sexta-feira, 31 de julho de 2009

poste atrasado

A máfia italiana nunca pensou que seria confrontada pelos índios sulamericanos dos Cárpatos. Nunca pensou nem nunca foi. O célebre episódio dos Tiros em Tiramissu foram travados na ponta da bota, munidos de confete e alfajores.

Argentinos dançam tango em cabeças de porcos. Marcam ritmo com castanholas de castanhas-do-pará, enquanto Garantido e Caprichoso fundem-se azulvermelho como os velhos Double Dragon.

Nada é certo nada é firme. A vida é ritmo na cabeça do careca. Ritmo que escorrega. E viva a transferência transcendental.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Meu Inferno

“Procedimento normal”, sorriso opaco e cansado. “Acontece muito”. Devia estar há muito tempo lá, final de plantão. Quis perguntar, mas hesitei. Quando o médico chegou, mais simpático que o habitual, perguntou-me o óbvio. “Se cortou?”, quis responder que foi fazendo a barba.

Os vizinhos ouviram minha fúria. A cadeira contra o espelho, o som das lascas no chão, a faixa ensangüentada na mão enquanto descia as escadas. Não perguntaram nada. Podiam imaginar.

Minha imagem me incomodava pelo que sentia. Fiz o espelho quebrar – o único em casa – para não me ver mais. Primeiro a cadeira, as mãos depois. Na volta, com a mão bem enfaixada, sangue seco e estilhaços no carpete. Retrato do que sou.

Arranquei a roupa ainda suja, abri as janelas, morrer de fome ou de frio, quem viesse primeiro. Fui até o quarto, as luzes de fora davam-me o necessário para ver. Abri o armário, retirei roupas. Na mesa de cabeceira mais uma pílula. Uns fumariam cigarros, outros beberiam whiskey. Eu, violentei o espelho.

Na cozinha achei a tesoura que procurava. Cortei os cabelos, carpete de vidro, sangue, fibras e pelos. Não quero ser o que sou. Mas da carapaça não sai nenhuma máscara, não escorre nenhuma maquiagem. Sou o que fiz, fiz o que sou. Lobo de mim.

O frio adentra a espinha. Eu me voltaria a Deus se ele ajudasse. Eu lavaria as mãos se a água pudesse limpar. Tudo parece o mesmo caldo.

Quase nu, vou à janela. Observo um homem sombrio em atitude sombria. Apoio as mãos no parapeito, lembro-me do corte que havia esquecido. Aperto-as para sentir doe-las. A vida pulsa em meus ouvidos, estrelas fulguram em meus olhos. “Até onde pode agüentar, homem?”, me pergunto. E na escuridão vejo a faixa enrubescer.

Respiro fundo para não proclamar minha dor. Caminho para a cama. Uma pílula já foi passear, duas acompanham seu caminho.

Durmo.

Monstro. Homem. Deus. Nada. Ninguém.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

eles passarão

"Informe de última hora: astrônomos da Universidade do Sul da Macadânia indicam que a rota do famoso cometa Halley foi desviada e passará, dentro de algumas horas, pela tangente da Terra. O fenômeno poderá ser visto na Patagônia, sul da Austrália, em todo o continente antártico e em pleno alto-mar. Mais notícias durante a programação"

Parece que há cem anos... parece mesmo que já faz muito mais tempo. Mas nem nada, né? Rápido, um respiro só pra quem tem milhões de anos de idade. Bilhões, feito a Terra. Que ela pensa de mim? "Besta, menino apressado, besta besta, tsc tsc. Nunca poderia ser planeta". Aposto. Ela pensa isso, eu sei. Um grão de areia, eu, poeira da Terra velha.

"Extra: depois deste, próximo avistamento do cometa só em 2114"

Mas eu nem queria ser planeta, não. Paciente, girando sempre a mesma bola, órbita, com os olhos saltados fora porque os pés não enxergam longe... eu não, queria não. A Terra que seja planeta por mim. Eu tô é mesmo por aqui cheio de pressas, de vais-e-voltas, bem mais de um a cada hora. Sem curso certo, sem rumo, tipo cometa, mesmo.

"Matéria completa: saiba tudo sobre os asteróides"

Fico esperando aqui, um pouco mais, porque o cometa vai passar. E nem só isso; mais que cometa, logo chega ela também. Êa... parece que faz cem anos.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Mãos Dadas

“Amor consiste em duas solidões que protegem,
aconchegam e apóiam uma à outra.”
Rainer Maria Rilke


As mãos dadas são um dos símbolos mais felizes que posso conceber em minhas memórias. A divisão mutua do calor, quando acrescido do amor, é uma dessas sensações belas e inexplicáveis, devo confessar. Andar de mãos dadas é tão profundo que enriquece poemas e canções. O toque das mãos é o início de tudo, mãos que se tocam e depois encontram o corpo de seus pares.

Há quem diga que uma mão entrelaçada parece com um coração. Outros vêem o visível aos olhos, de que o contato é um elo íntimo. Uma prova do amor. Duas pessoas formando ali um único ponto.

Nunca compreendi, ao certo, o movimento do amor. Tenho mais costume por sua ressaca do que pelo seu sabor fresco. Assim, enigmático para mim é a transformação do duplo em uno. Um casal que se ama e se entrelaça formando um só.

Duas pessoas que trilhavam caminhos diferentes agora não só seguem juntos um horizonte, como parecem perder o esquife que determina aonde começa um e outro. Perdem primeiro sua identidade para, no final, perderem o amor e depois o amor pela vida.

Não há mais a primeira pessoa no vocabulário. Os planos viram projetos para um par. Eu se transforma em Nós. Nós acabam machucando quando bem atados.

Onde um vai o outro está. Perde-se o aconchego próprio, o tempo necessário para ouvir a própria escuridão. Com as luzes apagadas é confortável saber que uma mão amável está por perto, para salvar de um susto. Mas perde-se as horas para chorar sozinho. O tempo de lamentar-se para a lua, brincando ser um lobo que uiva. Amar é não dar espaço para a matéria de que somos feitos, a solidão.

Nunca compreendi esses casais que começam a tratar a si mesmos como uma entidade superior. Uma dupla que, por estarem em dois, tem mais valia do que os solitários. Saem em parceria com outros casais, fazem reuniões daqueles que fingiram se fundir em um. Fazem questão de dividir os times. Os saudáveis e o clube dos corações solitários.

Falam o tempo todo na pessoa amada, não por amor. Mas pela dúvida em amá-la de verdade e perceber, no meio do dia, que seus pensamentos estão em outra pessoa. Repetem seu nome como feitiço conjurado, como uma oração. Para lembrar que estão unidos, mesmo que o silêncio apareça mais que o verbo.

As batalhas que escolhi lutar em minha vida foram positivas e me ajudaram a definir quem sou. Foram preciso marcas, dores, muito sangue escorrido pela boca, para agora admirar minhas cicatrizes e saber que me conheço. Pouco, evidente, mas posso dizer que sei daquilo que gosto.

Gosto dos amores que não censuram. Dos caminhos que são feito juntos não por obrigação ou unidade, mas pela simples vontade de estar de mãos dadas e caminhar, até as pernas doerem para um descanso breve. Caminho feito a quatro pés. Amores que não se consagram em nós. Amores que definem bem que duas pessoas compartilham o mesmo amor e não a mesma voz, o mesmo corpo, a mesma perfeita sintonia.

A parte disso, sou um daqueles poetas que nunca aprendeu a amar. Vivo na solidão única de mim, sabendo que assim, ninguém poderá me perder. Nasci para não saber amar. Morrerei só, com a mesma sentença dos amantes. Mas lúcido, sabendo que dentro de mim permanecerei eu mesmo.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

quem matou odete roitman?

- Ele é o assassino!

- Quem é o assassino?

- Ele é o assassino...

- Ei!, eu não sou o assassino.

- Claro que é. Vejo o sangue em suas mãos.

- Há sangue nas mãos dele?

- Não há sangue, não há. Eu não sou o assassino.

- Você é!

- É isso aí... você é!

- Não sou.

- Polícia!, polícia! Aqui está o assassino.

- Arrá!, então você está aí, assassino.

- EU NÃO SOU O ASSASSINO!

- Teje preso.

...
...
...

- Ei, Charles... ele era o assassino?

- Sei lá.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Álbum de Família

Sou o fotografo dessa reunião por um número tão incontável de vezes que me esqueci. Tenho que recorrer aos meus arquivos de metal para comprovar pelos negativos quantas vezes capturei a imagem daqueles que lá estão.

São anos tão antigos que ainda revelava minhas fotografias em uma câmara escura, com produtos químicos e um varal para secar as fotos. Duas delas foram feitas assim. Dois retratos que vejo, lado a lado, com o último que fiz.

A permanência de um mesmo cenário, cadeiras postas em um quadrado, decorando uma cena. Na parede um retrato de um horizonte, tão velho que deve estar morto. Na figura, como carimbos definidos, o mesmo grupo da família. A mesma sentença da primeira imagem, agora com mais rugas.

A solteira permanece no canto da foto, em todas elas sempre preferiu a direita. Talvez, sem querer, como símbolo de sua sentença, já se afasta dos retratos, indo encostar-se no canto. Os homens ficam ao centro, aqueles que se conhecem de longa data. E as pontas permanecem os fios que sempre são cortados. Relacionamentos das mulheres, casos dos maridos, pessoas que vão e vem. Mais fáceis de serem apagadas de uma fotografia estando nas encostas. Basta uma aproximação, um corte mais profundo e a foto parece nova sem aqueles elementos que, em breve, sabemos, serão suprimidos.

O que mais me incomoda em minha profissão, realizando retratos para famílias durante anos e anos é que tais imagens são espelhos da primeira. Tais personagens poderiam muito bem, se quisessem, tirar uma série de fotos em um mesmo dia, trocando apenas o figurino e os pentiados. E depois afirmando com vigor que cada uma delas correspondia a uma celebração diferente.

Os sorrisos trincados nos rostos, a mesma esperança doentia gravada naquelas retinas. Braços cruzados como alguém que não tem nada a perder. Mãos dadas abraçando espumas. A triste sentença de que o tempo nada transformou. Nada modificou. Nada amadureceu. Apenas trouxe rugas aos olhos e retalhos no coração.



Meus olhos são as lentes de vidro onde capturo imagens, nada mais. Lentes que nunca capturaram minha imagem. Quero morrer na ignorância do que deixar na eternidade a amargura de mais uma vida que não vive, apenas um reflexo de luz.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

quem roubou o broche de madrepérolas?

- Oh, meu Deus! Roubaram o broche de madrepérolas!

- Não é possível... como assim, o broche de madrepérolas?

- É. Ele estava aqui há um segundo, e agora sumiu. Filhosdaputa.

- E quem será que roubou esse broche de madrepérolas? Quem foi o sacofantas?

- Sacripanta.

- Como?

- Sacripanta, você quis dizer. "Quem foi o sacripanta?".

- Ah, não. Eu quis dizer, mesmo, "quem foi o sacofantas".

- Quis?

- Quis.

- Mas que porra. Olha aqui, como eu posso ser um detetive sério e resolver esses casos importantes se você vem me interromper com palavras como "sacofantas"?

- Cara, deixa de viadagem. O sacofantas roubou a porra do broche de madrepérolas e você fica aí, preocupadinho com palavras...

- Preocupadinho? Preocupa-dinho? Ah, filhodaputa... preocupadinho? Tu acha que é fácil, é, trabalhar com você aí, enchendo a porra do saco? Acha? Quer saber?, você que é um sacripanta.

- Eu?? EU!? Eu não sou nada disso aí. Quem roubou o broche foi outro sacofantas, isso sim.

- Diabos, dá pra me ajudar um pouco, só pra variar?
...
...
...
Hey! Foi você! Foi você, seu sacripanta, eu descobri, rá!, eu descobri. Passa esse broche de madrepérola pra cá, agora. Sacripanta filho de uma mãe.

- Diabos... tá, toma. Enfia essa porra no

- Hey, por que você ficou todo preocupado com o jeito que eu chamava o ladrão? Sacofantas, sacripanta...

- Bom... é que... sabe... sacripanta é muito ofensivo, né não?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Questão de Uma Idéia

uma anedota

A vida, bem comprida, olhou nos meus olhos e disse:
- Adivinhe o que tenho para você?
E passo os dias vendo o vento varrer as folhas de meu coração...



uma mentira

Que vida não diz nada.
Fica calada, em seu lugar.
Esperando a morte nos pegar.



uma espera

O sorriso banguela que dei,
quando pequeno, aguardando
um dente chegar.



uma aguardente

tão quente, que de repente,
quando a gente sente, ela se foi,
nos braços de outro rapaz.



uma paz

A pomba que voa disposta,
deixando cair sobre nós sua bosta.



uma bosta

A moça que diz feliz e contente,
que de tu não quer ser pretendente.



uma pretensão

Querer ser Rita Lee,
quando se é Mallu Magalhães.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

mais uma dose

Ele, mais pra frente, seria alcoólatra. Não agora. Agora apenas bebia, inquieto, a inquietação de um mundo todo.

Nem ele sentia, ali, que a cana que derramava no copo traria, mais pra frente, um bando de frustrações que já tinham ficado pra trás. "Um problema atrás do outro, e todos atrás de mim", enquanto deixava no chão a porção que ao santo cabia.

Sabia, sim, que misturar sentimentos e afazeres sempre sempre dava em merda. Sabia desde pequeno, sabia, que misturar destilado com fermentado era pior ainda, bem pior. "Fodido, fodido e meio", pensou.

E misturou. Aquela cachaça foi seguida de uma outra, depois de uma cerveja, whisky, gim tônica e um pouco de martini.

No dia seguinte, inquietação, saudades e a maior ressaca da semana.