terça-feira, 8 de setembro de 2009

Natureza Sangue

“…o escorpião, precisando atravessar um curso d'água, pergunta ao sapo se ele pode ajudá-lo, ficando nas suas costas enquanto o anfíbio nada até o outro lado. O sapo alega que será ferroado, mas o escorpião lhe garante que não fará isso, pois senão os dois morrerão afogados. O sapo então carrega o escorpião em suas costas, mas enquanto estão ainda no meio da água, o outro lhe dá uma ferroada. Antes de morrer, o sapo pergunta o porquê para o escorpião. Este responde: "Eu não pude evitar, é a minha natureza"”
A fabula do Escorpião e do Sapo


A astrologia para mim sempre foi uma bobagem, uma pseudociência mal formatada para que mocinhas com resquícios de inocência tracem um paralelo dos problemas de sua vida com as poucas linhas proféticas do horóscopo. Eu não era o tipo de homem que abria o jornal nessa página, mas lá estava a folha estendida sobre minha frente: as casas do zodíaco lado a lado.

Olhei de relance meu signo, e fui interrompido pela secretária, “adoro horóscopo, leia o meu para mim?”. Com uns olhos daquele, ela podia pedir o que quisesse, mas só queria uma breve leitura. Perguntei o signo, “virgem”, respondeu. Com um par de seios daquele, só podia ser de signo.

Ela me interrompeu três vezes para fazer paralelos com sua vida. A cereja do bolo era a última frase, “Para viver bem no amor, é preciso conter seu jeito crítico”. Seus olhos foram para baixo, a boca se inclinou, e ela debruçou sobre a mesa que nos separava. “Me diga, João, eu sou muito crítica para você?”. Camila era minha secretária, diabos. Eu lá prestava atenção em algo mais do que o trabalho razoável que ela realizava e o brilho que ela trazia ao ambiente com seu corpo? Resolvi responder retoricamente, frase de psicólogo. “Você se acha crítica?”.

Camila rodopiou e sentou-se na cadeira, cruzando as pernas, a abertura da saia salientou seu corpo. Falamos sobre horóscopo, eu acho. Retruquei algumas palavras enquanto ela analisava sua vida e voltei ao jornal. A página ridícula da minha frente.

Meu nome me fez voltar a história de Camila, “... é a terceira vez que pergunto, João, o que houve com o seu braço?”. Não pude esconder minha decepção comigo. A manga da camisa erguida demais revelava a mordida. Animal, mamífero, gênero feminino, um metro e sessenta e dois de desejo e selvageria, uma marca ainda roxa no meu braço. “Nada”, tentei esconder e fazer com que Camila voltasse a contar sua história. Vinte minutos depois ela estava sentada em sua mesa e eu com dor de cabeça.

Memórias eram desnecessárias para me lembrar, a marca que meu corpo preservava era profunda o suficiente para doer e avisar aonde me meti nos últimos meses. Mesmo assim fechei os olhos. Lembrando o êxtase de prazer que ela teve ao morder-me. Posei a cabeça nas mãos e pensei novamente, o que diabos você fez nos últimos meses?

Era como uma missão suicida de um policial que se infiltra em uma quadrilha perigosa. Ela não era meu lugar, mas era aonde eu queria estar. Eu poderia dizer que as coisas simplesmente aconteceram repetidamente, mas eu calculei meus passos, calculei até me irritar e decidir que iria vencer a garota.

Ela é do tipo que parece dócil até ganhar o primeiro naco de comida. Depois rosna mais alto que uma cadelinha e mostra-se selvagem. Esperneia, faz escândalos, cada um de seus atos requer uma reação à altura. Uma resposta as suas maneiras desesperadas de obter atenção, de demonstrar que você não valia nada. Eu estava farto. Estava liquidado.

Há histórias em nossa vida em que podemos apenas continuar seguindo-as. Um caminho que, de um lado, está com água até os dentes e a única opção é o outro lado do mapa. Foi assim. Era como caminhar para a prancha em um barco pirata.

Não fui inocente, confesso. Tive cartas na manga e usei uma a uma, até acabar todo o baralho. Apelei para minhas palavras até ela me calar com seus beijos. Usei meu instinto até ela come-lo por completo. Faltou-me emaranhar-me e cortar minha cabeça. Cada ato sádico lhe dava prazer.
Eu era um homem perdido. Apaixonado por uma mulher que tinha doce nos lábios e veneno nas mãos. Meu extermínio era questão de meses, horas. Era esperar e ver. Eu via, de olhos abertos, poderia ver tudo.

Meu olhar disperso, a garrafa de bebida, o cigarro aceso, e a foto que eu faria questão de deixar ao meu lado enquanto a chamasse de cabra vadia. Admirando meu braço. Observando a cicatriz daquela mordida que nunca fecharia por completo.

Camila estava ao meu lado e nem percebi. “Ainda nessa página? Tentado decorar todos para virar um astrólogo?”. Sorri com a piada imbecil e respondi, “rindo de uma ironia, algo engraçado em que não acredito mas que faz sentido”. Seus olhos mudaram de expressão, de súbito, novamente, o rodopio sentando e a cruzada de pernas. Aproximou-se a cadeira da mesa e curvou seu corpo nela. Conjunto completo só para me perguntar: “Posso saber o por quê?”.

Eu ri. E apontei a ela, nascidos entre final de outubro a novembro, escorpiões. “O que tem?”, perguntou novamente. E retirei da gaveta um bilhete de agradecimento, datado de 29 de outubro, escrito por aquela que me mordera: “Obrigado por lembrar de meu aniversário ontem”.

Ela olhou-me com olhar estranho, sem saber correlacionar os fatos. Eu ri novamente, dessa vez de sua estupidez. “Não entende, Camila?” e estendi o braço ferido, “faz parte de sua natureza, o que mais eu posso fazer?”. E escondi novamente a marca com a camiseta. “Agora, se me permite, vou ao almoço.”. E refleti, enquanto vestia o casaco, que era impossível retirar a natureza de certas mulheres, por mais que tentássemos. Assim, suspirei e desejei que minha morte fosse rápida e não tanto dolorosa. Ela sabia que eu já estava em suas garras.

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