sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O Canto da Sereia

O pequeno junco completou a crista da onda, como tantas vezes naquele mesmo dia. Estava balançando sozinho no pequeno pedaço de mar aberto que existia entre as duas ilhas, alguns peixes ainda pulavam na cesta entre seus pés rachados pelo sal marinho; um chapéu velho protegia sua cabeça contra o sol forte. O velho pescador japonês retirou o chapéu e deixou o sol esquentar os cabelos grisalhos, fechando os olhos e sentindo o cheiro do peixe fresco. Paz, pensou.
De repente, viu claramente o resto do dia. Iria para a velha casa à beira do grande oceano, onde dividia teto com sua mulher e três filhos que não sabia se eram realmente seus, salgariam os peixes e comeriam um mínima parte da pesca, destinando o resto para a venda na cidade, há três dias de viagem. Com sorte, teriam um punhado de sopa de arroz para o final do ano. Mas era uma promessa distante e duvidosa. Logo os peixes dariam espaço para os polvos e lulas, depois mais peixes. Um ciclo interminável, pensou. Cada dia é um ciclo de tormenta e vã esperança. Era sempre o mesmo: acordava e lavava o rosto, tirando as remelas dos olhos e limpando as narinas com sonoridade despida de pudor; engolia um pouco de peixe, olhava para o rosto mal humorado da mulher e entrava no mar; com sorte, teria pesca. Nos dias ruins... ao menos ficara longe da família que o odiava. Um ciclo eterno, formado por incontáveis pequenos ciclos de tormenta: assim via a vida. As vendas diminuiam, ano após ano. As colheitas fracas e o escasso comércio apenas com os Holandeses minaram as trocas da vila com as cidades maiores. O venerável Dáimio também não tinha mais disposição para ajudá-los, pelo menos não enquanto tinha que passar metade do ano em Edo.
Ele suspirou com pesar, pensando nos filhos preguiçosos e na yokai que havia escolhido como parceira. Demônio de mulher. Maldita, que fosse levada para a profundeza das terras com aquela língua traiçoeira e as pernas abertas para outro homem sempre que estava em alto mar. Tudo que fazem é sugar de meu trabalho, comendo o peixe que os kamis me deram. Ele retirou de dentro da camisa de algodão um pequeno crucifixo. Os kamis e o Deus. Alí, sozinho no meio do mar, era o único lugar em que podia professar a fé única que sentia, dividida entre as verdades de sua própria terra e das palavras exóticas dos homens que vinham do Oeste. Não, não dividida. Sua fé era uma mistura entre tudo aquilo que ouvia dos homens sábios. Os barbudos do oeste e os carecas de sua terra. Como a maior parte dos vizinhos, abraçara a fé exótica do oeste, aceitando a existência de um único ser mais poderoso que todos os outros, criador das coisas e da vida. Acreditar nas palavras dos portugueses e espanhóis era um crime capital e o Xogun reprimia ao máximo aquelas doutrinas que ameaçavam a pureza do Yamato. Alguns diziam que os jesuítas preparavam as ilhas para serem invadidas pelos homens brancos de outro continente. Eles chegariam com armas poderosas e grandes exércitos e os kamis morreriam para sempre, lutando pela terra que era deles por direito divino. Apesar do perigo e do temor, tinha fé no santo homem e em sua mãe, contraditoriamente virgem e sentia-se muitas vezes dividido entre a nova crença e os velhos deuses.
Estava, no entanto, proibído de expressar as crenças ocidentais, sob ameaças de morte para ele, sua família e as famílias vizinhas. As ordens do Xogun chegaram até a pequena vila na primavera anterior e, dois meses depois, viu quando os samurais de Edo chegaram e encontraram o português escondido entre eles. Dezoito pessoas foram executadas, juntamente com o padre. Eles caminharam até Edo em uma marcha humilhante, tiveram a orelha esquerda decepada e foram mortos como animais, sem ter o direito do Harakiri. Nenhuma pessoa deveria partir daquela forma. Depois disso foi a época da fome: dois anos quase sem conseguirem vender a pesca e metade das crianças pereceram. Diziam que na capital as pessoas morriam com dinheiro na mão, sem ter onde comprar comida. E mesmo assim, o país permanecia fechado para o mundo.
Mas não ele. Ele estava aberto para mudanças e cansado da vida que levava. Estava exausto daquela vida miserável, sabia que longe, depois de muita água, havia novos mundos, milhares de possibilidade. Sim, algumas delas representavam perigos inimagináveis e muitas mortes, mas eram todas melhores do que morrer lentamente em uma vida desgostosa. Queria conhecer os homens do Deus misterioso e saber mais sobre seus kamis, queria estar fora do alcance das garras do Xogun.
Olhou com desprezo para a pequena casa, alguns horizontes de distância; apenas um ponto na vila natal. Girou o rosto e escutou o canto do mar aberto. Doce, sensual, cheio de promessas e perigos. Pesou o que havia de água doce na cabaça que trazia e contou novamente os peixes dentro da cesta.
Sem pensar duas vezes, virou o junco e remou para o sul, longe das proibições, longe das pessoas que atrasavam sua vida; longe de tudo o que conhecia. Iria para o sul até o sol desaparecer, depois quem sabe para o oeste ou leste... não tinha planejado até lá.
Apenas remou e agradeceu ao mar, quem sabe assim ele não jogaria sua fúria contra ele. Era uma amante temperamental.
A vila desaparecia ao longe, como um ponto que enfraquecia no horizonte.
Ele remou e beijou o crucifixo.
Não sabia para onde ia. Era livre.
Ele remou.

Um comentário:

  1. Muuuuito legal Maurício. Vc descreve de uma maneira agradável e rica em detalhes que eu até consigo "ver" o sofrimento e a amargura no rosto do pescador. Muito bom. Valeu... Ana Eliza.

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