sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Corvos

O sobretudo estava sujo; a barba crescia selvagem até seu pomo de adão, um toque de branco nas pontas dos fios. Ele caminhava, traçando um caminho tortuoso pelas ruas de Londres. Em suas mãos, a mochila com poucos pertences e uma garrafa com dois dedos restantes de rum, alternavam-se constantemente, procurando balancear o peso. Desta forma, ele incrivelmente conseguia alguns metros em linha reta. Poderia atravessar a porra do Canal da Mancha numa corda bamba, pensou pouco antes de se escorar na parede mais próxima.
Um policial se aproximava. O mendigo prontamente ajustou a postura e procurou uma bala que tinha num dos bolsos. Colocou-a na boca alguns segundos - saboreando a menta artificial - para depois voltar o doce para o mesmo bolso. Com o tempo, descobrira que hálito era um importante fator para conversar com os policiais que o abordavam. Por isso, sempre que podia, dava preferência para a vodka. Vodkas não deixavam cheiro e rapidamente alcançavam o grau ideal de torpor. Algo menos do que a quantidade perfeita de bebida para afundar seu cérebro no confortável véu do álcool e ele começava a pensar no que havia deixado para trás. E em corvos. Corvos de todos os tamanhos e - um pesadelo recorrente - um único corvo de três patas.
“Vamos, campeão, circulando”, disse o policial, retirando a tonfa da cintura.
O homem tentou caminhar, mas dá um passo em falso, denunciando a embriaguez. “Só preciso me sentar um pouco, senhor Corvo. Só alguns minutos e estarei bem.”
Fazendo uma careta, o policial continuou: “Corvo? Vocês fodem essa cidade, pelos diabos. Nove da manhã de uma quarta-feira ensolarada e já bêbado. Sabe o quanto é raro um sol desses por aqui? Se você tivesse de enfrentar a cara da minha mulher todas as manhãs, teria desculpa para beber, campeão. Mas assim? É apenas… uma merda. Nada pessoal, no entanto. Apenas fazendo meu trabalho.” Esticou a perna e enxotou o mendigo espalhado pela calçada toda.
“Me deixe em paz, não consigo andar. Vá embora, voe para longe. Não faça como antes, quando estávamos desaparecidos e a mamãe chorava toda a noite, porfavorporfavorporfavor…”, ele começou a chorar e sua voz se tornou mais e mais aguda.
“Ei, ei, ei. Está bem, eu te dou alguns momentos” O policial dobrou as pernas e se sustentou no mesmo muro que o mendigo e ficaram, lado a lado por alguns segundos. “Como você veio parar nas ruas?”, ele perguntou. Se tinha de esperar para removê-lo, pelo menos escutaria uma boa história.
O mendigo tirou a tampa da garrafa e deu um demorado gole e ofereceu para o policial. Ficou surpreso quando a garrafa foi puxada de sua mão e lançada para dentro de uma lixeira ao redor. “Bem, ela já estava seca mesmo.” Passou a língua nos lábios e prosseguiu: “Você não acreditaria na minha história, sou apenas um velho bêbado.” O policial respondeu girando o dedo indicador de uma das mãos: pare de enrolar e conte logo. “Quando eu era pouco mais que um pirralho, eu e meu irmão entramos em um bosque e desaparecemos por alguns dias. Ou semanas, já não me lembro. Acho que éramos em cinco ou seis crianças. Mas apenas eu retornei. Você pode facilmente encontrar essa história nos jornais. Foi uma confusão só. Todos queriam saber onde eu fiquei, o que aconteceu e onde estavam as outras crianças mas… eu simplesmente não sei. Não me lembro do que aconteceu nesse tempo. Ou onde estava o meu irmão, ou os outros. Merda, sequer sei porque fui o único a escapar. Nos próximos anos, psicólogos, drogas, hipnose… todo o procedimento padrão se desenrolou. Na minha cabeça, apenas as asas negras do corvos. Eu sonhava com pássaros negros quase todas as noites e algumas vezes eles falavam comigo, alguns me chamavam de traidor, outros de irmão. O único que não repetia estas palavras era um corvo que parecia ser o líder, um corvo de três patas. Suplicava para que eu entrasse novamente na Bruma. Não uma bruma qualquer, mas uma com B maiúsculo. A Bruma. Loucura, não?” O mendigo passou as mãos nos lábios secos e reclamou: “Você não devia ter jogado meu álcool fora. Foi sacanagem.”
“E depois? Acharam seu irmão?”
“Nunca. A única coisa que acharam no bosque em que nos perdemos - e que não existe mais - foram muitas penas de corvos.” Como se tivessem escutado o que diziam, dois corvos pousaram na calçada, há poucos metros de onde estavam. O policial tentou espantá-los, mas eles continuaram a pular, procurando migalhas no chão. Tentou negar o dedo frio que subia por sua coluna, mas falhou miseravelmente.
“Fugi de casa na primeira oportunidade, desapareci como se nunca houvesse existido naquele teto”, continuou o mendigo. De repente, senti que precisava encontra a tal Bruma, havia uma voz que não a minha em minha cabeça e ela gritava o tempo todo. Vá para o Bosque e entre na Bruma, seu irmão precisa de você! A mesma coisa, todos os dias, todas as horas e em cada maldito minuto. Eu saí de casa, depois da cidade e, no fim das contas, vaguei por todos os cantos do mundo. Em poucos meses gastei tudo que consegui e sobrevivi com o dinheiro de trabalhos menores, virando hambúrgueres, pintando casas ou deixando piscinas limpas para as festas durante o fim de semana. Fiz coisas das quais não me orgulho e vez ou outra flertei com químicos mais pesados que aquele rum ali. Morei na Bolívia, no Egito, nas Coréias e Austrália.” Viu que agora, quase uma dezena de corvos estavam amontoados ao redor.
Uma fina camada de nevoeiro começava a cobrir a rua e o policial olhava para cima, confuso com a névoa que persistia, apesar do sol forte.
“Nunca consegui parar em um só lugar. Algo… essa mesma voz alienígena em minha cabeça, me mandava seguir adiante, procurar pela Bruma. Sentia-me cada vez mais como um pássaro fora do ninho, que voou para longe e se perdeu, um corvo solitário que procura pelas outras partes de uma identidade quebrada.” O mendigo olhava os pássaros, quase como se pudesse entendê-los. O policial estudava seu rosto, tendo a certeza que via pontas negras crescerem dentre a barba hirsuta. Um corvo?, perguntou-se no instante em que foram engolidos por uma névoa pesada e escura, vinda de lugar nenhum.
A névoa subiu rapidamente e logo estava alcançando o segundo andar dos prédios. O policial podia escutar dezenas - ou seriam centenas? - de asas batendo em todos os cantos do mundo, ao que parecia. De repente, a névoa mudou. O policial sentiu um espécie de bolha se formando, englobando toda o centro de Londres. Vozes começaram a surgir e os corvos grasnaram vigorosamente. Sem conseguir acreditar no que acontecia, o policial compreendeu duas palavras dos pássaros: traidor e irmão. O mendigo se levantou e começou a caminhar lentamente, produzindo o som afogado de lágrimas escorrendo para dentro da garganta, concordando com as vozes como se finalmente se lembrara de algo há muito esquecido. Por alguns instantes, ele viu o mendigo como um corvo gigantesco e contou três patas. “Me diga seu nome, posso ajudá-lo a--”
“Nomes são poderosos, agora eu me lembro. Não posso entregá-lo assim, Policial.” O homem-corvo disse a palavra como se fosse o verdadeiro nome do homem que ainda estava agachado na calçada. “Dizer meu nome seria como entregar minha alma, deixá-la em suas mãos. Cráá”, o som saiu de sua garganta, horrível e rouco. “Preciso ir, eles me esperaram o suficiente e os Pesadelos estão cada vez mais fortes. É fácil, como não percebi antes? Só preciso seguir a luz do Farol.”
Tão rápido quanto subiu, a névoa desceu e se extinguiu. O policial se viu sozinho, encostado em um prédio qualquer de Londres, sentindo o uniforme grudado na pele. Tudo se tornou sem sabor e a realidade parecia… menos real. Como se ele estivesse em um dos mundos dentro de um dos Universos. Bem, ele pensou, é um entendimento que desqualifica o Universo enquanto Uni.

Sem o mendigo por perto - ou os corvos, se isso importar, ele fez a única coisa que lhe pareceu plausível: levantou-se e pegou a garrafa de rum. Poucos instantes depois, sua garganta não estava mais seca.

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