quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Infinidade

Adam Saviour pisou dentro da Caldeira. Seus lados eram perfeitamente redondos e ela se ajustava confortavelmente dentro de um eixo vertical composto de barras largamente espaçadas, que tremeluziam numa neblina invisível, dois metros acima da cabeça do homem. Este tomou os controles e acionou calmamente a alavanca de partida da Caldeira.

Não esperava sentir qualquer movimento e, de fato, não se moveu. Ao menos não em qualquer direção espacial observável. Voltando-se para um marcador digital diante de seus olhos, pôde ver números subindo vertiginosamente até 129000. Era o século para o qual estava se dirigindo, mais exatamente no ano de 128048 da Era da Infinidade.

Enquanto os motores temporais cuidavam da transferência física de Saviour e sua Caldeira através dos milênios, seu destino espacial era idêntico ao endereço de partida: a câmara de viagem temporal, mas agora nas instalações da Infinidade do século 129000. O próprio Saviour não sabia exatamente como aquilo tudo funcionava, já que mesmo tendo um cargo importante como Técnico, tinha muito pouco envolvimento com Mecânica Temporal e Matemática de Cronotopos. Sabia, no entanto, que aquela Caldeira cruzava o tempo incontáveis vezes simultaneamente nas Infinidades de incontáveis séculos, e que nunca houveram erros de cálculo ou destino.

Percebeu que o mostrador havia estancado no dia 15 do mês 3 do ano de 128048, às 9h em ponto. Era, realmente, muito raro que um Infinito se atrasasse para um compromisso, dados os meios de transporte. Olhou para fora da Caldeira. Durante a viagem, as barras cinzentas se fundiram em uma cortina de luz tremeluzente, que agora era a única coisa que o separava, de um lado, da Realidade Temporal e, de outro, da Infinidade. Ajustou os controles e, movendo-se para fora da cortina, sentiu o calafrio psicossomático oriundo da entrada em um novo ponto do tempo.

Danny Javers o aguardava, com olhar impassível. Ao observar a sala de Caldeiras em que se encontrava, Saviour não conseguiu disfarçar uma sensação de incômodo. Devia ter lido pelo menos alguma coisa sobre o século 129000 antes de viajar, e agora se amaldiçoava por não tê-lo feito. As paredes não pareciam paredes, mas formações absoluta e opressivamente lineares, retas, perfeitas, de alguma presença que poderia ser confundida até mesmo com sonhos, mas jamais com matéria comum. Saviour rapidamente compreendeu que estava em um século orientado para a energia, da mesma forma como o seu distante século 251 era orientado à matéria. Javers, à sua frente, era um exemplar absolutamente típico de um Homo sapiens, exceto pelo traje eletromagnético que o vestia, dando-lhe o irritante aspecto de um caleidoscópio psicodélico. Ao notar o evidente estranhamento de Saviour, Javers regulou as cores da sala e de sua própria roupa para tons mais estáveis.

- Muito prazer, Técnico Saviour. Sou Javers Danny, Computador-Sênior deste século. É uma honra tê-lo em nossa Infinidade.

- Peço que desculpe minha falta de hábito com os costumes de seu tempo, Computador Javers – Saviour sabia ser polido e, mesmo que não soubesse, convinha muito pouco ser rude com alguém de um cargo tão alto como um Computador-Sênior.

Caminhando pelas instalações da Infinidade local, Saviour pôde ver em funcionamento a arquitetura alienígena daquele século, onde as salas não tinham portas, com paredes que se abriam naturalmente quando alguém a menos de 30 cm fazia um gesto simples com as mãos. Dessa forma, Saviour não pôde definir por que cômodos havia passado. Chegaram, finalmente, à sala pessoal de Javers.

- Imagino que possamos tratar imediatamente do assunto de nosso encontro, sem mais delongas, dada a importância da questão.

- Sem dúvida, Computador. Serei o mais objetivo possível, ainda que minhas teorias necessitem de alguma explicação prévia.

- Pois faça-o com toda a liberdade e nenhuma pressa além da conveniente – Javers fez um gesto para um canto de sua mesa de energia, e alguns aparelhos igualmente energéticos começaram a operar, ainda que Saviour não fizesse a menor idéia acerca de suas funções. Abriu uma pasta que, feita de plástico e papel, parecia igualmente alienígena para Javers.

- O que sabe sobre o Técnico Andrew Harlan, senhor Computador? – as palavras de Saviour atingiram os ouvidos de Javers. Aquele, mais do que muitos, era um assunto pouco falado nos corredores temporais da Infinidade.

- Foi o mais competente e destacado Técnico do Tempo de que já se ouviu falar. Nasceu no século 93 e morreu aos 89 anos de fisiotempo, na Terra do século 20 ou 21.

- E o que mais sabe, senhor Computador, sobre esse homem?

Javers encolheu os ombros. Respirando profundamente, levantou os olhos da superfície reluzente da mesa e encontrou o olhar inquisitivo de Saviour. Sabia que estava diante de um Técnico, o mais ingrato e ao mesmo tempo glorioso cargo da Infinidade.

Sempre que determinado evento na Realidade Temporal se mostrava nocivo ao destino e bom andamento da raça humana, a Infinidade intervinha. Primeiro, um Observador era enviado ao ponto crítico, onde fazia centenas de anotações sobre diversos fatores relevantes. Em seguida, um Computador – não um aparelho, mas um ser humano treinado exaustivamente em Cronomecânica de Populações – analisava os cálculos e apresentava seu relatório a um Técnico. A este, talvez o mais crucial ponto do procedimento, cabia a delicada e ingrata tarefa de decidir e executar pessoalmente uma MMN, a Mínima Mudança Necessária para que se obtivessem os resultados esperados a longo prazo. Estes podiam ser de diversas naturezas, mas normalmente envolviam a alteração de centenas, milhares, às vezes dezenas de milhões de indivíduos, alguns a ponto de se tornarem pessoas completamente novas e diferentes. Aquele era um cargo similar ao de um carrasco, e igualmente imprescindível. Alguém precisava ser a mão que toca e decide o futuro da humanidade, e poucas pessoas queriam tal responsabilidade para si.

- Andrew Harlan – respondeu o Computador-Sênior Javers – foi, entre outras coisas, o responsável direto pelo fim da Eternidade.

- E o que o senhor entende como Eternidade, Computador Javers?

- Sei muito pouco sobre ela, os registros na Academia são escassos e imprecisos. Por volta do século 26, o cientista Vikkor Mallansohnne decifrou as primeiras e mais fundamentais equações da Mecânica Temporal, que posteriormente deram origem a um grupo de humanos que decidiu monitorar e conduzir os rumos da humanidade ao longo do tempo. Sua missão era garantir a continuidade da espécie por tanto tempo quanto o Universo permitisse, e rapidamente se tornaram ditadores invisíveis controlando a Terra como em um palco de marionetes.

- Está certo. E o que aconteceu com a Eternidade, Computador Javers?

- Os homens do século 10000 conseguiram desvendar a Mecânica Temporal e, sozinhos, descobriram a Eternidade e seus planos. Conceberam um contraplano, arquitetado e executado pela Dra. Noys Lambent, para encontrar uma falha no sistema. Essa falha era o coração de Harlan, que foi convencido a dar fim à maior instituição até então conhecida pelo homem.

Saviour anotava palavras isoladas do que Javers dizia. Fez uma pequena pausa, como se quisesse mudar os rumos da entrevista, e então prosseguiu.

- E o que houve com a Eternidade?

- Harlan a expôs a um paradoxo existencial quando enviou seu próprio criador, o Dr. Mallansohnne, para um século onde os avanços tecnológicos não permitiriam a criação do Campo Cronotópico. Assim, todas as conseqüências do surgimento de tal invenção foram desfeitas.

- E os habitantes do século 10000?

- A própria Dra. Lambent tornou-se uma figura histórica ao oferecer-se para levar Harlan até o século 20 e lá passar o restante de seus fisioanos com ele. Sem ela o plano jamais teria ido adiante. Uma nova instituição foi criada, a Infinidade, para cuidar dos assuntos temporais.

- E porque é que nós, da Infinidade, não somos ditadores como o eram os Eternos?

- Simples – e esta resposta o Computador Javers parecia ter aprendido muito cedo na vida – somos uma instituição de humanos, mas totalmente governada por Robôs Positrônicos, o que nos impede de desvirtuar seus princípios.

- Exatamente, Computador Javers. Somos homens que criaram Robôs incapazes de fazer o mal a um ser humano, e que então deram aos Robôs ordens para impedir que os próprios homens fizessem mal a seus semelhantes. A Infinidade é controlada por um imenso e infalível cérebro positrônico, estruturado sobre as quatro leis da robótica.

- Não vejo, Técnico Saviour, a razão de cruzar tantos milênios para sabatinar-me acerca de tais conhecimentos.

- Logo entenderá. Vê esses diagramas temporais? Referem-se a um período de tempo compreendido entre os séculos 242 e 243? Saberia referir de alguma forma tal período?

- Sim – resmungou Javers, começando a cansar-se de responder perguntas evidentes – é o milênio da Fundação, quando Hari Seldon criou seu plano de desenvolvimento para o 3º Império.

- E o Computador saberia me dizer quem, exatamente, é o grande e maior responsável pelo bom andamento e tão exemplar sucesso do Plano Seldon?

- De acordo com os registros, foi o Robô Positrônico conhecido como Daneel Olival. Ele teria deduzido a Lei Zero a partir das três originais, e assim teria desenvolvido um plano inimaginavelmente complexo para garantir o bem-estar da humanidade.

- Exatamente, Computador. E agora finalmente chegamos onde pretendia. O senhor vê as extrapolações matemáticas que fiz sobre as equações que regem o destino de Daneel? Consegue notar, abaixo da quinta linha, um condicional invariável?

E Javers, de fato, via os pontos indicados por Saviour, e a gradual mudança de tonalidade em sua pele revelou que, sem dúvida, havia compreendido tudo.

- A Eternidade ...

- ... foi planejada e construída por Daneel Olival. As equações temporais, os motores cronotópicos, tudo. Ele encontrou, finalmente, uma forma infalível de salvar a raça humana, e a realizou.

- Mas, se isso é verdade ...

- Então nós logramos seus planos? Não seja tolo, Computador Javers. Daneel sabia que Robôs Positrônicos não poderiam jamais dar ordens a seres humanos, a menos que os próprios humanos assim lhes ordenassem.

O fôlego deixou os pulmões de Danny Javers. O quadro que o Técnico Saviour lhe apresentava era demasiado absurdo, demasiado fantasioso, demasiado improvável e, o pior, estava completamente demonstrado e embasado pelas irrefutáveis extrapolações matemáticas que seus olhos observavam. Retomou o ar e perguntou, receoso.

- Está dizendo, Técnico Saviour, que o surgimento de Mallansohnne, a formação da Eternidade, sua destruição casual por Andrew Harlan e a criação de uma Infinidade feita de humanos e controlada por Robôs ...

- ... é um grande, intrínseco e incompreensível, ainda que inadmissivelmente perfeito, plano de Daneel Olival, com o objetivo de cumprir seu dever que era cuidar da raça humana.

- Então é isso? O senhor veio até aqui para mostrar-me que somos simples e irreversíveis marionetes nos dedos mecânicos de um Robô que deixou de existir ainda no século 250? O que pretende com isso?

- De forma alguma, Computador. Vim porque preciso, ou melhor, a raça humana precisa de sua ajuda.

- Não entendo como posso ajudar de qualquer forma diante de tais circunstâncias.

- Consta dos arquivos da U. S. Robots and Mechanical Men que os projetos lógicos responsáveis pela dedução da Lei Zero por parte de Daneel são oriundos de pesquisas em robopsicologia conduzidas pela Dra. Susan Calvin, no século 21. Como creio que já esteja suficientemente esclarecido, o momento em que Daneel Olival deduz a Lei Zero a partir das três primeiras é o epicentro de uma onda civilizacional que garante a prosperidade humana por mais de um milhão de anos.

- E imagino que a Dra. Calvin seja o objeto de seu interesse. Mas o que haveria ela de ter em comum com meu século? Grande Tempo, Saviour, ela é habitante da pré-história, quando nem mesmo a Eternidade existia ainda.

- O que fazemos em vida ecoa pelos milênios, Javers. Pretendo acessar dados elaborados por Erton Nalaar, arqueólogo da pré-história que retomou os trabalhos de Janov Pelorat sobre a Terra e a origem da raça humana. Em seus papéis, pretendo encontrar informação suficiente para localizar e evitar um acidente de trajeto que julgo ser capaz de encerrar a vida da Dra. Calvin.

O Computador-Sênior Javers engoliu em seco. Finalmente, após mais de uma hora de discussão e explicações, compreendera as reais proporções do risco que se apresentava. Se tudo aquilo estivesse mesmo correto...

Olhou, sobressaltado, para o Técnico Adam Saviour e perguntou:

- O senhor afirma, desta forma, que existe uma variação imprevisível na linha do tempo da Dra. Susan Calvin e que, caso ela não seja corrigida ...

- Sim, Computador Javers. Se ela não for corrigida, existirá uma probabilidade de 21,457% de que Susan Calvin não escreva tais teoremas.

- ... impedindo assim a criação de Daneel Olival.

- ... e um milhão de anos na história da humanidade.



Em memória de Isaac Asimov, pai da Fundação, da Eternidade, da Robótica e de incontáveis sonhos que me ensinaram a a crer na ciência e não temer o infinito.

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