quarta-feira, 31 de julho de 2013

Don´t Rain On My Parade

O abafador de som que ele colocava nos ouvidos para realizar suas leituras não o fez ouvir o pedido de socorro da vizinha. Desesperada por ter derrubado uma forma de vidro em seu pé que sangrava, produzindo um contraste que ele considerou interessante, vinte minutos depois de ficar ciente da cena.

Foi o som do estéreo de outro vizinho que o fez sair de casa quando notou, na janela ao seu lado, a mulher com certa palidez, sentada no chão da cozinha sem saber como lidar com acidentes domésticos.

Se encontraram poucas vezes no hall do prédio e cumprimentaram-se como fazem os estranhos que dividem a intimidade ouvindo seus sons cotidianos. Perguntou-lhe se podia entrar, já com a mão na maçaneta da porta, verificou a cena em sua totalidade e, mesmo sem nenhuma liberdade, caminhou até o banheiro onde ela ouviu, após alguns segundos, um barulho contínuo e suave que só poderia significar o chuveiro ligado.

Ao retornar à cozinha, ele a ajudou a se levantar, colocando um dos braços dela em apoio ao seu ombro e, enquanto a levava ao banheiro, mencionou que ninguém se sente confortável com um corte desses e sempre há muito mais sangue do que parece.

A banqueta que ela utilizava para colocar revistas semanais para leituras breves foi colocada ao lado do chuveiro e ele pedia para que ela se sentasse. A garota achou terno o fato de que o rapaz tocou seus pés para ajudar que o sangue escorresse e lhe prometeu que doeria pouco se ele passasse sabonete no local, alegando que assim evitariam problemas. Ela apenas assentiu e continuou a tentar ao máximo não se entregar àquela dor.

O fluxo de água corrente limpou o sangue revelando três cortes no peito do pé. Ela achou estranho quando ele enxugou seus pés com cuidado, tentando evitar tocar nas marcas e, levantando-se, perguntou sobre as bandagens. Sem graça, ela disse que não tinha. Volto logo, falou.

Enquanto esperava com os pés ainda úmidos, sob a tolha laranja do conjunto, tentava alinhar as ideias para se lembrar como derrubou a travessa no chão e de como, de repente, o vizinho cordial tornou-se um perito em atendimentos de socorros. Um pouco diferente dos tradicionais, reconhecia, mas que ainda assim lhe confortava.

Os pensamentos foram sustados com o retorno do rapaz e uma pequena maleta que continha um arsenal de ponta de remédios. Bandagem, mertiolate, anti-gases, anti-refluxo, anti-histamínicos, contra dores de cabeça, prisão de ventre, dores em geral e uma caixinha com balinhas de menta, sem açúcar.

O rosto da garota afogueou-se quando ele sentou no chão, pegou em seus pés com cuidado para repousá-lo sobre sua perna. Precisava de uma boa visão para aplicar o mertiolate e os três band-aid que cobriram os ferimentos, sendo que uma das bandagens, maior e retangular, fez ela rir, refletindo que, sem dúvida, ele estava bem preparado para qualquer acidente.

Foi neste momento que eles se olharam de fato. Ela, sentada no vaso sanitário, e ele, à sua frente, no chão. Houve um primeiro momento de estranheza que passou rapidamente quando ele perguntou se ela estava bem. Ainda sem muitas palavras, agradeceu pela atenção redobrada e não pode deixar de informá-lo que este foi o momento em que mais tinham interagido, ainda que morassem um ao lado do outro há dois anos.

Ele disse que tinha problemas com as cordialidades dos vizinhos, já que ninguém atendia às suas reclamações para baixar o som alto vindo dos outros apartamentos. Eu achei que era o seu som, ele disse. Foi bom que não foi, respondeu e depois arregalou os olhos como quem diz algo sem pensar. Ele ficou desconcertado, mas disse que sim, pôde ajudá-la.

No banheiro, deixou suas bandagens para ela para que usasse nos próximos dias. Ela tentou caminhar para acompanhá-lo até a porta, mesmo ele negando. Não estou aleijada. Foi quando se lembrou de que nem seu nome conhecia. Ricardo, ele disse, e o seu é Marina. Ouço suas amigas lhe chamando, às vezes. Não que eu esteja atento, ruborizou.

Bom, Ricardo, você não quer ficar para o jantar?... E ele voltou a olhar para a cozinha. O forno, ainda aceso, a travessa grossa de vidro quebrada em seis ou sete partes e uma trilha de sangue que começava a caminhar pelos ladrilhos. E ela riu, percebendo que não era uma boa ideia.

Ele agradeceu e começou a caminhar para seu apartamento, já retirando as chaves do bolso. O metal tocou a fechadura de leve. No clique de uma volta, voltou até o apartamento de Marina. Bateu na janela de metal da cozinha e ela ainda estava lá, de costas, observando o chão, como quem produz sua estratégia de como ou por onde começar a limpar a bagunça que deixou.

Olha, eu sei que não é nada, mas tenho um congelado em casa. Que tal você me deixar responsável pela comida e você pela... Música, ela lhe interrompeu. Ele sorriu, perguntando depois: vai ser melhor que a deles? Apontando para o outro vizinho que, neste momento, ouvia uma canção sertaneja sobre os prazeres de ir para as festas, beijar todas as mulheres e se sentir bem por tudo isso.

Ela gargalhou e ele achou atraente a maneira como ela projetava a cabeça para trás, revelando um pequeno furo no queixo que ele não tinha observado. Pode confiar em mim, disse. Tenho um repertório musical melhor do que meus cuidados na cozinha. E combinaram de jantar em quinze minutos. O tempo em que o congelado ficaria ótimo para ser degustado.

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