sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Faça um pedido, pense em alguém e aperte o botão


Bernardo tomou a limonada, sentiu o líquido ao mesmo tempo azedo e doce escorregar por sua garganta e gelar o estômago. Soltou uma exclamação aliviada diante do frescor da bebida e olhou para cima, encarando por um breve segundo o sol que parecia fritar o mundo por puro prazer. Esse puto, ele pensou. As tardes de verão eram os momentos que ficariam marcados na memória do garoto, horas de sol quente, quente o suficiente para criar bolhas no asfalto, onde o tempo se derretia e não existia. Havia apenas a bola de fogo no céu e as nuvens perdendo-se despreocupadamente, para onde os ventos as levassem. Mas não era tudo, é claro. Bernardo não estaria completo sem a pequena bola de borracha avermelhada, os dois tacos e as garrafas de refrigerante vazias. Os garotos gastavam dias tentando rebater ou derrubar as garrafas com a bola e o astro espacial completava os ciclos quase sem mudança na rotina das crianças. Eram dias felizes, sem preocupações, sem escola e cercado de mistérios e magia.
“Duvido”, respondeu para seu irmão mais velho. Às vezes odiava Henry, que tinha quatro anos quando Bernardo nasceu, ele podia ser maldoso; dava cascudos fortes no topo de sua cabeça e inventava histórias assustadoras, horríveis de verdade, apenas para se divertir mais tarde, fazendo barulhos estranhos com a boca e dizendo que eram fantasmas ou monstros presos no armário. Uma vez o fizera acreditar que havia sido encontrado no lixo e que estava sendo criado por um casal de lixeiros; ou que seus pais eram alienígenas que esparavam o momento certo de comer as duas crianças, o que ocasionou uma dieta forçada para ele durante as próximas semanas, não queria estar fofinho quando fosse a hora de alimentar os aliens.
“Pode duvidar, mariquinha”, disse com tom provocador. “Estou dizendo a verdade, azar o seu! Mas depois eu vou ter a bicicleta só para mim e você não vai encostar um dedo sujo nela.”
“Meu dedo não é sujo!” Bernardo torceu o rosto em uma cara de choro, ranho começou a descer pelo seu nariz.
“Não chore! Por Deus.”
Ele limpou as narinas com o fim de sua camisa e disse, a voz embargada: “Mamãe falou para não usar o nome Dele assim.”
“Não enche o saco!”, soltou-lhe um cascudo sonoro na cabeça. “E não chore! Ou vou abaixar sua calça e jogar formigas no seu pipi. Estou dizendo a verdade! Se você apertar esse botão, vai ter o que mais quer, juro mesmo. Que eu encontre o papai morto atrás da porta se estiver mentindo.”
O garoto mais novo esbugalhou os olhos. Jurar pela vida dos pais era sagrado naquele mundo esquecido de inocência e simplicidade, Henry não diria uma coisa daquelas se fosse mentira. Ele olhou o pedaço retangular de plástico cinza no meio da terra, dando espaço em seu centro para um botão vermelho, gordo e redondo, destacado alguns centímetros em sua superfície. Era uma bola chamativa, quase um desafio de resistência para os curtos dedos de unha roída e cheios de terra. Um cabo negro, grosso, cruzava a caixa cinza com o botão no meio e desaparedia, em abos os lados, nas roseiras de sua mãe. Não era nada mais que uma caixa cinza com um botão vermelho no meio, mas Henry dizia que qualquer coisa que aquilo fosse, funcionava por mágica.
“Esses cabos vão para o centro da Terra e cada vez que alguém aperta esse botão os anões de lava atendem seu pedido”, Henry jurou. Os cabos realmente pareciam misteriosos o suficiente para continuar até o centro da Terra, furando camadas e mais camadas de pedras, magma, ossos de dinossauros, tesouros esquecidos, casas secretas e ovnis acidentados muito antes dele nascer. Muito, muito antes. “Tudo que você precisa é pensar em alguém e dizer o que quer.”
Ele queria a bicicleta, pensou. Por semanas ele ficava deitado no chão da sala com as revistas em quadrinhos nas mãos, tomando leite com chocolate e comendo bolachas recheadas. Passava mais tempo obcecado com a foto de um menino feliz em uma bicicleta - vermelha decorada com raios amarelos nos lados e com fitas saindo das luvas - que propriamente lendo a revista de super-herói. Com o tempo, passou a acreditar que seria feliz apenas quando tivesse aquela máquina selvagem entre as pernas. Até os tacos perderam o apelo sobre ele, acertar bolas em garrafas vazias parecia pueril e insípido. Iria certamente dominar o mundo com ela, viajar por todos os cantos do grande país em que vivia e além, atravessar o fundo do oceano até. Já estava tudo planejado, tudo que precisava era da bicicleta e de um aquário vazio e invertido, largo o suficiente para colocar a cabeça e estava pronto para pedalar até outro continente. Bernardo precisava daquela bicicleta, mas seus pais não tinham o dinheiro. Ele entregou jornais por uns dias, mas precisou de cinco minutos e um lápis para fazer a conta. Até juntar a quantia suficiente, estaria casado. Homens casados não vão para o trabalho com uma bicicleta daquelas, não: eles andam em carros sem graça e trancam as portas do quarto duas noites por semana. Não queria esperar até ser um velho chato, queria aquela bicicleta o quanto antes!
O menino esticou o dedo indicador direito e se preparou para apertar o botão, o coração louco como um cavalo... bem, um cavalo louco. “É só pensar em alguém e apertar o botão?”
“Isso”, Henry concordou.
Sentiu a textura lisa do botão em seu dedo. “Quero a bicicleta da capa da minha revista do Homem-Aranha”, ele disse com uma voz trêmula e fechou os olhos, pensando em seu pai.
“Só mais uma coisa”, ele retesou a mão, assustado, “a pessoa que você pensar vai morrer!”
Bernardo recolheu o braço e dirigiu para o irmão um olhar indignado, cheio de lágrimas. Forçou o joelho e chutou o garoto mais velho no meio das pernas, sentindo as bolas juvenis sendo esmagadas em sua canela. Henry cruzou as pernas protegendo, tarde demais, a área atingida e soltou um grito de dor e surpresa, caindo de joelhos em seguida, jurando mil sofrimentos diferentes para Bernardo, que corria desesperado para a casa.
Quase matei o papai!, sua mente gritava alto. Oh Deus, eu chutei o saco do henry e agora ele vai pedir a bicicleta e me matar! Tinha certeza que aquele era seu último dia vivo. Trancou-se no banheiro e chorou até sua mãe chegar. Ela tentou conversar com o filho, mas ele apenas balbuciava palavras sem sentido e se afogava no próprio muco. Ao menos ainda estava vivo... por enquanto. Henry iria escolher o que mais queria, pensar nele e apertar o botão. Se não fosse isso, estaria morto por ter chutado as bolas do irmão. Era o fogo ou a frigideira.
Naquela noite tiveram um jantar péssimo. A mesa de quatro lugares estava ocupada por todos eles. Seus pais, um cada ponta da mesa, não se olhavam e bebiam mais vinho do que o normalmente entornavam. As duas crianças trocavam farpas com os olhos e chutes por baixo do pano.
“Parem com isso, vocês dois”, disse seu pai em uma voz grave, imperativa.
“Deixe que brinquem”, retrucou sua mãe, em um tom frio.
Fora o suficiente. De um momento para o outro, o silêncio quebrado apenas pelos talheres batendo na louça se transformou na Terceira Guerra Mundial. Palavrões foram ditos, pratos arremessados e dedos apontavam. Seus pais gritavam e, por algum motivo, aquilo não feria os dois meninos como normalmente acontecia. Eles tinham lugar apenas pela raiva um do outro. Um esbarrão e Bernardo espalhou groselha por toda a mesa.
“Está vendo o que você faz com as crianças? O pobre moleque nem consegue se controlar mais, seu porco nojento! Quando cheguei em casa ele sequer conseguia falar, de tanto que chorava!”
“Eu?”, disse o pai, ofendido. “Você que torna qualquer coisa em um ponto de histeria, mulher! Esse pivete é desastrado e deve ser alguma coisa que você fumou quando estava grávida”, a fúria fazia bolhas de baba acumular na boca do homem e um tapa violento explodiu na nuca de Bernardo.
Um silêncio caiu sobre eles. “Oh, meu bem, me desculpe, foi sem querer... eu... eu não estava pensando.” Seu pai tentou abraçá-lo, mas ele foi mais rápido, mais rápido que suas próprias lágrimas, aliás. Não daria a satisfação para Henry. Em poucos segundos ele havia cruzado a cozinha e estava avançando para fora. “Ben, não faça isso!”, escutou Henry gritando. Sua mãe xingava compulsivamente. Ele tem razão, pensou enquanto cruzava o jardim, ela é histérica.
Ajoelhou-se na terra, perto da cerca viva e entre as roseiras, e fechou novamente os olhos, imaginando com mais detalhes possíveis o rosto feio do homem que havia lhe dado o tapa e disse, claramente: “A bicicleta na capa de minha revista do Homem-Aranha!” Apertou o botão e no mesmo instante seu coração parou por menos de um segundo. Não havia volta. Ele teria a bicicleta, mas por qual preço?
De repente sua mente se transformou em um turbilhão de culpa e perguntas. Olhou de volta para a casa e viu seu irmão de pé, no limite da porta da cozinha, olhando-o com olhos assustados. Ele havia mostrado até que ponto ia seu rancor. Henry soube, daquele dia até o momento da sua morte que não poderia ficar no caminho do irmão.
Nada aconteceu, no entanto. Seu pai continuou vivo, divorciou-se de sua mãe e casou com uma dançarina que tirava a roupa por dinheiro. A mãe, normalmente carinhosa, envelhecia, rude com as outras pessoas, um cigarro sempre presente em uma das mãos e com vinho demais na geladeira. Ele nunca ganhou a bicicleta.
Ficou a madrugada toda olhando de sua janela, pensando no que havia feito, assistindo o botão de longe, tentando enxergar melhor os cabos que iam até o centro da Terra. Mas a escuridão escondia os mistérios do mundo.
Foi sua primeira noite acordado e as horas se passaram enquanto ele pensava no que tinha feito. Queria voltar no tempo, queria salvar seu pai e não ter que encarar o olhar ferido de Henry. Seu coração pesava e a limonada, ele tinha certeza, nunca mais teria o mesmo sabor, ela seria mais azeda que doce. Ele esperava pela bicicleta e pelo choro de sua mãe quando o homem da casa sofresse um ataque súbito e caísse duro como pedra.
Durante a madrugada notou os jatos de água que saíam entre as rosas, formando pequenas piscinas no jardim da casa. Estranhou o descuido de sua mãe e culpou a briga do jantar pelo deslize.
Quado o sol apareceu por detrás da casa vizinha e da rua que subia em um pequena colina, ele assistiu, boquiaberto, sua mãe sair da casa, vestindo o único roupão que tinha e segurando uma caneca de café, apressada, xingando algo que ele não conseguiu ouvir. Poças de água se formavam ao redor das rosas, que afundavam em um mar de lama. A mulher abaixou-se depressa e apertou o botão, afundando os chinelos na terra molhada.
Bernardo, com horror no coração, nunca soube o que ela pediu. Ou em quem sua mãe estava pensando.

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