quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Bruxo

Quando cheguei ao camarim não estava relaxado. Tinha uma violenta dor estomacal. No espelho luminoso tentei retirar de mim o rosto maldito. Retirei apenas os óculos, estragando a maquiagem.

Se estivéssemos na América, a história seria censurada e amenizada. Mas estamos em um desses pequenos países da Europa em que o topless é permitido, aceitado, sem que homens revelem o vigor de seus membros, explodindo das sungas, por causa de mamilos.

Aceitei o projeto porque estou fracassado. Não que tivesse uma carreira promissora. Comecei em 95, em uma comédia adolescente da qual me arrependo. No meio da década passada, entre a obscuridade e interpretações medianas, tive destaque em um circuito alternativo. Alternativo quero dizer tudo, menos Hollywood.

A intenção era filmar Lolita de Vladimir Nabokov. Um processo impossível sem trazer a tona masturbadores doentes guiados pelo prazer sexual. Mas quase tudo está presente. Exceto que o diretor não conseguiu os direitos de adaptação. Seguiu a escola de Murnau, recriou a base sem Humpert Humpert e a garotinha impertinente. 

Não li o romance. Desculpei-me pela necessidade de criar um personagem original. Era preguiça. Embora tenhamos repassado o texto diversas vezes, com uma equipe gigantesca do outro lado, não pude deixar de sentir na cena que, como disse o diretor, seria o ápice entre as personagens. Sob esse aspecto, foi um clichê puro as personagens sozinhas em cena para se beijarem.

A atriz é uma norueguesa que dizem ter uma boa interpretação, embora eu ainda sambe com seu inglês. Tem idade mais avançada que a lolita original, mas um câmera me afirmou, com direito a polegares para cima, que aquela extirpe de corpo franzino da conta do recado.

Gravamos seis takes e não pude mais. Quando não interpreto odeio aproximação. De fato, se repararem bem, as representações exageram na proximidade, devido ao enquadramento. Na vida real o limite é um metro ou mais. Mas não era o caso. Tive que envolve-la em meus braços. O fato dela ter o mesmo semblante de minha filha me incomodou aos diabos.

Cheguei a pensar que o diretor me escolhera por isso. Para introduzir até mesmo no ator o dilema moral. No sexto take a cena funcionou e pedi para me retirar. Estou aqui pedindo uma bebida, mesmo que eu não beba.

Embora as imagens compostas por H. P. Lovecraft sejam excelentes, o bestiário inexistente não é tão assustador quanto a potencia de uma catástrofe real. O desvio natural do curso humano. O aleijado, multilado, fora da linha padrão.

Tocamos nossos lábios. Tocamos nossas línguas. Eu, um homem de 32 anos beijando uma garota de 14, em um cenário de madeira prensada. A cena me feriu por dentro, mas eu precisava do dinheiro e, de qualquer maneira, a trama era boa, mesmo com a polêmica.

A beleza juvenil é bela por ser jovem, disse Paul Auster em um de seus romance. Não discordaria da afirmação, mas o efeito moral que ela carrega é mais destruidor do que imaginam. Após a bebida liguei para minha filha, deixando o telefone soar. Precisava saber que tudo estava bem e porque não haveria?

Um batida na porta interrompeu o devaneio. Era a norueguesa me chamando para a próxima cena. Teria sido eu seu primeiro beijo? Não. Eu não poderia viver com isso. Disse para a pequena garota Chutulhu que aguardasse e, após vê-la desaparecer da minha frente, saí. Eu estava contaminado.

Voltei ao cenário e chamei por Marlene: "Destruí minha maquiagem, querida". E ela, em um inglês tão macarrônico quanto a pequenina, me deu lufadas de pó branco que me trouxeram de novo o ar de professor corruptor.

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