sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Marília

Quando Marília morreu eu chorei.
Não de tristeza, nem de dor, mas por medo de algo pior.


Quando Marília morreu, eu sofri.
Não por amor, nem por dor, mas por medo de algo pior.


Quando Marília morreu, eu me perdi.
Não por falta, ou por dor, mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu me odiei.
Não por culpa, ou por dor, mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu temi.
Não por dúvida, ou por dor mas por medo de algo pior.

Quando Marília morreu, eu tremi segurando a faca dentro dela
e sentindo, aquele sangue tão quente escorrer por meus dedos.
Eu temi por algo pior.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Turismo de Cemitério

Eu sempre gostei de cemitério. Sempre gostei de velório e coisas ligadas à morte. Eu não sei se é porque a minha mãe e meu pai não eram daqueles que ficavam pondo medo, não cantavam "A Cuca Vem Pegar" e outras coisas, de forma que assombrações, almas penadas, etc não fizeram parte da minha infância.

Na verdade eu era até um estraga-prazeres. Quando diziam que uma casa era mal assombrada ou cheia de almas penadas, eu entrava lá, abria as janelas e dizia: "Olha aí, gente, não tem alma penada nenhuma aqui não!"... Caminhos escuros onde se escondiam os sacis e outras coisas também me fascinavam. Fiquei três noites em Joanópolis para ver o Lobisomem e a Mula-Sem-Cabeça, que a mulher jura que o filho dela viu, mas eu sou um azarado mesmo. Nos dias que fui nunca apareceram. Já tentei até 13 de agosto de ano bissesto, em plena sexta-feira. Nada.

Eu nasci incrédulo. Essa é a única explicação. Ou minha mãe era tão incapaz de me convencer, que ela dizia mas eu não acreditava. Mas é certo que na minha família a morte nunca foi nem amiga nem inimiga. Choramos a morte dos que se vão com naturalidade, mas não queremos ir junto, como costumam fingir alguns à beira da sepultura. E depois que se vão os esquecemos (eu pelo menos esqueço) e não costumamos fazer visitas aos ossos do defunto que está sete palmos debaixo da terra.

Não faz sentido.

Em cidades menores, como Araraquara na minha infância, os velórios eram feitos na casa do defunto. A funerária punha uma cortininha roxa no portal da casa indicando que ali havia luto. As portas eram abertas, os móveis retirados e a visitação era sempre pública. Afinal todos se conheciam. E a entrada era franca, o que significava que se podia conhecer por dentro a casa de todos aqueles que morriam. Confesso que não resistia. Desde que que me conheço por gente, sete ou oito anos, que perambulava pelas ruas da cidade, não perdi um velório.

Só havia duas funerárias. Ou Micelli ou Almeida. Mas duas funerárias já dava concorrência. Eu preferia os funerais dos Micelli por ter cafezinho e mais alguns agrados. Às vezes fazíamos amizade no velório com outras crianças e ficávamos brincando de pega-pega, até por debaixo do caixão já passei correndo. E eu sempre tive muito apego ao uso das palavras. Então ficava observando como se comportavam as viúvas, e as frases prontas que se repetiam em todos os velórios. A mais comum na minha cidade era que o defundo nunca tinha feito mal "nem para uma mosca". Outra comum era o "tanta gente ruim nesse mundo, e bem ele vai morrer".

O fato foi que eu me diverti demais com os velórios da cidade, aproveitei velórios de ricos que compravam salgadinhos e guaranás e, enquanto uma turma chorava lá, a outra refestelafa de cá, entre risos, piadas e coisas comuns a todos os velórios. Também, chorar 24 horas sem parar, nem a mãe da criança.

Dada a hora marcada, um carrinho era encostado na porta da casa, o caixão era fechado aos berros desesperados dos órfãos, coisa compreensível, e íam empurrando o carrinho até o cemitério. Todo mundo ajudava um pouquinho para colaborar no esforço. Depois passaram a levar na kombi, bem devagarinho e o povo ia atrás. Mas a cidade foi crescendo e os trajetos da casa do finado até o cemitério começaram a ficar longe demais. Não dava para acompanhar a pé. Aí iam de carro, alguns não iam mais e a tradição foi-se acabando.


Para acabar com a festa de uma vez, um prefeito lá que nem quero lembrar qual foi, construiu o Velório Municipal e proibiu fazer velório nas casas. Aí acabou a graça. Velórios municipais são como conjuntos habitacionais: quem viu um viu todos. Já fazem num canto do cemitério e nem tem a procissão. Cada um corre para pegar um ângulo bom de vista. Acabou-se a cerimônia. Virou uma zona. Foi um tempo muito bom. Aprendi demais sobre como um defunto vira santo. Basta não matar "nem uma mosca".

Paralelamente a esse meu fascínio por velórios, eu também adorava andar em cemitérios e ver, pelos nomes mais conhecidos, os mais ricos, quem fazia o maior jazigo. A vaidade é uma coisa tão podre que se manifesta até na compra do caixão mais caro e na construção de jazigos com mármores importados e outras coisas que arquitetos famosos projetam para os que gostam disso. Credo.

Mas, fora os famosos, há os interessantes. Uma observação atenta te leva aos que estão enterrados a mais tempo. Quantos anos viveu. É só fazer as contas do dia do nascimento e da morte. Eu era bom de fazer contas de cabeça. E aos túmulos "classe média" eu dava só uma espiadela. Não tinham muita atração. Era só um granito barato, básico, e uma plaquinha informativa. Eu gostava mesmo era das pontas. Dos jazigos dos poderosos e dos podres de pobres.

Houve uma fase em que o granito e o mármore ficaram caríssimos e então surgiu a moda de fazerem túmulos azulejados. Era uma breguisse, mas ficava mais barato. Já imaginaram uma cruz azulejada em cima do túmulo? Um horror. Já até a década de 50, 60, ainda se conseguia colocar uma escultura em mármore de alguns anjos. Depois encareceu demais e hoje, quem tem, tem, quem não tem, morresse antes.

Por essas semanas, com o sepultamento de dona Ruth Cardoso no cemitério da Consolação, me lembrei que tive a oportunidade de conhecê-lo mas, que azar o meu, não sabia de tantos famosos lá enterrados. Presidentes, Monteiro Lobato, os Matarazzo e tantos outros. Perambulei por lá, gostei demais, mas não reconheci ninguém famoso. Fiquei sabendo das atrações através de um "guia turístico" do cemitério que foi entrevistado no Programa do Jô. A vida me empurra cada vez mais para longe de São Paulo, mas ainda vou visitar de novo o Cemitério da Consolação, dessa vez com o guia, pois quero contemplar o último lar dos que não voltam mais.

Enfim a moda virou e acharam que a morte nivelava as pessoas, de forma que surgiram os cemitérios parques, gramados, sem túmulos. Anda-se pelo gramado em busca das plaquinhas que ficam no chão. O primeiro, salvo engano, foi o Cemitério do Morumbi, onde estão os restos de
Ayrton Senna e da minha avó e família.


De fato nivela as pessoas mesmo, mas por cima. Não tem túmulos mas um pedacinho de terra custa uma fortuna. Como as pessoas andam pelos jardins aleatoriamente, não se cria trilhas. Menos no caso de Senna.

Ali é que nem área de goleiro. Não cresce grama nem a pau. Todo mundo vai lá, lê a plaquinha "Ayrton Senna da Silva", lamentam e se vão. Todos num vai e vem em linha reta. Não tem jeito. Só calçando mesmo. Esses cemitérios não têm charme. São monótonos demais.

Cemitério é cultura. Cemitério conta a história da cidade através dos que se foram e das suas condições financeiras à época da morte. Mostra costumes de épocas, como se colocar a foto do defunto no túmulo. Houve a era dos versos, dos anjos, das estátuas em bronze. Está tudo lá, datado. É só observar. E, como tudo na vida, tem que garimpar. Quem anda pelos meios das quadras acaba encontrando algumas preciosidades.

Finados é o carnaval dos cemitérios. Aconselho não ir nesses dias. A hipocrisia é imensa. Escolha uma segunda-feira normal, lá pelas 10 da manhã, e vá observando, lendo, aprendendo... Lá não há almas penadas, nem fantasmas ou assombrações.

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José Caparica Neto, autor do texto acima, foi escritor, cronista, jornalista e publicitário. Morreu no dia 22 de Outubro de 2010, aos 53 anos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Dias Negros

A luz que incide sobre este corpo não aquece sua pele fria. São dias negros no seio dessa família.
Flores, capsulas de remédio e balas espalhadas por todo o salão. Não sabem há quanto tempo lá esteve, se morreu de fome, frio, tristeza, ou perdeu os miolos comido pelos ratos.

Seus restos mortais agarram uma foto, dando a impressão de que os homens impressos na velha fotografia foram de grande importancia para esse que se foi. O cheiro fétido ainda sutil atraí insetos e outros pequenos canibais que o devoram como um banquete.

Cada hora contada no relógio faz sua massa escorrer pelo chão. O restante de sua pele já escura fica mais emborrachada, escorregadia. Alguém irá descobri-lo dias depois. Ou um vizinho notando ausência de movimento ou uma camareira a arrumar os quartos, o inusitado. Ou ainda ninguém, morrendo eternamente assim, em uma gigantesca sepultura que seria roída anos após anos, junto com seus espólios.

Há cegos que souberam melhor lhe dizer o caminho onde chegou. Não sabemos - ainda - a causa de sua morte. Mas pouco importava seus sonhos, sua identidade, o lado preferido para dobrar o cabelo.

No chão daquela sala, com as cortinas pesadas deixando-o na penumbra, apenas com uma luz sobre ele, devido a um rasgo fino no pano, o que mais me intrigava, brotando em mim o incomodo e a tristeza é que ele era apenas um corpo, sem identificação.

Apenas um esqueleto apodrecido pelo tempo, sorrindo sem parar, com capsulas, balas e flores ao seu redor.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

com o pé na cova

Era semana final do mês de outubro. Do lado de fora, as crianças se preparavam para o Halloween. Todas as crianças, aliás, estragando os planos sem pé nem cabeça de inventar pra 31 o Dia do Saci. Talvez por isso, por não ter pé nem cabeça, Saci e Mula pareceram encaixar bem no plano dos adultos.

Mas essa história não é sobre adultos. Do lado de dentro, fim de mês de outubro, do lado de dentro do cemitério as coisas estavam muito animadas, tudo muito movimentado: em tão-só três dias seria Dia de Finados.

Quem olhasse por cima do muro veria seu Zé Coveiro dormindo, largado, com a pá de um lado e do outro uma imagem de São Ciprião. A movimentação não era dos funcionários, que não eram mais que se Zé naquela cidade Descanso Feliz.

- Pedrinho, vem sua mãe esse ano? Ano passado ficou aquele bolo de amora tão bom, do lado de fora da tumba. Lembra? Tivesse piscado e o bolo sumia antes mesmo de experimentar...

- É. Aquele é meu bolo preferido. Mamãe traz todo ano, todo ano, faz já mais de 20, né? Ou são 30?? HEY!, Afonso, quanto tempo faz que eu tô aqui?

- 27, Pedrinho. 27 anos morto, seu menino.

- Pois bem, mamãe traz esse bolo faz já 27 anos. E a cada ano é mais gostoso...

Passaram-se os dias, deu dia 1º, beirou a boquinha da noite e nada. Teve uma festa tremenda depois das 22h, pré-finadaria, ou algo assim. Tudo cravo-de-defunto enfeitando as campas, a bebida era fogo-fátuo, uma maravilha. Só Pedrinho, que não bebia, parecia aperriado.

- Que foi, menino? – perguntou Jão Cremadinho.

- Nada, eu acho. Só minha mãe que não veio ainda... ela costuma aparecer dois dias antes do dia de Finados, pra ajeitar a campa. Mas esse ano, nada...

Virou a noite, a mortaiada foi-se dormir. No dia seguinte, logo cedo, antes das hordas de vivos inundarem o cemitério com flores e choros, uma pequena comitiva chegou escoltando um caixão. Morreu alguém na véspera dos mortos.

- Belo dia, não?

Na hora do enterro, caixão pra descer na cova, parentes chorando, pulou dali do ataúde uma velha cheia de flores, presentes e um sorrisão que nem rigor mortis tirava. A tampa do caixão caiu pra um lado, a velha pulou pro outro, parentes correram e até um dos mortos teve um ataque nervoso.

- Mamãe! – gritou o Pedrinho, correndo pra velha.

- Meu filho! – gritou a mamãe, dando pro Zé Cremadinho pedaço de bolo de amora.