quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Um Corderinho, Dois Cordeirinhos

- Era diferente, naquele tempo – me contava o velho Jones, amigo do meu falecido avô – bem diferente. Por mim, teria pego aquele menino, amarrado na árvore mais próxima, cortado as vísceras, esperando que o lobo viesse para comê-lo. Merecia por nos atazanar.

Não contive meu espanto e Jones percebeu a contração em meu rosto.

- O quê? Acha que no meu tempo não fazíamos isso? Fomos diversas vezes acudir o garoto, saindo às pressas, deixando o trabalho ou doses de birita pela metade, com a arma em punho, para quê? Vê-lo gargalhando de nossa preocupação? Por mim, amarrava. Deu no que deu.

E tomou o gole final do café batendo com o copo vazio com o jornal matinal que destacava a prisão de Pedro após uma série de latrocínios.

A história não era nova para mim. Meu falecido avô Matias contava-me essa história de sua juventude. Colocava-me no colo, dizia que, na época dele, a vila era rodeada por florestas e que havia muita fauna selvagem. Pelo perigo constante, a maioria dos homens andava armada para eventuais problemas, não importava de qual espécie, humana ou animal.

E foi nesse tempo que o garoto Pedro, de cabelos dourados, permaneceu um mês pregando peça nos mais velhos. Ia até a divisa da vila com a floresta e gritava a plenos pulmões sobre um ataque de lobos. Os homens empunhavam suas armas, preparados para lutar, as mulheres recolhiam seus filhos e a vila inteira se preparava para um ataque que nunca acontecia. Dizem que um tempo depois o garoto foi atacado por um lobo, um de verdade. Mas nessa época, ele tinha se acostumado a contar mentiras.

Órfão de mãe, o garoto vivia com o pai bêbado. Não era tão ruim, dizia meu avô, mas o garoto vivia em uma das piores casas da vila, sempre sujo, com uma cara ensebada que só não escondia sua perversão.

Depois do caso com os lobos, começou a maltratar os animais da cidade. Encontraram um cachorro preso em uma cruz na época de Páscoa. Todos acusaram o garoto. Mas o pai, entre um gole e outro de birita, fedendo a graxa e suor, dizia que seu filho era um anjo.

Aos dezesseis engravidou Ismália, uma menina franzina de seios pequenos que tanto meu avô quanto Jones me disseram que parecia um menino. Cabelo curtinho, queixo protuberante, dava dó, disseram. A princípio, disse que iria assumir o bebê, mas esta foi a primeira vez que fugiu. Evaporou como álcool. Seu Joaquim, pai de Ismália, organizou um bando para procurar o garoto. Foi de cidade em cidade atrás de Pedro, mas ele não apareceu.

Descobriram muito tempo depois que o garoto havia roubado gado em outro estado e passou um tempo na prisão. Prisão não, que menor não ficava preso. Era uma casa de retenção, disse meu avô. Destinada aos menores infratores para se recuperarem. E Pedro voltou de lá mudado. Tinha aprendido a matar.

Saiu ao fazer dezoito anos, mais forte e com um olhar baço que meu vô dizia que lhe deixava assustado. Voltou pra vila pra assumir o filho de Ismália, mas o pai havia mandando a garota para a capital, na casa de uma tia. Pedro brigou pelo endereço, mas, mesmo após um talho de faca no abdômen, o velho não disse. Foi a última vez que a vila viu o garoto, que disse que iria até o inferno para caçar seu filho.

As notícias que chegavam vinham com fama lendária. Eram bárbaras se comparadas à traquinagem de menino de Pedro com os lobos. Alguns diziam que ele cuidava de uma fazenda, assassinava boias-frias pela estradas, outros afirmavam que se endireitou e pregava o evangelho.

Então, quando o jornal estampou a foto de um rapaz com nome e sobrenome, e origem, a mesma vila do meu avô, eu fui atrás do velho Jones para confirmar se esse era o Pedro da lenda. Eu fazia poucas visitas a Jones porque ele lembrava meu avô. Doía fundo no peito. Mas, naquela manhã, a vila toda parecia mais iluminada. Como se a prisão de Pedro fosse uma redenção. O mal que retorna à Caixa de Pandora onde nunca deveria ter saído.

Passamos a manhã toda entre cafezais conversando sobre o passado. A ferida cravou-se fundo em meu peito e o velho Jones também sentia a falta de vovô. A ponta dolorida do passado não deixava o presente mais triste. Era impossível não mencionar Pedro que, desde a fundação da vila, havia feito traquinagens com lobos, animais, Ismálias e o que mais sua mente doentia poderia fazer. Havia um júbilo no ar que, mesmo sem percebermos, nos deixava com mais dentes no sorriso. Depois de acabar mais uma xícara de café moído na hora, o velho Jones virou-se pra mim com olhar renovado.

- É aquela velha moral, meu filho – fez uma pausa de suspense – filho da puta é sempre filho da puta.

E rimos um bocado.

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