lugar da cidade. Minha cabeça continha um exército furioso, pisoteando em marcha o meu pobre cérebro e tentando derrubar meu crânio com um aríete. Um deserto poderia ilustrar perfeitamente as condições de minha boca e eu sentia resquícios de cigarro e vômito. Que noite!
Retirei toda minha roupa e comecei a urinar. “Filho da puta!”, gritei quando olhei para baixo. Em minha virilha, entre os outros pêlos, um único fio branco iniciava seu império.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

sobre os incendiários de bangladesh

- Quando eu era criança, lembro de ter ajudado Santos a vencer Bangladesh em um Challenge Day, aquele dia internacional de competição com exercícios físicos, ou algo assim. Não lembro exatamente contra quem, de Bangladesh, nós jogávamos, mas lembro de termos ganhado.

Silêncio. Só a agulha digital rodando ao fundo.

- Falo isso porque hoje, vendo as notícias de Bangladesh, fiquei triste pela destruição. Você sabe: extremistas incendiaram templos naquele país, templos budistas. Atearam fogo aos budas, às imagens, às paredes de madeira e de concreto. Destruíram pedaços de fé. Não a fé, veja bem, mas pedaços de fé. Suas manifestações. E hoje, olhando o Buda deitado, e outro Buda acenando, ambos queimados e atolados em restos de cinzas e pó, lembrei da competição, lembrei da minha infância, lembrei de muitas coisas. Quero uma cerveja, por favor. Budistas não bebem, e nem muçulmanos. Mas nenhum de ambos ateia fogo em santos. Álcool para mim, e não para os budas.